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VII ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE
OS CAMINHOS DA HISTÓRIA DA ARTE DESDE GIORGIO
VASARI: CONSOLIDAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA
DISCIPLINA
De 20 a 23 de setembro de 2011
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
Programa de Pós-graduação em História da Arte
Campinas
2012
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR
CECÍLIA MARIA JORGE NICOLAU – CRB8/3387 – BIBLIOTECA DO IFCH
UNICAMP
En17
Encontro de História da Arte, 7., Campinas, SP, 2011.
VII Encontro de História da Arte: os caminhos da história da
arte desde Giorgio Vasari / Gabriela Lodo... [et al.],
(organizadora). - - Campinas, SP : UNICAMP/BC/IA, 2012.
552 p. : il.
1. Vasari, Giorgio, 1511-1574. 2. Arte – História. 3. Crítica de
arte. 4. Historiografia. 5. Arte - Teoria. I. Lodo, Gabriela
II. Universidade Estadual de Campinas. III.Título.
CDD -709
-701
- 907.2
ISBN 9788586572487
Índices para catálogo sistemático
Arte – História
Crítica de Arte
Historiografia
Arte – Teoria
709
701
907.2
701
Organizadores:
Gabriela Lodo
Isabel Hargrave
Larissa Carvalho
Luna Lobão
Maíra Canina Silvestrin
Natália Casagrande Salvador
Richard Santiago Costa
Tameny Romão
Apoio:
Secretaria de Eventos – IFCH
Proex/CAPES
Apresentação
O Encontro de História da Arte é um evento surgido em 2004, a partir da iniciativa do
corpo discente do Programa de Pós-graduação em História, Área de Concentração História da
Arte, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Desde sua primeira versão, o
Encontro de História da Arte tem os seguintes objetivos gerais: estimular a divulgação de
estudos de História da Arte no país, através da apresentação de trabalhos e de sua publicação;
contribuir para o desenvolvimento de novas pesquisas nas áreas de Teoria, Crítica e História da
Arte; promover debates e reflexões sobre temas relevantes em História da Arte; cooperar com o
aperfeiçoamento dos métodos de ensino de História da Arte no país (graduação e pósgraduação), visando a melhor formação do historiador da arte, bem como estabelecer condições
de intercâmbio com outras instituições do país em torno de interesses relacionados à disciplina.
Aproveitando a celebração dos 500 anos do nascimento de Giorgio Vasari, por muitos
considerado o “pai” da História da Arte, a sétima edição do Encontro de História da Arte teve a
intenção de refletir sobre os caminhos percorridos por essa disciplina, no exterior e no Brasil.
Seguindo a tendência dos eventos anteriores, o tema de nossa reunião em 2011 almejou ser
amplo o bastante para abranger diversas áreas da História da Arte atual, pensada em sua relação
com as políticas públicas e com as diversas instituições culturais nacionais e estrangeiras. Assim,
um dos objetivos do encontro foi favorecer um intercâmbio com as demais áreas da disciplina de
forma a estreitar trocas e incentivar pesquisas multidisciplinares.
No que diz respeito às sessões de comunicações livres – cujos textos estão reunidos na
presente Ata –, como o próprio termo já aponta, não necessitaram estar submetidas a nenhum
recorte temático. Como nos anos anteriores, os comunicadores, das mais diversas procedências,
estiveram livres para apresentar os resultados de suas pesquisas, com a única obrigatoriedade de
articulá-los com o campo da História da Arte, Teoria e Crítica de Arte.
Em sua sétima edição, o Encontro atingiu tamanho patamar de importância que pôde contar
com a presença de pesquisadores estrangeiros de renomadas instituições acadêmicas tais como a
Università de Torino, a Università de Pisa, a Università de Roma III e o Kunsthistorisches
Institut in Florenz. Além disso, o evento continua a se beneficiar com a participação e o
reconhecimento do qualificado corpo docente do Departamento de História da Arte do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, que tem incentivado com interesse e dedicação
todas as suas edições até o momento. Lembramos também, e agradecemos, a participação
indispensável dos funcionários da Secretaria de Eventos do IFCH, bem como o suporte que nos
foi dado pelos responsáveis pelos auditórios da Biblioteca Central e do Instituto de Artes.
Ressaltamos o precioso auxílio dos órgãos de fomento que ajudaram a financiar o evento: a
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), do Proex/CAPES e da PróReitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PREAC) da UNICAMP.
Comitê Organizador
ÍNDICE
CHABLOZ VÊ CHICO, CHICO VÊ CHABLOZ: ESTUDO DE CONCEITO DE ARTE
PRIMITIVA NA OBRA PICTÓRICA DE CHICO DA SILVA .................................................... 12
Adriana Barroso Botelho
O SANTO EM IMAGENS: RELAÇÕES ENTRE CONCEPÇÕES DE SANTIDADE E
ICONOGRAFIA NA ÉPOCA MODERNA .................................................................................. 20
Aldilene Marinho César Almeida Diniz
O INFORMALISMO NO BRASIL: LOURIVAL GOMES MACHADO E A 5ª BIENAL
INTERNACIONAL DE SÃO PAULO ......................................................................................... 31
Ana Cândida F. de Avelar Fernandes
CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS SOBRE A OBRA DE ARTE: A DESCRIÇÃO VERBAL E A
REPRODUÇÃO POR IMAGENS ................................................................................................ 41
Ana de Gusmão Mannarino
A BIENAL DE 1961: A ATUAÇÃO DE MÁRIO PEDROSA ..................................................... 49
Ana Maria Pimenta Hoffmann
RETORNO À PINTURA-PINTURA: ABSTRAÇÃO INFORMAL E O DISCURSO CRÍTICO
DE ANTÔNIO BENTO ................................................................................................................ 58
Ana Paula França
DESENHO, PROJETO E INTENÇÕES EM ARQUITETURA. CONSIDERAÇÃO SOBRE
PROJETOS NÃO-CONSTRUIDOS ............................................................................................. 65
Ana Tagliari; Wilson Florio
IMAGENS DA CIDADE: ITU NA FOTOGRAFIA DE SETIMO CATHERINI ........................ 77
André Luís de Lima
DIALÉTICA DAS FORMAS: A TEORIA DO ELEMENTO ADICIONAL EM PINTURA DE
KAZÍMIR MALIÉVITCH ............................................................................................................ 87
Angela Nucci
UMA METODOLOGIA CRÍTICA SEGUNDO O LÁZARO DE SEROVEGNI........................ 96
Antônio Leandro Barros
PIERRE RESTANY: A PASSAGEM PARA A “ANTICARREIRA” ......................................... 107
Caroline Saut Schroeder
FONTES GRAVADAS DE ALGUMAS PINTURAS DA CAPELA DA SANTÍSSIMA
TRINDADE EM TIRADENTES ................................................................................................ 112
Clara Habib de Salles Abreu
A PINTURA DA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM DIAMANTINA (MG):
AUTORIA ENCONTRADA ....................................................................................................... 127
Danielle Manoel dos Santos Pereira
DO QUADRO-OBJATO CUBISTA AO NÃO-OBJETO NEOCONCRETISTA: UMA ANÁLISE
A PARTIR DAS LEITURAS DE FERREIRA GULLAR E MÁRIO PEDROSA ...................... 140
Diogo Vieira de Almeida
VEREDAS NO GRANDE SERTÃO: APORTES DA HISTÓRIA DA ARTE PARA O ESTADO
DA CRIAÇÃO POPULAR ......................................................................................................... 145
Everardo Ramos
SÃO JERONIMO NOS TROPICOS. O UN SAVANT TRAVAILLANT DANS SON CABINET DE
DEBRET ..................................................................................................................................... 165
Fernando Morato
O DESENHO E A ARQUITETURA EM LEON BATISTA ALBERTI E GIORGIO VASARI . 180
Fernando Guillermo Vázquez Ramos
ARQUITETURA BANDEIRISTA NA SERRA DO ITAPETI: UM CASO INTERESSANTE
PARA O ESTUDO DA ARQUITETURA COLONIAL PAULISTA .......................................... 192
Francisco de Carvalho Dias de Andrade; Eduardo Costa
“DA ADVERSIDADE VIVEMOS!” – A INFLUÊNCIA DAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS
NORTE-AMERICANAS E INGLESAS NO TROPICALISMO ............................................... 200
Gabriel Barbosa dos Santos
MARTA TRABA E A CONSTRUÇÃO DE DUAS HISTÓRIAS DA ARTE NA AMÉRICA
LATINA ...................................................................................................................................... 209
Gabriela Cristina Lodo
VI JAC: EXPERIMENTAÇÃO NA CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL DA HISTÓRIA DA
ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA .............................................................................. 219
Heloisa Olivi Louzada
A REFLEXÃO SOBRE A PASSAGEM DO TEMPO E SUAS REPRESENTAÇÕES NO
RENASCIMENTO ...................................................................................................................... 226
Isabel Hargrave Gonçalves da Silva
ALCOVA TRAGICA DE GIUSEPPE AMISANO E A BELLE ÉPOQUE PAULISTANA ......... 236
Letícia Badan Palhares Knauer de Campos
REVISÕES FEMINISTAS DAS HISTÓRIAS DA ARTE: CONTRIBUIÇÕES DE LINDA
NOCHLIN E GRISELDA POLLOCK ....................................................................................... 250
Lina Alves Arruda
A MISSÃO ARTÍSTICA DO PRIMEIRO MASP: UM ESTADO DA CONCEPÇÃO DE
PIETRO MARIA BARDI PARA O MASP EM SEUS PRIMEIROS 20 ANOS ........................ 256
Luna Lobão
O TELHADO DE CUMBO: REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA E A ARTE NA OBRA DE
ANSELM KIEFER ..................................................................................................................... 266
Márcia Helena Girardi Piva
O ATELIÊ GÉRÔME: A FUSÃO ENTRE A TRADIÇÃO DA ÉCOLE DES BEAUX-ARTS COM
A JOVIALIDADE DO MOULIN ROUGE ................................................................................. 276
Marcela Regina Formico
O CORPO SONORO SOB O COMANDO DA COR: FLÁVIO DE CARVALHO E OS ANOS
30 ................................................................................................................................................. 293
Marcelo Téo
A ARTE CONTEMPORÂNEA E O MUSEU: DESAFIOS DA PRESERVAÇÃO PARA ALÉM
DO OBJETO ............................................................................................................................... 305
Mariana Estellita Lins Silva
ALGUNS APONTAMENTOS ACERCA VÉNUS MARINE DE THÉODORE CHASSÉRIAU.
IMPULSOS FEBRIS ................................................................................................................... 310
Martinho Alves da Costa Junior
FUNDAÇÃO DE SÃO PAULO: A ORIGEM DA CIDADE REPRESENTADA POR OSCAR
PEREIRA AS SILVA E ANTÔNIO PARREIRA ........................................................................ 321
Michelli Cristine Scapol Monteiro
A STORIA DELLA MUSICA NEL BRASILE DE VINCANZO CERNICCHIARO (1926) ........ 334
Mônica Vermes
FONTES PARA UMA ANÁLISE DA PINTURA PAULISTA DO SÉCULO XVII AO XIX: OS
PINTORES, AS OBRAS E OS RESTAUROS ........................................................................... 340
Myriam Salomão
UMA OUTRA HISTÓRIADOS MUSEUS DE SÃO PAULO: AS PINACOTECAS
MUNICIPAIS DO INTERIOR PAULISTA ................................................................................ 349
Patrícia Bueno Godoy
TRÊS TEXTOS NO INÍCIO DE UM DEBATE: NEOCONCRETISMO E MINIMALISMO . 360
Patricia Leal Azevedo Corrêa
GRUPO SANTA HELENA E O UNIVERSO INDUSTRIAL PAULISTA (1930-1970) ........... 366
Patrícia Martins Santos Freitas
O DESAFIO DE LEVAR A HISTÓRIA DA ARTE À COMUNIDADE: A CATEDRAL
METROPOLITANA DE CAMPINAS ....................................................................................... 378
Paula Elizabeth de Maria Barrantes
A AMBIGUIDADE DO SER: PAIXÃO E MELANCOLIA NAS REPRESENTAÇÕES DO
FAUNO NO SÉCULO XIX ....................................................................................................... 390
Paulo André Gomes Soares
UM BIÓGRAFO NO DIVÃ: AUTO-IMAGEM, TRAJETÓRIA, MODÉSTIA E
ENGRANDECIMENTO NAS VITE DE GIORGIO VASARI ................................................... 397
Pedro Henrique de Morais Alvez
O MISSAL DA REGIA OFFICINA TYPOGRAPHICA E SEU LEGADO NA PINTURA
ROCOCÓ MINEIRA: UMA REFUTAÇÃO À INFLUÊNCIA DE BARTOLOZZI ................. 405
Pedro Queiroz Leite
PAULO HARRO-HARRING E A REVOLUÇÃO: CORRELAÇÕES POSSÍVEIS ................. 416
Rafael Gonzaga de Macedo
LODOVICO DOLCE E GIORGIO VASARI: CONEXÕES ...................................................... 430
Rejane Bernal Ventura
AS OBRAS DE GINO SEVERINI NA COLEÇÃO DO MUSEU DE ARTE
CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ............................................... 438
Renata Dias Ferrareto Moura Rocco
“CRISTO EM CAFARNAUM”, AMOEDO EM PARIS ............................................................ 448
Richard Santiago Costa
O ESPAÇO REPRESENTATIVO DE UMA INSTITUIÇÃO: A EXPOSIÇÃO DE 1882 NO
LICEU DE ARTES E OFÍCIOS .................................................................................................. 463
Rosangela de Jesus Silva
ANOS 60: TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO ARTÍSTICO E NA ARTE NA ARGENTINA
..................................................................................................................................................... 473
Simone Rocha de Abreu
TEORIAS, ESTRATÉGIAS E LUGARES DO DISCURSO FEMINISTA NA ARTE
BRASILEIRA DOS ANOS 60 E 70 ........................................................................................... 485
Talita Trizoli
IMAGEM&VER(A)CIDADE – OBRAS DE ARTE URBANA E SUAS CONTRAPARTIDAS
DIGITAIS .................................................................................................................................... 497
Vanessa Gonçalves de Almeida Rosa
A INSTALAÇÃO DE VÍDEO E A MONTAGEM DE ATRAÇÕES EM ARTHUR OMAR .... 507
Wagner Jonasson da Costa Lima
OS RELATOS DE GIORGIO VASARI E DE ASCANIO CONDIVI SOBRE AS ESCULTURAS
DA VIDA ATIVA E DA VIDA CONTEMPLATIVA DO SEPULCRO DE JULIO II, DE
MICHELANGELO ..................................................................................................................... 515
Waldemar Gomes
A HISTÓRIA DA ARTE DO ISLÃ – EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE ........................... 525
Youssef Cherem
O DESENHO E A ARQUITETURA EM LEON BATTISTA ALBERTI E GIORGIO
VASARI.......................................................................................................................................526
Fernando Guillermo Vázquez Ramos
HISTÓRIA DA ARTE E MUSEOLOGIA – A EXPERIÊNCIA COM O ACERVO BANERJ
.....................................................................................................................................................545
Viviane Matesco
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
CHABLOZ VÊ CHICO, CHICO VÊ CHABLOZ: ESTUDO DE CONCEITO DE ARTE
PRIMITIVA NA OBRA PICTÓRICA DE CHICO DA SILVA
Adriana Barroso Botelho*
Em uma tradição da história da arte ocidental, no Ceará encontram-se influências ou
vestígios de todos os movimentos artísticos que se desenvolveram no país. Esse percurso
abrange da pintura rupestre, o barroco, neoclássico aos movimentos modernos.
O diálogo que se fazia à época com as tradições artísticas européias era determinante
para a aceitação das obras de arte. O artista e crítico franco-suíço Jean Pierre Chabloz, chegando
ao Rio de Janeiro em 1940, percebe essa característica no país e escreve textos em que critica a
ausência de uma arte mais separada dessa tradição. Busca, então, uma pintura com raízes locais,
fala de um arcaísmo, uma forma mais original, fundamentadora de uma expressão artística mais
própria de uma cultura distinta e local. Onde andariam essas raízes?
Chabloz desenvolveu atividades artísticas na cidade, ensinou violino no Conservatório
Alberto Nepomuceno, foi conferencista e crítico de arte. Escreveu para o jornal O Estado, entre
janeiro de 1944 e o final de 1945, no período de sua primeira passagem em Fortaleza. Seus
artigos dominicais publicados na coluna intitulada Arte e Cultura informavam sobre pintura,
música, mercado de arte e falavam também sobre comportamento dos habitantes locais em
relação à arte. Em 1944, participa da SCAP (Sociedade Cearense de Artes Plásticas) junto a
outros artistas.
Em 1943, conhece os desenhos de Chico da Silva na Praia Formosa e vê aí, naquele
homem, o que procurava.
O olhar através da pintura: un indien re-invente la peinture...
Em seu texto original escrito em francês, publicado como um capítulo no livro com título
“Revelação do Ceará”, Jean Pierre Chabloz narra seu primeiro contato com Chico da Silva, seus
desenhos e o que percebeu sobre sua obra. Esses depoimentos e escritos construíram um traço
em sua identidade artística, vinculando uma possível origem indígena a certas características
artísticas, um desses marcos foi com o conceito de primitivo.
Nesse texto, ele previamente, chama a atenção para o nome de Francisco Silva, nome
que se distingue por ser muito comum e por ser “uma etiqueta acidental” para:
*
Mestre em Artes Visuais (EBAUniversidade Federal do Rio de Janeiro)
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
[...] um autêntico aborígene de pele acobreada, cuja infância selvagem decorrera nas
regiões longínquas e misteriosas do Alto Amazonas. Simpaticamente nômade,
gloriosamente primitivo, divinamente analfabeto, o índio Francisco Silva era, sobretudo,
um maravilhoso artista a quem nada faltará, até então, a não ser uma ocasião favorável
para revelar plenamente seus dons extraordinários. E, como vamos ver, o destino me
escolheu como instrumento desta revelação. (CHABLOZ, 1993:149)
Um autêntico aborígene, nômade e primitivo vindo do Alto Amazonas, são as
características descritas. No trabalho de campo, entrevistando os artistas que trabalharam e
conviveram intimamente com Chico foi posta esta questão.
Questionados sobre a possível origem, seus contemporâneos afirmaram nada poder
comprovar, mas descrevem atitudes fazendo uma relação. E, em geral, afirmam que Chico era
índio pelos costumes. Que tinha como hábito frequente andar de dorso nu. Tinha o espírito
coletivo, acolhendo a todos que chegassem. Para eles, o que mais afirmava essa origem era
pensar o dia com sua provisão diária, não importando se no outro dia não tivesse dinheiro:
gastaria tudo no mesmo dia. Tinha características físicas indígenas. Em casa comia em bacias e
sentava no chão ao comer. E no dia a dia era homem de histórias inventivas e fabulosas, era
extrovertido e falava com todos, sem distinções. São vozes recorrentes numa maneira de
percebê-lo. Indaguei, para perceber a relação dessas características pessoais com sua pintura.
Baba, artista que conviveu pintando com Chico, diz:
Ele pintava uns pássaros, uns peixes, umas coisas muito exóticas. Muito louca,
assim, muito dele mesmo, primitivo que ele era. Ele era um primitivo mesmo,
não era somente um pintor primitivo ele era uma pessoa primitiva. Eu comparo
com os primeiros homens a desenhar com os homens das cavernas. Chico era um
homem sem maldade, sem ganância, sem ambição. Uma coisa que era dele, ele
queria que fosse de outras pessoas também. (BOTELHO, 2007:78)
E o pesquisador e artista Gilberto Brito acrescenta; “Como pintor, eu o acho formidável
porque ele inventa. Ele brincava pintando, ria, bebia cerveja, imitava bicho. Ele era um
brincalhão, não levava nada a sério. Ele era um andarilho. Ele era uma pessoa de mata que
conhecia bicho. Ele é filho de índio caboclo, tá na cara”. E continua falando sobre a família:
“Teve a história da criação com os índios, ele deve ter sido criado sem pai nem mãe. Um
sofrimento horrível, o fato é que isso na vida dele nunca pesou. Se veio de uma tribo, aldeia, não
gostou, pois veio para cá. Mas tudo isso é hipotético”. (BOTELHO, 2007:85)
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Roberto Galvão, conta que certa vez apareceu um rapaz de Quixeramobim que teria se
apresentado como sobrinho de Chico e que existem registros e depoimentos que comprovam
que Chico viveu sua adolescência na fazenda de café de dona Lisbânia, em Guaramiranga,
região serrana do Ceará. E o artista Claudionor informa; “Fazia comida pra quem chegasse,
estragava, o Chico era doido. Ele comprava uma banda de um porco todinho e mandava a dona
Dalva colocar no fogo. O Chico era fartíssimo! Você pode gravar isso”. (BOTELHO, 2007:87).
De Caura, artista e esposa do marchand Henrique Bluhm, diz: “E o Chabloz falava do
Chico como um deus. Ele dizia: isso é uma coisa estupenda, mas é um louco. Um grande artista!
Basta dizer que o Chico da Silva está registrado na maior revista de arte do mundo, a Cahier
D’Art, da França, o Chabloz trouxe e mostrou a gente, o maior pintor primitivo do mundo, o
Chico da Silva”. (BOTELHO, 2007:89)
Quando avistou os desenhos esboçados em carvão e giz nas paredes das casas da Praia
Formosa, procurando conhecer a pessoa que tinha realizado tais desenhos, descreve sua
impressão acerca dos desenhos que o moveria em busca do autor, “O que me chamou a atenção
e me seduziu logo nesses desenhos elementares foi sua originalidade, seu estilo nitidamente
arcaico e seu admirável poder de evocação poética”. (CHABLOZ, 1993:149, 150)
Chabloz encontra Chico e encomenda-lhe três desenhos, pagando antecipadamente.
Entrega-lhe papel, tintas, lápis, pincéis, e posteriormente analisa-os; “Havia ali duas grandes
composições executadas em pastel e uma menor feita a nanquim e lápis de cores. Devo dizer
que as duas primeiras me decepcionaram um pouco: eram “tímidas” e mesmo malfeitas, com um
caráter mais pueril do que primitivo” (CHABLOZ, 1993:151). Tem uma que o encanta e faz
com que ele decida continuar próximo ao Chico, estimulando-o.
Mas felizmente havia a terceira tentativa, de formato menor, mas de qualidade
nitidamente superior. Tão superior mesmo que, imediatamente, me fez voltarem
todas as esperanças. O assunto escolhido por Silva era dos mais simples: um
pássaro-fêmea e quatro filhotes. Mas a composição (os filhotes, apresentados de
perfil, dispostos como raios em torno da mãe), a expressão selvagem dos olhos, a
sobriedade do colorido, o efeito altamente decorativo do conjunto, tudo
contribuía para fazer dessa criação espontânea uma pequena obra-prima de arte
primitiva que se tornou o ponto de partida de uma maravilhosa coleção de
“Silvas” [...]. (CHABLOZ, 1993:151)
Chabloz permaneceu em contato com Chico e continuou fazendo encomendas de suas
pinturas. Sua produção era irregular, mas permanente. Diz que Chico, nesse início, permaneceu
fiel a um universo poético e foi progredindo em um domínio técnico e artístico. Chabloz se via
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
encantado com “[...] a rara sensação de assistir a uma verdadeira reinvenção da pintura”. Nesse
movimento contínuo, percebe fases em sua pintura que, especifica, poderiam ir de um
impressionismo ao surrealismo. Porém, de uma arte espontânea como a que via, era o fato de
que, “apesar de suas oscilações”, era “essencialmente primitiva” (CHABLOZ, 1993:152).
Explica que evitava falar das convenções artísticas com Chico para não influenciá-lo,
tirando dele sua espontaneidade: “Para que este pequeno milagre durasse e se expandisse ao
máximo, era indispensável que o miraculado não saísse de seu paraíso natural” (CHABLOZ,
1993:152). Percebo neste trecho que o acesso de Chico às convenções artísticas “européias” era
visto por Chabloz, como interferência a suas convenções “particulares”.
Chico, em contato com as pinturas a óleo de Chabloz, teria pedido que o ensinasse a usar
esses materiais, como também, as técnicas para representação de figuras. Chabloz o desestimula,
recusando seu pedido. Sob o seu ponto de vista isso traria o fim de sua arte, pois o óleo para ele,
por ser muito pesado, opaco, enfim muito material, teria sido mortal para suas delicadas visões
poéticas. E no uso da figuração, cita o exemplo de uma pintura de Chico por título Iracema
caçadora, que foi para Chabloz, uma representação “lamentavelmente primária”. Sobre esse
episódio, Ivan de Assis, relata;
Antes do Chabloz descobrir o Chico, eu já desenhava, e eu sempre me interessei
por arte mas eu nunca tinha visto uma pintura antes, ao vivo, e a primeira que eu
vi foi a do Chico. “Você lembra dessa pintura?” Lembro, era uma Iracema
pintada numa cartolina. Esse trabalho do Chico foi que me despertou, mas antes
eu só riscava, depois eu comecei a riscar para ele e pouco tempo depois comecei
a pintar junto com ele, porque o estilo dele é de um estilo muito fácil e aí eu
absorvo muito rápido [...] (BOTELHO, 2007:91).
Chabloz mostra as pinturas de Chico por onde anda, Fortaleza, Rio de Janeiro, Genebra,
Lausanne, Lisboa, e comenta a repercussão, algumas desfavoráveis que geravam reprovações do
tipo: “meu filho faria iguaizinhas”. No entanto é na aprovação e no sentido de quem vê o que
viu que ele comenta que esses, os que vêem, “[...] possuem esses olhos diretamente ligados ao
coração, e através dele, têm livre acesso ao reino encantado do Sonho e da Poesia. Os bemaventurados que souberam ver no maravilhoso universo de Francisco Silva, o índio, o que eu
próprio tinha visto”. (CHABLOZ, 1993:154)
E sobre a possibilidade de entrar no mercado de arte, vê com desconfiança, indagando-se
se “[...] teria ele a constância necessária para produzir, ou criar regularmente? Canalizar a fonte
misteriosa de sua inspiração não equivaleria a esgotá-la, pura e simplesmente?” E repensa que
essa incorporação ao mercado traria para sua arte espontânea “as aplicações demasiadamente
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
prosaicas”. E conclui que a pintura mural, ponto inicial de Chico, talvez fosse a possibilidade
de manutenção de sua arte “primitiva autenticamente brasileira” (CHABLOZ, 1993:155). E
assim, redimiria o percurso natural e autêntico da arte brasileira que foi privado pela influência
européia.
Foi nesse contexto que se deu tal contato permanente entre os dois. Chabloz encontrara
uma arte mais distinta da das correntes européias e Chico encontra um apreciador fiel de seu
pictórico imaginário fabuloso. Delineou-se aqui um encontro e, no seu transcorrer, se formariam
em várias nuances.
O problema pictural do Brasil
Em trechos de um artigo de Chabloz publicado em 1942, na revista Clima n. 8, sob o
título O Brasil e o problema pictural, observamos suas colocações a respeito da arte.
Organizadas aqui de modo a compor um quadro teórico em que fundamenta suas posições
artísticas. Inicia assim, “Digamos desde logo que a criação artística, e mais particularmente a
produção do fenômeno pictural, é extremamente difícil no Brasil, especialmente no Rio. Esta
dificuldade se explica por causas que eu creio poder classificar em três grupos: naturais,
psicológicas e históricas”. (CHABLOZ, 1942:22, 26)
Suas causas históricas, destacadas, estavam
ligadas ao percurso linear de
desenvolvimento das artes e que para se fazerem autênticas precisariam de uma fase, a
primitiva, como exemplifica poder observar nos primitivos italianos, primitivos franceses e
alemães. Referindo-se assim a uma trajetória européia. E continua; “Ocorre que na arte
brasileira se observava uma arte vítima de um produto de importação, direta ou indiretamente,
como
advinda
do
barroco
português,
do
neoclassicismo,
academicismo,
realismo,
impressionismo francês, surrealismo europeu e norte-americano e assim por diante”.
(CHABLOZ, 1942:22, 26)
Isso era o que nos impedia de tomarmos consciência de nós mesmos. Para ele, isso
gerava “uma cultura de estufa”, na qual se faziam enxertos prematuros, “[...] estas incontáveis
injeções cujo efeito imediato é embriagador, porém enganoso, e que sabotam as elaborações
autônomas profundas, as sedimentações naturais que elas apenas poderiam assegurar a este país
um centro de gravidade autêntico e, consequentemente uma fisionomia que pertença senão a
ele”. (CHABLOZ, 1942:22, 26).
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Portanto, em sua conclusão, se não houve uma pintura brasileira autêntica, seria
indispensável mudar a atitude de espírito dominante, seria preciso se libertar do academicismo, e
discorre:
[...] da arte literária e anedótica de uma “fabricação” pictural e turística,
vulgarmente decorativa ou publicitária e correr atrás de um gênio profundo da
terra brasileira para chegar a uma pintura [...] que eu imagino, será uma pintura
sóbria, máscula, mais estática do que dinâmica; uma pintura arquitetônica, densa,
animada por um sopro profundo e largo; uma pintura arcaica. (CHABLOZ,
1942:23)
E é com este olhar, na busca de um devir de uma “autêntica” pintura brasileira, que
deveria ser densa, sóbria, estática, segundo ele, as características necessárias ao arcaico, com
uma visão cansada desta ausência, que Jean-Pierre Chabloz chega ao nordeste brasileiro.
Mário Pedrosa, em suas reflexões sobre arte e cultura, fala de um processo entre o
regional e o universal. O intuito, aqui, é destacar o contínuo interesse dessas reflexões na crítica
de arte. Segundo ele, analisando o exemplo da arquitetura norte-americana que foi influenciada
pela européia, mas, posteriormente, desenvolveu aspectos locais, aconteceriam etapas de
desenvolvimento que o ideal na arte seria expressar as necessidades mais específicas de uma
cultura local. Assim, explica o regional:
Não há de que se admirar, pois, segundo Mumford, “caracteres regionais” não
podem ser confundidos com “caracteres aborígenes”. É um erro identificar o
regional com o puramente “local, grosseiro e primitivo”, diz-nos aquele autor. E
por quê? Porque a “adaptação de uma cultura a um meio particular é um
processo longo e complicado, e um caráter regional em pleno florescimento é o
último a emergir”. (PEDROSA, 1975:50)
O regionalismo não seria meramente uma questão de copiar formas usadas por
antepassados, mas formas e soluções adequadas às condições reais de um povo. Essas condições
seriam específicas de um ambiente cultural e para acontecer um percurso distinto seriam
necessárias várias gerações. Talvez possamos ver na crítica de Pedrosa um paralelo dessas
“necessidades locais”, ao que Chabloz indicava poder estar expressas nas particularidades
“autênticas do primitivo”. Com isso, a possibilidade do desenvolvimento pleno de uma arte no
sentido dos vínculos imagéticos e simbólicos mais fortes com as necessidades locais.
As formas regionais são as que mais de perto respondem às condições reais da
vida e que melhor conseguem fazer que um povo se sinta completamente em
casa, dentro do seu meio: elas não apenas utilizam o solo, mas refletem as
condições correntes de cultura na região. (PEDROSA, 1975:50)
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Vimos que, para Chabloz, o Chico representaria essa pintura autêntica, e por isso se
constituiria num primitivo da arte brasileira, essencial para o nosso desenvolvimento. Para
Mário Pedrosa, o sentido de uma arte que expressa anseios locais pode ser gerado inicialmente
de uma influência de modelos externos, mas para chegar a uma arte autêntica, o passo seguinte
seria o regionalismo, ou seja, a expressão a partir de características particulares locais.
Referências bibliográficas
BOTELHO, Adriana B. Chabloz vê Chico, Chico vê Chabloz: estudo do conceito de arte
primitiva na obra pictórica de Chico da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2007.
CAMPOS, Marcelo G. L. Brasilidades contemporâneas: hibridismos culturais na arte brasileira
(1965-2005) Rio de Janeiro: UFRJ/EBA. 2005.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, São
Paulo: Edusp, 2000.
CHABLOZ, Jean Pierre. Revelação do Ceará. Fortaleza: Secretária da Cultura e Desporto do
Estado do Ceará, 1993.
______. Pinturas e desenhos (1910 – 1984). Pinakotheke, 2003.
______. O Brasil e o problema pictural. In: Clima, n. 8:22-26. Rio de Janeiro, 1942.
ESTRIGAS, Nilo Firmeza. Artes plásticas no Ceará. Fortaleza: UFC, NUDOC, 1992.
GALVÃO, Roberto. Chico da Silva. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000.
HARRISON, Charles. Modernismo, movimentos da arte moderna. São Paulo: Cosac Naify,
2001.
HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
PEDROSA, Mário. Mundo homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975.
PERRY, Gill. O primitivismo e o moderno. In: PERRY, Gill; HARRISON, Charles;
FRASCINA, Francis. Primitivismo, cubismo, Abstração: começo do século XX. São Paulo:
Cosac Naify, 1998.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Sem título, 1943
Chico da Silva
Nanquim e lápis de cor sobre papel mongolfier
19 x 31,5 cm
Acervo Museu de Arte Contemporânea
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
Pássaro e Roni Peixe, 1959
Chico da Silva
Guache sobre Cartão
77,0 x 112,0 cm
Acervo do Museu da Universidade Federal do Ceará (MAUC)
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
O SANTO EM IMAGENS: RELAÇÕES ENTRE CONCEPÇÕES DE SANTIDADE E
ICONOGRAFIA NA ÉPOCA MODERNA
Aldilene Marinho César Almeida Diniz*
PALAVRAS-CHAVE: Idade Moderna. Santidade. Iconografia cristã.
O século XVI foi um período bastante turbulento para o fenômeno da santidade. A Igreja
Católica atravessava nessa época uma das mais graves crises de sua história, crise da qual a
elevação de indivíduos à santidade e o poder de intermediação a eles atribuído constituía um dos
pontos centrais das tensões. Assim como na Idade Média, durante a Época Moderna os santos
representavam um elo entre os homens e o divino e, ao mesmo tempo, eram apresentados como
referência e ideal humano. Entretanto, durante os tempos modernos a concepção de santidade
apresenta outras características que a distanciam dos antigos modelos identificados desde os
primeiros séculos da história cristã.
Desde o estabelecimento do processo de canonização pontifical, durante a Idade Média, a
Igreja vinha promovendo canonizações e incentivando o culto aos seus eleitos. Todavia,
conforme Suire “o século XVI é um período muito desfavorável à eclosão da santidade. A
canonização pontifical atravessa então a mais grave crise de sua história, posto que nenhum
santo é elevado ao altar entre 1523 e 1588”1 (SUIRE, 1998: 921-922).
De acordo com Christian Renoux, dentre as explicações possíveis para a pausa nas
canonizações encontram-se o saque de Roma, ocorrido em 1527 – que teria gerado uma
desorganização da Cúria –, a sucessão pontifical e, principalmente, os embates travados com os
protestantes (RENOUX, 1995: 6-10). Demonstrativo do modelo de santidade privilegiado pela
Igreja no período pós-tridentino, em 1622 deu-se a glorificação de cinco santos de uma única
vez: quatro espanhóis e um italiano. Assim, em março do citado ano foram proclamados santos
pelo papa Gregório XV: Francisco Xavier; Inácio de Loyola; Isidoro, o Lavrador; Felipe Néri e
Teresa de Ávila. Com essa ação sublinha-se fortemente a preferência eclesiástica por grandes
*
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No original: Le XVIe siècle est une période très défavorable à l'éclosion de la sainteté. La canonisation pontificale
traverse alors la plus grave crise de son histoire, puisque aucun saint n'est élevé sur les autels entre 1523 et 1588.
(SUIRE, 1998: 921-922).
1
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
figuras contemporâneas da Reforma Católica como modelos de santidade propostos pela Igreja
de Roma aos seus fiéis, deixando-se aos leigos desempenhar somente um papel secundário no
panorama da santidade.
Desde os primeiros séculos cristãos, a percepção do papel dos santos como
personificação de modelos de vida e ideais religiosos para os fiéis, conduziu a Igreja católica a
configurar um complexo sistema de direcionamento da produção de hagiografias e imagens,
mecanismos considerados fundamentais para a divulgação do culto aos santos. Durante a Era
Moderna, a veneração aos santos continuou satisfazendo a demanda popular pelo maravilhoso,
resistindo inclusive às críticas da Reforma Protestante, como a negação de sua capacidade
intercessora. Assim sendo, considerando-se que as imagens de santos tinham como uma de suas
principais funções apresentar e difundir modelos de santidade para o fiel, pretende-se discutir
algumas possíveis relações entre as concepções de santidade vigentes na Época Moderna e a
produção de imagens de santos no mundo católico da mesma época. Para isso, deseja-se
promover uma breve discussão relacionando as concepções de santidade verificadas em alguns
estudos sobre o tema (VAUCHEZ, 1988; RENOUX, 1995; MERLO, 2005) e uma pequena série
de imagens de santos produzidas na Europa católica da Era Moderna, com a finalidade de
identificar possíveis interações entre a construção de uma nova concepção de santidade e a
produção iconográfica cristã.
A fim de melhor explicitar aquilo que entendemos por santidade cada vez que o termo
aparece neste trabalho, tomamos de empréstimo a noção conforme apresentada por André
Vauchez em seus estudos sobre as sociedades medievais,
um conjunto de sinais compreendidos imediatamente por todos [...] um verdadeiro código
sensorial, tornado banal pela literatura hagiográfica [...]
Quer se trate da
incorruptibilidade do corpo ou do perfume delicioso que dele emana, das emanações de
óleo e de sangue ou dos poderes de irradiação que parecem ter os seus ossos, toda uma
série de manifestações concordantes atestam que o influxo e o poder sobrenatural do
santo não ficam diminuídos mas, pelo contrário, aumentam com a sua passagem para o
além. (VAUCHEZ, 1987: 295)
Além do apresentado por Vauchez, consideramos ainda que a configuração do conceito
de santidade criou, além dos limites temporais da Idade Média, uma referência fortemente
baseada na realização de milagres e na prática de virtudes como o ascetismo, a renúncia aos
prazeres mundanos, a resistência às tentações e o sofrimento em nome de Deus.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Para as sociedades ocidentais dos séculos finais da Idade Média, Vauchez identifica uma
concepção de santidade fortemente influenciada pela espiritualidade leiga que teria favorecido a
elevação de leigos à glorificação. Já para a Época Moderna, o mesmo autor sugere que os leigos
perdem gradativamente sua participação na santidade oficial e enfatiza que “a partir do século
XVI, a Igreja romana reserva a glória dos altares a sacerdotes e monges, místicos e doutores”
(VAUCHEZ, 1987: 298); conclusão atestada pelas canonizações da época e, com elas, pela
onipresença de santos saídos das Ordens religiosas.
Duas eram as formas principais de se fazer conhecer um novo santo e propagar o seu
culto: a leitura de suas fontes hagiográficas e a produção de imagens representando passagens de
sua vida e seus milagres. Assim, dependendo de sua época de produção, encontramos na
iconografia cristã a representação de santos mártires, ascetas, taumaturgos, penitentes,
pregadores e místicos, todos devidamente identificados com seus atributos específicos e outros
aspectos que o identificam. Tais representações costumam acompanhar o desenvolvimento das
concepções de santidade que vão sendo configuradas em diferentes sociedades e em diferentes
tempos históricos.
Fonte de pesquisa privilegiada para o desenvolvimento de estudos com o tema da
santidade, as imagens de santos produzidas a partir de finais do século XVI apresentam uma
verdadeira profusão de representações de episódios místicos, nos quais homens e mulheres,
elevados à santidade, são representados em cenas de êxtases, apoteoses e encontros místicos. A
predominância de tais temas demonstra uma preferência pela figuração desses temas frente a
outros anteriormente privilegiados pela iconografia cristã.
Apresentadas as questões anteriores, passamos agora ao estudo de alguns aspectos das
representações figuradas de santos no mundo católico da Era Moderna. Para isso, selecionamos
algumas pinturas nas quais se representam Santa Teresa de Ávila, Santo Inácio de Loyola, São
Felipe Néri e São Francisco Xavier, quatro dos mais conhecidos santos canonizados no século
XVII.
As glorificações ou apoteoses
Em sua acepção formal as palavras canonização, glorificação e apoteose são consideradas
sinônimas para referir-se a consagração de alguém à bem-aventurança ou à glória dos céus, como
reconhecimento divino de sua santidade. No campo da iconografia cristã o tema da apoteose ou
glorificação representa a recepção de um homem (ou mulher), consagrado santo, na esfera
celeste. Durante o período medieval, a referência à promoção de uma pessoa à glória eterna era
conhecida através das representações de canonizações: cenas nas quais era figurada a reunião
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
eclesiástica em que fora decidida e proclamada a elevação de um indivíduo à santidade. Já para a
Época Moderna, percebe-se que o tema da canonização praticamente desaparece, dando lugar às
representações das apoteoses, mais conhecidas no Império Português como glorificações.
Nas imagens que figuram apoteoses, os santos normalmente aparecem em destaque ao
centro do quadro, ou na parte inferior da obra, em primeiro plano; de pé e rodeados por anjos,
muitas vezes têm os braços estendidos ou erguendo-se em direção ao céu [ver figuras 2 e 4]. Na
parte superior ou centro-superior da obra podem aparecer representados a figura de Deus Pai –
figurado como um senhor idoso, de longas barbas grisalhas, vestido com uma túnica vermelha,
com as mãos estendidas sobre o santo –, da Virgem Maria com seu Filho, ou o próprio Cristo,
que recebem a pessoa santa in glória.
Existem registros de cenas de apoteoses pintadas ainda no período renascentista2, porém
o tema conheceu grande difusão somente a partir do século XVII, com a chamada arte da
Contrarreforma. Algumas possíveis motivações históricas para o desenvolvimento desse tipo
iconográfico podem se encontrar na querela entre protestantes e católicos acerca da legitimidade
da intercessão dos santos. No âmbito da Reforma Católica foram publicadas, durante a realização
da XXVª. sessão do Concílio de Trento, as definições dogmáticas sobre a legitimidade da
invocação dos santos, o que parece ter contribuído para a figuração de cenas que representam o
momento crucial de elevação de um homem à santidade, já que as cenas de apoteose representam
a suprema glorificação da figura representada. Assim, no contexto de produção dessas imagens,
destacam-se as apoteoses de santos consagrados pela ação contrarreformista como Santo Inácio
de Loyola, mas também santos tradicionais da Igreja, dentre eles, São Francisco de Assis e São
Domingos de Gusmão.
As visões e êxtases místicos
Na iconografia cristã, as cenas de êxtases representam episódios em que santos e santas
são figurados em supostas experiências místicas, fruto de um estado espiritual de profunda
introspecção e contemplação do divino através de imagens figuradas ou mentais. De cunho
hagiográfico ou produto da tradição oral, as pinturas que representam visões e êxtases, figuram
santos arrebatados em súbito desprendimento do mundo, como resultado de intensa meditação e
longos períodos de jejum e orações.
A representação dos êxtases já era conhecida desde os tempos medievais, contudo, as
novas características iconográficas apresentadas no tema a partir de finais do século XVI
constituem grande novidade (MÂLE, 2001: 190). Nas visões e êxtases da Era Moderna,
2
Como por exemplo a Apoteose de Santa Úrsula, datada de 1491, que atualmente faz parte do acervo da Gallerie
dell’Accademia de Veneza.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
representa-se uma espécie de fervor interior e um desejo ardente do encontro com Deus. Nas
imagens medievais do tema figuram-se santos de semblantes serenos, olhando para o céu – sem
que a divindade seja representada –, cercados por uma bela paisagem com plantas, animais e até
mesmo uma cidade ao fundo. Já nas imagens modernas, os tons escuros costumam dominar o
quadro, compondo-se as imagens com muitas sombras e ambientes envoltos em penumbra. Em
meio a esse cenário, os santos aparecem desfalecidos, num entorno fartamente povoado por anjos
e, muitas vezes, suportados por um deles [ver figuras 1 e 6]. Nas cenas de visões do mundo
moderno também podem aparecer – juntos ou separadamente – a figura do Cristo, da Virgem, de
Deus Pai ou da Trindade [ver figura 5]. Nesses casos, e também quando são figurados anjos, a
presença divina costuma está representada por uma espécie de ambiente mágico, pleno de
nuvens de tons dourados nas quais aparecem envolvidas as pessoas sagradas [ver figuras 3, 4 e
5].
Fora a representação dos chamados santos da Contrarreforma, vale destacar que as
imagens de santos tradicionais como São Francisco de Assis sofreram importantes modificações
na Época Moderna. A iconografia do santo apresentou nesse período importantes variações e
inovações em suas características e temas iconográficos, distanciando-se muitas vezes do vasto
repertório de suas representações tradicionais. Assim, é possível verificar que a iconografia de
São Francisco começa a apresentar as características de uma santidade mais contemplativa e
mística, com a representação do santo em expressões dolorosas e com o corpo desfalecido em
êxtase [ver Figura 1]; atributos e aspectos figurativos da santidade do mundo moderno que não
faziam parte da tradição iconográfica franciscana.
Assim, essas novas representações que privilegiam largamente a figuração de
experiências místicas e não mais os episódios narrativos das vidas dos santos, parecem manter
estreitas relações com algumas práticas religiosas das Penínsulas Itálica (MERLO, 2005: 251253) e Ibérica da Era Moderna, como destaca Célia Borges na seguinte passagem
no decorrer dos séculos XVI, XVII e mesmo até meados do XVIII a busca de um ideal de
santidade pautou a vida de inúmeras pessoas na Península Ibérica. Em consequência do
movimento instaurado pela Contrarreforma, revigorou-se o interesse pela espiritualidade
mística, não só entre religiosos mas igualmente entre leigos. Um número considerável de
mulheres se destacou neste processo por se terem aventurado pelos caminhos da
religiosidade mais intimista. A crença na possibilidade de ascender a uma esfera divina
compôs assim o imaginário da época. A circulação de livros de alta espiritualidade
potenciou uma crescente motivação para a vivência de experiências místicas, na esteira
do que foram os passos dados por religiosos e, até mesmo, por leigos. Muitos religiosos,
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
principalmente franciscanos, participaram de círculos de práticas espirituais, ao mesmo
tempo que atraíam leigos para as experiências místicas (BORGES, 2005: 1).
As práticas religiosas indicadas acima demandavam imagens que permitissem ressaltar o
caráter afetivo das mesmas, no sentido de despertar a empatia do espectador através de um
encontro sensorial com o objeto figurado, provocando estímulos emocionais, necessários à plena
contemplação mística das imagens. Nesse sentido, as pinturas dos santos produzidas na Era
Moderna representam sobremaneira tais características, traduzidas na ambientação do cenário
com o predomínio dos tons escuros, num ambiente que sugere o isolamento do mundo e na
caracterização das experiências místicas como um contato individual e introspectivo entre o
santo e a divindade.
Durante a Época Moderna o fenômeno da santidade esteve relacionado à eclosão de
novas práticas devocionais, algumas vezes não reconhecidas pela Igreja (BORGES, 2005: 1), e a
renovação de práticas religiosas tradicionais como a retomada do ascetismo e das experiências
místicas. Enquanto isso, entre os teólogos da Reforma disseminou-se uma forte rejeição da
função mediadora dos santos e ao uso corrente de suas imagens, promovendo violentas críticas
contra as formas cultuais consideradas idólatras. De outra parte, entre os meios católicos, a
crítica protestante foi respondida com a defesa teológica da mediação dos santos e a reafirmação
da legitimidade da veneração dos mesmos através das imagens.
De acordo com Émile Mâle, a representação de tais temas e características nas pinturas
dos santos a partir de finais do século XVI se relaciona intimamente com o clima de luta pela fé
da Reforma Católica que acabou por exaltar a sensibilidade católica e fez aparecer novos santos
e novas representações de santidade “à imagem e semelhança de seu tempo” 3 (MÂLE, 2001:
152). Assim, segundo Mâle, “todos esses místicos cumpriam o sonho desse tempo que era a
união com Deus” (MÂLE, 2001: 153). Demonstrativo de tal movimento, sabemos que os
escritos que discorriam sobre as uniões místicas pululavam na Europa Católica da época
(MÂLE, 2001: 153).
Apesar de atualmente muitas dessas imagens se encontrarem em museus espalhados pelo
mundo, elas foram produzidas em sua grande maioria para lugares de destaque nos altares das
grandes igrejas, consagradas ao santo representado ou à Virgem Maria (MÂLE, 2001: 151);
locais estes que favoreciam a contemplação do observador para tais experiências místicas.
3
No original: a imagen y semejanzade su tiempo (MÂLE, 2001: 152).
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
A partir do século XVI, verificamos ainda, em diversas representações iconográficas dos
santos, que aparecem algumas novidades relacionadas à santidade mística, quais sejam, diversas
imagens de santos medievais e antigos que também passaram a ser representados em cenas de
êxtases e encontros místicos; motivos figurativos que não faziam parte de seus programas
iconográficos até aquela data. Desse modo, acreditamos que a primazia dos êxtases, visões e
encontros místicos nas representações dos santos, expressa também as mudanças palpáveis nas
concepções de santidade na Era Moderna que se relacionam diretamente com as mudanças nas
práticas religiosas da época. Entretanto, destacamos que, muito mais do que representantes dos
anseios da Igreja, dos patrocinadores ou dos artistas, as mudanças nas representações dos santos
relacionam-se com um universo muito mais vasto e complexo que envolve desde os
direcionamentos da Igreja e a ideologia de suas Ordens até as práticas religiosas dos fiéis. Assim,
pretende-se destacar as relações entre produção de imagens e concepções de santidade como algo
dinâmico, uma vez que, ao mesmo tempo em que as concepções de santidade ajudaram a
configurar novos padrões iconográficos, as imagens devocionais desempenharam também um
importante papel no desenvolvimento de novas práticas religiosas e, consequentemente, na
doutrinação de novos ideais de santidade cristã.
Por fim, gostaria de ressaltar que é preciso ter em mente que a correspondência entre
concepção de santidade e iconografia não é assim tão simples. As representações iconográficas
não traduzem nem refletem objetivamente ideais ou práticas sociorreligiosas nem estilos de vida.
A relação entre esses fatores e a produção imagética existe, obviamente, entretanto sua
associação se dá através múltiplos mecanismos e as interações não se dão somente no sentido da
religiosidade para iconografia, mas também da iconografia para as práticas religiosas.
Referências bibliográficas:
BORGES, Célia Maia. “Santa Teresa e a Espiritualidade Mística: a circulação de um ideário
religioso no mundo atlântico”. In: O Espaço Atlântico de Antigo Regime: Poderes e
Sociedade. Centro de Estudos de Além-Mar (CHAM), Lisboa: Universidade Nova de Lisboa,
2005.
MÂLE, Émile. El arte religioso de la Contrarreforma. Estudios sobre la iconografía del final
del siglo XVI y de los siglos XVII e XVIII. Tradução Ana Maria Guasch. Madrid: Ediciones
Encuentro, 2001.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco: História dos frades Menores e do
franciscanismo até inícios do século XVI. Tradução Ary E. Pintarelly. Petrópolis, RJ: Vozes/
FFB, 2005.
RENOUX, Christian. Sainteté et mystique féminines à l'âge baroque. Naissance et évolutiond 'un
modèle en France et en Italie. Thèse de doctorat d'histoire, Univ. de Paris I, 1995.
SUIRE, Éric. La sainteté à l'époque moderne. Panorama des causes françaises (XVIe-XVIIIe
siècle). In: Mélanges de l'Ecole française de Rome. Italie et Méditerranée T. 110, N°2. 1998. pp.
921-942.
VAUCHEZ, André. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge d’après les
procès de canonisation et les documents hagiographiques. 2ª ed. Roma: École Française de
Rome, 1988.
____. “Santidade”. In: Enciclopédia Enaudi. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1987.
v. 12.
ANEXO
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Figura 2. HERRERA, Francisco de (O
Jovem). Apoteose de São Francisco,
Figura 1. BAGLIONE, Giovanni. Êxtase de São
Francisco, 1601. Óleo sobre tela, 155 x 117 cm.
Art Institute, Chicago. [Fonte: Portal eletrônico
1657. Óleo sobre tela, 570 x 363 cm.
Catedral
de
Sevilha.
[Fonte:
Portal
eletrônico Web Gallery of Art]
Web Gallery of Art]
28
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 3. BACICCIO. A Visão de São Francisco Xavier, c. 1675.
Óleo sobre tela, 65 x 46 cm. Pinacoteca do Vaticano. [Fonte: Portal
eletrônico Web Gallery of Art]
Figura 4. BACICCIO. Apoteose de Santo Inácio, c. 1685. Óleo
sobre tela, 48 x 63,5 cm. Galleria Nazionale d’Arte Antica, Roma.
[Fonte: Portal eletrônico Web Gallery of Art]
29
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Figura 5. PASSERI, Giuseppe. Visão de Figura 6. BAZZANI, Giuseppe. Êxtase de Santa
São Felipe Néri, c. 1700. Óleo sobre tela, Teresa, 1745-50. Óleo sobre tela, 76 x 60 cm.
90 x 59 cm. Fitzwilliam Museum, Szépmûvészeti Múzeum, Budapeste. [Fonte: Portal
Cambridge. [Fonte: Portal eletrônico Web eletrônico Web Gallery of Art]
Gallery of Art]
30
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
O INFORMALISMO NO BRASIL: LOURIVAL GOMES MACHADO E A 5A BIENAL
INTERNACIONAL DE SÃO PAULO
Ana Cândida F. de Avelar Fernandes
A 5a Bienal Internacional de São Paulo, realizada pelo crítico e historiador da arte
Lourival Gomes Machado em 1959, mostrou e premiou um grande número de artistas informais,
tanto internacionais como brasileiros. A premiação de três nomes de relevo do cenário
informalista local – Yolanda Mohalyi (aquisição pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo),
Arthur Luiz Piza (melhor gravador nacional) e Manabu Mabe (melhor pintor nacional) – pode
ser considerada um marco significativo da penetração da abstração informal no país, bem como o
prêmio de pintura internacional entregue ao espanhol Modesto Cuixart.
De acordo com a estudiosa Maria Alice Milliet, a premiação de Mabe como melhor
pintor nacional ameaçou a posição vanguardista assumida pelo formalismo geométrico no
período (MILLIET, 2000: 58). Na época, o crítico Mário Pedrosa se referiu ao evento como uma
“ofensiva tachista e informal” (PEDROSA, 1995: 268) pois acreditava que a abstração
geométrica configurava-se como resistência ao gosto artístico internacional.
Segundo o poeta e crítico Ferreira Gullar, que poucos meses antes da Bienal havia
assinado o manifesto neoconcreto, desse modo afirmando sua adesão às vertentes construtivas,
essa edição foi tão impactante quanto a inaugural. Para ele, a exposição de 1959 representou uma
importação das questões da arte abstrata internacional do período, em grande parte, informalista.
Para Pedrosa e Gullar, o informalismo tratava-se, portanto, de uma necessidade de alinhamento
da arte brasileira com a internacional, um sintoma de submissão cultural.
Num momento no qual as tendências construtivas, em sintonia com o ideal de progresso e
superação do subdesenvolvimento no Brasil, causavam impacto na cena artística principalmente
devido ao estabelecimento de grupos, adesão de críticos, publicação de textos e organização de
exposições, os prêmios conferidos e a imensa participação de estrangeiros e brasileiros informais
na Bienal não poderia passar despercebida.
Desde a Bienal anterior, em 1957, que contou com sala especial dedicada a Jackson
Pollock, organizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, e premiou Frans Krajcberg

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), doutoranda em Artes Visuais,
bolsista CAPES.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
como melhor pintor nacional, a abstração não-geométrica conquistava adeptos entre a crítica
não-alinhada às tendências construtivas.
Entre esses adeptos, Gomes Machado escreve entusiasmadamente em O Estado de S.
Paulo sobre o “novo expressionismo” que domina a 5a Bienal, uma linguagem universalista
compartilhada pelas diversas representações nacionais.
Portanto, nesta comunicação, pretende-se investigar em que medida e como essa Bienal
determinou uma conquista de espaço por parte da abstração informalista no Brasil,
compreendendo o evento principalmente a partir da crítica de Gomes Machado, defensor dessa
vertente, e visando oferecer mais dados sobre o abstracionismo expressivo no país, ainda hoje
um capítulo pouco examinado da história da arte no Brasil.
Arte baseada na intuição, novas formas de expressão: manifestações universais e nacionais
Os catálogos e boletins da 5a Bienal confirmam a declaração de Gullar ao demonstrarem
a predominância do informalismo, tanto entre pintores estrangeiros como brasileiros. Apesar da
dificuldade de levantar todas as obras que integraram a 5 a Bienal, visando obter um número mais
exato de obras informalistas, percebe-se, pelos textos críticos e por aqueles presentes nos
catálogos das representações nacionais, que a abstração não-geométrica obteve maior destaque.
Durante essa Bienal, os textos enviados pelos responsáveis pelas representações
enfatizam constantemente a idéia de arte como expressão individual representativa da cultura
nacional, ao mesmo tempo que entendem-na como parte integrante das questões artísticas
internacionais. O par de conceitos produção local – linguagem universal é dominante na maioria
dos textos. O organizador da mostra boliviana, por exemplo, afirma que os artistas ali presentes
“refletem sentimentos e dão formas a suas concepções estéticas, com elementos recolhidos de
seu próprio ambiente, mas ensaiando uma linguagem plástica de projeções universais” (MAMSP: 1959, s.p.).
Os países europeus apresentam largamente abstrações informais, além de alguns deles
garantirem o passado “intuitivo” das artes nacionais mostrando ainda figurações expressionistas.
A Espanha constitui exemplo ideal: além do informalista Modesto Cuixart ser premiado como
melhor pintor internacional, segundo o comissário espanhol, trata-se de “uma exposição de
tendência expressionista – uma das tendências pictóricas mais características de nossas artes –
em seus dois aspectos: figurativo e abstrato” (BIENAL DE SÃO PAULO: 1959, 153).
Da Alemanha são trazidos principalmente informais e uma mostra especial dos
expressionistas do início do século XX. Van Gogh recebe sala especial na representação
32
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
holandesa, que conta ainda com trabalhos de Karel Appel, premiado nesta edição, ligado ao
grupo gestualista CoBrA1.
A representação inglesa mostra Stanley William Hayter, gravador reconhecido pela
produção informal e cujo Ateliê 17, tanto em Paris como em Nova York, recebeu inúmeros
artistas estrangeiros, inclusive brasileiros, incentivando as pesquisas coletivas. Nos anos 1940,
em Nova York, o surrealista André Masson e o expressionista abstrato Jackson Pollock
trabalharam nesse mesmo espaço.
A representação polonesa traz predominantemente informalistas, em sua maioria,
matéricos. A Bélgica mostra Pierre Alechinsky, também associado ao CoBrA. A Itália
apresentou obras abstratas com materiais não convencionais de Alberto Burri e o espacialismo de
Lucio Fontana, entre outros. Nota dissonante é a história da gravura apresentada pela França.
Em sintonia com a Alemanha e a Holanda, o Japão mostra expressionistas abstratos, entre
os quais Minoru Kawabata recebe prêmio aquisição por Ritmo A, 1958 (MAC-USP), somados a
uma exposição de arte tradicional2. A China apresenta uma sala de caligrafia.
Philip Guston, Sam Francis, Helen Frankenthaler, Alfred Leslie, Conrad Marca-Relli e
Joan Mitchell, entre outros, integram a representação estadunidense organizada pelo Instituto de
Artes de Minneapolis. Apesar da organização do instituto, é o Museu de Arte Moderna de Nova
York que subsidia as mostras e, até então, havia sido responsável pela maioria das
representações para a Bienal.
As salas especiais conferidas a Philip Guston e ao escultor abstrato David Smith focam
suas produções entre 1949 e 1959, segundo Hunter “um período que foi sem dúvida um dos mais
animados e mais aventureiros na arte americana” (MAM-SP: 1959, s.p.), isto é, o período de
estabelecimento do que se entende hoje por expressionismo abstrato. Hunter sublinha que a obra
desses artistas reflete “o sentido europeu de arte” e o “patrimônio internacional do modernismo”,
indicando a importância da arte norte-americana em termos internacionais.
O Brasil na 5a Bienal
Durante a 5a Bienal, os maiores prêmios nacionais são conferidos a abstrações
informalistas3: Manabu Mabe, melhor pintor, e Arthur Luiz Piza, melhor gravador, na verdade
1
2
3
Cabeça Trágica, 1957, de Karel Appel, integra a coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de
São Paulo (MAC-USP).
Na seção dedicada ao Japão do catálogo geral da Bienal, explica-se a divisão da mostra entre arte tradicional e
contemporânea, esta, sobretudo, abstrata.
Embora Paulo Mendes de Almeida afirme no texto de apresentação da representação brasileira que a maioria das
obras é concretista, o que observamos no catálogo é exatamente o contrário. Sem dúvida há uma presença forte
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seguindo o mesmo caminho da edição anterior que havia premiado Krajcberg como melhor
pintor. Além dos prêmios, a representação brasileira apresentava um montante expressivo de
obras nessa linha, tanto na pintura como na gravura, tanto artistas que desenvolvem trabalhos
associados a essa tendência apenas em anos recentes como pioneiros da abstração informal.
Entre os últimos, encontra-se Antonio Bandeira, célebre nome do informalismo no país, e
a gravadora Fayga Ostrower, que vinha trabalhando nesse sentido desde o início dos anos 1950.
Além desses, estão nomes fundamentais da abstração expressiva no país, pintores e gravadores,
como Edith Behring, Flavio-Shiró, Iberê Camargo, Maria Bonomi4, Sheila Brannigan, Sérvulo
Esmeraldo, Fernando Lemos. Yolanda Mohalyi e Wega Nery são premiadas com aquisição.
Entre os artistas hoje menos celebrados, estão Domenico Lazzarini, Ítalo Cencini, Ione
Saldanha, Inimá de Paula, Loio Pérsio, Montez Magno e Roberto Delamonica. Artistas
trabalhando abstrações-geométricas mais livres também aparecem, como Abelardo Zaluar, Mario
Zanini, ex-santelenista, Ubi Bava, entre outros. Maria Leontina, agraciada com aquisição,
reconhecida pela abstração geométrica, desenvolvida ainda experiências informais, desde o
início dos anos 1950.
Entre os pintores que passaram pelo Ateliê Abstração, coordenado por Samson Flexor,
que mais tarde desenvolveram obras informais, estão Anésia Chaves da Silva Telles, Alberto
Teixeira e Wega. As figurações expressivas também marcam presença com Marcelo Grassmann
(melhor desenhista nacional), Hansen Bahia, Karl Plattner, Aldemir Martins.
O que se pode observar, portanto, é que a Bienal organizada por Gomes Machado
apresenta uma linhagem “expressiva” por meio de um diálogo criado entre um passado
“expressionista”, de uma figuração que tende à deformação expressiva, para um presente
informal ou expressionista abstrato. Essa narrativa de uma história da arte de viés intuitivo, nãoracionalista, é aquela que Gomes Machado defende nos artigos, a ser discutida adiante.
Lourival Gomes Machado e o informalismo: gesto e estrutura
No Brasil, o fundamento racionalista, geométrico e “científico” que orienta parte da
produção abstrata, em particular, o grupo concreto Ruptura, em São Paulo, ganha força em fins
da década de 1940 e início de 1950. Praticamente no mesmo período, outros países da América
4
de trabalhos de viés construtivo, porém é evidente o número enorme de obras e artistas que não se filiam a
grupos e doutrinas e, portanto, compõem a maioria informalista.
Algumas fontes conferem a Bonomi prêmio aquisição nessa Bienal. Ver: LAUDANNA, Mayra. Maria Bonomi:
da gravura à arte pública. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial, 2007.
34
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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do Sul, como a Argentina, são responsáveis por desdobramentos da abstração geométrica e da
arte concreta apoiados na idéia de renovação política e social por meio da arte5.
Na outra ponta do debate, o informalismo no Brasil e internacionalmente utilizava-se de
idéias que se opunham a tudo o que era visto como “cientifico” e “racional”, particularmente a
conceitos que definiam os movimentos construtivos. Gomes Machado apoiava uma linhagem
abstrata de base não-racionalista, na qual era privilegiada a intuição artística ao mesmo tempo
em que o artista estruturava a obra demonstrando seu conhecimento técnico.
É importante notar que, para o crítico, os teóricos da abstração não se davam conta de
que um sistema teórico específico não era suficiente para explicar as múltiplas manifestações
abstratas da época, nas quais a característica mais interessante era justamente as muitas
possibilidades de formulação (MACHADO: 1958).
Decorrente dessa primeira observação, a segunda crítica de Gomes Machado aos mesmos
teóricos concerne as classificações criadas no período para definir a arte abstrata. Essa postura
está em sintonia com sua crítica aos “programas” dos concretistas que limitam a produção
artística. É absolutamente compreensível que Gomes Machado não aceite classificações
estanques para a abstração do segundo pós-guerra, pois, de fato, os termos foram criados para
designar não uma produção rigorosamente semelhante, mas um conjunto de obras abstratas nãogeométricas que figurava em determinadas exposições. Abstração lírica, arte informal, tachismo
são termos ligados a mostras específicas que procuravam diferenciar um grupo sem contornos
definidos de outros grupos igualmente indefinidos visando com isso garantir espaço para
determinados artistas6.
Gomes Machado define o grupo de obras presente na 5a Bienal como manifestação de um
“novo expressionismo”, buscando com isso auxiliar o público na leitura e compreensão das
obras, embora sem delimitar rigidamente essa produção. O uso alargado do termo
“expressionismo” evidencia o entendimento do crítico:
Porque o Expressionismo, digamos logo, não se reduz às proporções de uma escola, nem
às fronteiras de um país, nem sequer à transitoriedade de um momento histórico. (...) Na
confluência dessas duas linhas de força, no ponto em que a ressonância do natural
5
Estes movimentos foram e estão sendo examinados em pesquisas recentes, porém o presente trabalho não se
propõe a discuti-los.
6
Abstração lírica é geralmente associada ao pintor francês Georges Mathieu. O crítico francês Michel Tapié, em
1952, se refere à pintura improvisada e gestual como “arte informal” e “arte outra”. Pierre Guéguen, usa
“tachismo”, em 1951, e, antes dele, o mesmo termo, que vem de tache, “mancha”, em francês, foi usado em 1889
pelo crítico Félix Fénéon para descrever a técnica impressionista e, em 1909, pelo artista Maurice Denis que
assim se referiu ao trabalho dos fauvistas.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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aborrece e quando a emoção exige direitos pelo menos iguais aos da razão , implanta-se a
afirmação expressionista (...) Reencontrou-se, com a explosão expressionista, a linha de
continuidade daquela rocha eterna que dá base e estabilidade a uma parte imensa da
criação artística, e que é a legitimidade da raiz emocional da arte. (...). Eis porque comove
o inútil esforço da crítica para resistir numa cômoda, porém pouco real oposição entre
abstracionistas e expressionistas, exatamente quando a mais forte afirmação
expressionista começa a surgir no seio do grupo abstrato.
O expressionismo, para ele, define, portanto, uma atitude não-racionalista, uma
disposição para o intuitivo, uma conexão entre artista e obra que se origina na subjetividade do
indivíduo e, nos anos 1950, une-se à abstração. O historiador Mel Gooding explica que,
internacionalmente, no que concerne o informalismo, acreditava-se que o sentimento do artista
era “traduzido” por meio do gesto e da pincelada, estes indicativos do envolvimento físico e
ético do artista. Apesar dessa interpretação generalizada, formalmente essa idéia geraria
inúmeras elaborações.
Particularmente no que diz respeito a Gomes Machado, o elemento gestual é
absolutamente imprescindível, o que se evidencia pela ausência de artistas concretos como
protagonistas em seus artigos. Para ele, não se podia arriscar a individualidade do artista e da
obra definindo regras a priori para a composição, pois isso interferia na comunicação íntima
entre artista e espectador por meio da obra.
Embora o procedimento concretista, que regula e delimita o processo artístico, seja
desaprovado por Gomes Machado, as obras preferidas por ele apresentam uma combinação entre
estrutura e gesto, nas quais ambos se tencionam. A análise do historiador da arte Tadeu Chiarelli
sobre a pintura de Arcângelo Ianelli, de teor informal, ilustra essa idéia ao comentar obras que
apontam para a necessidade do artista mergulhar no universo das formas modulares, que
caracterizam a arte construtiva. Essas pinturas, no entanto, trazem peculiaridades: aliam
ao rigor da escola construtivo/concreta uma certa liberdade em relação à geometria e ao
espectro de cor. (CHIARELLI: 2005, s.p.)
A arte defendida por Gomes Machado apresenta um gesto evidente, embora contido por
uma estrutura que segura a composição. Trata-se de uma abstração diversa daquela desenvolvida
por Jackson Pollock, por exemplo, que, apesar de intermediada pela gravidade, evidencia um
gesto largo, que acompanha o movimento do braço do artista combinado ao procedimento do all36
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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over que cobre a tela. A arte abstrata priorizada pelo crítico paulista é definida por uma
“estrutura construtiva e possibilidades expressivas”, como se refere à obra de Yolanda Mohalyi.
As linhas que determinam a estrutura de Composição 1, 1959, de Mohalyi (MAC-USP),
prêmio aquisição durante a 5a Bienal, impedem uma expansão do gesto. Os elementos se
conectam, por meio de linhas feitas em nanquim ou guache branco que determinam áreas de cor,
cujo preenchimento não-homogêneo é feito de manchas. A pintura parece ter sido elaborada a
partir de uma estrutura de paisagem composta de várias camadas sobrepostas de tinta que são
raspadas, deixando entrever as camadas inferiores.
A posição de Gomes Machado não deve ser entendida como uma timidez em relação à
abstração de um gesto mais expandido, como são os trabalhos de Pollock, mas um interesse pela
tensão criada pela presença simultânea de estrutura e gesto. O crítico nos mostra que essa arte
abstrata que cria fricção formal entre gesto e estrutura é interessante justamente porque é de
difícil definição, porque mostra que é possível uma conciliação de aparentes opostos
(CHIARELLI: 2003).7
Gomes Machado não aderiu à abstração lírica ou informalista, como afirma Ferreira
Gullar, mas seu percurso intelectual demonstra que há uma tendência em seu pensamento às
vertentes não racionalistas de arte. Gomes Machado acreditava que a arte servia à “realização
espiritual” humana (MACHADO: 1961a).
O crítico paulista ecoa as idéias de Wassily Kandinsky, importante referência para muitos
artistas abstratos do segundo pós-guerra, sobre a primazia do conteúdo humano (GOODING,
2001: 66)8. Segundo Kandinsky, a cor era elemento central na comunicação entre pintura e
espectador e estava ligada às sensações e aos sentimentos do artista, expressando assim sua “vida
interior”: “A cor é um meio de exercer influência direta sobre a alma (...). A cor é o teclado, os
olhos são os martelos, a alma é o piano com muitas cordas. O artista é a mão que toca esta ou
aquela tecla propositalmente para causar vibrações na Alma” (Kandinsky apud MOSZYNSKA:
27). Kandinsky se identificava com uma abordagem de estudos de cor mais intuitiva do que
científica, o que se reflete em seu livro Do Espiritual na Arte, 1912, (MOSZYNSKA, 1990: 27).
7
8
Empresto essa idéia de Tadeu Chiarelli, que utilizou-a para referir-se à produção abstrata e ao mesmo tempo
figurativa de Samson Flexor. “Grande parte da produção de artistas tão significativos quanto Flexor (Lasar
Segall, Lívio Abramo, Cândido Portinari e muitos outros) oscilou entre o figurativo e o abstrato (ou
abstratizante), constituindo dentro da nossa visualidade um nicho muito peculiar de conciliação entre esses dois
posicionamentos perante a arte, naquele tempo, “eternos” oponentes”.
De acordo com Mel Gooding, o trabalho de Kandinsky produzido antes de 1915 era o que melhor se adaptava ao
espírito dos anos 1940 devido à ênfase dada ao sentimento, às necessidades interiores do indivíduo e à intuição.
O pintor pode ser visto como um pioneiro de um tipo de abstração direta, pictórica, pessoal e desordenada,
portanto como um precursor do que, mais tarde seria denominado convenientemente “expressionismo abstrato”,
nome que indicava uma suposta dívida para com Kandinsky.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
No ensaio “Sobre a questão da forma”, publicado no mesmo ano, Kandinsky opõe
elementos internos e externos da obra de arte, sendo que os primeiros são mais importantes
porque estão determinados pela “necessidade interior” do artista (MOSZYNSKA, 1990: 46).
Esse complexo de idéias, que envolve uma comunicação entre o mundo interior do artista e
espectador, que privilegia a criação individual, orienta a abstração não-geométrica internacional
dos anos 1940 e 19509. Gomes Machado é igualmente informado por essas idéias que,
entretanto, ele já conhecia desde 1941, quando escreve um artigo no qual discute a arte abstrata
de Kandinsky.
Considerações finais
A crítica de Gomes Machado privilegia uma história da arte expressionista, composta de
artistas ligados a uma concepção de arte abstrata não-racionalista. O expressionismo, para o
crítico, designava não um movimento, mas uma categoria atemporal que define uma disposição
para o intuitivo, para uma “raiz emocional da arte ”. Sendo assim, demonstrando coerência com
sua convicção de que a arte era uma forma de expressão, comunicação entre artista e espectador,
utilizava o termo “novo expressionismo” para descrever e unificar o grupo de obras apresentado
na Bienal sob sua direção. Por meio dessa estratégia, criava um lastro para a produção
contemporânea situado nas vanguardas artísticas do começo do século XX.
Formalmente, a deformação expressiva é transmissora de um conteúdo humano que, para
ele, configura-se como a própria mensagem artística, e une as manifestações do expressionismo.
O “expressionismo” para o Gomes Machado denomina, num sentido largo, a anti-norma, uma
atitude de não-aceitação das regras:
Não há, em Motherwell, qualquer coisa do expressionismo? A evidência será ainda mais
impositiva, mas novamente não se encontrará aqui, ao contrário do que sucede com tantos
e tão excelentes líderes de tendências recentes, a linguagem ou o modo dos
expressionistas, senão apenas, desligada de todas as contingências históricas e, assim,
como novidade autêntica, a atitude incontida dos que, antes já do expressionismo como
ainda depois dele, não se conformaram. (MACHADO: 1961b)
9
Nesse sentido, Ferreira Gullar afirma: “Acho que é evidente que há duas linhas no processo da arte abstrata. Uma
mais construtiva, outra mais intuitiva. Isso aí é de fato o desenvolvimento de uma linha que é mais ligada à
musica, às improvisações de jazz e à possibilidade de exploração de uma outra área da abstração que tem muita
influencia dos artistas americanos, sobretudo Pollock. (...) O que significam essa formas que não significam
aparentemente nada? (...) a experiência da arte começa a revelar um mundo não figurativo (...). Os críticos mais
sérios começam a indagar o significado das formas não-figurativas.” (GULLAR apud COCCHIARALE, 1987:
88).
38
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Em outras palavras, o trabalho do pintor estadunidense e expressionista abstrato Robert
Motherwell demonstra uma “atitude” em consonância com aquela surrealista e expressionista.
Aliás, essa filiação do informalismo e do expressionismo abstrato ao surrealismo e ao
expressionismo ditos históricos era uma leitura comum entre os críticos envolvidos com as
poéticas do informalismo.
Embora Gomes Machado esteja em sintonia com muitas das reivindicações e leituras
críticas da abstração da época, ele se contrapunha a uma interpretação corrente até hoje acerca do
informalismo como negação tanto da forma como do poder de comunicação da arte.
O historiador da arte Giulio Carlo Argan, por exemplo, entende o informal como uma
“superação da forma”, uma “poética da incomunicabilidade”, produzido num momento
generalizado de desencantamento do segundo pós-guerra. Ao contrário, para Gomes Machado, a
grande contribuição dos pintores abstratos de viés informalista era exatamente uma investigação
da natureza humana por meio da arte, a obra como resultado material da vida interior do artista e
portadora de uma mensagem que diz respeito à própria experiência humana.
Bibliografia:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Trad.
Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
COCCHIARALE, Fernando e GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo: geométrico e informal. A
vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto de Artes
Plásticas, 1987.
GOODING, Mel. Abstract Art. Movements in Modern Art. Cambridge: Cambridge University
Press, 2001.
MILLIET, Maria Alice. Mostra do Redescobrimento: Brasil 500 anos. São Paulo: Fundação
Bienal de São Paulo, 2000.
MOSZYNSKA, Anna. Abstract Art. London: Thames and Hudson, 1990.
PEDROSA, Mário; ARANTES, Otília Beatriz Fiori (org.). Política das artes: textos escolhidos
I. São Paulo: Edusp, 1995.
Artigos
CHIARELLI, Tadeu. “Arcângelo Ianelli e seu tempo: um outro ponto de vista”. Revista Univille.
Arte e arte na educação. Joinville. Vol. 10. n.1. julho, 2005.
39
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
____. “A Conciliação dos Opostos”. Em: FLEXOR. Modulações. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2003.
COUTO, Maria de Fátima Morethy. “Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e a abstração informal no
Brasil”. Novos Estudos CEBRAP, n.58, nov.2000, p.203-213.
MACHADO, Lourival Gomes. “Demonstração do óbvio”. O Estado de São Paulo, Suplemento
Literário, nº 113, 27 dez. 1958.
____. “Em Busca da América”. O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 21 mar. 1961a.
____. “Bienal: novo e autêntico”. Suplemento Literário, O Estado de S. Paulo, 4 nov. 1961b.
Catálogos
V Bienal de São Paulo. São Paulo: s.n., 1959.
5a Bienal, Estados Unidos, 1959. Smith, Guston, Francis, Kadish, Frankenthaler, Goldberg,
Kohn, Leslie, Marca-Relli, Metcalf, Mitchell, Rauschenberg. São Paulo: Museu de Arte
Moderna de São Paulo, 1959.
Francis Bacon, S.W. Hayter, Barbara Hepworth. Exposição organizada pelo British Council. V
Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. 1959.
Les Artistes Pollonais. Museu de Arte Moderna de São Paulo. 1959.
MILLIET, Maria Alice. Mostra do Redescobrimento: Brasil 500 anos. São Paulo: Fundação
Bienal de São Paulo, 2000.
____. Yolanda Mohalyi: no tempo das Bienais. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 9 dez. 2009 –
21 fev. 2010.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS SOBRE A OBRA DE ARTE: A DESCRIÇÃO
VERBAL E A REPRODUÇÃO POR IMAGENS.
Ana de Gusmão Mannarino
O historiador e crítico de arte, ao se relacionar com o seu objeto de estudo, tem diante de
si um problema fundamental: articular uma linguagem verbal e abstrata com um objeto concreto,
material, cuja linguagem própria não tem correspondência no discurso estruturado por palavras.
Por outro lado, desde o surgimento dos meios de reprodução mecânica das obras de arte, e de sua
crescente popularização, um outro tipo de discurso, não-verbal, mas igualmente poderoso, vem
se formando em torno da obra de arte e das construções históricas que a ela dizem respeito: o
discurso que envolve a apresentação, seleção, edição e disposição das reproduções em livros,
catálogos, folhetos, revistas, periódicos e, mais recentemente, em meios eletrônicos, como
vídeos, programas de televisão e websites. Os dois discursos, o verbal e o imagético, que se dão
paralelamente, têm enorme força na formação da nossa compreensão da arte e de sua história.
São intermediários que se impõem entre o espectador e a obra, mesmo quando esta última está
disponível para a apreciação direta. Nem sempre estamos conscientes de sua interferência, dos
conceitos que subjazem à sua construção. É importante ressaltar que a existência de ideias e
noções a priori são inerentes à própria constituição cultural, e elas são o instrumental de que
dispomos para nos relacionarmos com o mundo em geral e com a arte em particular. No entanto,
quanto mais conscientes e intencionais forem essas intermediações, mais ricas serão as
abordagens da obra de arte e de sua história, mais plurais e ao mesmo tempo mais próximas,
evitando-se visões cristalizadas e a estagnação de conceitos que limitem o potencial das obras.
Michael Baxandall: considerações sobre a escrita sobre arte
Na introdução de seu livro Padrões de intenção, Michael Baxandall chama atenção para
um ponto crucial em qualquer escrita sobre arte – o fato de que todo comentário a respeito de
uma obra é feito não exatamente sobre ela, mas sobre uma descrição verbal da mesma, e que essa
descrição contém necessariamente conceitos a ela anteriores, ressaltando a complexidade da
relação entre a linguagem das palavras e uma linguagem eminentemente visual.
O autor ressalta que podemos, a partir da descrição de um quadro, criar uma imagem
mental condizente com o que foi descrito, mas essa imagem jamais irá reconstituir com precisão
o quadro original, por mais rica que seja a descrição feita. A imagem formada em nossa mente

Doutoranda PPGAV-UFRJ. Bolsista da Capes.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
será construída a partir das nossas experiências anteriores, da evocação, pelo discurso verbal, de
nossas memórias visuais. Contudo, ao depararmo-nos com a obra que motivou a descrição,
seríamos provavelmente surpreendidos por uma grande quantidade de informações omitidas, que
dificilmente encontrariam correspondência na linguagem escrita. Baxandall chama atenção para
a inadequação da linguagem verbal ao tentar dar conta de uma obra notadamente visual.
Primeiramente, pelo próprio caráter generalizante da linguagem, que usa os mesmos referentes
para significados distintos. Seu repertório, ao tratar da variedade formal, espacial e cromática de
um quadro, por exemplo, seria, por natureza, impreciso. Além disso, a linearidade inerente ao
discurso verbal tende a deturpar a experiência perceptiva visual, que é mormente apreendida de
modo não sequencial, simultâneo, com ritmos e temporalidades distintos daqueles da fala e da
escrita. Na verdade, o que ele defende é que um discurso descritivo de um quadro tende a relatar
a experiência perceptiva do emissor. Trata das impressões do relator sobre o quadro, mais do que
do quadro propriamente dito. Ou seja, podemos concluir que toda descrição de uma obra de arte
contém em si o pensamento do próprio expositor. É, portanto, intermediada, subjetiva e
impregnada do a priori cultural do crítico, sua experiência pessoal, suas opiniões, seus
conhecimentos sobre arte, seu meio, sua época.
A generalização intrínseca à linguagem verbal, contudo, faz com que o discurso não
dispense o objeto artístico a que se refere. Após o advento dos meios mecânicos de reprodução, a
possibilidade de acesso a esse objeto tornou-se um pressuposto da crítica e do texto histórico,
que podem abrir mão de um caráter informativo para aproximar-se de um tipo de demonstração.
Até o século XIX, as reproduções de obras de arte eram escassas e pouco acessíveis, além de
muitas vezes bastante imprecisas. Após o final do século e, principalmente, a partir do século
XX, a facilidade de reprodução por um lado transformou o texto sobre arte, desobrigando-o do
caráter eminentemente descritivo, o que tornaria mais evidente o caráter pessoal do texto. Por
outro lado, descrição e interpretação tornam-se ainda mais embaralhadas, e o respaldo da
reprodução pode tornar-se uma armadilha: o texto interpretativo pode tomar ares de “verdade”,
limitando a visão da obra e a riqueza de possibilidades de interpretações, por direcionar o leitor
sutilmente em direção ao ponto de vista específico privilegiado pelo texto. O problema se agrava
se nos voltamos para as reproduções. As imagens das obras podem ser tomadas como
informações objetivas, porém também estão carregadas de uma carga interpretativa que nem
sempre é evidente. Mais à frente voltaremos a esse tema.
Baxandall cita Heinrich Wölfflin (1864-1945) como o autor que direcionou a crítica de
arte para o apoio direto em reproduções. Reconhecidamente formalista, baseou suas
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
considerações diretamente sobre as características formais das obras, sobre o problema do estilo,
em relatos minuciosos e comparativos. Wölfflin foi discípulo de Jacob Burckhardt (1818-1897),
historiador da arte e da cultura de cuja tradição o primeiro é considerado o principal herdeiro e
continuador.
Jacob Burckhardt: O cicerone
Para refletirmos a respeito de descrição, interpretação, crítica e história da arte, os
escritos de Burckhardt sobre arte são bastante pertinentes. Trata-se de um autor de capital
importância para a história da cultura e também da arte. Sua obra mais famosa, A Cultura do
Renascimento na Itália, está entre as mais influentes na historiografia da cultura até os dias de
hoje. Esta obra, tão largamente difundida e comentada, tem um contraponto interessante em um
livro menos conhecido do mesmo autor, publicado poucos anos antes. Trata-se de O Cicerone,
obra em que Burckhardt, com o intuito de apresentar ao leitor considerações estéticas e
biográficas de artistas e de obras e monumentos presentes nas ruas, igrejas e museus italianos,
discorre sobre a arte dos mais diversos períodos, desde a Antiguidade até o Barroco, passando,
com maior ênfase, pelo período Renascentista que tanto o fascinava.
O Cicerone foi escrito por Jacob Burckhardt em 1855, cinco anos antes de concluir seu
livro mais conhecido, A Cultura do Renascimento na Itália. Foi redigido durante uma viagem de
um ano que Burckhardt fez pela Itália. Pela manhã, visitava as obras, museus e monumentos.
Fazia anotações e, à tarde, dedicava-se à redação do livro. Esse procedimento demonstra a
importância que Burckhardt dava ao contato direto do espectador com a obra de arte. Sua
intenção não era produzir um relato que substituísse esse contato, mas enriquecê-lo, por meio de
cuidadosas descrições e de uma grande atenção ao detalhe. Sobre O Cicerone, Nietzsche
comentou que “há poucos livros que estimulem tanto a imaginação e disponham imediatamente a
concepção artística” (WÖLFFLIN, 1988: 155).
A obra de arte é o centro de sua análise, e o contexto é tratado na medida em que é
necessário à compreensão do objeto. Burckhardt valoriza a obra de arte em si e por si, nela
reafirmando valores próprios, além da história e da filosofia. Exprime a preocupação em visitar
as obras, basear-se nelas mesmas e não em descrições ou reproduções. Reconhece que a
sensação que se tem no embate com a obra mesma não pode ser substituída por gravuras nem
traduzida em palavras.
Sua análise das obras é predominantemente descritiva, e ele justifica a sua
pormenorização argumentando que muitos leitores são capazes de apreender a harmonia do todo,
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
mas não do fragmentário e do relativo. Ao descrever os vasos antigos, por exemplo, o faz
detalhadamente, tratando de cada motivo ornamental. Com esse procedimento, Burckhardt
pretende ampliar a capacidade de visão do espectador, fazendo com que ele possa apreciar
aspectos da obra de arte que de outra maneira passariam despercebidos. Afirma, na introdução de
O Cicerone, que “a meta que me coloquei era principalmente esta: delinear contornos que a
sensibilidade do visitante pudesse animar com um sentimento vivo” (BURCKHARDT, 1994).
Burckhardt assume que não há descrição objetiva de uma obra de arte, e que toda descrição é
uma interpretação, que traz consigo a subjetividade do autor.
Como é de se esperar de toda consideração descritiva, Burckhardt se atém bastante à
forma, mas não se limita a ela ao tratar da obra. Procura extrair o sentido que a move e vê na
produção espontânea e criativa da obra de arte uma das principais fontes para se compreender o
espírito de uma época. Em uma carta de 1877, declarou que
“Minha tarefa individual na história da arte é, segundo creio, dar conta da imaginação de
épocas passadas; determinar a visão de mundo deste mestre ou daquela escola. Outros
preferem explicar os meios de arte do passado, eu (conforme minhas capacidades) a
vontade que ali se expressa” (WÖLFFLIN, 1988: 162).
Embora a ênfase do Cicerone seja a obra de arte, Burckhardt não descuida, ao mesmo
tempo em que se ocupa da análise estética, da história da cultura italiana, do ambiente em que as
obras foram geradas. Não entendia a arte como algo isolado, tendo definido o livro como “um
estudo dos monumentos segundo o seu conteúdo artístico e as condições que o determinaram”
(BURCKHARDT, 1994). Principalmente nas partes em que trata do Renascimento, antes de
discorrer especificamente sobre as obras e os artistas, faz considerações sobre a época, sua a
mentalidade e o estilo artístico predominante.
O trabalho de Burckhardt talvez possa ser lido como um momento de transição entre duas
épocas distintas para a crítica e a história da arte: aquela em que o texto tem como função
informar sobre a obra à qual o leitor normalmente não tem acesso, e aquela em que o leitor do
texto tem quase sempre a possibilidade de conhecer a obra, na maioria das vezes por algum tipo
de reprodução. Burckhardt reconhece que o texto não substitui a apreciação da obra, ciente das
limitações da relação entre linguagem verbal e expressão visual. Resiste também à apreciação de
reproduções, convicto de que nenhuma imagem pode suprir a experiência da própria obra. Daí o
caráter de guia artístico de O cicerone, que pretende ser uma referência para a observação da
obra mesma, in loco. No entanto, a dificuldade de se cumprirem roteiros tão extensos tornam a
apreciação idealizada por Burckhardt para seu livro muito pouco praticada. O cicerone acaba por
ser, na maioria dos casos, um tipo de texto ainda de cunho informativo, que “estimula a
44
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
imaginação”, conforme observou Nietzsche, embora seu autor o tenha projetado como um
suporte para quem está diante da obra.
No século seguinte, com a expansão, sofisticação e popularização da indústria gráfica,
além das mudanças que a profusão de imagens acarretou, surge uma outra ordem de discurso
sobre a arte: aquele formado pelas imagens, não verbal, mas que carrega também uma sintaxe
própria e diferentes possibilidades de interpretação do objeto retratado. Burckhardt,
possivelmente intuindo o poder de interferência desse discurso, não previu que sua obra fosse
ilustrada. Porém, nos dias de hoje isso não faria muita diferença. Mesmo ao lermos um texto
sobre uma obra que não está ali reproduzida, nosso imaginário já está povoado por um amplo
repertório de imagens, que irá dialogar inevitavelmente com o texto, ainda que não conheçamos
a obra específica tratada por ele. Até mesmo a apreciação ao vivo pela primeira vez de uma obra
de arte não deixa de ter esse repertório como fundo, referência constante em uma sociedade
impregnada de informações de ordem visual.
André Malraux: o discurso implícito das imagens
André Malraux, no texto Le musée imaginaire, discorre sobre as implicações que a
fotografia e a possibilidade de reprodução trouxeram para a história e a crítica da arte. Apresenta
argumentos que expõem como muitos aspectos que envolvem as reproduções são determinantes
para a nossa apreensão da obra de arte, embora nem sempre sejam evidentes.
Um primeiro ponto apontado pelo autor é o de como a profusão de reproduções mudou a
nossa noção de obra-prima. A facilidade da reprodução mecânica fez com que um número cada
vez maior de obras fosse reproduzida, trazendo a lume obras anteriormente pouco conhecidas,
impulsionada por uma vontade sempre maior de ter acesso a novas informações. Além disso, as
obras de um mesmo autor deixaram de ser vistas apenas isoladamente para serem vistas em
catálogos, que trazem à tona a noção do conjunto de obras de um determinado artista ou estilo.
Desse modo, as obras deixaram de ser analisadas em relação a um ideal, à tradição, a um cânone
ligado à arte clássica ou do renascimento italiano, para serem estudadas dentro de um
determinado grupo da qual fazem parte. Assim, o cânone único dá lugar a uma multiplicidade de
referências.
A profusão de imagens traz também implicações de uma outra ordem, que não dizem
respeito a um acesso maior à informação, mas ao modo como essa informação é disposta.
Malraux destaca a esse respeito alguns aspectos como o enquadramento e a iluminação de uma
45
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
fotografia, a limitação de cores do processo reprodutivo, o problema da escala das obras e a
reprodução de fragmentos em detrimento de uma visão total.
O enquadramento e a iluminação de uma fotografia de uma escultura, por exemplo,
podem emprestar à obra um significado, uma dramaticidade, que não necessariamente seriam
percebidos em um outro tipo de enquadramento ou mesmo em uma exposição da obra mesma.
Além do enquadramento e da iluminação, a fotografia e a sua reprodução em impressos
trazem também o problema da cor. As imagens em preto e branco tendem a uniformizar peças
muito diferentes, que passam a conviver harmoniosamente, como na página de um catálogo,
criando por vezes conjuntos artificiais. Se a reprodução em preto e branco é de uma pintura, ou
de alguma outra peça em que a cor é o principal meio expressivo, a alteração de nossa percepção
da obra é ainda mais premente. As relações de cor se perdem, e a obra fica restrita ao desenho e
às luzes e sombras. Com o advento da reprodução a cores, porém, as limitações não
desapareceram. Não é possível reproduzir por meios impressos toda a gama de cores visíveis em
uma pintura. O espectro de uma obra a cores precisa ser reduzido, omitindo sutilezas tonais e até
mesmo esvaziando de sentido certos acordes cromáticos. Segue sendo, portanto, difícil estudar
coloristas por meio de reproduções e corremos o risco de não valorizar um tipo de arte pelas
limitações técnicas da imagem, que a torna acessível apenas em parte.
Um outro aspecto do discurso artístico formado pelo conjunto de imagens disponíveis é a
escala das reproduções. Para que as fotografias sejam apresentadas em livros, impressos em
geral, a diferença de tamanho entre as peças fica muito reduzida, e perdemos a noção real da
escala das obras. O tamanho máximo e mínimo de uma foto ficam limitados às variações
possíveis de um livro, objeto manuseável e visto a pequena distância. A redução de uma grande
escultura retira seu impacto e suprime seus detalhes. Por outro lado, a ampliação de objetos
menores, como moedas, selos, utensílios, pequenas esculturas, trazem à tona um novo interesse
sobre eles. Além da escala, outro recurso na construção de sentido por meio de imagens é a
utilização de fragmentos das peças, em lugar de apresentá-las inteiras. A seleção de detalhes e a
omissão de outras partes transformam o todo da peça, privilegiando determinados aspectos em
detrimento de outros.
Além da edição de cada uma das imagens, podemos acrescentar a edição de livros e
catálogos à construção do discurso por meio de reproduções. A seleção e a ordem de disposição
das imagens, o maior ou menor destaque a uma ou outra reprodução, o espaço em branco que as
acompanha, o ritmo da disposição das imagens na publicação – tudo isso permite inúmeras
possibilidades de resultados a partir de um mesmo material. E essas decisões acerca da
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apresentação das imagens irá influir no modo como elas serão apreendidas, o sentido que o
conjunto irá adquirir, o valor atribuído a cada peça. O processo de reprodução das obras de arte
em imagens é guiado por uma série de decisões por trás das quais há uma orientação estética,
historiográfica e metodológica, preferências nem sempre conscientes, e que se perpetuam pelas
reproduções que motivam.
Todo o repertório de imagens reproduzidas e disponíveis para o grande público nos mais
diversos meios, que Malraux chamou de “Museu Imaginário”, não é, portanto, apenas um
recurso técnico que permite acesso às obras de arte. Ele carrega em si uma variedade de
discursos e de possibilidades que constroem e reconstroem o nosso modo de pensar sobre a arte,
sua história, seus estilos, seus movimentos e expoentes. Paralelo aos discursos verbais dos
críticos e historiadores, eles se retroalimentam, sendo as decisões e escolhas das edições das
imagens orientadas pelo que se lê e se estuda sobre arte; e os estudos e escritos, por sua vez, são
constantemente nutridos e reelaborados pelas informações que chegam pelas reproduções. Esses
discursos chegam também à produção artística, às coleções, aos museus e às exposições, por
integrarem o pensamento que guiará artistas e curadorias e o modo de dispor as obras, de
organizá-las e de apresentá-las. Esse processo se dá, em grande parte, de modo espontâneo. No
entanto, quanto mais atenção for dedicada à construção de sentidos por meio dos discursos,
quanto mais o senso crítico do historiador for exercitado sobre os meios de que dispõe, menos
risco corremos de cristalizar preconceitos e perpetuá-los. O cuidado e a atenção que Burckhardt
conferiu à abordagem da obra de arte, sua atitude crítica diante dos discursos – tanto as
descrições verbais como as reproduções das obras – são hoje, portanto, dignos de uma atenção
especial. Se, por um lado, não faz mais sentido (nem seria possível) evitar a supremacia das
reproduções sobre o contato direto com a obra – e a pureza pretendida em O cicerone na
aproximação do objeto artístico mostrou-se, sobretudo, utópica – por outro lado, as
considerações que embasam a metodologia de Burckhardt se fazem vivamente atuais e
necessárias. Refletindo conscientemente sobre os objetos de estudo, devemos procurar explorá-lo
em seu aspecto mais intrigante: o potencial inesgotável da obra de arte como produtora de novos
sentidos.
Referências Bibliográficas:
BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
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BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
___________. Il Cicerone. Milão: Rizzoli, 1994.
MALRAUX, André. Le musée imaginaire. Paris: Gallimard, 2004.
WÖLFFLIN, Heinrich. “Jacob Burckhardt”. In: Reflexiones sobre la historia del arte. Barcelona:
Ediciones Península, 1988.
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A BIENAL DE 1961: A ATUAÇÃO DE MÁRIO PEDROSA
Ana Maria Pimenta Hoffmann
Há 50 anos, a Bienal comemorava 10 anos de existência com uma mostra de grande
proporções e com a direção artística do crítico de arte Mario Pedrosa. Esta VI Bienal do Museu
de Arte Moderna de São Paulo realizou-se entre 1º de outubro e 31 de dezembro de 1961, no
Pavilhão das Nações. Nesta minha comunicação, eu gostaria de analisar o projeto desta Bienal,
sua significação nos contextos das Bienais organizadas pelo MAM SP, do processo de
independização administrativa da mostra e na afirmação de um modelo de direção artística em
muitos aspectos atravessou estes 60 anos de Bienais.
Polêmica, a VI Bienal teve caráter marcadamente museológico, proposto pela direção
artística de Mário Pedrosa,
imprimindo uma visão da História da Arte fora dos cânones
ocidentais, o que contribui bastante para que fosse alvo de protesto e contestações das escolhas.
Além da Exposição de Pintura, Escultura, Gravura e Desenho (a Bienal de Artes Plásticas
propriamente dita), a VI Bienal apresentou a Exposição de Arquitetura, com Concurso de
Escolas de Arquitetura, a Exposição de Artes Plásticas do Teatro que constituía-se por desenhos
de figurinos e cenários, a I Bienal Internacional do Livro e da Arte Gráfica e um Prêmio
Decenal da Bienal de São Paulo. Realizou-se também o importante evento para a História da
Crítica de Arte Brasileira: o II Congresso Brasileiro de Críticos de Arte (de 12 a 15/12/1961).
Este conjunto de iniciativas indica a proporção do investimento, comparável somente ao da II
Bienal, famosa edição que participou das comemorações do VI Centenário da cidade de São
Paulo.
Mario Pedrosa, na sua atuação como crítico de arte, nas palavras de Otília Arantes, é uma
exceção do ambiente brasileiro, tendo nesta ocasião, uma oportunidade de defender de uma
forma bastante objetiva suas ideias que neste momento estava já maduras, depois de amplo
debate ocorrido no ambiente da crítica de arte durante os anos de 1940 e 1950. A Bienal de São
Paulo, como instituição de arte, tinha amadurecido seu formato, e contava com prestígio nacional
e internacional. Seu modelo de premiação, que diferentemente da Bienal de Veneza, tinha um
júri constituído por somente alguns dos delegados das representações estrangeiras, além de
personalidades do meio brasileiro eleitos pelos artistas brasileiros participantes, se firmava como

Professora Adjunto na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo
(EFLCH Unifesp), doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA
USP).
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plataforma de debate. A instituição Bienal preparava-se para ganhar autonomia administrativa, e
se fazia necessária a sedimentação do seu modelo expositivo que apresentava ao lado das
delegações estrangeiras e da Seção Geral com os artistas brasileiros e residentes no Brasil, as
Salas Especiais de caráter retrospectivo. Este modelo de organização, proposto por Sergio Milliet
na II Bienal, foi utilizado como possibilidade para fazer-se recapitulações de artistas modernistas
consagrados, e propiciava no âmbito da mostra, mas também no meio artístico brasileiro, uma
ocasião privilegiada para reflexão sobre os caminhos da arte recente, nacional e estrangeira.
Seguindo este modelo e procurando fazer um “balanço das Bienais anteriores” com “salas
especiais dos principais artistas laureados nas primeiras bienais” 1, Mario Pedrosa também
procura, por um conjunto das Salas Especiais, fazer uma reflexão em torno da História da Arte
Ocidental e não ocidental, em torno do modernismo brasileiro e em torno da Bienais. Foram
organizadas nove Salas Especiais com arte brasileira, e quase todas as delegações estrangeiras
trouxeram alguma homenagem ou sala temática.
As Salas Especiais dedicadas aos artistas premiados nas edições anteriores foram
organizadas por críticos. Sendo a sala dedicada a Danilo Di Prete, organizada por José Geraldo
Vieira e contava com 36 pinturas; a de Milton da Costa, por Flávio de Aquino, com 43 pinturas.
Uma homenagem especial a Oswaldo Goeldi, por Ferreira Gullar, com 97 desenhos e 58
xilogravuras.
No arquivo da Bienal de São Paulo, encontre-se a correspondência entre Mario Pedrosa,
Carlos Drummond de Andrade, Mario Bandeira, Geraldo Ferraz e Ferreira Gullar, sobre a
organização da Sala especial do Goeldi, falecido no inicio de 1961, onde Mário Pedrosa propõe
que seja aberto um Museu Goeldi, para abrigar a coleção do artista. Fato não se efetivou, mas
evidencia que a Bienal tinha papel como instituição de debate sobre as políticas públicas para
património artístico.
As outras Salas Especiais foram: Livio Abramo (45 desenhos e 46 gravuras), organizada
por Lourival Gomes Machado; Carybé (23 desenhos e um mosaico, além de painéis com
documentação fotográfica de obras públicas), por Wolfgang Pfeiffer; Arnaldo Pedroso d’Horta
(32 desenhos e 4 gravuras), por Armando Ferrari; duas salas com desenhos, uma de Aldemir
Martins (16 desenhos), por Lourival Gomes Machado, e outra de Marcelo Grassmann (20
desenhos), por José Roberto Teixeira Leite. E, finalmente, uma retrospectiva de Volpi sem
precedentes, organizada por Mário Schenberg, apresentando uma série de 95 pinturas, datadas
entre 1915 e 1961, que deram uma visão inédita de sua trajetória.
1
Texto de carta padrão enviada por Mario Pedrosa a críticos e artistas, como a carta de Mario Pedrosa para Di
Cavalcanti, 24/11/1961, Arquivo Wanda Swevo, Fundação Bienal de São Paulo.
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O historiador da arte José Roberto Teixeira Leite, então diretor do Museu Nacional de
Belas Arte (RJ), organizou uma sala com a coleção de 20 obras de Eugène-Louis Boudin (18241898), o “orientador de Monet”. No texto crítico do catálogo, o autor dialoga com a reavaliação
do artista feita pelo Museu do Impressionismo inaugurado em 1947.
O comprometimento com a produção artística contemporânea aparece na organização do
próprio Mário Pedrosa, junto com o curador alemão Wermer Schmaleubach, de uma Sala
Especial de Kurt Schwitters, Esta sala foi uma reedição da sala especial apresentada na Bienal de
Veneza em 1960: “Ao apresentar Schwitter, agora na Bienal paulista, conquistará para ele outro
dos dois grandes centros da vida de arte internacional dos nossos dias”2. A França enviou uma
Sala Especial “hors councours” Jacques Villon organizada por Jean Cassou, além de da sala da
Viera da Silva, artista portuguesa, que iria ganhar premio decenal.
A delegação estados-unenses foi organizada por René d’Harnoncourt, então diretor do
Museu de Arte Moderna de Nova York, apresenta uma Sala Especial Robert Motherwell
organizada por Frank O’Hara e uma Sala Especial de Reuben Nakian organizada Thomas B.
Hess, e uma, de Leonardo Baskin organizada Willian Lieberman.
A delegação chinesa trouxe uma sala sobre o artista Chang Dai-Chien, organizada pelo
Museu Nacional da Republica da China, Tampei, e o Japão, sobre Tomioka Tessai (1836-1924),
além de uma Sala Especial Caligrafia Japonesa do século VIII ao século XIX.
A América Latina estava representada nas Salas Especiais de José Clemente Orozco
(México), Samuel Roman Rojas (Chile), Pedro Figari (Uruguai), Raquel Forner e Alicia Penalba
(Argentina). Destaco a Sala Especial da delegação paraguaia, intitulada Arte Hispânico-guarani
no Paraguai (1610 - 1667), organizada por Josefina Pia e pelo gravador brasileiro Livio
Abramo, trazendo de forma inédita neste contexto, uma pequena mostra da arte religiosa da
região do Rio do Prata.
Nesta mesma chave, a Austrália comparece com uma exposição de Arte Aborígene,
organizada pelo Commonwealth Art Advisory Board. A Iugoslávia também colabora com um
pequena mostra de cópias de afrescos medievais organizada pelo Dr Milan Kasanin diretor da
Galeria de Afrescos de Belgrado.
Sobre o conjunto dos textos apresentados pelos organizadores, ressalto o caráter didático,
sempre explicativo do significado da escolha do artista ou tema, e breve análise de obras ou do
conjunto das obras apresentadas.
Em relação ao resultado geral do desenho da VI Bienal, me chama atenção a divisão da
2
MUSEU DE ARTE MODERNA. VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, 1961 (cat. de
exposição).
51
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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organização das salas especiais, em uma tentativa bem sucedida de ampliar o debate, o que vai
resultar, por exemplo, em uma premiação que contempla diversas proposições, como a arte
neoconcreta de Ligia Clark e a pintura de Iberê Camargo, sendo ambos comprometidos com
novas pesquisas.
O Júri de Seleção foi constituído por Bruno Giorgi, Ferreira Gullar, Quirino Campofiorito
(nomeados pelo Museu de Arte Moderna), José Geraldo Vieira, Lourival Gomes Machado e
Nelson Coelho (eleitos pelos artistas), além de Mário Pedrosa. O Júri de Premiação era composto
por André Gouber (França), Emille Langui (Bégica), James Johnson Sweeney (EUA), Jean
Cassou (França), Jorge Romero Brest (Argentina), Kenjiro Okamoto (Japão), Mário Pedrosa
(Brasil), N.R.A. Vroom (Holanda) e Ryszard Stanislawiski .
Grande destaque foi dado a premiação foi Lygia Clark com os Bichos, sobre o qual
Ferreira Gullar comentou que “um júri internacional de alto gabarito, ao premiar Lygia Clark
reconhece o valor de suas obras e consagra o ponto de vista Neoconcreto, que defende uma arte
do racionalismo e fora da baderna tachista”, mais à frente no mesmo artigo, o crítico analisa que
“esse prêmio se insere num complexo histórico iniciado com a própria criação da Bienal de São
Paulo”, ressaltando que “não foi um ato de rotina – desses que se observa nos júris das mostras
internacionais”3.
Foram também premiados, ao lado de Iberê Camargo, Anatol Wladyslaw com desenhos e
Isabel Pons em gravura. Sobre o conjunto dos prêmios, comenta Pierre Restany, em entrevista a
Vera Martins:
“Iberê Camargo tem um excelente metier. Seu prêmio se compreende;
estou de acordo com ele. Sua linguagem, se bem que um tanto sombria, é
muito atual. Lygia Clark. No contexto, sua idéia é interessante. Sua
escultura tem um movimento próprio e o problema da participação do
espectador me interessa. No entanto, há um lado que me lembra um
pouco objetos de papel dobrado, feito por crianças.” 4
Em entrevista por ocasião da premiação, Iberê Camargo descreve qual seria o processo de
dinamização do motivo.
Os carretéis, ponto de partida da minha fase atual, a princípio estáticos, se
dinamizaram. Inspirado no vôo dos pássaros, no movimento ondulatório
das pandorgas, nos moirões à beira das estradas, que desfilam durante a
corrida vertiginosa de um automóvel, serviram-me de base à dinamização
3
4
GULLAR, Ferreira. “Não-objeto, prêmio da Bienal, Lygia Clark”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 16.09.1961.
MARTINS, Vera. “Pierre Restany faz balanço da Bienal”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 21.9.1961
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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das formas já tão despidas de todo aspecto representativo para se
tornarem realidades e si mesma. 5
Na entrevista citada acima, a jornalista pergunta: “A arte na sua opinião deve ser
participante?”, certamente referindo-se ao neoconcretismo, que estava em destaque no âmbito
discussão sobre a Bienal pois tinham feito uma exposição no Museu de Arte Moderna de São
Paulo naquele ano, somado ao prêmio dado à Ligia Clark, obteve a seguinte resposta: “A arte é
sempre participante. A arte responde a vida”.
Mais adiante, na mesma entrevista o pintor, dá seu veredicto sobre a arte brasileira:
Indiscutivelmente a fase atual [da arte brasileira] é a mais significativa.
Embora se diga que nossa arte é caudatária da arte européia e se pretenda
uma arte nacional (a internacionalização da arte é um fenômeno de nossa
época), veja na sua liberdade e diferenciação um signo de vitalidade
como jamais teve. 6
A análise das inúmeras determinantes e variantes da decisão do júri e as consequências da
premiação é, em outras palavras, analisar as relações entre a produção artística e o
desenvolvimento da crítica. No caso do Iberê Camargo, temos de um lado um artista que não
estava ligado à atividade da Bienal e nem participava ativamente do debate na critica e teoria de
arte, mas de outro lado a consagração e, por consequência, a discussão pública sobre a obra em
um momento de plenitude e mudança na trajetória do artista.
Para finalizar, coloco que Mário Pedrosa realiza, com esta mostra, aquilo que prometeu no
momento de sua nomeação: que a Bienal “será um laboratório de experiências vivas e uma casa
de estudo e educação, destinada a assimilar o que de autêntico e vital se encontre naquelas
[novas] experiências [artísticas]”. Em uma época onde ainda não era comum a ideia de curadoria
(a Documenta de Kassel tinha apresentado sua segunda edição no ano anterior), Pedrosa
consegue imprimir personalidade e debate teórico à organização da mostra, que de forma
bastante emblemática, fecha um primeiro ciclo das Bienais, quando estavam organizadas pelo
MAM SP, logo dentro do âmbito administrativo e cultural desta instituição, e abre a década de
abertura da arte concreta e neoconcreta. Não por acaso será uma Bienal de inúmeras Salas
Especiais, que ao fazer uma avaliação dos dez anos das atividades da Bienal, faz principalmente
uma reavaliação da arte brasileira, em especial a arte moderna, conjuntamente outras produções
já consagradas pela História da Arte que de alguma forma dialogavam com as produções
recentes.
5
6
MARTINS, Vera “Iberê Camargo, prêmio de pintura na Bienal”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 21.09.1961.
MARTINS, Vera “Iberê Camargo, prêmio de pintura na Bienal”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 21.09.1961.
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Referências Bibliográficas
ALAMBERT, Francisco e CANHETE, Polyana. Bienais de São Paulo: da era dos museus a era
dos curadores. São Paulo, Boitempo Editorial:2004.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Mario Pedrosa Itinerário crítico. São Paulo, Cosac Naify, 2004.
PEDROSA, Mário. Arte necessidade vital. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1949.
PEDROSA, Mário. Arte, forma e personalidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
PEDROSA, Mário. Dimensões da arte. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e
Cultura, 1964.
PEDROSA, Mário. Panorama da pintura moderna. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e
Saúde, Serviço de Documentação, 1952.
PEDROSA, Mário. Política das artes. São Paulo, Edusp, 1995 (org. Otília Arantes).
MUSEU DE ARTE MODERNA. VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo,
1961 (cat. de exposição).
Capa do catálogo da VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, 1961
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Catálogo da VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, 1961, página com
ilustrações de cópia de afresco do século XI e obra de Alfredo Volpi
Catálogo da VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, 1961, página com
ilustrações de obra Yolanda Mohaly e de Iberê Camargo
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Catálogo da VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, 1961, página com
ilustrações de obra de Arthur Piza e de Vieira da Silva
Planta baixa da Sala Especial Alfredo Volpi, Arquivo Wanda Svevo, Fundação Bienal de São
Paulo
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Carta de Mario Pedrosa a Manuel Bandeira, 21.02.1961, Arquivo Wanda Svevo, Fundação
Bienal de São Paulo
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RETORNO À PINTURA-PINTURA: ABSTRAÇÃO INFORMAL E O DISCURSO
CRÍTICO DE ANTÔNIO BENTO.
Ana Paula França
A abordagem do termo pintura-pintura está atrelada ao debate crítico que marcou as
colunas especializadas de periódicos brasileiros no final da década de 1950. Ele foi cunhado pelo
crítico de arte Antônio Bento (1902-1988) 1 com a intenção de caracterizar a abstração informal,
exaltando sua proeminência diante da arte concreta. O debate, portanto, delineou-se a partir das
tendências abstratas desenvolvidas no país, após a segunda guerra mundial e, especialmente,
após as primeiras edições das bienais de São Paulo. As discussões tinham como mote principal a
defesa de um ponto de vista excludente e, nesse contexto, aos críticos de arte cabia, inclusive,
apontar ao público leitor a contribuição mais autêntica dentro do quadro da arte abstrata no
Brasil.
Este artigo apresenta uma análise da participação de Antonio Bento nesse debate, a
partir de textos publicados na coluna Artes Visuais do jornal Diário Carioca. Os argumentos
expressos do espaço cativo, em defesa da abstração informal, tinham como base a ideia de uma
pintura mais íntegra, mais característica e, consequentemente, mais digna de ser chamada
vanguarda.
No Brasil, a abstração informal ganhou visibilidade a partir, principalmente, da IV
(1957) e V (1959) edição da Bienal Internacional de São Paulo. Nessa época, a discussão em
torno da abstração na arte ainda se mostrava bastante acesa e o fato de obras abstratas receberem
os maiores prêmios da exposição ainda gerava polêmica. Contudo, nas edições anteriores, o
exercício da abstração recompensado era de cunho construtivo, difundido com o nome de arte
concreta, estimulado e desenvolvido nacionalmente por grupos como o Ruptura e o Frente,
oriundos de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. Dentro desse quadro, as pinturas,
desenhos, esculturas, relacionavam-se com formas geometricamente precisas, acabamentos

Mestre em Artes Visuais (História e Crítica da Arte) pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, atua nos cursos de design da Universidade Positivo, ministrando disciplinas como História da Arte e
História do Design.
1
O crítico de arte paraibano estudou Direito, sendo eleito deputado estadual no Nordeste mais de uma vez. Inicia
sua estreita relação com a arte em São Paulo, entrando em contato íntimo com o trabalho da pioneira geração de
modernistas brasileiros, interessando-se, particularmente, pelas obras de Ismael Nery. Em 1926, assim como Mário
Pedrosa, trabalhou no Diário da Noite como cronista musical. Mas é no Diário Carioca que sua contribuição tornase marcante no certame da crítica de arte, assinando uma coluna específica onde contemplou não só as artes visuais,
como a música, o teatro, a dança, entre outros.
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uniformes e mecânicos, demonstrando mais ou menos relação com preceitos racionais e
científicos. A abstração informal (denominado também como tachismo, nos textos da época), em
contrapartida, mostrava afinidade com o legado expressionista, calcando-se na potencialidade
dos materiais, nas formas orgânicas e livres, na apreciação da subjetividade e pessoalidade do
autor. Artistas tão singulares quanto Jackson Pollock, Georges Mathieu, Alberto Burri, no
cenário norte-americano e europeu, assim como Antônio Bandeira, Fayga Ostrower, Manabu
Mabe, Lóio Pérsio, no cenário local, foram encarados pelos críticos brasileiros como
representantes dessa vertente.
Além das orientações estéticas, artistas adeptos da arte concreta e da abstração informal
distinguiam-se com relação à formação de grupos e publicação de documentos assinados –
capitais para os primeiros, dispensáveis para os segundos. A valorização da individualidade
pelos artistas informais impedia o desenvolvimento desse tipo de estratagema coletivista que
ganhou destaque como prerrogativa moderna. Contudo, os textos de Antônio Bento atestam o
fato de que o perfil desses artistas não impediu a inserção de suas produções em uma discussão
mais ampla. Dessa maneira, pode-se considerar que o crítico foi porta-voz da tendência no Brasil
e como crítico de arte moderno (como gostava de ser reconhecido) deveria tratar a manifestação
com a maior objetividade possível.
Objetividade, em sua concepção, relacionava-se diretamente com a imparcialidade. Isso
significava que, para Antônio Bento, a defesa da supremacia da arte informal diante do
concretismo não se relacionava com preferência pessoal, mas com fatores intransponíveis. Em
Concretismo e arte de vanguarda, declara que não desejava tomar partido contra ou a favor da
arte concreta. Sua intenção era simplesmente “mostrar que esse não é mais um movimento de
vanguarda como aqui se apregoa” (BENTO, 1957). Além disso, afirmou que somente pretendia
“situar o movimento em sua exata perspectiva histórica.” Nesse sentido, a defesa de determinada
tendência dependia da consignação de suas antagônicas. Antônio Bento não podia admitir que
tanto a arte concreta quanto a abstração informal fossem manifestações importantes e, de certa
forma, inovadoras no contexto artístico brasileiro. Segundo o ponto de vista do crítico, no final
da década de 1950, somente o informalismo, cronologicamente e artisticamente falando,
mostrava-se novo.
Diante da “novidade” na qual se constituía o “tachismo”, Antônio Bento resolveu
atender às solicitações daqueles que ainda não conseguiam compreender o significado trazido
pelo movimento em voga na França e publicou Nota sobre o tachismo. Nesse texto, enfatizou as
principais características do movimento usando como parâmetro a outra face da arte abstrata, a
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qual o “tachismo” estaria “em franca oposição” (BENTO, 1957). Adotando procedimento de
comparação e contradição, o crítico refere-se às tendências construtivistas durante toda a
explanação, criando uma relação de dependência teórica. Por conseguinte, ressalta a relevância
da pintura tachista, a sua importância para o futuro da pintura, atrelada à negação de valores
instituídos pela abstração geométrica de artistas como Mondrian e Theo Van Doesburg. A partir
da importância desse antagonismo, o crítico abusa de termos bélicos como revolução,
bombardeio, luta, com o objetivo de destacar o tom de discórdia e a impossibilidade de
conciliação entre as duas vertentes.
Para essa empreitada, buscou estrategicamente nos antecedentes diretos da arte
concreta, que vinha se desenvolvendo no Brasil, a explicação para seu fracasso e anacronismo.
As escolas originadas através do legado de “mestres” como Mondrian e Theo Van Doesburg, a
seu ver, “reduziram a pintura a um jogo intelectual, que só contenta uma minoria”. Por outro
lado, os tachistas “insurgiram-se, por isso mesmo, contra a tradição construtivista, póscezanneana e seus ‘exageros ‘plásticos’.” Certamente, o artista pós-cezanneano, pós-cubista,
mais atacado por Antônio Bento foi Piet Mondrian. O crítico considerava o pintor holandês
como o “profeta da morte da pintura” (BENTO, 1959) e o principal responsável por despertar em
seus “seguidores concretistas” o desejo de “tornar clássica a arte abstrata.” (BENTO, 1957)
Mondrian foi um dos grandes realizadores da revista De Stijl e as ideias veiculadas nessa
publicação fomentavam a união entre arte e vida, sendo que os meios mais elitistas e
tradicionais, como a pintura e a escultura, seriam efetivamente realizados através da arquitetura.
Segundo Antônio Bento, os valores pictóricos não deviam ser suplantados pelos valores
arquitetônicos, pois não podiam ser tomados como equivalentes. Apontava o aporte tecnológico,
o aspecto prático e funcional como qualidades mais específicas da arquitetura, confrontando o
conceito de “Arquitetura, simples e imediatamente percebida” que dava maior importância aos
arranjos formais do que às especificações técnicas e operacionais, defendida por Mário Pedrosa
(PEDROSA, 1881). Sendo assim, ainda em Nota sobre o tachismo, o crítico afirma que a
conciliação entre a pintura e arquitetura era inaceitável porque “(...) a pintura prescinde das
estruturas sólidas da arquitetura, com a qual não tem parentesco próximo. A arquitetura é mesmo
muito mais tátil que ótica, domínio específico da pintura.” Para Antônio Bento, à pintura sim,
corresponderia à qualidade de ser exclusivamente vista, simplesmente percebida pelos olhos do
espectador. Por esse motivo não deveria incluir propriedades alheias, correndo perigo de perder
60
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sua peculiaridade. A partir desse raciocínio, denominou como pintura-arquitetura2 o tipo de
realização pictórica baseada em princípios que desrespeitam limites particulares, destacando
enfaticamente a importância da produção de Mondrian para a disseminação dessa confusão, a
seu ver, prejudicial.
Para o crítico brasileiro, a integridade da esfera artística em questão está mais
relacionada à valorização das possibilidades expressivas da textura e da matéria, viabilizadas
pela pincelada, do que pelas cores chapadas das formas regulares dos concretos, que pretendiam,
além de evidenciar a bidimensionalidade da tela, anular resquícios da ação manual do pintor.
Assim sendo, afirmava que de maneira adversa dos seguidores de Mondrian, os tachistas
representavam “um retorno à pintura-pintura.” Isso significava que, inversamente ao que
acontecia na pintura-arquitetura dos construtivistas, o pintor tachista desprendia-se das
“construções”, das “formas fechadas” e das “grandes chapadas”, optando pela mancha em
detrimento das formas e superfícies uniformemente preenchidas. Desse modo, os tachistas
primavam pela matéria e suas “qualidades substanciais” em busca de “novas texturas antigeométricas”. Para Antônio Bento, “tendo em vista que a pintura empobrecera enormemente nas
mãos de Mondrian e seus seguidores,” a partir desse caminho os tachistas desejavam “conferirlhe nova riqueza e nova dignidade.”
O desenvolvimento dessas novas qualidades estaria ligado a modo distinto de considerar
a relação entre o artista e seu entorno, tendo como valor afinidades instintivas, espontâneas. Em
suas palavras,
É claro que os tachistas fogem da prancha dos arquitetos, que tanta sedução exercia sobre
Mondrian. Para eles, a expressividade da matéria, o imprevisto e o insólito que se nota
nos metais oxidados, a surpresa da pintura dos velhos muros (já atentamente estudada por
Leonardo da Vinci) a textura das madeiras cortadas pelo serrote, as fotografias obtidas no
fundo do mar, o mundo surpreendente das formas ‘microscópicas’, tudo isso tem mais
importância que as figuras e os problemas da trigonometria ou da topologia.
Para Antônio Bento, portanto, a aproximação mais intuitiva da natureza, empreendida
pelos tachistas, não era um ponto negativo como queria a oposição: “alegam os adeptos da
geometria plástica sólida que a pintura tachista é pura sensualidade. Mais do que isso, é a
2
Esse termo não aparece em Nota sobre o tachismo, apesar de sua concepção teórica ser desenvolvida durante o
texto. Antônio Bento refere-se à proposta artística de Mondrian e de seus descendentes utilizando diretamente o
título “pintura-arquitetura” somente no texto Tachismo e Concretismo, publicado no Diário Carioca,
aproximadamente quatro meses depois. Ver: BENTO, Antônio. Tachismo e concretismo. Diário Carioca. Rio de
Janeiro, 07 jan. 1958.
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anarquia e pode terminar no pathos mais desvairado.” A seu ver, seria crucial que não somente o
público, mas principalmente os artistas que se julgavam vanguarda, compreendessem que o
castelo de areia dos valores racionalistas tinha ruído definitivamente. Em seu entendimento, a
“pintura de amanhã” originar-se-ia “das pesquisas dos tachistas, de seu inconformismo
revolucionário, de sua poesia profunda, de sua visceralidade elementar” e não do “primarismo
racionalista dos concretos adoradores das regras gramaticais da geometria.”
Antônio Bento não estava sozinho na tarefa de tecer críticas favoráveis a abstração
informal. No período em questão, a crítica de arte ocupava um espaço de destaque nos periódicos
das grandes cidades brasileiras. Além da coluna Artes Visuais, no Diário Carioca, os leitores
podiam contar com a coluna Itinerário das Artes Plásticas, no Correio da Manhã, assinada por
Jaime Maurício, e a Artes Plásticas, no Diário de Notícias, assinada por Mário Barata. Já no
espaço reservado a crítica de arte pelo Jornal do Brasil, a situação era inversa e críticos como
Mário Pedrosa e Ferreira Gullar trataram sempre o informalismo em tom pejorativo.
Um bom exemplo das discordâncias pode ser identificado na comparação entre o
julgamento de Antônio Bento e Mário Pedrosa a respeito da exposição de Alberto Burri, em
1960. Assim como Antônio Bento, diante das obras expostas, Mário Pedrosa destaca aquelas em
que os valores pictóricos são mantidos de maneira mais evidente. Mas ao invés de apontá-las
como exemplo das possibilidades positivas da abstração informal, o crítico toma-as como
evidência da perda do vigor revolucionário, defendido pelo confrade. Nessa ocasião, afirma que
“no fundo, o tachismo não passa de uma pseudo-revolta, ou revolta em casa de chá.”
(PEDROSA, 1960) Para Mário Pedrosa, a pintura de Burri tinha sido há muito digerida pelas
elites e classes dirigentes “que consomem conforto, luxo e cultura em quantidade cada vez mais
maciças,” assim como as experiências dadaístas das quais descende. Na opinião de Mário
Pedrosa, apesar da intenção de “escapar à pintura”, através da incorporação de materiais “ainda
mais prosaicos e insólitos que os usados na geração precedente”, o artista italiano não
ultrapassava o limiar mais importante, não se desprendia da “convenção do retângulo.”
No mesmo sentido, Ferreira Gullar aponta a manutenção da pintura como uma atitude
reacionária. No texto Teoria do não-objeto, identifica o cubismo como o movimento iniciador do
distanciamento de meios tradicionais (GULLAR, 1977). A seu ver, a continuidade dessa
iniciativa foi realizada de maneiras distintas e, ao contrário de Antônio Bento, julga a expansão
empreendida por Mondrian como uma autêntica manobra revolucionária, enquanto o tachismo
ainda “necessita manter o espaço, o ambiente pictórico nascido da representação do objeto”. A
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tentativa de aniquilar a moldura seria mais franca no artista holandês do que nos representantes
da abstração informal que
em lugar de romper a moldura para que a obra se verta no mundo, conservam a moldura,
o quadro, o espaço convencional, e põem o mundo (os materiais brutos) lá dentro. Partem
da suposição de que o que está dentro de uma moldura é um quadro, uma obra de arte. É
certo que, com isso, também denunciam o fim dessa convenção, mas sem anunciar o
caminho futuro.
O caminho futuro, para Ferreira Gullar, estaria na criação de objetos especiais, de nãoobjetos. É certo que na década de 1960, tanto em outros países quanto no Brasil, a produção
artística fundamentou-se em diferentes meios e suportes, até mesmo na desmaterialização dos
mesmos. Esse fato, entretanto, não deve determinar simplesmente o rótulo de retrógrado ao
propósito crítico de Antônio Bento. O mesmo não pode mais ser analisado simplesmente por seu
viés conservador, tendo como ponto de referência figuras como Mário Pedrosa e Ferreira Gullar.
Antes de qualquer julgamento quanto à qualidade de suas propostas, deve-se reconhecer sua
existência em meio a outras realizações, sendo a consideração dessa diversidade importante para
que se trace um perfil mais abrangente da crítica de arte brasileira do período em questão. Da
mesma maneira, tanto seu exercício crítico quanto a própria abstração informal devem ser
examinados como parte integrante da história das tendências expressionistas no Brasil, a despeito
de critérios hierárquicos, tão caros a algumas abordagens modernistas. Contemplar o escopo do
discurso de Antônio Bento deve ser encarado, portanto, como estímulo para a discussão sobre o
papel da abstração informal no quadro da arte brasileira, tão pouco explorado pelas abordagens
históricas até então.
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13 fev. 1957.
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_____. O néo-concretismo. Diário Carioca. Rio de Janeiro, 05 abr. 1959.
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2011
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vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Artes
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GULLAR, Ferreira. Teoria do não-objeto. In: AMARAL, Aracy (org.). Projeto construtivo
brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; São Paulo: Pinacoteca do
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1960.
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SILVA, Ana Paula França Carneiro da. A arte informal e os limites do discurso crítico moderno
em Antônio Bento e Mário Pedrosa. Dissertação para obtenção do título de Mestre em Artes
Visuais com ênfase em História e Crítica da Arte do Programa de Pós-graduação em Artes
Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.
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2011
DESENHO, PROJETO E INTENÇÕES EM ARQUITETURA
CONSIDERAÇÕES SOBRE PROJETOS NÃO-CONSTRUÍDOS
Ana Tagliari
Wilson Florio
Resumo
O objetivo deste ensaio é refletir sobre projetos não construídos, sua importância dentro
da pesquisa em arquitetura, que envolve projeto, desenho, representação e principalmente,
intenções e idéias.
Muitos projetos de importância na arquitetura nunca foram construídos. No entanto
fizeram parte da história da arquitetura e da formação de gerações de arquitetos.
O presente texto faz parte da pesquisa de Doutorado que está sendo desenvolvida desde
2009 na FAUUSP com apoio do CNPq, que analisa projetos residenciais não construídos de
Vilanova Artigas no Estado de São Paulo, entre os anos de 1941 e 1981. Como método de
análise, utilizamos desenhos e maquetes para o estudo dos projetos.
Introdução
“Unbuilt projects can also contain several layers of development,
intentionally or not, or consist of particular roles played out by particular drawings”.
Peter Cook, 2008, p.29
Projetos não construídos possuem importância especialmente pela idéia que os
estruturam, que apesar de não serem de fato concretizadas em forma de um edifício, estão
presentes no conjunto da obra do arquiteto. Na história da arquitetura há um grande número de
projetos de inestimável importância que nunca foram construídos. Desde projetos dos mais
variados de Leonardo da Vinci (1452-1519), a cidade ideal de Piero della Francesca, até
propostas modernas como a cidade industrial (1904) de Tony Garnier (1869-1948), idéias de
Antonio Sant’Elia (1888-1916), Mies van der Rohe (1886-1969), Grupo Archigran (década de
1960) e Le Corbusier (1887-1965), apenas para citar alguns. Entretanto, apesar de não

Arquiteta (FAU-MACKENZIE 2002), Mestre pelo IA Unicamp (2008) e Doutoranda FAUUSP. Bolsista de
Doutorado do CNPq.

Arquiteto, Mestre e Doutor em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP, 2005). Pesquisador do CNPq e Professor na
Faculdade de Arquitetura da UNICAMP e do MACKENZIE.
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construídos, fizeram parte da formação de gerações inspiradas nestas idéias contidas nos
desenhos que apresentaram estes projetos para criar espaços construídos que vivenciamos hoje.
As idéias são perenes e sobrevivem mesmo sem sua concretização em forma de edificação.
A partir do século XVIII com o Classicismo e o Romantismo houve grande produção de
desenhos de projetos considerados visionários e utópicos, como de Giovanni Battista Piranesi
(1720-1778) Claude-Nicolas Ledoux (1736-1806) e Étienne-Louis Boullée (1728-1799).
Peter Cook (2008, p.81) observa que muitos arquitetos passaram por uma fase com vários
projetos não construídos para chegar a uma maturidade e terem diversos projetos executados.
Cook lembra das denominações utilizadas como Paper Architects, Unbuilt Architects ou
Drawing Architects, pelo fato de serem arquitetos de projetos não construídos, que ficaram no
papel apenas em desenho. Para ele não há nenhum problema em ser um deles, inclusive estes
projetos influenciaram outros arquitetos, mesmo apesar de não terem sido construídos.
A pesquisa sobre o tema Projetos não construídos
Relevantes pesquisas realizadas (ROSENBLATT, 1968; SKY e STONE, 1976;
COLLINS, 1979; SIZA e TESTA, 1987; RAMIREZ, 1988; HARBISON, 1991; NEUMANN,
1992; SAGGIO, 1992; THOMSEN, 1994; NOVITSKI, 1998; PFEIFFER, 1999; LARSON,
2000; MIRKO e MÜHLHOFF, 2000; NOEVER, 2000; JUAREZ, 2000; BACHIN, 2005;
SPILLER, 2006; JONES, 2009; FOSCARI, 2010; JONES, 2009; BARRIOS, 2010; KROHN,
2010) atestam e certificam a importância do estudo de projetos não construídos dentro da obra
de um arquiteto e de um universo mais amplo. A importância reside não apenas na pesquisa
histórica, crítica e de projeto incluindo análise da definição, ensaio, experimentação de uma
linguagem própria dentro do conjunto de sua obra, mas também num quadro mais amplo da
arquitetura, incluindo linguagem de um conjunto maior.
No Brasil, o método e a abordagem deste tema são inéditos. É importante citar
devidamente que, apenas as pesquisas orientadas pelo Professor Wilson Florio são pioneiras
neste tipo de abordagem e no método, utilizando modelos computacionais para o estudo de
projetos não-construídos dos arquitetos brasileiros Paulo Mendes da Rocha (SILVA, 2007), Lina
Bo Bardi (SANTIAGO, 2008) e Vilanova Artigas (SAKON, 2009).
Há diferentes abordagens sobre o estudo de projetos não-construídos. Desde visões
pragmáticas e objetivas até mais conceituais e teóricas sobre a análise e interpretação de
desenhos de projetos não construídos, selecionamos alguns autores que são referência no estudo
deste tema.
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Na interpretação de Robert Harbison (1991, p.161), professor da London Metropolitan
University, projetos não construídos são caracterizados como inconstruíveis. Harbison defende a
tese que mesmo projetos que foram construídos podem ser considerados como não construídos,
pois a idéia, o conceito e a técnica original muitas vezes foram traídos. Neste caso o conceito que
estrutura a idéia do projeto é o mais importante e o que interessa na análise.
O conceito por si é algo abstrato e “não construído”: “Representação dum objeto pelo
pensamento, por meio de suas características gerais, qualidade, abstração, idéia, significado, ação
de formular uma idéia por meio de palavras, definição, caracterização”. (FERREIRA, 2004, p.).
Como observou Fredy Massad e Alicia Guerreiro Yeste (2006) a construção de um projeto não
significa sua conclusão, nem física, nem intelectual.
No texto “O Desenho”, Artigas discute sobre o sentido da palavra desenho e seu
significado. Para o arquiteto o objetivo final de um desenho, de um projeto, era de fato a
construção em si. O desenho, portanto é um meio para se atingir seu objetivo final e a arquitetura
se realiza quando a obra foi construída, com seus espaços e formas. Entretanto, em seu texto fica
evidente a importância do desenho como intenção, plano, desígnio, expressão, linguagem e
especialmente a idéia.
Dentro do conjunto da obra de um arquiteto, todos os projetos por ele desenvolvidos,
construídos ou não, possuem sua importância. Neste sentido, pode-se afirmar que projetos não
construídos, em muitos casos, contribuíram para a formação de idéias importantes, e que, em
alguns casos, culminaram em obras construídas de grande importância. Portanto este tipo de
projeto faz parte do conjunto do pensamento do arquiteto, e possui grande valor dentro do
conjunto de sua obra.
Desenho, Projeto e Intenções
Há várias razões para que o projeto não tenha sido levado adiante. Desde projetos para
concursos, falta de recursos tecnológicos ou financeiros ou até mesmo o fato do projeto ter sito
concebido apenas como uma idéia não necessariamente exeqüível. No caso de projetos sem
intenção final de construção, alguns deles tornam-se utópicos, visionários, futuristas e até
impossíveis de serem executados em sua época.
Muitos projetos de importância na arquitetura nunca foram construídos. No entanto
fizeram parte da formação de gerações inspiradas nestes projetos e arquitetos para criar o
ambiente construído que vivenciamos. Estes projetos guardam em si um universo imaginário
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positivo e instigante. Por outro lado, algumas obras construídas perdem seu encanto por trás da
idéia, que pode ter sido modificada na construção.
A natureza do tema muitas vezes condiciona e sugere outros termos e significados, como projeto
ou desenho imaginário, visionário, utópico, fantasioso, especulativo, virtual, futurista ou ideal,
utilizados muitas vezes como sinônimos.
Em sua Tese, Rafael Perrone (1993) evidencia a íntima união entre arquitetura e desenho,
como signo que representa idéias de movimentos e épocas. Sendo o desenho um meio de
representação de idéias e faz parte do processo de projeto, utilizamos a termo para comentar
sobre alguns projetos importantes que não foram construídos.
Alguns projetos não construídos podem ser ou são considerados visionários.
Especialmente aqueles que não tinham a intenção original de ser construído na época de sua
concepção, sendo considerados um protótipo, um modelo e uma idéia para o futuro. O que foi
considerado visionário numa dada época passada, pode ser perfeitamente normal e viável nos
dias de hoje, como observou Arthur Rosenblatt (1968, p.322). George Collins (1979) observa
que arquitetos com propostas visionárias geralmente são pensadores independentes e, por outro
lado, doutrinários e que formam seguidores e Escolas. Collins aponta Mies, Gropius, Corbusier e
Wright como arquitetos visionários do século XX. Por outro lado, Rosenblatt assinala que
arquitetos visionários apresentam propostas caracterizadas pela completa independência do
passado e uma alusão à tecnologia.
Para George R. Collins (1979, p.244) desenhos visionários representam uma posição
teórica, especulativa e até mesmo imaginária considerada a frente do seu tempo e nem mesmo
teria a intenção de se concretizar. Por outro lado, estes projetos considerados visionários
possuem um programa específico e poderiam ser construídos. Neste caso a idéia visionária não
tem a pretensão de ser construída na sua época, mas em outro momento da história, como é o
caso do desenho do projeto da Torre de Vidro (1920-21-22) de Mies (figura 01). Como observou
Vincent Scully Jr.(2002, p.56) a condição européia limitou a oportunidade de criação de Mies,
que só pôde construir estes projetos quando encontrou um ambiente receptivo a ela, na América,
em 1939, quase 20 anos depois.
Na exposição Living City (Londres, 1963) Peter Cook apresentou, entre outras, a proposta
para uma Nova Universidade para a Plug-in City. Segundo Vincent Scully Jr., suas idéias
representavam uma pseudofúria neofuturista, caracterizada pela visão moderna e irônica do
antigo. O projeto utópico não se concretizou, porém Scully observa que a influência de seus
projetos já produziu vencedores de concursos internacionais, como o Beaubourg de Piano e
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2011
Rogers, em Paris (SCULLY, 2002, p.130; COOK, 1999, p.03) e também o edifício do
Kunsthaus, em Graz, na Áustria (Figura 02).
O projeto da City Tower de Louis Kahn não foi construído, porém seus vários estudos e
desenhos influenciaram trabalhos de outros arquitetos (JUAREZ, 2000), como o recente Hearst
Tower (New York, 2006) de Norman Foster (Figura 03).
Segundo George Collins (1979, p.244), projetos utópicos surgem como uma resposta a
algum descontentamento na sociedade e a intenção de melhorá-la, num desejo por mudanças,
alterando o foco da discussão. Faz parte de uma utopia, uma crítica e uma proposta para se
atingir a perfeição. A crítica nasce da insatisfação e incertezas que cria condições para uma nova
proposta.
Segundo Robert Harbison (1991, p.156-157), que defende a tese de que a idéia é mais
significativa do que a coisa construída, a Torre de Babel, foi o mais imaginário dos edifícios já
proposto. A aspiração de construir o mais alto possível, unindo céu e terra, vencendo a
tecnologia, presente no imaginário de Babel nunca deixou de existir (SKY;STONE, 1976, p.8-9).
Entre as especulações arquitetônicas dos anos de 1960 os projetos de Paolo Soleri (Figura 04)
merecem destaque (RAMÍREZ, 1988, p.239). Para Soleri resolver os problemas da vida moderna
seria criar uma cidade verticalizada com mega-estruturas gigantes e utilização de espaços
subterrâneos.
A arquitetura expressionista se desenvolve no clima do pós-guerra de reconstrução,
surgindo um núcleo de estudos e experimentos na construção. Na liderança do grupo estava
Bruno Taut (1880-1938) com Hans Poelzig (1869-1936) e Peter Behrens (1868-1940), e
arquitetos mais jovens como Erich Mendelsohn (1887-1953) e Hans Scharoun (1893-1972). O
grupo tinha idéias utópicas para a reconstrução da Alemanha arrasada e teve vida breve. Um
grande ícone da arquitetura expressionista é a Torre Einstein (1919-23) de Mendelsohn (Figura
05), que produziu muitas propostas e idéias de edifícios, porém grande parte não construídos. A
forma modelada pelo arquiteto como uma escultura segue a sua função, com volumetria única e
contínua, que expressa o movimento e o dinamismo da realidade social da época. A arquitetura
expressionista interpreta a realidade e não tem objetivos de modificá-la, como observa Argan
(1992, p.246).
Para Harbison (1991, p.168-171) o exemplo mais radical de Expressionismo foi
representado por Hermann Finsterlin (Figura 06), apesar de não ter construídos suas propostas. O
autor utiliza o termo fantástico e imaginário para descrever seus projetos, que considera
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inexeqüíveis, especialmente por considerar que a inflexibilidade de Finsterlin faz com seus
projetos sejam um monumento aos seus próprios sonhos, ao contrário de Mendelsohn.
Apesar de muitas propostas do expressionismo alemão não terem sido construídas, segundo
Argan, se refletirmos sobre a utopia e a fantasia expressionista e as teorizações do racionalismo
da Bauhaus, não há contradição, mas sim uma continuidade (2000, p.196).
Alguns destes projetos constituem importantes laboratórios experimentais e representam
grande importância dentro da obra do arquiteto. Investigar os projetos que estiveram presentes
apenas no imaginário do arquiteto, e que estão registrados por meio de desenhos, possibilita a
interpretação de idéias.
Peter Reed (2000, p.11-12) observou que muitos projetos não construídos foram ensaios e
experimentações para obras primas construídas dentro do conjunto obra de Louis Kahn, arquiteto
com obras de grande importância para a arquitetura moderna. O autor ainda aponta que o
arquiteto possui inúmeros projetos não-construídos na cidade de Filadélfia, foco de estudo de
Kahn.
A pesquisa de Kent Larson (2000), referência importante nesta pesquisa, também
apresenta uma investigação sobre as obras não construídas do arquiteto Louis Kahn. O autor
observa que Louis Kahn deixou muitos projetos importantes não construídos, especialmente
entre os anos de 1959 e 1963, onde testou e desenvolveu suas novas idéias. Sua pesquisa
investiga as inspirações que levaram o arquiteto a chegar às idéias de seus projetos e compara
com imagens renderizadas de perfeitas simulações digitais de espaços não construídos. A
pesquisa ricamente ilustrada de Larson ainda mostra croquis de estudo, isométricas, plantas,
cortes e elevações dos projetos analisados, além de fotomontagens do projeto inserido no
contexto urbano. No texto Pictures of Possibilities, presente no pósfacio, William J. Mitchell
observa que se os projetos de Kahn tivessem sido construídos seriam como nas imagens
apresentadas.
Durante o século XX a cidade de Berlin foi cenário de vários concursos de arquitetura,
com propostas de arquitetos de todo o mundo. No entanto muitos destes projetos nunca foram
construídos. A Exposição The Unbuilt Berlin (KROHN, 2010) apresentou 100 projetos de 100
arquitetos diferentes para a cidade entre 1907 e 1997, com 13 maquetes de algumas propostas
não construídas. O responsável pela coleta de dados dos projetos foi o arquiteto Carsten Krohn,
que passou anos organizando o material. Alguns projetos, apesar de na construídos se tornaram
ícones da arquitetura moderna, como a Torre de Vidro na Friedrich Strasse, de Mies van der
Rohe (1921).
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2011
Na obra de Oscar Niemeyer observamos que o projeto para o Museu de Arte Moderna de
Caracas (1955), apesar de não construído, é um projeto paradigmático e importante, tanto na
obra de Niemeyer quanto de outros arquitetos. O projeto é significativo, marca a mudança de
postura no trabalho de Niemeyer. Segundo Yves Bruand (2008, p.181-182) este projeto
inaugurou uma nova etapa de sua carreira, fazendo com que o arquiteto se libertasse das últimas
limitações impostas por ele mesmo.
Neste mesmo sentido, o projeto da residência Errázuriz (Chile, 1930 – Figura 07) de Le
Corbusier, não foi construído (Ver: HARRIS; HARRIS, 2001). O partido adotado pelo arquiteto
propunha uma novidade: o telhado invertido “asa de borboleta”. O projeto influenciou nas
propostas de projetos residenciais de arquitetos como Oscar Niemeyer (Res. Passos, 1939; Res.
Charles Ofair, 1943), Vilanova Artigas (Res. Antonio L. T. Barros, 1946; Res. Vilanova Artigas
II, São Paulo, 1949; Res. Juljan Dieter Czapski, São Paulo, 1949 (Figura 08), Res. D’Estefani,
1950) e Affonso Eduardo Reidy (Res. Carmem Portinho, 1952), apenas para citar alguns.
A adoção de rampas para circulação certical, promenade architecturale e elemento
arquitetônico escultural, presente no projeto da Villa Savoye de Le Corbusier (Poissy, 1929-31 –
Figura 09), já havia sido ensaiada pelo arquiteto em projetos não construídos do início da década
de 1920, como a Villa em Auteuil (1922 – Figura 10) e a Maison Meyer, em Paris (1925), o que
não diminui a importância da idéia adotada pelo arquiteto.
Considerações Finais
Neste breve texto podemos notar a importância de alguns projetos não construídos
presentes na história da arquitetura.
Na pesquisa que está sendo desenvolvida, onde são analisados projetos residenciais não
construídos de Vilanova Artigas, na ausência da obra construída, a maquete permite a
proximidade com a materialidade do projeto e assim tem sido um artefato fundamental para a
investigação de tais projetos.
Estes projetos certamente consumiram anos de trabalho, antes de serem guardados e
arquivados, deixando para o esquecimento idéias e pensamentos. Estudar, analisar e escrever
sobre estes exemplares implica retomá-los, não para validá-los, mas para reconstituí-los dentro
de sua devida importância na história da arquitetura.
Referências Bibliográficas
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Imagens selecionadas
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 01: 1920-21-22, Mies van der Rohe, Torre de Vidro, Berlin. Projeto não-construído.
Fonte: GA, 2010.
Figura 02: 2003, Peter Cook, Kunsthaus, Graz, Áustria. Fonte: Foto do autor, 2008.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 03: A esquerda: 2006, Norman Foster, Hearst Tower, New York
Fonte: Foto do autor, 2009.
A direita: 1953, Louis Kahn, Detalhe da elevação e corte da primeira proposta da City
Tower. Projeto não-construído que pode ter inspirado a Hearst Tower. Fonte: JUAREZ,
2000.
Figura 04: 1969, Paolo Soleri, Desenho de mega edifício, Arcologia, Babel II. Fonte:
arcosanti.org.
Figura 05: 1919-23, Erich Mendelsohn, Torre Einstein, Potsdam. Fonte: Foto do autor, 2008.
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2011
Figura 06: 1924, Hermann Finsterlin, Casa de vidro. Fonte: finsterlin.com
Figura 07: 1930, Le Corbusier, Fotomontagem de perspectiva da Maison Errázuriz,
Chile. Fonte: http://www.arqchile.cl/errazuriz_casa.htm
Figura 08: 1949, Vilanova Artigas, projeto construído residência Juljan Czapski, São Paulo.
Fonte: RIBEIRO, 2001.
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Figura 09: 1929-31, Le Corbusier, Foto Ville Savoye, Poissy. Fonte : Foto do autor, 2008.
Figura 10: 1922, Le Corbusier Villa em Auteuil, projeto não-construído, França. Fonte:
BOESIGER, 1994.
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2011
IMAGENS DA CIDADE: ITU NA FOTOGRAFIA DE SETIMO CATHERINI
André Luís de Lima
A partir de imagens gravadas em papel, o percurso desse projeto busca resgatar o
imaginário da cidade de Itu (São Paulo, Brasil) registrado em fotografias ao longo da primeira
metade do século XX. Por meio da interpretação da iconografia em conjunto com a compreensão
dos desencadeamentos socioeconômicos geradores da configuração urbana do município,
pretende-se o resgate da produção fotográfica do período, seu posicionamento no tempo e no
espaço, o reconhecimento de seus realizadores e a leitura da evolução urbano-arquitetônica.
As imagens que retratam os espaços da sociabilidade ituana, e também seus mais icônicos
monumentos, formaram diversas coleções de cartões-postais que, desde a virada do século XIX,
registram os espaços mais identitários da urbe. Dentre essas coleções, há destaque especial para
o conjunto registrado pelo fotógrafo Sétimo Catherini que produziu mais de uma centena dessas
imagens feitas para circular em cartões de papel.
A cidade e sua iconografia
Conhecida detentora de iniciativas desenvolvimentistas e de cunho social e político de
importância regional e nacional, a cidade de Itu nasceu como ponto irradiador e limite oeste da
civilização brasileira meridional no início do século XVII, sendo conhecida como “Boca do
Sertão”. Foi pouso e ponto de partida para a epopéia bandeirista que atingiu os sertões do hoje
Centro-Oeste brasileiro através das “estradas móveis” (SOUZA, 2000: 9) – os rios nas palavras
de Sérgio Buarque de Holanda – e depois abriu caminho para o comércio das monções.
A cidade se desenvolveu sobremaneira através da economia agrícola a partir da
subsistência aos bandeirantes e monçoneiros, adentrando ao ciclo econômico do açúcar que a
transformou no maior centro produtor do gênero no sul do Brasil no início do século XIX e que a
transportou ao crescimento cultural, político e religioso; seguiu-se paralelamente a cultura do
algodão que fez surgir na cidade a Fábrica de Tecidos São Luiz em 1869, primeira da província.
Com a substituição gradativa do açúcar pelo café, a cidade iniciou o século XX como
tendo sido regente de fatos representativos ligados à política, à educação e à cultura nacional e
seu crescimento fez surgir uma série de novos arruamentos e benfeitorias infra-estruturais

Mestrando da Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - FAUUSP
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2011
como a construção de instituições de ensino, a criação da linha férrea (figura 7), a eletrificação
(figura5), o mercado público municipal (figura 2); e viu chegarem os primeiros imigrantes
europeus e asiáticos.
Daí advém, transpondo o açúcar e perpassando o café, o patrimônio construído que a
cidade ostentou vigorosamente até meados do século XX, quando a indústria cerâmica passou a
puxar as rédeas da economia. Com a derrocada do café e o atingir da industrialização mais
pujante e da “modernidade não-esclarecida” – aquela que desconsidera as peculiaridades locais –
, a cidade seguiu o caminho do desenvolvimento de única via, em que o padrão a ser seguido
praticamente desconsidera o pré-existente, que só teve seu peso considerado graças às primeiras
ações de proteção iniciadas pelo IPHAN em 1938 com o tombamento da Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Candelária (figura 8), seguida pela proteção da Igreja e Convento do Carmo e do
edifício sede do Museu Republicano Convenção de Itu (figura 1), já em 1967 (MONUMENTA,
2000).
Do conjunto circundante a esses bens, a parte que resistiu até a investida de novas ações
de proteção iniciadas na década de 1960 pelo CONDEPHAAT, teve como fator protetor o
esmorecimento econômico, a desnecessidade do novo, a identificação religiosa ou o raro apego à
herança passada. Sendo boa parte da arquitetura substituída ao longo do século XX, enquadrando
a cidade na concepção propalada por Benedito Lima de Toledo: “palimpsesto – um imenso
pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova, de qualidade
literária inferior, no geral” (TOLEDO, 2007: 77).
De tal modo que nos restaram apenas imagens pictóricas e registros fotográficos daquele
conjunto pleno, homogêneo, que ocupa a colina e que se pontua de arquiteturas importantes,
principalmente torres de congregações religiosas e chaminés de indústrias (figuras 3 e 4).
Conjunto que rendeu à cidade o título de “Ouro Preto Paulista” (SOUZA, 2000: 14) pelo
historiador Afonso de Taunay, e que hoje é vislumbrado pontualmente.
O conjunto iconográfico da cidade perpassa artistas reconhecidos, atuantes nos séculos
XVIII e XIX e que tiveram suas obras estudadas ao longo do último século como o Padre
Jesuíno do Monte Carmelo (Santos, 1764 – Itu 1819), pintor e arquiteto analisado por Mário de
Andrade; as gravuras de Miguel Dutra (Itu, 1810 – Piracicaba, 1875) estudadas por Pietro Maria
Bardi em “o poliédrico artista paulista”; e a pintura de Almeida Júnior (Itu, 1850 – Piracicaba,
1899), estudada por Gastão Pereira da Silva, dentre outros.
Em fins do século XIX e adentrando o século seguinte, a fotografia toma a dianteira na
iconografia de modo geral e, naturalmente, em Itu surgem diversos profissionais que avolumam
78
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
os registros da configuração e das transformações da cidade, realizando também trabalhos
corriqueiros na área, destacando-se Frederico Egner, Antônio Martins Coelho, Setimo Catherini,
Eufêmio Gomes Juste, Oswaldo Tozzi, Francisco Navarro Dias, José Toledo e Hideko Katahira
(LIMA, 2001: 17-20). Sendo a configuração urbana, dos temas o mais conhecido, pelo domínio
público que encerra.
A digulgação dessas imagens urbanas se deu principalmente por meio dos cartões-postais
– febre iconográfica desde o final do século XIX –, publicados na cidade e sobre a cidade. Sua
divulgação aconteceu por intermédio dos próprios fotógrafos que reproduziam fotograficamente
seus negativos, como também por meio de casas editoriais e comerciais: Livraria e Papelaria de
Augusta Mehlmann (década de 1910), Ed. da Casa Guimarães e Foto Postal Colombo
(exclusividade comercial do estúdio Katahira). Neste diversificado conjunto, também aparecem
exemplares que trazem o registro da União Postal Universal no verso das imagens, geralmente
numerados.
O fotógrafo e sua produção
Nascido Settimio Catherini em Mococa-SP em outubro de 1901, Setimo – como passou a
ser conhecido – foi o terceiro filho de um casal de imigrantes italianos. Foi morar em Itu ainda
criança depois que seu pai faleceu e sua mãe casou-se com outro italiano, já estabelecido nessa
cidade. Trabalhando desde pequeno, tornou-se ajudante de um armazém localizado em uma rua
central da cidade e pertencente ao senhor Ferrucio, que, retornando à Itália, deixou o pequeno
comércio para o jovem Setimo como pagamento pelos seus préstimos dos últimos anos. Era o
ano de 1917.
A partir do pequeno bar, a edificação foi aumentando e a diversificação comercial
também. Agregou loja de caça e pesca, de fogos, estúdio fotográfico (figura 9). Passou a ser
conhecido como bazar “tem de tudo” pela diversidade de artigos que comercializava. Em jornal
da década de 1930 o estabelecimento comercial é anunciado sob o contraditório título de “Bar e
Foto Setimo” (figura 10). Este mesmo estabelecimento, hoje dedicado apenas aos fogos de
artifício, ainda permanece sob o comando da família Catherini.
Comerciante nato, Setimo passou a produzir e comercializar fotografias no final da
década de 1920, após seu casamento, e seguiu na profissão até o final de sua vida em 1975. Ao
longo de todo este período realizou trabalhos de estúdio, como retratos protocolares de primeira
comunhão, casamento, formatura, fotos para documentos; cobriu eventos religiosos, esportivos,
sociais e políticos; atendeu a chamados de militares e religiosos; realizou fotos para a polícia; e
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2011
vistas urbanas – sua produção mais conhecida por ter sido comercializada em forma de postais
colecionáveis, os quais eram vendidos exclusivamente em seu estúdio.
Seu aprendizado fotográfico ainda permanece desconhecido. Seu mentor provavelmente
teria sido um seu conhecido já mais experimentado que o teria encaminhado nesse ofício. Ou um
interesse próprio e o acesso a informações que o fotógrafo tenha buscado sozinho. Fato é que a
produção de Sétimo Catherini vem quase que continuar o trabalho de um seu predecessor das
imagens de Itu, provavelmente o pioneiro das coleções de postais cujo tema é a cidade: Frederico
Egner. Suas imagens editadas no início do século XX são por vezes refeitas por Setimo nas
décadas de 1930 e 40, em muitos casos utilizando praticamente o mesmo ponto de vista.
Nas imagens circulantes de Catherini, o fotógrafo visita os locais mais conhecidos da
cidade, também os mais vendáveis, aqueles que fazem parte do imaginário da população, que são
seu ponto identitário. São imagens de edifícos, monumentos, edifícios-monumento, largos e
praças, interiores de instituições religiosas, de ensino (figura 6) e de cultura. Alguns desses locais
são revisitados por ele quando há a necessidade de se registrar mudanças significativas em sua
configuração.
Porém, o longo período de produção e as facilidades advindas com o avanço tecnológico
permitiram a Setimo produzir um conjunto muito maior de imagens que seu antecessor: sua
coleção de postais atinge ao menos 164 unidades – essa a numeração encontrada até o momento
nas coleções pesquisadas no Museu Republicano de Itu e em acervos particulares.
Aliás, uma das características mais marcantes e identitárias de suas imagens é o modo
como aprecem a legenda e a numeração sequencial de cada fotograma, gravados manualmente
sobre a própria fotografia e em locais escolhidos conforme as áreas tonais da imagem. Nas
fotografias não circuláveis, aquelas que primordialmente não compunham a coleção de postais, o
fotógrafo anotava a autoria das mesmas por meio de clichê gravado em relevo no canto inferior
direito das imagens.
No entanto, para além da autoria e identificação do assunto gravado nos postais, um dado
imprescindível para o mapeamento de sua produção não aparece anotado nas imagens: a data de
sua realização. Essa, uma das maiores buscas deste projeto.
A pesquisa
Iniciado no primeiro semestre deste ano, o presente estudo busca a identificação do
acervo do fotógrafo Setimo que encontra-se disperso em coleções diversas que são, em sua
maioria, particulares, inclusive a da própria família Catherini. A partir da organização deste
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
acervo serão desenvolvidos estudos iconográficos espaço-temporais comparativos em interação
com outros acervos de imagens fotográficas de Itu, e também com o acervo de mapas da
evolução urbana no período mencionado.
Para a consecução dos estudos referentes à obra do fotógrafo Setimo Catherini e a
iconografia da cidade de Itu como um todo, pretende-se a identificação, classificação, duplicação
digital, análise e interpretação do acervo das imagens urbano-arquitetônicas – e outros temas
correlatos – às quais se tenha acesso. Para tanto, estão sendo seguidas algumas etapas de
aprofundamento ao tema:
Identificação e coleta de dados
Compreende a busca de informações e material base para o inventário e catalogação do
acervo, buscando aprofundamento gradual nas tipologias e bases documentais, a partir do
reconhecimento do universo até a duplicação digital da iconografia. As fontes citadas
refletem uma prévia aproximação ao tema, devendo ser constantemente revistas ao longo
do estudo.
Reconhecimento: enumeração do universo de imagens do fotógrafo Setimo Catherine e
de seus contemporâneos, bem como identificação de bases cartográficas distintas,
possivelmente disponíveis para coleta de dados. A ser realizada através da catalogação
inicial das reproduções e citações publicadas em livros, periódicos de circulação regional
e publicações eventuais (revistas, edições comemorativas de jornais, prospectos);
Fontes primárias: pesquisa de reproduções primárias das imagens em instituições
públicas e coleções particulares, confrontando-se a pesquisa de reconhecimento com estas
fontes em busca do recobrimento de toda coleção.
Duplicação digital das imagens
Seguido à identificação do material é necessária a duplicação digital das imagens para
compor banco de dados que viabilize o acesso imediato a elas e o desenvolvimento de
análises.
Revisão bibliográfica
Estudo sistemático de publicações relacionadas ao tema, caracterizadas por diferentes
aspectos quanto à abrangência:
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Fundamentais: tratam-se das fontes de aproximação aos assuntos abordados, incluindose publicações voltadas para a história da cidade de Itu, história da fotografia e do cartãopostal, registros da iconografia local e regional, história das configurações urbanas
paulistas, vocabulário arquitetônico;
Conceituais: abordagens que se debruçam sobre as análises da iconografia de um modo
geral, das escolas artísticas, do léxico fotográfico, das configurações espaciais, das
relações homem x meio-ambiente urbano, dos hábitos humanos;
Aplicadas: referem-se a estudos direcionados a pesquisas afins, que tratam de temas
correlatos e que visam a análise dos resultados obtidos ao longo da pesquisa em voga.
Análise e classificação dos dados
Categoricamente, as imagens serão analisadas e classificadas por meio dos seguintes
aspectos, que visam o reconhecimento de características camunais às imagens, não sendo,
portanto, exclusivas:
Autoral: fotógrafo, casa editorial;
Físico: formato, base, mídia, gravação, coloração;
Fotográfico: técnico, compositvo, substancial (temática)
Urbano-Arquitetônico: conjuntos urbanos, escolas arquitetônicas, evolução da malha
urbana, substituições arquitetônicas, infra-estrutura urbana, equipamentos urbanos;
Social: comportamentos humanos, manifestações sociais;
Geográfico: ponto de vista, abrangência do enquadramento, sobreposições;
Épico (linha evolutiva): data declarada, data de publicação, data definida por meio de
bibliografia, data estimada através da inter-relação entre todos os aspectos anteriores.
Banco de imagens
Criação de um banco de dados digitalizado das imagens catalogadas e parametrizadas de
acordo com as análises classificatórias aqui explicitadas, com possibilidade de buscas por
meio de palavras-chave, servindo como fonte de acesso rápido ao material de pesquisa,
bem como fonte para pesquisas futuras.
Referências bibliográficas
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 2006.
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VASQUEZ, Pedro Karp. Postaes do Brazil (1893-1930). São Paulo, Metalivros, 2002.
IMAGENS
FIGURA 1: CARTÃO-POSTAL Nº 113 – ESTAÇÃO SOROCABANA (edificação atual), s/d.
Fotógrafo: Setimo Catherini. Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP.
FIGURA 2: CARTÃO-POSTAL Nº 44 – ESCRIPTÓRIO DA CIA. ITUANA FORÇA E LUZ,
s/d. Fotógrafo: Setimo Catherini. Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP.
FIGURA 3: CARTÃO POSTAL Nº 23 - MERCADO MUNICIPAL, s/d. Fotógrafo: Setimo
Catherini. Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP.
FIGURA 4: CARTÃO-POSTAL
Nº 153 – PRAÇA PADRE MIGUEL (MATRIZ), s/d.
Fotógrafo: Setimo Catherini. Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP.
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FIGURA 5:CARTÃO-POSTAL Nº 7 - MUSEU REPUBLICANO, s/d. Fotógrafo: Setimo
Catherini. Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP.
FIGURA 6: CARTÃO-POSTAL Nº 4 – VISTA PARCIAL - ITÚ, s/d. Fotógrafo: Setimo
Catherini. Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP.
FIGURA 7: CARTÃO-POSTAL Nº 31 - PANORAMA DE ITU, s/d. Fotógrafo: Setimo
Catherini. Fonte: Acervo particular de Jair de Oliveira.
FIGURA 8: REFORMA E AMPLIAÇÃO DO BAR E FOTO SETIMO, 1941. Fotógrafo: Setimo
Catherini (atrib.). Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP (reprodução).
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FIGURA 9: ANÚNICO DO FOTÓGRAFO. Jornal A UNIÂO: DEUS, PATRIA, FAMILIA. Ano
I , no. 1. Itu, 06 de fev. 1936 p. 03. Fonte: Acervo Museu Republicano Convenção de Itu-USP).
FIGURA 10: CARTÃO-POSTAL Nº 53 – SALA DE AULA – GYMNASIO DO ESTADO, s/d.
Fotógrafo: Setimo Catherini. Fonte: Acervo particular de Jair de Oliveira.
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DIALÉTICA DAS FORMAS: A TEORIA DO ELEMENTO ADICIONAL EM PINTURA
DE KAZÍMIR MALIÉVITCH
Angela Nucci
Motivados pela necessidade de estabelecer novos critérios de avaliação da atividade
artística muitos artistas da vanguarda russa buscaram durante as primeiras décadas do século 20
uma fundamentação teórica das artes com base em fundamentos científicos.
Embora tenham existido divergências teóricas e ideológicas na concepção do próprio
termo ciência da arte, essa ligação entre artes e ciências não implicava em uma afirmação de
postulados científicos dogmáticos, na equiparação de valores ou na suplantação de um
conhecimento por outro, mas sim na tentativa de dissipar a oposição entre as disciplinas por
meio da associação de dois modos de percepção do mundo, que isolados pareciam incapazes de
fornecer uma visão total da realidade.
Além disso, frente às exigências do partido bolchevique que havia agregado grande parte
dos artistas da vanguarda em seu quadro funcional, a consolidação de uma ciência da arte
tornava-se necessária não apenas para delimitar e justificar social e moralmente a atuação dos
grupos artísticos, mas funcionava enquanto resposta e crítica à abordagem subjetiva que definia
grande parte da produção teórica realizada até então.
Ainda sob o impacto de importantes descobertas e teses, a exemplo da teoria da evolução
das espécies de Darwin, foram desenvolvidos alguns trabalhos que buscavam estabelecer
associações entre o campo das artes e biologia. Como apontado pela pesquisadora Charlotte
Douglas (1984), na Rússia, a visão de um mundo dinâmico e em permanente evolução, tal como
demonstrado pelas teses evolutivas da biologia, forneceu as bases para uma teoria modernista de
transformação e evolução das formas artísticas. Neste sentido, a teoria de Darwin constituiu-se
como um dos exemplos mais plausíveis de como a forma poderia ser determinada por uma série
de fatores externos a ela; ou seja, demonstrava a existência de uma lei natural de interação entre
organismo e ambiente.
Inserida nesse panorama, a Teoria do elemento adicional em pintura (1923-1926) de
Kazímir S. Maliévitch propunha a investigação dos fenômenos observáveis na arte e nos artistas
em duas dimensões principais. Em primeiro, propunha uma pesquisa analítica da “nova pintura
de cavalete” (os “ismos”) capaz de revelar suas estruturas e determinar com precisão a filiação

Doutoranda em História da Arte, IFCH – Unicamp. Agência financiadora: Cnpq.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
de uma obra a um sistema pictórico ou outro; e em segundo, a aplicação pedagógica da teoria
que, desvendando a visão particular do pintor sobre o mundo e a influência do ambiente sobre
este, tornaria possível ao professor orientar o desenvolvimento dos alunos de acordo com as
tendências naturais, evitando o efeito “prejudicial” do ecletismo no processo de aprendizagem.
Essa crítica ao ecletismo foi foco de debates teóricos não só na voz de Maliévitch, mas do
teórico e crítico produtivista Nicolai Tarabukin ou mesmo em diversos textos do formalismo
russo. Antidogmático em essência, o ecletismo – interpretado como a ausência de estilo por
utilizar variados modelos e oferecer múltiplas interpretações da realidade – entrava em atrito
com os postulados modernistas e as ambições científicas de diferentes correntes que buscavam
consolidar suas teorias, reivindicando ao mesmo tempo o direito de deter uma suposta verdade
ou visão de mundo.
No caso específico de Maliévitch, a crítica ao ecletismo aparece ligada à lógica da cultura
artística, na medida em que o eclético é aquele que, partindo da imitação simultânea de diversos
sistemas estéticos não alcança sua individualidade criadora, ponto sine qua non do modernismo.
Para Maliévitch, não a imitação, mas a análise dos sistemas Impressionista, Cézannista,
Cubista, Futurista e Suprematista – por suas naturezas inventivas – formavam o conjunto teóricoprático necessário à formação dos jovens artistas e à compreensão de sua época. Vale ressaltar,
que na Teoria do elemento adicional a obra de arte deixa de ser abordada por meio de uma
conjunção histórica linear para ser analisada como fenômeno inserido em uma sucessão dialética
de formas. Assim, a não-figuração é analisada pelo artista enquanto movimento coerente com a
transformação das formas artísticas, inserindo-se num contexto não propriamente hierárquico.
Tal como concebido por Maliévitch e em ressonância às teorias formalistas russas, a
análise dos estados da nova representação artística concentra-se no problema da forma: elemento
organizador do fenômeno artístico e condição que permite a expressão das sensações do mundo.
A forma, no entanto, varia de acordo com as condições econômicas, naturais, etc. sendo o indício
exterior do eterno movimento da cultura e da consciência humana. Por esta razão, a cada
corrente artística corresponderia um determinado elemento adicional, expresso por meio de
relações de retas, de curvas e também de cores.
Partindo do pressuposto de que uma dada forma corresponde a uma determinada
concepção de mundo, a destruição de uma forma antiga abriria caminho à destruição de uma
velha concepção. Assim, a força do elemento adicional dentro da arte pictórica afetaria o modo
de percepção dos fenômenos e esta tomada de consciência ultrapassaria os limites
88
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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exclusivamente estéticos, alcançando o sujeito uma nova compreensão das relações do trabalho,
da religião e da política.
Todavia, aponta Maliévitch, a sociedade compreendia a arte apenas sob o aspecto
imitativo, o que era representado pelo trabalho dos artistas mais fiéis à realidade visível do que a
sua intuição criadora. Assim, tudo o que não correspondia à norma era considerado doentio pela
maioria da sociedade erudita e pela crítica; inversamente, uma parcela dos artistas considerava o
ponto de vista da maioria anormal.
Essa divergência, segundo Maliévitch, seria causada pela existência concomitante de
duas concepções artísticas distintas: a “científico-formal” e a “estético-artística”. A primeira,
tendo sua origem no consciente, obedeceria aos preceitos lógicos da vida prática e seria
representada por meio de fenômenos visuais objetivos; a segunda, originada do
“supraconsciente” (a “mente intuitiva”) seguiria somente a lógica dos valores pictóricos, sendo
expressa por meio de fenômenos visuais não-objetivos.
Se Rembrandt é a norma(lidade) para a maioria da sociedade, como afirmava Maliévitch,
a arte moderna seria metaforicamente o resultado de alguma “patologia” responsável por sua
transformação morfológica. Dentro do mesmo raciocínio, as condições ambientais poderiam
estimular ou retrair o desenvolvimento de determinadas culturas pictóricas e alterar a percepção
dos artistas em relação aos fenômenos naturais.
O “diagnóstico” só seria possível na medida em que fossem identificados os “germes”
artísticos; estruturas formais que ao se infiltrarem em um sistema desenvolvem-se e provocam
sua mudança, os quais Maliévitch nomeava de “elementos adicionais” (pribavotchnyi
èlement) 1.
Nesse sentido, o estudo da cultura pictórica seria comparável à análise bacteriológica
esclarecendo a causa das perturbações nos artistas e nos organismos pictóricos. Em
contrapartida, a correspondência quase imediata entre as formas adotadas nas obras realistas e
as imagens da natureza indicaria a ausência de qualquer espécie de elemento adicional e o
consequente estado de “sanidade” desta corrente artística.
Como discorre Maliévitch sobre a questão:
Os primórdios do Futurismo e do Cubismo conduziram muitos médicos à suposição que
os Futuristas e Cubistas, como o resultado de uma perturbação patológica, perderam a
capacidade de perceber o fenômeno em sua totalidade e eles tentaram provar esta hipótese
1
Traduções francesas mais usuais: élément ajouté e élément additionnel; traduções inglesas: additional element e
supplementary element.
89
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2011
comparando desenhos dos Cubistas com desenhos de doentes mentais nos quais o tema
foi desmembrado e apresentado como partes separadas, sem conexão.
[...]
Os críticos, invariavelmente, buscaram apresentar toda forma nova da arte como,
primeiramente, um fenômeno insalubre. Agradou-lhes recentemente rastrear estas novas
formas artísticas na classe patológica, chamando os artistas de Filisteus, místicos,
idealistas, etc., mas reprovando os artistas, acima de tudo, com a acusação de que seus
trabalhos eram ininteligíveis às “massas populares”. (MALEVICH, 2003: 48).
Por meio da Teoria do elemento adicional em pintura, Maliévitch elaborou um modelo
capaz de analisar as transformações estilísticas da arte, propondo a desmistificação do processo
criativo em resposta ao suposto caráter inacessível da arte moderna. A pintura, até então vista
como o reflexo de um impulso meramente emocional do artista, poderia ser investigada a partir
de relações formais definidas pela combinação de retas e curvas e de valores de cor.
Embora as conclusões e pressupostos não sejam aqui tão invariáveis como nas ciências
exatas ou nomológicas, tal postura carrega evidentemente uma intenção cara às ciências exatas: a
de constituir uma fórmula, de enunciar uma constante de sistematização, descobrindo na base de
diferentes construções pictóricas algo estável.
Portanto, se a rigor o termo “fórmula” parece deslocado de seu contexto habitual (o das
ciências exatas) talvez seja possível afirmar que na Teoria do elemento adicional em pintura,
Maliévitch parta de uma hipótese, uma abordagem que busca um modelo de funcionamento
científico, o qual se encontra na esfera do discutível, mais que do universal.
A demonstração das fórmulas de cada sistema pictórico foi empreendida em um conjunto
de tabelas no qual o artista apresenta uma espécie de sequência de “lâminas”, de “culturas”
gráficas formadas a partir de amostras recolhidas em obras da modernidade.
Assim, se o bacilo de Koch (analogia adotada por Maliévitch) é a estrutura que inserida
em um organismo torna-se capaz de alterá-lo de seu estado normal, o elemento adicional é
aquele que inoculado em um estudante ou em um organismo pictórico torna-se capaz de
subverter a norma existente, o que é expresso pela utilização de novas formas e de uma nova
técnica, resultando na destruição de antigas concepções e no surgimento de um ponto de vista
inovador.
Na Introdução à Teoria do elemento adicional em pintura publicada pela Bauhaus (1927),
Maliévitch descreve os experimentos realizados no Instituto estatal da cultura artística de
Leningrado - Guinkhuk, nos quais ministrava aos estudantes diferentes dosagens dos elementos
90
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
adicionais, verificando a influência assim como a resistência ou vulnerabilidade dos estudantes à
ação destes elementos. Portanto, para Maliévitch, se corretamente identificados e isolados, os
elementos adicionais poderiam atuar como reagentes ou inibidores dos processos criativos nos
artistas e na transformação dos sistemas artísticos.
Nesse sentido, a ideia de inoculação do elemento adicional pode ser interpretada em um
caminho de via dupla ao promover a evolução do artista para uma cultura seguinte ou
inversamente, sendo empregada como agente purificador ou profilático - tal como uma vacina por meio da qual seria possível preservar um estudante da influência de uma determinada cultura
estética, ou de várias, como no caso dos artistas de tendência eclética.
De acordo com a analogia utilizada por Maliévitch, o ecletismo seria comparável a uma
infecção generalizada por diversas bactérias, isto porque, se o elemento adicional representa uma
espécie de bactéria, a coexistência de diversas bactérias em um único organismo poderia ser letal
a este, ocasionando em um primeiro estágio um desacordo plástico e a confusão de sensações
estéticas e por fim a inibição ou o bloqueio do estudante.
Por esse motivo, a partir da análise dos trabalhos, de entrevistas e questionários
individuais Maliévitch elaborava um “diagnóstico” e uma “dieta” para cada aluno de acordo com
a tendência artística preponderante expressa em suas obras. A identificação e o isolamento de
cada elemento adicional constituíam etapas fundamentais de sua metodologia de ensino. Em
seguida, era preciso orientar os estudantes para que trabalhassem sobre um único elemento
estrutural por vez.
Um dos objetivos de seu método era, portanto, ajudar o aluno a atingir o estado puro de
cada cultura artística e a consciência plena das diferentes sensações pictóricas. Dentro deste
raciocínio, quanto mais profunda fosse a infecção, maior seria o grau de pureza plástica
alcançado pelo artista, o que conduz a hipótese de que o estágio mais avançado da infecção
artística – e consequentemente de distanciamento de uma concepção objetivada do mundo – seria
expresso pela não-figuração.
O pesquisador Matthew G. Looper apresenta uma visão interessante relacionando a
metáfora patológica do elemento adicional com a tradição do Romantismo, que associava a
tuberculose com a ideia do gênio criativo. De acordo com o autor, a escolha do bacilo de Koch é
emblemática, pois fundamenta um “modelo científico moderno” do gênio artístico:
Segundo a concepção Romântica, a tuberculose foi vista frequentemente como um
estimulante à criatividade artística. Depois da descoberta do agente responsável pela
doença, em 1882, escritores começaram a apontar produtos do bacilo da tuberculose
como os agentes que promoveram gênios; dois dentre tais escritores eram os médicos
91
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Lawrence Flick e Arthur Jacobson, os quais no livro Gênio: Algumas Reavaliações
(1926) expõem: “Agora é completamente concebível que os subprodutos tuberculosos são
capazes de afetar profundamente o mecanismo de mentes criativas, assim como
influenciar suas criações”. Às vezes, porém, o próprio bacilo foi citado como uma causa
de gênios: “Foi dito que um homem é o que seus micróbios lhe fazem, e em nada isto
pareceria mais verdadeiro que com o gênio”. O modelo de Maliévitch, no qual o elemento
adicional muda a habilidade do artista para perceber também como muda seu
comportamento artístico, deve muito a esta ideia da tuberculose como uma doença que
induz à criatividade e estimula a visão artística. Neste contexto, o uso por Maliévitch da
bactéria da tuberculose como uma metáfora para o elemento adicional implica que a
pintura moderna que manifesta elementos adicionais é um produto do gênio. (LOOPER,
1995: 45)
Entretanto, não parece que Maliévitch tenha empregado a analogia entre os novos
sistemas artísticos e o campo bacteriológico na intenção de fundamentar, apenas com a adoção
de uma terminologia médica (inoculação, infecção, diagnóstico, resistência, paciente, organismo,
etc.), o caráter científico de sua teoria. Tal analogia, conforme demonstra Maliévitch, foi
utilizada enquanto recurso retórico determinando um ponto de referência para a explicação de
sua teoria, ou em outras palavras, para explicar o desconhecido pelo conhecido.
A escolha do termo elemento adicional parece estar inserida na tentativa comum aos
artistas da época de elevar as experimentações formais da vanguarda ao status de pesquisa
científica, na busca de credibilidade frente às prerrogativas do regime soviético. Por outro
lado, é relevante notar que Maliévitch se apropria de um conjunto de ideias bastante
conservador, alterando-o não apenas por uma questão estratégica, mas marcadamente
ideológica.
Todavia, é preciso lembrar que o tom científico, caro durante os anos 20, foi na década
de 10 frequentemente tema de paródias e chacotas para os artistas do Futurismo russo, grupo
ao qual Maliévitch estava profundamente integrado.
Opondo-se aos cânones estéticos do passado, ao bom gosto e às normas da sociedade
burguesa, publicando de maneira provocativa seus manifestos em papel higiênico ou de
embalagem (como em “Uma Bofetada no gosto público”, de 1912), anunciando aos berros suas
conferências, desfilando com rostos pintados e colheres de madeira na lapela ou apresentando-se
com roupas extravagantes (a exemplo da célebre camisa amarela de Maiakovski) os artistas
futuristas chocavam o público, provocavam o riso, mas acima de tudo questionavam os valores
92
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
quebradiços de uma sociedade burguesa em vias de uma grande revolução. Seus quadros,
poemas e manifestos ridicularizavam a utilização de galicismos ou terminologias científicas tão
comuns nos círculos eruditos russos da época, e mesmo determinados deslocamentos linguísticos
e neologismos empregados na zaum demonstravam a intenção de criar jogos irônicos ou
burlescos com as palavras. A própria ideia de uma língua transmental, “além da razão” prova
que o universo criado pelos artistas futuristas visava romper com a lógica comum e com a noção
e valoração de pensamento racional.
Contudo, esse conjunto de procedimentos estilísticos e performáticos não resultava em
uma exclusão simplista e sumária da razão, mas no pressuposto de existência de uma consciência
mais abrangente, que somasse a intuição ao processo racional.
Por outro lado, embora a ideia da arte moderna como uma espécie de patologia possa
parecer contraditória dentro do discurso de um artista místico que foi um dos maiores teóricos
da não-figuração e um dos protagonistas da arte moderna, a analogia com as práticas de
isolamento adotadas pelo Comitê Popular para Saúde em combate à tuberculose e a utilização
da metáfora patológica entre o bacilo de Koch e os elementos formais mínimos responsáveis
pela corrupção inventiva da arte moderna parecem figurar como uma resposta irônica às
“medidas sanitaristas” adotadas pelo governo e pela crítica à erradicação da epidemia
modernista e ao isolamento de seus agentes:
Na província, os elementos da cidade assimilados pelo pintor desaparecem do mesmo
modo como uma enfermidade adquirida na cidade é curada em uma clínica de
recuperação (no campo). Tais considerações podem perfeitamente contribuir para que as
pessoas em geral e a crítica especializada considerem o Cubismo, o Futurismo e o
Suprematismo como manifestações de enfermidades, das quais o artista pode se curar...
Bastaria afastá-los do centro energético da cidade – de sorte que ele não veja máquinas,
motores e fios e se entregue à adorável contemplação de colinas, prados, vacas,
camponeses e gansos – para curá-lo do sofrimento cubista ou futurista. Se após uma
estada mais prolongada na província, um futurista ou um cubista retornasse à cidade com
uma série de adoráveis paisagens, ele seria alegremente recebido por seus amigos e pelos
críticos como alguém que redescobriu a arte sadia. (MALEVITCH. In CHIPP, 1996: 342)
Além da irreverência futurista, é preciso ressaltar ainda a influência da tradição russa do
riso irônico, amargo ou satírico - de Gogol a Zochtchenko, de Saltikov a Tchekhov - que por
tantas décadas serviu de instrumento de crítica e de denúncia à indignação social.
93
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Ao colocar em dúvida o senso lógico do mundo em proveito de uma visão
“supraconsciente” ou transmental, Maliévitch parece retomar a atitude futurista de desdém em
relação ao saber secular, racional e científico. Diferente de muitos pensadores contemporâneos,
como L. Trotski (“Literatura e Revolução”, de 1923), Maliévitch admite a necessidade da análise
objetiva da arte, mas não encerra o trabalho artístico em uma sistematização exclusivamente
teórica ou cientificista, pois não acreditava na ciência ou na tecnologia como meio utópico de
vencer a natureza e atender às necessidades da sociedade socialista. Ou ainda, ainda, como
aponta o pesquisador Frédéric Valabrègue:
Maliévitch delineia sua evolução pictórica por grades e esquemas rigorosos. Trata-se de
expor com claridade um conjunto de problemas, antes de ultrapassá-los. O estágio
científico é necessário. É um momento da verdade e da autenticidade, dois imperativos
imprescindíveis de uma criação artística digna deste nome. Mas este estágio prova ser
rapidamente insuficiente se ele não está inserido em uma visão mais ampla: a filosofia do
sem-objeto que é um absoluto englobando os limites da verdade científica.
(VALABRÈGUE, 1994: 207).
Referências Bibliográficas
CHIPP, Herschel B., Teorias da Arte Moderna, São Paulo: Martins Fontes, 1996.
CONIO, Gérard. (trad.e pref.), Le Constructivisme Russe, 2 vol., Lausanne: l’Âge d’Homme,
1987.
DOUGLAS, Charlotte, “Evolution and the Biological Metaphor in Modern Russian Art”. Art
Journal, vol. 44, n° 2, Art and Science: Part I, Life Sciences, 1984, pp. 153-161. Disponível em:
<http://links.jstor.org/sici?sici=0004-3249%28198422%2944%3A2%3C153%3AEATB
MI%3E2.0.CO%3B2-6>. Acesso em: 06 jul. 2007.
LODDER, Christina, El Constructivismo ruso, Madrid: Alianza Editorial, 1988.
LOOPER, Matthew G., “The Pathology of Painting: Tuberculosis as a Metaphor in the Art
Theory of Kazimir Malevich”. The Johns Hopkins University Press and the Society for
Literature and Science, 1995. Disponível em: http://muse.jhu.edu/journals/configurations/v00
3/3.1looper.html. Acesso em: 06 jul. 2007.
MALÉVITCH, K. S., Écrits - préséntés par Andrei Nakov, Paris: Édition Gerárd Lebovici, 1986.
_________________, La Lumière et la Couleur, Lausanne: L’Âge d’Homme, 1981.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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_________________, Les Arts de la Representation – Quatorze articles traduits de l’ukrainien
et annotés par Jen-Claude et Valentine Marcadé, suivi de Jen-Claude Marcadé: Nouveaux
aspects de la recherche Malévitchienne, Lausanne: L’Âge d’Homme, 1994.
95
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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UMA METODOLOGIA CRÍTICA SEGUNDO O LÁZARO DE SCROVEGNI.
Antônio Leandro Barros
“Não os temais, pois; porque nada há encoberto que não venha a
revelar-se, nem nada oculto que não venha a tornar-se notório.”
(Matheus, 10:26.)
O afresco “A Ressurreição de Lázaro”1, situado na capela Scrovegni, em Pádua, Itália, é
mais do que a apresentação de um tema bíblico, mais do que mera ilustração dos evangelhos.
Seguindo com coerência, a percepção de imagens religiosas localizadas no interior de espaços
religiosos deve ser bastante particular – caso não partamos desta premissa, este será um esforço
crítico estéril e pobre. O tema mesmo do afresco é peculiar, e apropriado às questões crípticas,
apropriado a natureza menos evidente da pintura: a de matar o vivo e de fazer viver o morto.
Porém, isto não significa que a pintura, enquanto coisa morta, dê vida ao acontecimento de
séculos já remotos, mas antes o inverso, aquele acontecimento já “morto” no passado a dar vida
à pintura, ou seja, a pintura, coisa morta, vive e o ocorrido, coisa viva, morre – que vem a ser o
tema preciso da Ressurreição de Lázaro. Estamos diante de uma imagem que revela o que é
propriamente o ver, ou uma modalidade do ver 2; que conseqüentemente nos propõe uma
metodologia crítica baseada numa aproximação da iconologia à fenomenologia. O interesse do
presente artigo, logo, é demonstrar que método e que modalidade seriam estas através de uma
crítica interpretativa e estrutural do mito e não da doutrina teologal. Buscamos uma lógica
interna ao afresco de Scrovegni bem como ao respectivo capítulo do evangelho de João, como
meios artísticos complementares e correspondentes. Antes de um significado, interessa-nos um
sentido para a obra, ou melhor, um sentido possível dessa obra de arte.
Numa descrição superficial da pintura, percebe-se que em um ambiente raro encontra-se
um conjunto de pessoas a testemunhar um acontecimento bastante significativo. O famoso trecho
do evangelho de João é muito preciso e precioso – por isso: cuidado. Esse afresco não representa
a chegada de Jesus ao sepulcro de Lázaro, e nem mesmo a ressurreição, mas o último ato do
grande milagre. Ainda assim, tomemos por inteiro o capítulo Ressurreição de Lázaro, do

1
2
Mestre em História da Arte (UERJ).
Afresco pertencente ao conjunto de pinturas realizadas por Giotto de Bondone por toda a extensão interna da
Capela dos Scrovegni, durante os anos de 1300 e 1306. Nos séculos seguintes, tal conjunto artístico tornou-se
uma notória fonte de inspiração para artistas das mais variadas tendências e estilos, dentre os quais
Michelangelo, Matisse e Diego Rivera. Visualização maior da imagem no anexo 1.
Segundo a modalidade de imagem intitulada por Didi-Huberman como: “crença”. Esta modalidade foi explicada
na introdução. Ver: Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. Editora 34, 1998.
96
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Evangelho de João (11:38-44), que trata precisamente da situação do nosso objeto3; a primeira
frase é: “Tornou Jesus a comover-se profundamente e foi ao sepulcro” (JOÃO, 11:38).
Frase essa muito significativa porque em outras passagens Jesus é capaz de realizar
milagres, inclusive de mesma potência e magnitude4, sem necessitar locomover-se. No entanto,
nesse relato em questão, Jesus preocupa-se em ir ao sepulcro: e vai comovido! É interessante
ressaltar a noção implícita no verbo “comover”, pois o prefixo “co” indica conjunto, isto é, um
movimento sincrônico; Jesus não apenas moveu-se em direção ao sepulcro, mas comoveu-se5.
Assim, Jesus é o contemplador que vai ao sepulcro, e Lázaro se apresentará como o objeto digno
de contemplação. Conforme pontuado no primeiro parágrafo, deve-se perceber a imagem (ao
menos as religiosas que habitam locais sagrados) de maneira diferenciada, talvez crente,
comovida. O observador deve tornar-se assistente, isto é, não apenas assistir a uma obra de arte,
mas assistir uma obra de arte. Disso decorrerá o miraculum: “aquilo digno de ser visto”.
“Tornou Jesus a comover-se profundamente e foi ao sepulcro. Era uma caverna com uma pedra
sobreposta.” (JOÃO, 11:38)
Ainda que ela mesma não esteja morta essa imagem guarda em si a morte de um fato
(seja ele literário ou literal), e sendo assim também a própria imagem, para além das figuras,
pode ser encarada como “sepulcro”. A propósito, uma característica singular dessa imagem é a
sepultura de Lázaro (outras imagens em anexos ao fim do artigo); até mesmo sua cor difere da
cor das outras montanhas que figuram no decorrer das cenas da capela, e sua entrada estava
coberta com uma placa de pedra. A forma pontiaguda e de base larga, verticalizante, torna essa a
própria representação de uma pirâmide6:
3
Não se trata de subordinação da imagem ao texto apostolar, nem o contrário. A intenção é exatamente evidenciar
os diálogos existentes entre os dois meios artísticos, pintura e literatura, de forma que o “alegorismo” medieval
remeta de um signo ao outro e de volta – analogia entis.
4
Ver Mateus 8:5.
5
Curioso como na imagem de Scrovegni a figura de Jesus apresenta um rosto sério e concentrado em Lázaro,
ressaltando o sentido da palavra “comover-se”. O personagem de Jesus não parece sensibilizado exteriormente,
mas posto em ação interior.
6
A análise de outras pinturas de mesmo tema confirma que o afresco de Scrovegni é muito peculiar. É raro uma
imagem com tal tema em que a tumba surja como uma pirâmide: não a vemos nas obras de Michael Pacher, de
Aelbert Ouwater, e nem na de Van Gogh; nas pinturas de Rembrandt e de Caravaggio a cena é representada num
ambiente fechado e indefinível; e nas obras de Juan de Flandres e na de Geertgen, Lázaro recebe o milagre em
um local semelhante a um cemitério. Na obra de Tintoretto, Lázaro não está numa cripta, mas é retirado de um
grande monte de terra que apresenta alguma semelhança com a forma piramidal. Esta é uma relação possível: “a
pirâmide participa do simbolismo do montículo funerário com o qual se recobria o corpo dos defuntos; ela é um
montículo de pedra, gigantesco, perfeito, estendendo ao máximo as garantias mágicas esperadas das mais
humildes cerimônias funerárias.” (Dicionário de Símbolos. p. 719). Um afresco do mesmo tema, e também feito
por Giotto, mas este na Igreja de São Francisco de Assis, em Assis, já apresenta estruturada uma cadeia
97
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
o cume de uma pirâmide simbolizaria o Verbo demiúrgico, Força primeira não
engendrada, mas emergente do Pai e que governa toda coisa criada, totalmente perfeita e
fecunda. Assim, no final da ascensão piramidal, o iniciado atingirá a união com o Verbo,
como o faraó defunto se identifica, no oco da pedra, com o deus imortal. (CHEVALIER
& GHEERBRANDT, 2005: 721)
Ora, a pirâmide é aquilo que tem por função proteger o morto, quer dizer, salvar o morto
da morte mesma; todavia, essa, de Lázaro, não apresenta o aspecto racional e geométrico
característico de outras, ela apresenta somente o aspecto mágico, ligado aos ritos funerários. É
esta uma pirâmide de formas orgânicas. No cume vemos brotar uma vegetação como a vida a
recomeçar seu ciclo, pois o curioso desta pirâmide é que embora guarde o morto ela mesma está
viva, e por sua natureza dá abrigo às raízes das árvores. Ironicamente, da mesma forma que a
pintura, a cripta está a guardar o morto-vivo e a se mostrar viva, e daquilo que se ergue em
aparência por sobre sua superfície ela esconde a semente e a raiz.
Como mural – localizado na parede da Capela Scrovegni – a pintura conserva um sentido
de cerceamento, de guarda, de impedimento da passagem ou mesmo do olhar. Toda pintura
mural é um desafio ao contemplador, um desafio a atravessar o muro de fina película, a
comunicar-se com o seu interior.
“Tirai a pedra’, ordenou Jesus. ‘Senhor’, disse-lhe Marta, irmã do defunto, ‘já cheira mal; está
com quatro dias...’ Tornou-lhe Jesus: ‘Não te disse eu que verás a glória de Deus, se creres?”
(JOÃO, 11: 39-40)
O contemplador capaz de comover-se exige a eliminação da superfície que o separa de
Lázaro. E é belo como a pintura de Giotto apresenta a tampa do sepulcro como um delicado
desenho marmóreo, frio, e que, contudo, impede o contato como o que realmente importa. Notese que o lacre, a pedra, não foi colocado pelo próprio sepultado, mas por outras pessoas – a
imagem enquanto cripta também recebe de pessoas próximas verdadeiras pedras capazes de
vedar o contato real com a obra. Em outras palavras, diante de uma imagem, o crítico deve
remover da entrada toda uma pesada carga historiográfica e crítica que terminam por filtrar ou
mesmo impedir o contato entre o contemplador e a obra. Com efeito, idealmente o próprio crítico
deve abster-se de suas convicções e paradigmas, afim de que o real diálogo intuitivo com a
montanhosa ao invés de uma montanha piramidal isolada – embora a imagem tenha clara relação com a posterior
de Pádua. É somente numa pintura de Duccio, evidentemente inspirada na capela dos Scrovegni, que a mesma
forma piramidal surge com vigor, porém muito mais pontiaguda.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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imagem construa todas as lógicas a partir de si – apesar do vaticínio de Marta: “já cheira mal”. A
tampa do sepulcro também é um convite ao olhar, é, entretanto, “aparência pura” que separa o
assistente do assistido; nesse sentido Jesus não direciona o olhar ao tampo, mas o deixa a cargo
de dois outros personagens (um deles mantém o olhar perdido, ao passo que o outro permanece a
mirar fixamente os desenhos da pedra).
“Tiraram, pois, a pedra. Jesus levantou os olhos ao céu e disse: ‘Pai, graças te dou, porque me
atendeste; bem sabia eu que sempre me atendes, mas por causa do povo em derredor é que o
disse, para que creiam que tu me enviaste’. Dito isso, bradou: ‘Lázaro, vem para fora!”. (JOÃO,
11:41-43)
É só então, a partir dessa frase, que ocorrem todas as ações da cena em Pádua. Surge
diante da cripta a figura de Lázaro afinal, coberto de tecidos desde as solas dos pés até o topo da
cabeça, estando completamente amarrado e enlaçado. É um morto mumificado. E a múmia não é
exatamente a imagem do morto coberta pelo tecido branco que poderia ser usado como suporte
para a pintura? A múmia, genericamente, é a imagem da coisa morta transmutada em textura,
mas a própria textura permite leitura, a leitura de um corpo morto, ou a leitura de alguém morto;
pois a leitura deve ser, presumi-se, capaz de atravessar a textura. Porém, os personagens ao lado
de Lázaro também estão cobertos por vestes até o rosto e, contudo, ninguém os interpretaria
como mortos ou múmias – o que na verdade eles são, posto que Jesus, aquele que dá vida à
imagem, só tem olhos para Lázaro.
Ademais, disse Jesus ao removerem a placa de pedra que selava o túmulo: “Lázaro, sai
para fora!”, e assim o novo-vivo deixou para trás de si a escuridão cavernosa de seu túmulo, a
escuridão que a visão não venceu, escuridão: aquilo mesmo que não se tornou imagem. Lázaro,
então, é tudo aquilo que se tornou iluminado. A cena nos mostra que Lázaro saiu, e que saiu
sozinho!, sem ajuda ou amparo de nenhum dos presentes (como era de se esperar, porque os
milagres sempre conferem autonomia àqueles que os recebem). Assim, o morto apesar de
mumificado, tapado, vedado, e amarrado, voltou às vistas por ele mesmo. Ou seja, o morto
voltou a viver! Eis o milagre, o miraculum, o digno de ser visto ou o dignificado pela visão.
Chama-se afresco a pintura realizada sobre a massa ainda fresca, contudo disso resulta
que a pintura mantém-se fresca, isto é, conserva suas propriedades, a obra (normalmente) não
envelhece, não definha, ela permanece fresca como foi no nascimento; e de fato renasce em todo
99
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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novo olhar.7 Assim, poeticamente, para além do mural está o afresco, e para além do afresco está
a obra de arte – porque, atenção, apesar do afresco estar enfim revelado, Lázaro ainda permanece
em reserva, a obra ainda continua velada pela textura. É a questão críptica de retorno. Toda a
textura que envolve Lázaro, apesar de revelá-lo, também vela seu conteúdo último como um
criptograma: signo que não apresenta diretamente o significante, mas sim forma que disfarça o
conteúdo. No entanto, o criptograma não impossibilita o acesso à verdade, ao saber interior da
obra – é, antes, mais um intérprete do que um obstáculo porque ocultando apenas pela metade
convida ao descobrir.8
“Saiu o que estivera morto, trazendo os pés e as mãos ligados com ataduras, e o rosto envolto
num sudário. Ordenou-lhes Jesus: ‘Desenlai-o...” (JOÃO, 11: 44)
Logo, cabe a todos os demais leitores/observadores da cena a libertação da obra. Para que
todos possam ver realmente é preciso que “atravessem o texto, que o leiam!”, que “desamarremno”. Eis a própria representação do ato de ver – bem como do ato de ler. A salvação de vida do
texto depende fundamentalmente da leitura do leitor. Segundo Derrida, resumindo essa noção de
leitura:
“Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de
sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível.”
(...) “A dissimulação da textura pode, em todo caso, levar séculos para desfazer seu pano.
O pano envolvendo o pano. Séculos para desfazer o pano. Reconstituindo-o, também,
como um organismo. Regenerando indefinidamente seu próprio tecido por detrás do
rastro cortante, a decisão de cada leitura.” (DERRIDA, 1997: 7.)
Diante de uma imagem o que vemos é uma coisa morta, e é somente no contato íntimo
entre contemplador e obra, e entre obra e contemplador, que a imagem torna-se viva; conforme
7
A imagem em questão neste artigo, para além de suas restaurações, acumula mais de setecentos anos de vida.
Conforme uma antinomia esotérica, o criptograma é: aquilo que se revela velando-se, e aquilo que se vela
revelando-se.
Com relação a iconografia do corpo coberto de tecidos: nas obras de Giotto há uma clara importância atribuída aos
tecidos e vestes (conforme Norbert Wolf e Argan, obras supracitadas), porém, normalmente, esta técnica de
Giotto é usada para revelar o corpo da personagem, e, neste Lázaro, foi usada inversamente para ocultá-lo
criando um corpo quase disforme. Já na obra supracitada de Caravaggio o morto surge completamente nu. Nas
obras de Juan de Flandres, Michael Pacher, Aelbert Ouwater, e Geertgen o morto está apenas com as pernas
cobertas por um lençol. E finalmente, na obra de Tintoretto o morto veste roupas como se tivesse vivido os
últimos quatro dias. Somente a obra de Rembradt apresenta Lázaro coberto de tecidos brancos, à exceção do
rosto.
Finalmente, quanto à autonomia do morto-vivo para levantar-se de sua cova, apenas as obras de Tintoretto e de
Caravaggio contrariam as ordens de Jesus para que o morto saísse por suas próprias forças.
8
100
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Didi-Huberman, a imagem viva é aquela que “ao nos olhar, obriga-nos a olhá-la
verdadeiramente”9. E, para tal, é preciso criticamente dizer: “Lázaro, sai para fora!”. A obra sai,
o contemplador desenlaça. Esse é o momento exato da cena em questão, o momento do
desenlace. E não é gratuito. Como contemplador já nos co-movemos com a pintura, atravessamos
o muro das meras aparências e rasa semiótica, convocamos a obra a revelar-se, e nos resta dar
cabo do seu desenlaçar.
Voltando ao afresco, dentre todos os quase vinte personagens desta cena, quais os únicos
que se olham nos olhos diretamente? Jesus e Lázaro, contemplador e obra, respectivamente. Seus
olhares traçam uma linha reta precisa, e os dois nesse momento têm exatamente o mesmo
tamanho figurativo. Eles tornaram-se iguais, estão de fato em comunicação10. A cena, inclusive,
os expõe destacados das turbas que os cercam. É a essa modalidade da visão que Didi-Huberman
denomina “crença”, ou seja, ver além dos olhos; ver de maneira muito mais intuitiva do que
fisiológica.11 É tornar-se imagem daquilo que se olha, e fazer daquilo que se vê a sua própria
maneira de visão, a sua própria imagem de si. Igualar-se em imagem convém em troca de papéis
simultaneamente, donde imagem e contemplador se perdem e se acham no jogo de olhares,
donde imagem e contemplador não são imagem e contemplador, mas um ente único.
Resta-nos ainda analisar o comportamento de outra personagem: a mulher no canto
direito da imagem, que com uma mão cobre a visão do corpo mumificado e com a outra cobre o
nariz com a túnica – afinal antes do milagre o corpo já estava encarcerado há quatro dias.
Todavia, nenhum outro personagem parece atingido pelo odor, nem mesmo os mais próximos do
corpo de Lázaro; a explicação para isso é que essa mulher ao fim não viu – não verdadeiramente.
9
Como exemplo desta teoria, o autor apresenta a famosa passagem do livro “Ulisses”, de James Joyce, na qual o
personagem Stephen Dédalus ao ver o mar, vê simultaneamente o olhar agonizante da mãe que o mira. Ou seja, a
imagem-viva é aquela que nos remete a outra por dessemelhança. Ver: Georges Didi-Huberman, O que vemos, o
que nos olha. Editora 34, 1998.
10
O mesmo jogo de olhares aparece na imagem egípcia sobre a Ressurreição de Osíris (anexo 3). Aquele que
desperta o outro da morte (Hórus) e o morto-vivo (Osíris) olham-se dentro dos olhos, e ambos têm o mesmo
tamanho representado. De um baixo-relevo de File. (E. A. Wallis Budge, Osiris and the Egyptian resurrection,
Londres, Philip Lee Warner; Nova York, G. P. Putnam's Sons, 1911, vol. II, p. 58).
11
Segundo exemplo do autor francês: frente à evidência de um túmulo esvaziado, o homem da crença produzirá um
modelo imaginário no qual tudo – volume e vazio, corpo e morte – continua a viver no interior de um grande sonho
acordado. E sentencia Didi-Hurbeman que este é o recalque característico, porém não exclusivo, do mundo cristão;
sendo, portanto, a imagem mais do que a visão, sendo crença. Conseqüentemente, enquanto escritura, a imagem
conserva em seu interior um saber indiferente à visão objetiva. Outro exemplo clássico desta modalidade visual, a
“crença”, é a passagem também do Evangelho de João em que Maria Madalena diante do túmulo vazio de Cristo vê
dois anjos (Jo 20:11).
A outra forma, segundo Didi-Huberman, seria a Tautologia, caracterizada nas palavras de Frank Stella: “o que você
vê é só o que você vê”. É a modalidade inversa, trata-se da linguagem por sobre o olhar. Ver: Georges DidiHuberman, O que vemos, o que nos olha. Editora 34, 199
101
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Ela não percebeu o vivo, não foi capaz de ver ou ler, através dos tecidos, que o morto havia
tornado-se vivo. Ela, infelizmente, só pôde perceber o morto.12
“Ordenou-lhes Jesus: ‘Desenlai-o e deixai-o andar”. (JOÃO, 11: 44)
Por fim a pintura é a arte do erguer, do fazer vertical, do fazer as vistas elevarem-se; e
metaforicamente foi o realizado por Jesus enquanto personagem desse afresco: ele ordenou que o
cadáver-múmia-textura-texto-imagem que estava deitado se levantasse. Logo, onde há apenas
uma pintura é preciso fazê-la levantar-se.13 Segundo a proposta que se exprime nesse exercício
de vista em Pádua, é esse o ato de crítico de arte. Assim, o ato crítico constitui um “atravessar da
obra de arte”, mas não um “solucionar” – pois a obra, para o contemplador, é uma questão e não
um problema. Desenlaçá-la é generosidade, andar por ela é arrogância, de modo que essa
imagem da capela Scrovegni não está resolvida, mas atuante tornando impossível qualquer
conclusão assertiva ou totalizante, e até mesmo discursiva (por que não? Esse artigo o prova.).
A ressurreição apenas começa.
“Da quinci innanzi il mio veder fu maggio
che 'l parlar mostra, ch'a tal vista cede,
e cede la memoria a tanto oltraggio.
Qual è colui che sognando vede,
che dopo 'l sogno la passione impressa
rimane, e l'altro a la mente non riede,
cotal son io, ché quasi tutta cessa
12
“crença”, denomina Didi-Huberman a modalidade da visão que iguala o enfrentamento entre contemplador e
contemplado, e disse Jesus no mesmo trecho do evangelho em questão: “Não te disse eu que verás a glória de
Deus, se creres?”
13
O mistério da ressurreição é um dos mais emblemáticos em vários sistemas religiosos. Contudo, há certa tradição
mística de que a ressurreição é um ato de elevação, de reerguimento. (Conforme: Alexander Roob, El Museo
Hermético. Alquimia & Mística. Taschen, 2006.) Dentre as outras pinturas de mesmo tema supracitadas, todas
exibem uma sepultura horizontal e na altura do chão, com exceção das obras de Giotto e de Duccio. Inclusive, na
própria capela Scrovegni há uma cena de ressurreição com uma sepultura nestas especificações, trata-se da
ressurreição do próprio Jesus. Outro exemplo, e último, desta tradição do erguer é a carta XX do tarô, a Carta do
Julgamento, que simboliza a ressurreição e a consagração entre outras coisas; nela um ser celeste, possivelmente
um anjo, invoca, através de sua corneta/trombeta, um morto a viver. E este morto-vivo se levanta, sem auxílio,
de uma tumba horizontal e no solo. Por fim, deve-se ressaltar que em muitas destas ocasiões da ressurreição
reverencia-se a uma imagem, como no caso do próprio Jesus, ou de Osíris, ou da carta XX do tarô. Voltando ao
tema da Ressurreição de Lázaro, nos cabe a pergunta feita por Edouard Schuré: afinal quem é Lázaro? “Lázaro,
que João designa simplesmente como o irmão de Marta e Maria de Betânia, é o personagem mais enigmático e
mais singular dos Evangelhos. João apenas o menciona; os sinópticos não o conhecem. Ele não está ali a não
ser pela cena da ressurreição. O milagre operado, ele desaparece como em um alçapão”. (Edouard Schuré, A
evolução divina da esfinge ao cristo. IBRASA, 3° Ed., São Paulo, 2009, p. 285.) Assim, estas questões não
parecem reforçar a idéia de Lázaro enquanto imagem? Como escreveu Adorno: “cada obra de arte é um
instante”. (Theodor Adorno, Teoria Estética. Edições 70, Lisboa, 1970, p. 17)
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mia visione, e ancor mi distilla
nel core il dolce che nacque da essa.”
(ALIGHIERI, Paraíso, Canto XXXIII) 14
Bibliografia:
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Editora Martin Claret, 2008.
AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Teologia Mística. Fissus Editora, 2005.
ARGAN, Giulio Carlo & MAMMI, Lorenzo. Clássico Anticlássico: O Renascimento de
Brunelleschi a Bruegel. Companhia das Letras, 1999.
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte Italiana. V. 2: De Giotto a Leonardo. Editora Cosac
Naify, 2003.
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Edições 70, 1974.
BRINKER, Helmut. O Zen na arte da pintura. Editora Pensamento, 1995.
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Editora Mundo Cristão, São Paulo, 2007.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de Símbolos. Editora José Olympio,
19° edição, 2005.
DE DUVE, Thierry. Na Cama com Madonna; in: Revista Concinnitas n. 7. UERJ, 2004.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Editora Iluminuras, 1997.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Editora 34, 1998.
ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. São Paulo: Record, 2010.
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Edições 70, 2005.
LICHTENSTEIN, Jacqueline. A pintura – Vol.2: A teologia da imagem e o estatuto da pintura.
Ed. 34, 2004.
MATISSE, Henri. Escritos e Reflexões sobre Arte. Cosac Naify, 2007.
Novo Testamento. Texto Integral. Martin Claret, 2006.
WERTHEIN, Margaret. Uma História do Espaço de Dante à Internet. Jorge Zahar, 1° ed., 2001.
WOLF, Norbert. Giotto. Taschen, 2007.
14
“E o que vi, desde então, na imensidade / Transcendeu quanto o verbo humano intente: / Cede a memória tanta
majestade. / Qual homem, que, a sonhar, vê claramente / Depois só guarda a sensação impresa, / E o mais em
todo lhe não volta a mente. / Tal eu; quase a visão inteira cessa. / Mas no meu coração quase destila / Doçura que
em seu êxtase começa.” Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro.
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Imagens:
1- (1300-1306 ?), Giotto Di Bondone, A Ressurreição de Lázaro, afresco, Capela Scrovegni,
Pádua, Itália.:
2- (1300-1306 ?), Giotto Di Bondone, A Ressurreição de Jesus, afresco, Capela Scrovegni,
Pádua, Itália:
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3- A Ressurreição de Osíris:
4- Outras pinturas com o tema “A Ressurreição de Lázaro”:
(1295-1300 ?), Giotto Di Bondone, A Ressurreição de Lázaro, afresco, Capela São Francisco de
Assis, Assis, Itália:
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(1308-1311 ?), Duccio, A Ressurreição de Lázaro, afresco, Itália:
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PIERRE RESTANY: A PASSAGEM PARA A “ANTICARREIRA”
Caroline Saut Schroeder
Durante a década de 1960, Pierre Restany esteve presente em vários acontecimentos
artísticos na América Latina e acompanhou com especial interesse as edições da Bienal de São
Paulo. O crítico francês vinha defendendo a reformulação estrutural da mostra, tendo em vista
sua importância internacional. Em 1965, ano de realização da VIII Bienal, algumas das suas
sugestões foram publicadas no Correio da Manhã. Segundo ele, o modelo pautado nas
representações nacionais deveria ser substituído por uma fórmula temática:
A Bienal deveria ser então estruturada sobre uma ideia central, um estilo, um período e
tempo, um material, etc. O tema central poderia ser escolhido por uma comissão de
especialistas internacionais, que estabeleceriam uma lista de convites sem atender às
nacionalidades dos artistas e referindo-se somente à temática pré-determinada. Portanto, a
confrontação das obras seria internacional, mas essas seriam escolhidas dentro do quadro
temático da exposição. (Restany..., 1965)
Vale ressaltar que a configuração da mostra vinha sendo questionada também por outros
críticos e artistas, sobretudo pela falta de uma orientação conceitual, bem como pela escolha
indiscriminada dos participantes e premiados. Para Restany, o júri de premiação necessitava de
modificação urgente. O problema estaria no fato de que a Bienal conservava entre os jurados,
também comissários, ou seja, aqueles que organizavam as representações do seu país
acumulavam a função de julgar as obras. Este procedimento, segundo o crítico, provocava
avaliações parciais e equivocadas.1 O júri deveria ser integrado apenas por especialistas e que
não fizessem parte de comissões de seleção.
Convidado pelo Itamaraty, o crítico visitou a IX Bienal de São Paulo, em 1967. Na
ocasião, foi chamado por Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo, para participar ativamente
da organização de uma sala especial na edição seguinte da mostra. (JAYME MAURÍCIO, 1967)
Restany aceitou o convite considerando a oportunidade de pôr em prática suas ideias. Como a

Mestranda em História, Crítica e Teoria da Arte, ECA-USP, com bolsa de pesquisa da CAPES.
[email protected]
1
Restany fazia alusão aos prêmios distribuídos na VIII Bienal. O prêmio de escultura estrangeira teria sido
conferido a um “talento artesanal medíocre”, Marta Colvin (Chile), enquanto o suíço Tinguely havia recebido
apenas o prêmio de melhor pesquisa. Outro despropósito estaria no prêmio estrangeiro de desenho, atribuído a um
espanhol “sem originalidade”, Juan Ponç, enquanto o suíço Svanberg teria merecido incomparavelmente mais.
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sala especial não faria parte das delegações nacionais oficiais, seria possível organizar uma
exposição temática supranacional tal como ele entendia que deveria funcionar uma Bienal.
A sua proposta consistia em uma exposição internacional com o tema “arte e tecnologia”,
em que seriam agrupados trabalhos provenientes de 15 países diferentes. Conforme informou o
critico, a sala apresentaria “um panorama sucinto, mas sugestivo de experimentação visual, da
máquina ao computador”. Ao eliminar as barreiras geográficas entre os países participantes,
Restany subverteria o princípio das representações nacionais, premissa esta que estruturava a
Bienal desde a sua origem em 1951. Segundo o artigo do Correio da Manhã, “a exposição teria
marcado época nos meios artísticos de São Paulo e, antecipando a uma possível reforma de
conjunto, constituir-se-ia em uma espécie de antibienal dentro da própria Bienal”. (Boicote...,
1969)
Porém, ao tomar conhecimento dos casos de censura e repressão a artistas e intelectuais no
Brasil, seus planos para a mostra tomaram outro rumo. Um projeto repressivo pautado na
eliminação das vozes que divergiam do discurso oficial vinha se configurando desde o golpe
civil-militar em 1964. O Ato-Institucional no5, decretado em dezembro de 1968, significou o
amadurecimento desse processo. Segundo Rosa Artigas, após o AI-5, os efeitos da repressão às
manifestações artísticas foram devastadores: “as artes foram habilmente inviabilizadas durante
esse período. A liberdade de expressão e de crítica foi reprimida, o debate foi calado com a
cassação e o exílio de intelectuais e artistas, a pesquisa foi desestimulada, a censura instaurada”.
(ARTIGAS, 2001: 42) Aqueles artistas que inseriam a reflexão política e social em seus
trabalhos, que ousavam produzir leituras díspares daquelas indicadas pelo Estado, foram
submetidos à censura.
Em maio de 1969, a suspensão da exposição no MAM-RJ com os artistas que
representariam o Brasil na VI Bienal de Jovens de Paris, e que implicou na ausência da
participação brasileira na mostra francesa, gerou inúmeras contestações. Mário Pedrosa, então
presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, manifestou-se publicamente contra a
censura da criação da obra de arte e do livre exercício da crítica de arte, e recomendou a seus
membros que se recusassem a participar da organização de delegações de arte brasileira e de
júris em concursos promovidos pelo Estado. (LUIZ RODOLPHO, 1969)
Na França, em meados de junho, uma reunião com artistas e intelectuais no Museu de Arte
Moderna de Paris resultou no manifesto Non à la Biennale. O documento trazia os nomes
daqueles que haviam tomado a decisão de recusar a participação na X Bienal; entre eles, estava
Pierre Restany. Os compromissos por ele assumidos com o diretor da Bienal foram, então,
108
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2011
cancelados. Segundo o crítico, não havia como negligenciar a “forte corrente de oposição e
boicote” que se havia constituído na Europa. Ao tomar a decisão de apoiar o protesto político,
Restany apressou sua passagem para a “anticarreira”.
A prevalência de um impulso de negatividade que dava força ao movimento Non à la
Biennale e que vinha transformando o campo da arte foi ressaltado pelo crítico em um artigo
publicado na revista italiana Domus e, posteriormente, no Correio da Manhã. (Boicote..., 1969)
De acordo com Restany, era um “antiartista” aquele que rejeitava as formas tradicionais da arte;
era este “antiartista” que fazia nascer o acontecimento, tornava as máquinas inúteis, brincava
com lasers, transtornava as formas químicas de polimerização, atrapalhava os programas de
computadores. Ele não fazia mais “carreira”, expondo em galerias, mas construía uma
“anticarreira”. A “anticarreira” corresponderia também à “antiforma”, que previa não a
fabricação de objetos, mas a definição de situações, e com a participação ativa do espectador.
Com a inversão do prazer de contemplação, que estava diretamente ligado a um código cultural,
instituía-se o “anticódigo”: “do livro ilegível à música do silêncio ou à pintura do vazio, nossa
época contemporânea é extraordinariamente rica em gestos de puro comportamento”. (Boicote...,
1969)
Para os artistas que construíam “carreiras”, as bienais internacionais eram o ponto
culminante, momento de consagração. Segundo o crítico: “arranjos, intrigas, compromissos
assumidos por detrás das prestigiosas fachadas: ter uma sala especial em Veneza ou em São
Paulo, ali receber um prêmio, tornaram-se as aspirações fundamentais para os artistas do mundo
inteiro”. (Boicote...,1969) Essas bienais, que cresciam em tamanho, número de participantes e
delegações estrangeiras, entrariam em crise em 1968. Naquele ano, a Bienal de Veneza foi
contestada e ocupada por estudantes, que pressionavam os artistas convidados a renunciarem ao
evento. A trienal de Milão só foi liberada após inúmeras negociações. Daí por diante, tudo
estaria revirado:
Aquilo que no quadro “carreira” era o ápice da consagração, tornou-se o máximo do
comprometimento burguês. O ápice da consagração na “anticarreira” consistia em
recusar-se a participar das Bienais do sistema. (Boicote..., 1969)
O “antissistema” teria também, sua hierarquia própria. De acordo com a importância
oficial da manifestação, a recusa poder-se-ia pronunciar por meio de anúncio individual ou
coletivo, por meio da imprensa, ou, ainda, através da assinatura em alguma declaração coletiva.
Restany dizia: “esta é a técnica, a dimensão justa do novo estatuto do artista, seu tributo à
109
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tomada de consciência política do povo explorado, a constatação moral de sua contradição”.
(Boicote..., 1969) O crítico diagnosticava que tudo retornaria aos museus e que tudo seria dito na
imprensa, mas que isto ocorreria somente na parte do “mundo livre”, que seguia o percurso do
capitalismo industrial e liberal. Na outra parte do mundo, o resultado se manifestaria sob a forma
de violentas contradições que acelerariam particularmente o ritmo das “anticarreiras”
individuais. (Boicote..., 1969)
Em tempos de “anticarreira” era preciso “antiarte”. Os novos procedimentos artísticos
arrebentariam com as linguagens organizadas, e os “antiartistas”, ao recusarem a recuperação
dos “elementos arrebentados”, estariam conferindo à arte um “antidestino” cultural. A recusa, a
resistência às forças de pressão e de exploração sociais, levaria os “antiartistas” a um
comportamento marginal. A política internacional se juntava às contradições da consciência e à
crise da linguagem.
Ainda no inicio da década de 1960, Restany evidenciou o surgimento de um novo
realismo marcado pela tomada de consciência de uma natureza moderna, industrial e urbana, que
se identificava com a tecnologia. (RESTANY, 1979: 110) Os Novos Realistas2 teriam entendido
isto, a chave para a poética contemporânea residiria na aproximação perceptiva do real. Sendo
assim, o ready-made dadaísta era retomado para fins poéticos: esse fragmento do real, sustentado
por um método de ação e sensibilidade, daria lugar a um “humanismo tecnológico”, que,
segundo o crítico, seria a única garantia racional e razoável de um segundo renascimento para a
arte. (RESTANY, 1979: 38) De acordo com Bourriaud, para Pierre Restany, “(...) a arte
representava uma ‘clareza de visão’ – ou seja, não um conjunto de objetos mais ou menos bemfeitos mas um aparato óptico que nos permite olhar o novo mundo que nos rodeia, mesmo que
sejam supermercados e ruas”. (BOURRIAUD, 2003)
Ao tomar a decisão de apoiar o boicote, Restany entendeu que não havia lugar para um
novo humanismo em uma sociedade privada da própria liberdade e impedida de manifestar-se
coletivamente. Com o cancelamento da sala especial, a X Bienal deixou de apresentar ao público
um panorama das ações coletivas e participativas que se estabeleceriam pela aproximação da arte
com a tecnologia.3 No final de agosto, em 1969, um artigo de jornal anunciava que: “o crítico
francês Pierre Restany, encarregado pela X Bienal para organizar a exposição de Arte e
2
3
O movimento dos Novos Realistas foi fundado em outubro de 1960 por Pierre Restany, na casa de Yves Klein,
onde estiveram presentes Arman, Dufrêne, Hains, Martial Raysse, Spoerri, Tinguely, César e Rotella. O grupo
nasceu de uma reação contra o conformismo não-figurativo (o informal e a action painting) que dominava a cena
cultural em Paris e Nova York.
A delegação dos EUA também preparava uma exposição de arte e tecnologia, porém sua realização não se
efetivou após a adesão de uma parcela dos artistas norte-americanos ao boicote.
110
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Tecnologia, pediu demissão, deixando liberdade de decisão para os artistas que convidara”.
(LUIZ RODOLPHO, 1969) Grande parte deles aderiu ao boicote, enquanto outros foram
integrados às delegações dos seus respectivos países.
Referências Bibliográficas
ARTIGAS, Rosa. São Paulo de Ciccillo Matarazzo. In: FARIAS, Agnaldo (org). Bienal 50
Anos: 1951-2001. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2001.
BOURRIAUD, Nicolas. Object lessons: Nicolas Bourriaud on Pierre Restany - Passages Critical Essay. Art Forum, nov, 2003.
Boicote à X Bienal: A anticarreira ou as especulações sobre a cultura impossível. Correio da
Manhã, Segundo Caderno, Rio de Janeiro, 31 ago. 1969.
Jayme Mauricio. Itinerário das Artes Plásticas. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 out. 1967.
Luiz Rodolpho. Boicote à Bienal: A X bienal (se houver) será mutilada. Correio da Manhã, Rio
de Janeiro, sábado, 30 ago. 1969.
Restany: Brasília, Bienal e Vanguarda. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 set. 1965.
RESTANY, Pierre. Novos Realistas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979.
111
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FONTES GRAVADAS DE ALGUMAS PINTURAS DA CAPELA DA SANTÍSSIMA
TRINDADE EM TIRADENTES
Clara Habib de Salles Abreu
O presente artigo pretende refletir como a produção pictórica da colônia mineira absorveu
e assimilou, sem perder de vista suas particularidades, preceitos estéticos circulantes na
sociedade artística européia desenvolvidos e divulgados a partir do Renascimento Italiano.
Pretende-se analisar como o exercício prático da utilização de gravuras internacionais como
modelo iconográfico para a produção pictórica foi de grande importância nesse processo de
assimilação. Para isso toma-se como estudo de caso a análise de quatro pinturas localizadas na
Capela da Santíssima Trindade em Tiradentes, Minas Gerais e seus respectivos modelos
iconográficos em gravura.
A Arte Colonial Brasileira é herdeira de uma tradição de representação pictórica
organizada retoricamente, tradição de fundo humanista, inaugurada pelo Renascimento Italiano.
Tal sistema de representação artístico foi elaborado a partir do retorno à antiguidade clássica,
período valorizado e atualizado pelos artistas e eruditos do Renascimento italiano, sobretudo,
através do estudo das disciplinas humanistas e seus teóricos. Foi no período Renascentista, com
o resgate da cultura clássica, que nasce uma teoria da arte calcada na analogia entre a poesia e a
pintura. Empregando uma classificação originada no século XII, as artes eram separadas em
"liberais" e "mecânicas". A pintura, a escultura e a arquitetura eram consideradas artes
mecânicas, pois demandavam trabalho físico e por isso não tinham o mesmo status das artes
liberais. A literatura e a retórica, tão valorizadas no Humanismo, tinham seu status de Artes
Liberais desde a Antiguidade. Os teóricos humanistas da pintura desejosos que fossem
reconhecida nela a mesma intelectualidade reconhecida nos estudos literários desenvolveram a
doutrina do "ut pictura poesis". Essa doutrina insistia num parentesco entre a pintura e a poesia
ajudando assim a alavancar o processo de reconhecimento do estatuto intelectual da pintura e sua
afirmação como atividade liberal. Pela primeira vez coloca-se a pintura na condição de arte
liberal e encara-se o pintor como um intelectual, um homem universal, não um simples artesão
detentor somente de um saber técnico.
A partir de agora a pintura, assim como a poesia, tinha a função de deleitar e instruir, para
isso ser realizado de maneira satisfatória era necessário que fossem seguidos uma série de

Universidade Federal de Juiz de Fora, Bacharel em Artes.
112
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preceitos. De grande importância nesse momento foram os tratados que divulgavam esses
preceitos estéticos sistematizados por essa recente e emergente teoria da arte. O tratado inaugural
e de mais relevância no momento foi “De Pictura” de Leon Batista Alberti. A “história” para
Alberti era o mais elevado objetivo do pintor, e a função da "composição", além de fazer o ajuste
dos elementos na pintura, abarcaria essa noção de “história”. A pintura deve imitar a natureza, as
ações humanas, e assim narrar uma “história”.
Os preceitos que instruíam os pintores Renascentistas eram divulgados na Europa pelos
tratados, como o já mencionado “De Pictura” de Alberti, e pelas gravuras que traduziam
visualmente aqueles preceitos inicialmente escritos. Esse material chegou a Portugal, que
também teve seus próprios tratadistas e consequentemente à colônia.
A assimilação dessa tradição no Brasil Colônia assumiu diversas particularidades devido
ao filtro da Igreja Tridentina, que teve grande importância na metrópole portuguesa e
consequentemente na colônia, e também à situação de ofício mecânico do artífice colonial.
A Igreja Italiana do período Renascentista era uma igreja progressista, de caráter
humanista na qual seus dogmas conviviam aparentemente sem conflito com referências à
mitologia pagã da antiguidade clássica. Porém a política da Igreja mudou por ocasião da
Reforma e Contra-Reforma. Com a Reforma protestante, as imagens e pinturas da Igreja Romana
passaram a sofrer acusações de idolatria. Assim, com a Contra-Reforma, a Igreja Católica inicia
uma nova política mais rígida com relação aos dogmas e as doutrinas, estendendo-se obviamente
a questões iconográficas.
Os teólogos precisaram justificar o embasamento religioso da arte sacra defendendo que
ela não era idolatria e sim incitação à piedade, portanto, uma forma de se buscar a salvação.
Neste momento, atualiza-se a máxima do Papa Gregório que dizia ser a pintura a “bíblia dos
iletrados”. Com essa teoria, a Igreja da Contra Reforma salvou a iconografia da acusação de
idolatra e, além disso, transformou-a em uma poderosa ferramenta de divulgação dos seus
princípios. Assim afirma Blunt: “(...) a arte não foi apenas salva para a religião, mas também
reconhecida como uma de suas armas de propaganda mais poderosas.” (BLUNT, 2001: 147) Por
meio das histórias retratadas nas pinturas sacras as pessoas eram instruídas e incitadas à reflexão
nos artigos da fé.
Porém pelos decretos do Concílio de Trento era importante eliminar da arte tudo que era
secular ou pagão, assim todos os símbolos pagãos incorporados ao Cristianismo no
Renascimento foram praticamente banidos. Ademais, o Concílio de Trento decretou a exatidão
na representação dos temas religiosos. O pintor deveria representar a história bíblica de maneira
113
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mais clara o possível, sem artifícios para torná-la mais atraente, pois o objetivo didático era mais
importante do que o caráter estético.
Essa tradição tridentina causou forte repercussão na teoria da arte sistematizada no século
XVII em Portugal onde o Humanismo não havia conseguido, pode-se dizer, grande alcance,
situação que repercutiu diretamente na colônia. Esse filtro tridentino fez a arte Luso-Brasileira
assumir um caráter moralizante que não existia no contexto Italiano, ou pelo menos não como
elemento central. Nesta estrutura, é importante observar que a arte colonial brasileira não possuía
uma autonomia estética e estava a serviço de um sistema retórico e religioso de imagens que
visava à conversão e sensibilização dos fiéis. Nas palavras de Hansen:
as artes têm então uma fundamentação metafísica, substancialista, e que não conhecem a
autonomia estética que passaram a ter depois o século XVIII, pois todas elas são então
entendidas
como
dispositivos
imediatamente
práticos,
úteis,
que
dramatizam
espetacularmente os valores católicos da monarquia absolutista. ( HANSEN, 1995: 180)
Para a Igreja da Contra Reforma a difusão de imagens por meio de estampas ou gravuras
era muito importante. Como dito anteriormente, ela usava a difusão de imagens sacras como
meio eficiente de propaganda religiosa, pois a imagem com suas qualidades estéticas instruem
pela emoção se tornando muito eficiente. Argan explica no seguinte trecho:
A razão prática da difusão mediante a reprodução por gravura de tema religioso é
conhecida: A Igreja católica revalorizou as imagens que a Reforma depreciara e proibira;
encorajou a formação e a difusão de uma nova iconografia sacra, que fornecesse a todos
os fiéis os mesmos objetos e os mesmos símbolos para uma devoção em massa; e serviuse das gravuras figuradas como um meio poderoso de propaganda religiosa. (ARGAN,
2004: 17)
Esse tipo de gravura chegou à colônia e influenciou diretamente na produção pictórica
dos artífices locais, servindo com freqüência de modelo para a produção colonial e sendo de
grande importância no processo de assimilação dos preceitos estéticos circulantes na sociedade
artística européia. Essas gravuras chegavam em exemplares avulsos, chamados de "registro de
santos" ou como parte integrante de bíblias ilustradas, missais e breviários. Atualmente é
possível encontrar exemplares dessas gravuras em arquivos históricos públicos e particulares das
igrejas e irmandades religiosas.
114
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É importante nesse processo de assimilação analisado até o presente momento do artigo,
considerar também a condição social do artífice brasileiro, muitas vezes iletrado, que aprendia
seu ofício por meio da experiência prática. Artífice que se assemelhava ao medieval distante do
homem universal, do intelectual ligado ao Humanismo. É neste contexto que se deve entender a
grande importância da gravura no sistema colonial. Até hoje não existem estudos conclusivos
sobre o alcance dos tratados de pintura europeus, ou mesmo portugueses entre os artesãos
mineiros, então me parece mais convincente que a grande responsável pela divulgação desse
modelo “retorizado” de representação pictórica na colônia tenha sido a gravura, o q se justifica
pelo farto numero de gravuras encontradas nos arquivos. É possível inferir que mediante ao
exercício constante de cópia das gravuras européias pelos artífices locais foi possível um
processo natural e prático de assimilação de preceitos que circulavam na sociedade artística
européia e de uma tradição fundamentada a partir do Renascimento. É exatamente neste aspecto
que se encontra o cerne dessa proposta de estudo.
Comparando as pinturas mineiras com seus modelos europeus gravados percebe-se que
o pintor local opera poucas modificações e se mantém fiel ao modelo e isso indica que a copia
servil não era algo condenável, ao contrário, era um instrumento de aprendizagem. As
transformações quando aconteciam tinham objetivo de atender as diferenças de suporte e de
tamanho e as funções de decoro, porém isso não alterava a imagem de modo a configurar uma
novidade em relação à gravura. A partir dessa constatação torna-se muito importante uma
reflexão sobre os termos "cópia" e "invenção" e seus significados no referido momento da
história da arte. No referido momento a função da imagem não era o deleite da invenção sim a
catequese.
Concluindo essa parte do estudo, a arte colonial brasileira, sem perder de vista suas
importantes particularidades (que se manifestam principalmente pela força que a teoria da
imagem Tridentina assume na colônia e a situação de ofício mecâncio do artífice local) se insere
numa tradição artística iniciada no Renascimento Italiano, sistematizada por Leon Batista Alberti
e divulgada por meio principalmente de gravuras, tradição na qual a pintura tem a função
retórica de “contar” uma história. No caso colonial, contar uma história bíblica com o objetivo
didático de agradar, ensinar e persuadir os fiéis nos dogmas da doutrina Católica na sua versão
contra-reformista.
As pinturas da Capela da Santíssima Trindade em Tiradentes - um estudo de caso
Muitos pesquisadores já se dedicaram ou se dedicam atualmente ao estudo das fontes
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gravadas que influenciaram a produção pictórica mineira no período colonial. Um maior
interesse por essa temática é iniciado com o clássico artigo de Hanna Levy, "Modelos europeus
na pintura colonial", no qual ela identifica e analisa diversas pinturas e suas fontes gravadas com
destaque para as pinturas dos painéis de Manuel da Costa Ataíde na Igreja de São Francisco de
Assis em Ouro Preto e as suas fontes, retiradas da Bíblia ilustrada de Dermane.
A partir daí vários estudiosos se dedicam a identificar e estudar casos semelhantes que
aparecem por todas as cidades colônias mineiras.
Nesse artigo propõe-se tomar como estudo de caso a relação entre gravura e pintura na
série de pinturas localizadas atualmente na Capela da Santíssima Trindade em Tiradentes, Minas
Gerais.
Entende-se tais gravuras não só como modelos iconográficos, mas também como
instrumento de aprendizagem e assimilação de preceitos artísticos na produção pictórica do
período colonial mineiro.
De um conjunto de oito pinturas, a princípio foram selecionadas para esta pesquisa
quatro obras representando as passagens bíblicas “Anunciação“, “Natividade“, “Epifania“ e
“Ascensão de Cristo”. Localizadas atualmente na Capela da Santíssima Trindade, tais pinturas
são em têmpera sobre tela de acordo com o "Inventário de bens móveis e integrados do Santuário
da Santíssima Trindade" do IPHAN. Ainda conforme inventário do IPHAN datam de 1785 e são
da autoria de Francisco de Paula Oliveira Dias, apesar de recentemente Camila Santiago acusar
autor e data desconhecidos. As quatro obras selecionadas têm seus modelos iconográficos
encontrados em gravuras européias. A pintura representando o tema da "Anunciação" (FIGURA
1) tem por modelo uma gravura (FIGURA 2), aberta por Nicolau José Cordeiro, presente num
missal da Tipografia Régia de Lisboa; já a pintura da "Natividade"(FIGURA 3), tem seu modelo
em uma gravura (FIGURA 4) aberta por Gaspar Frois Machado também presente em um missal
da Tipografia Régia. Esta gravura, por sua vez, é cópia de uma pintura (FIGURA 5) do italiano
Sebastiano Conca. O modelo gravado da pintura que representa a cena da "Epifania" (FIGURA
6) foi encontrado em um registro de santo de Lisboa (FIGURA 7). Por fim, a pintura que
representa o tema da "Ascensão de Cristo” (FIGURA 8) tem por modelo uma gravura de um
missal (FIGURA 9) de 1722 da Tipografia Plantin-Moretus, da Antuérpia.
Num levantamento nos arquivos locais foi possível encontrar edições dos missais
citados com as gravuras que serviram de modelo para as pinturas em questão observando assim
sua efetiva circulação na região. Porém o registro de santo no qual foi baseada a pintura da
"Epifania" não foi localizado na região o que, a princípio, não impede a sua identificação como
modelo, pois percebemos que a referida pintura situa-se no campo da cópia servil, sem grandes
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alterações em relação à gravura modelo.
Concluo com esse exemplo, que o pintor de Tiradentes, mesmo que iletrado e sem
acesso aos tratados e manuais que divulgavam as teorias da arte vigentes, participou
naturalmente de um processo de assimilação dos preceitos circulantes na sociedade artística do
referido momento. O pintor se apropriou de fontes européias gravadas para a produção dos seus
painéis, e assim, por meio do exercício prático da cópia participou do processo de assimilação de
preceitos artísticos de uma arte retorizada iniciada no Renascimento Italiano e levada além-mar
por essas gravuras.
Referências Bibliográficas:
ARGAN, G.C. “Imagem e Persuasão: Ensaios sobre o Barroco”. São Paulo: Companhia da
Letras, 2004.
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BOHRER, Alex Fernandes "OS DIÁLOGOS DE FÊNIX: Fontes Iconográficas, Mecenato e
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BOSCHI, C. C. “O Barroco Mineiro: Artes e Trabalho”. São Paulo: Brasiliense, 1988.
HANSEN, J. A. “Artes Seiscentistas e Teologia Política”. In: TIRAPELLI, P. “Arte Sacra
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OLIVEIRA, M.A.R. “O Rococó Religioso no Brasil e seus Antecedentes”. São Paulo: Cosac
Naify, 2003.
PIFANO, R.Q.A. “A arte da pintura: prescrições humanistas e tridentinas na pintura colonial
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SANTIAGO, C. F. G. “Usos e impactos de impressos europeus na configuração do universo
pictórico mineiro (1770-1830)”. Belo Horizonte: UFMG, 2009. (tese de doutorado).
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IMAGENS
FIGURA 1 - 1785. Francisco de Paula Oliveira Dias. Anunciação.
Têmpera sobre tela
Capela da Santíssima Trindade, Tiradentes, Minas Gerais
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FIGURA 2 –1793. Nicolau José Cordeiro. Anunciação.
Gravura
MISSALE ROMANUM. Typographia Regia, Lisboa, Portugal
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FIGURA 3 – 1785. Francisco de Paula Oliveira Dias. Natividade.
Têmpera sobre tela
Capela da Santíssima Trindade, Tiradentes, Minas Gerais
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FIGURA 4 – 1793. Gaspar Frois Machado. Natividade.
Gravura
MISSALE ROMANUM. Typografia Regia, Lisboa, Portugal
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FIGURA 5 –Sebastiano Conca. Natividade.
Óleo sobre tela
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FIGURA 6 –1785. Francisco de Paula Oliveira Dias. Epifania.
Têmpera sobre tela
Capela da Santíssima Trindade, Tiradentes, Minas Gerais
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FIGURA 7 - Autor desconhecido. Adoração dos Santos Reis.
Gravura
Registro de Santo. Biblioteca Nacional de Portugal. Divisão de Iconografia. RS 4076. Foto:
Biblioteca Nacional de Portugal.
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FIGURA 8 - 1785. Francisco de Paula Oliveira Dias. Ascensão de Cristo.
Têmpera sobre tela
Capela da Santíssima Trindade, Tiradentes, Minas Gerais
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FIGURA 9 - 1722. Ascensão de Cristo.
Gravura
MISSALE ROMANUM. Architypographia Plantiniana, Antuerpiae
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A PINTURA DA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM DIAMANTINA
(MG): AUTORIA ENCONTRADA
Danielle Manoel dos Santos Pereira
A atual cidade de Diamantina (MG) é fortemente marcada pelas tradições do passado e
pela arquitetura colonial dos tempos da mineração e extração diamantífera. As riquezas que
brotaram das cabeceiras e do leito dos rios, assim como os diversos sistemas de exploração
econômica (quinto, captação, devassa, derrama, demarcação das terras, concessão de lavras e
datas, etc.) impostos pela Coroa para obtenção de lucro na extração das pedras e metais preciosos
foram os precedentes que deram a esta paisagem características marcantes e aspectos únicos,
sobretudo na construção dos templos religiosos erguidos pelas irmandades e ordens terceiras que
por lá se instalaram a partir da fundação do Arraial do Tijuco no século XVIII.
Constituindo um conjunto diferenciado quando comparado a outras cidades mineiras, as
igrejas, as casas e as demais construções que formam o núcleo central da cidade, foram tombadas
como importante Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e Patrimônio Cultural da
Humanidade (UNESCO).
As construções eclesiásticas são singelas na forma arquitetônica, mas nem por isso
menores em atributos barrocos, o interior desses edifícios revela pinturas ilusionistas e tantas
outras de caráter barroco e rococó que sobressaem-se à arquitetura, servindo-se desta somente
como suporte para tão distintas representações. Dentre as igrejas que possuem pinturas no estilo
barroco está a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, provavelmente a mais antiga que
se ergueu na formação do povoado do antigo Arraial do Tijuco, hoje Diamantina, datando de
1733, conforme indicações de Aires da Mata Machado Filho (1980).
Embora a instituição da Irmandade do Rosário em uma Ermida tenha ocorrido muito
próxima à formação do Arraial, o contrato para arrematação das obras da igreja definitiva
(Figura 1) ocorreria por volta de meados de 1771, e ainda mais vagaroso seria o processo de
ornamentação do interior do templo. Apesar de terem se instalado no Tijuco muito antes da
Ordem do Carmo e Ordem de São Francisco, só conseguiram construir sua capela anos depois,
ao passo que estes haviam a algum tempo erguido suas construções. Conforme os documentos da
Irmandade compilados por Machado Filho (Ibid., p. 236) nota-se, ter havido por parte dos irmãos
grande zelo no empreendimento de ereção da capela, na qual inúmeros detalhes de ornamentação

Mestranda em Artes IA/UNESP. Especialista em História da Arte. Agência financiadora FAPESP.
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foram realizados tal como os elementos presentes na decoração da Igreja do Carmo e Igreja de
São Francisco. Os forros dessa igreja também receberiam esmerada atenção mesmo diante dos
parcos recursos de que gozava a Irmandade e, para embelezá-lo ajustaram que pinturas fossem
executadas no forro da capela-mor e no forro da sacristia; para a pintura do forro da capela-mor
(Figura 2) encomendou-se a obra ao artista José Soares de Araújo, conforme documentos
atestam; no entanto, para as pinturas do forro da sacristia (Figura 3), até os dias atuais não havia
em pesquisas e estudos nenhuma informação quanto a autoria da obra e, por estarem em estado
precário de conservação a prudência por parte dos pesquisadores em não estabelecer atribuições
errôneas, acarretou na inexistência de confrontos estilísticos com outras pinturas do mesmo
período e, assim não se pôde suscitar hipóteses quanto a autoria de execução dessa obra.
Diante do cenário de incertezas acerca da pintura do forro da sacristia da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos de Diamantina, torna-se evidente a necessidade de pesquisas mais
profundas acerca dessa obra, portanto o objetivo deste estudo é legar à história da arte nacional o
reconhecimento dessa delicada pintura e de seu autor.
Os métodos adotados foram o confronto estilístico e o levantamento de documentos que
pudessem ampliar os dados existentes sobre a pintura, pois segundo Beatriz Ramos de
Vasconcellos Coelho a atribuição de uma obra,
...sem documentação comprobatória, para ser feita com mais segurança, deve conjugar os
dados da análise formal e estilística com os de análise de materiais e técnicas
empregados, sendo muito importante, também, o estudo do desenho preparatório ou
subjacente que fornecerá elementos preciosos sobre o processo de trabalho do artista.
(COELHO, 1993/6, p. 239)
Como não seria possível recorrer a análise de materiais e técnicas empregadas pelo
artista, ou ainda ao estudo do desenho subjacente, este estudo limitou-se a observação da pintura
em minucioso exame a olho nu e através de fotografias, sobretudo utilizadas na comparação com
outras obras. Recorreu-se também à busca atenta nos documentos da Irmandade do Rosário que
estão salvaguardados no Arquivo da Arquidiocese de Diamantina, especialmente os que se
equiparavam com a datação aparente na pintura, o ano de 1801 (Figura 4).
POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE PINTURAS
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No intuito de estabelecer relações com outras pinturas realizadas na localidade para
chegar à autoria, foi necessário adotar o confronto estilístico que havia sido evitado por
pesquisadores no decurso dos anos, embora essa empreitada tenha sido muito dificultada, pois a
pintura apresenta sinais de perda e de repinturas muito comprometedoras como havia constatado
Aires da Mata desde 1980. Todavia, seguindo a linha de confronto estilístico foram comparadas
à pintura da sacristia as obras de dois dos artistas mais influentes de Diamantina no período
colonial, são eles: José Soares de Araújo e Silvestre de Almeida Lopes; outro motivo que
condicionou a escolha destes dois pintores é o maior número de pesquisas acerca de suas obras,
sendo os demais pouco analisados na historiografia, mas cabe ressalvar que pesquisas recentes
tem modificado essa situação.
Iniciado o confronto com a obra de José Soares de Araújo, foi possível notar que as obras
primeiramente diferem quanto ao estilo, pois a da capela-mor (Figura 2) segue a adoção das
pinturas de caráter ilusionista ou de perspectiva arquitetônica como defende Myriam Ribeiro de
Oliveira “Os arcos das paredes do retábulo e arco-cruzeiro dão a impressão de vir bruscamente
interromper uma composição que deveria normalmente continuar no sentido longitudinal.”
(OLIVEIRA, 1978/9, p. 35), enquanto a pintura da sacristia (Figura 3) segue uma linha posterior,
mais próxima dos modelos finais do ciclo rococó, no qual o fundo é pintado de branco, os muros
parapeitos e balaustradas são suprimidos, dando lugar a uma composição solta no espaço no qual
figura somente um medalhão ou tarja central com os personagens ou símbolos sagrados; além do
retângulo central, esta pintura recebeu nos quatro cantos uma espécie de trapézio com
ornamentação floral (Figura 5), que segundo Carlos Del Negro devem ter sido “transportados
para o forro, por meio de um molde, que os reproduziu invariavelmente iguais, com acabamentos
realizados a mão livre.” (NEGRO, 1974, p. 33); nos eixos transversais há figuras que lembram
grotescos, por mesclar formas humanas com elementos vegetais (Figura 4).
Outro aspecto é a expressão facial dos anjos, pois nas obras realizadas por José Soares
eles possuem uma feição adulta, são anjos em posições desajeitadas, ao passo que as faces dos
anjos de gola representados no centro do forro da sacristia são mais delicadas e infantis.
Significativo é também o emprego das cores, onde novamente há divergências, pois José
Soares utiliza-se de tons mais escuros, e por essa razão é considerado por Luiz Jardim como
“penumbrista”, e muito recorrente em suas obras é o uso do ocre, de tons terra, sépia, azul, e o
tracejado branco e escuro, enquanto as tonalidades empregadas na sacristia são mais leves, tons
vermelhos e azuis, sem o emprego de nuances marrom.
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Portanto as obras divergem em gênero, pois o mestre português é reconhecidamente
perito na realização de pinturas de perspectiva, do emprego de elementos finamente decorados
que remetem as técnicas da ourivesaria, conforme se verifica em todas as obras a ele atribuídas,
tal como nas pinturas da Igreja de Nossa Senhora do Carmo e no forro da capela-mor da Igreja
de São Francisco, comparando essas duas obras com a pintura do forro da sacristia da Igreja do
Rosário, as diferenças tornam-se ainda mais evidentes, pois depara-se com técnicas muito
distintas, tanto na fatura como no emprego da arquitetura ilusionista.
O outro pintor considerado em Diamantina, e segundo pesquisadores, muito influente
também no Serro é Silvestre de Almeida Lopes, embora a maioria dos estudos apontam para
atribuições às obras, não se encontrando nenhum documento comprobatório. A pintura em
Diamantina que possui somente um medalhão central é a do forro de Nossa Senhora de Amparo,
datada do ano de 1790, esta sim, obra comprovada documentalmente foi realizada por Silvestre
de Almeida Lopes. Analisando esta obra é possível perceber alguns traços que assemelham-se a
sacristia do Rosário, mas é interessante analisar ainda as obras que são atribuídas ao pintor.
Portanto, para a realização do confronto estilístico com as obras do pintor Silvestre de
Almeida Lopes foi necessário primariamente estabelecer quais eram suas obras, pois pesquisas
recentes têm apontado que obras anteriormente atribuídas a Silvestre na realidade foram
executadas por outros artistas, sendo assim, procedeu-se ao levantamento de obras que possam
ser utilizadas para esta comparação.
ATRIBUIÇÕES
São inúmeras as pinturas atribuídas ao pintor Silvestre de Almeida Lopes, algumas
reafirmadas e outras contestadas ao longo da história. Deve-se, portanto verificar se há um
consenso nas atribuições realizadas e, não menos importante é saber a origem das atribuições,
pois estas podem ter ocorrido por métodos diferentes, como por confronto estilístico de obra
reconhecida do artista, por documentação comprobatória ou ainda outros meios.
A pesquisadora Judith Martins atribui ao artista trabalhos executados em Diamantina na
Igreja de São Francisco, mediante recibos de pagamentos efetuados no ano de 1764 e, a pintura
do forro da nave da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, conforme documentação do ano de
1780 no qual o pintor se prontifica a pintar o forro e a dourar os altares colaterais da dita igreja
(Figura 6).
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Myriam Ribeiro de Oliveira em 1982/3 compartilha das mesmas atribuições à pintura da
sacristia de São Francisco e a nave do Amparo1, acrescentando ainda ser o pintor “um artista de
primeira grandeza [...] autor da pequena jóia que é o forro da capela-mor da igreja do Bom Jesus
de Matozinhos da cidade do Serro, datada de 1797” (OLIVEIRA, 1982/3, p. 177).
A posição defendida por Myriam Ribeiro de Oliveira, em 1982 é participe da disposição
de Judith Martins, e contrária ao questionamento de Carlos Del Negro, que desde 1974, havia
posicionado-se contrário à Judith Martins quanto a pintura do forro da sacristia de São Francisco,
afirmando que “A pintura desse forro não deve ser atribuída ao artista Silvestre de Almeida
Lopes, como tem sido admitido. Os recibos desse artista, comprovados pelas fotocópias, são de
12/11/1764 e 30/12/1764, ao passo que a pintura está datada de 1795!” (NEGRO, op. cit., p. 42).
Segundo Del Negro os irmãos franciscanos estiveram por algum tempo realizando seus ofícios
na Igreja do Rosário, e foi durante esses anos que Silvestre de Almeida trabalhou para eles e,
somente em 1772 tiveram início as celebrações dos atos religiosos em igreja própria, ou seja,
posterior a data dos pagamentos realizados ao artista. Assim Del Negro também refuta a
atribuição à pintura da Igreja do Bom Jesus de Matozinhos do Serro, pois este afirma que ambas
as pinturas foram feitas pelo mesmo artista, assim “Silvestre de Almeida Lopes só poderia ter
realizado pinturas para os irmãos de S. Francisco na igreja do Rosário, permanecendo, assim,
incógnito o original pintor do forro da sacristia de S. Francisco e do Santuário do Senhor Bom
Jesus de Matozinhos no Serro.” (NEGRO, op. cit., p. 42).
Pela análise das pinturas de São Francisco (Figura 7) e de Matozinhos (Figura 8), não há
dúvidas de que o pintor de ambas seja o mesmo, porém não se pode ainda afirmar que sejam
obras de Silvestre de Almeida Lopes, sobretudo por serem as indicações tão divergentes.
No ano de 1997, Antônio Fernando Batista dos Santos e Selma Melo Miranda, ao rever
atribuições feitas às pinturas de Diamantina, afastam a hipótese de Silvestre de Almeida ter
executado as obras de São Francisco e Matozinhos, atribuindo estes trabalhos ao pintor Caetano
Luís de Miranda.
Selma Melo Miranda em trabalho recente afirma, uma vez mais, não ser do pintor
Silvestre de Almeida Lopes as pinturas na igreja do Bom Jesus de Matozinhos e de São
Francisco; a ele atribui a pintura existente no forro da Capela do Bonfim (Figura 9), conforme
suas palavras:
1
Dentre os documentos do “Livro de Termos da Irmandade do Rosário” está o ajuste para a pintura do forro e
altares colaterais datado de 04/mar./1780; em 10/jan./1780 há o Termo da pintura do forro da Capela entre outros
documentos, assim foi possível analisar e atestar a autoria dessa obra.
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Silvestre de Almeida Lopes atuou comprovadamente em Diamantina desde o
início da década de 1760 até o ano de 1796. Inicialmente, executou pequenos serviços
para os terceiros franciscanos e carmelitas e, mais tarde, se responsabilizou por toda a
obra de pintura e douramento da Capela da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo, da
qual era membro. No entanto, essas obras da capela dos pardos foram alteradas por
repinturas e não se prestam a confrontos estilísticos ou conclusões sobre suas
características.
Por outro lado, a análise da tela do senhor dos Passos pertencente à mesma capela
permitiu levantar a hipótese de que o artista responsabilizou-se, pelo menos, por dois
importantes trabalhos na região: as pinturas das capelas-mores do Senhor do Bonfim
diamantinense e de São Gonçalo do rio das Pedras. Ambas revelam sua filiação à obra de
José Soares de Araújo em interpretação própria que conjuga ingenuidade técnica e
requinte de intenção decorativa. (MIRANDA, 2009, p. 101)
Após este levantamento das possíveis obras realizadas pelo pintor Silvestre de Almeida
Lopes, tornou-se evidente a necessidade de pesquisas em arquivos, no intento de encontrar
documentos que pudessem comprovar ou refutar as diversas atribuições que haviam sido
realizadas pelos pesquisadores apurados, pois não seria possível estabelecer o confronto
estilístico visando a autoria de uma obra, quando as obras comparadas não possuem autoria.
OS DOCUMENTOS: A AUTORIA
O Arquivo da Arquidiocese de Diamantina é o responsável pela guarda dos documentos
da Irmandade do Rosário, embora muitos documentos acerca da Irmandade já não existam, há
alguns que podem ser analisados, pois a Arquidiocese os disponibiliza para consulta local à
pesquisadores. Outros documentos como: testamentos e inventários são boas fontes para
levantamento de informações, porém esta pesquisa não utilizou-se dos mesmos.
Por fim, recorreu-se então a investigação nos arquivos e documentos pertencentes à
Irmandade, foram analisados todos os papéis que contivessem a inscrição da Irmandade do
Rosário, mesmo os que se julgavam ineficazes para a problemática. Análises criteriosas
detiveram-se em documentos cuja datação fosse próxima ao ano de 1801, representado na obra.
Dentre os dados da irmandade, foram os Livros de Receitas e Despesas documentos de
grande valia, por ser possível identificar na parte reservada as despesas, todos os pagamentos
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efetuados, especificações do motivo para a realização de tais pagamentos e quem os recebia.
Contudo, é importante ressaltar que as pesquisas em documentos do século XVIII e início do
XIX sejam vagarosas, em virtude da grafia adotada no período, da precariedade dos documentos,
ou mesmo a ausência de trechos dos papéis corroídos pelas traças.
Entre os inúmeros documentos apurados da Irmandade, havia no “Livro de Receitas e
Despesas da Irmandade do Rosário de dezembro de 1800 até maio de 1801” à página 58 (Figura
10) a despesa do pagamento efetuado ao artista Silvestre de Almeida Lopes pela pintura do teto
da sacristia, conforme o trecho transcrito abaixo:
“Livro de Despesas”
“Anno 1800 para o 1801 [...]
P. que sepagou a Silvestre de Almd.a Lopes ac.ta da pintura do Teto da Sachristia
20 1/4 4.”.
Após a descoberta desse documento inédito, é possível afiançar ao pintor Silvestre de
Almeida Lopes a autoria pela pintura do forro da sacristia do Rosário de Diamantina (Figura 3).
No entanto, não é possível afirmar que a pintura visível até os dias atuais seja a pintura que o
artista realizou em 1801, para essa confirmação, será necessária a restauração da pintura, para
que a obra possa ser vista com suas nuances e tonalidades em sua integralidade e completude.
Desse modo, será possível estabelecer confrontos estilísticos com outras obras e então confirmar
as atribuições feitas ao pintor.
Pinturas de autoria de Silvestre de Almeida Lopes comprovadas por meio de
documentos:

Forro da nave Capela de Nossa Senhora do Amparo – Diamantina;

Forra da sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos – Diamantina
Obras atribuídas à Silvestre de Almeida em estudos recentes, sem comprovação
documental:

Forro da capela-mor da Igreja do Senhor do Bonfim – Diamantina

Forro da capela-mor da Igreja de São Gonçalo – São Gonçalo do Rio das Pedras.
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Por fim, pode-se dizer que nas páginas onde lia-se somente o ano de 1801, será inserido o
nome de Silvestre de Almeida Lopes, viabilizando assim estudos e pesquisas futuras auxiliares
na preservação dessa pintura agora inserida no conjunto da produção do artista.
Referências Bibliográficas
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134
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas colonial. In: Barroco. Belo
Horizonte: UFMG, 1978/79, n. 10.
______. A pintura de perspectiva em Minas colonial - ciclo rococó. In: Barroco. Belo Horizonte:
UFMG, 1982/83, n. 12.
SANTOS, Antônio Fernando Batista; MASSARA, Mônica. O Jogo Barroco em José Soares de
Araújo: pintor bracarense em Minas. In: Barroco, Belo Horizonte: UFMG, 1990/92, n. 15.
FIGURAS
Figura 1
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Diamantina, c. 1772. Foto de Danielle Pereira /
Arquivo pessoal, 2010.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
Figura 2
2011
Forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora
Figura 3
Forro da sacristia da Igreja de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos. Diamantina. José Soares
do Rosário dos Pretos. Diamantina. Silvestre
de Araújo. 1779. Foto de Danielle Pereira / de Almeida Lopes. 1801. Foto de Danielle Pereira
Arquivo pessoal, 2010.
/ Arquivo pessoal, 2010.
Figura 4
“Detalhe” - Forro da sacristia
da Igreja de Nossa Senhora
do
Rosário
dos
Pretos.
136
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Diamantina. Silvestre de Almeida Lopes. 1801. Foto de Danielle Pereira / Arquivo pessoal,
2010.
Figura 5
“Detalhe” - Forro da sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos. Diamantina. Silvestre de Almeida Lopes. 1801. Foto de
Danielle Pereira / Arquivo pessoal, 2010.
Figura 6
“Detalhe” Termo da Pintura do Forro da
Capela do Amparo – Livro de Termos da
Irmandade de Nossa Senhora do Amparo
de Diamantina. 10 jan. 1780. Foto
Verônica Motta / Arquivo Eclesiástico da
Arquidiocese de
Diamantina, 2010.
137
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
Figura 7
Forro da sacristia da Igreja de São Francisco de
Assis. Diamantina. Autoria desconhecida. 1795.
Foto de Danielle Pereira / Arquivo pessoal, 2010.
2011
Figura 8
Forro da capela-mor da Igreja do Bom Jesus de
Matozinhos. Serro. Autoria Desconhecida. 1797.
Foto de Danielle Pereira / Arquivo pessoal, 2010.
Figura 9
Forro da capela-mor da Igreja do Senhor do Bonfim.
Diamantina. Atribuído à Silvestre de Almeida Lopes. c. 1790 –
1810. Foto de Danielle Pereira / Arquivo pessoal, 2010.
138
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 10
Despesas do ano de 1800 - 1801 à página 58 – Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Diamantina. Foto Verônica Motta / Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina, 2010.
139
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
DO QUADRO-OBJETO CUBISTA AO NÃO-OBJETO NEOCONCRETISTA: UMA
ANÁLISE A PARTIR DAS LEITURAS DE FERREIRA GULLAR E MÁRIO PEDROSA
Diogo Vieira de Almeida
Desde o início do século XX, o campo das artes visuais se via em uma busca pela
construção de um novo espaço de representação, que com o esgotamento da linguagem
impressionista, tinha no cubismo um precursor, porém, seu sentido revolucionário e as
experiências pictóricas cubistas só seriam retomadas com o movimento De Stijl, mas
especificamente com a obra de Piet Mondrian.
Se com o cubismo, os objetos eram inicialmente decompostos, logo, as experiências da
fase sintética os conduziriam a planificação, eliminando a tridimensionalidade e desarticulando
as estruturas do objeto pintado. Porém, nessa fase sintética, segundo a leitura de Ferreira Gullar,
identificam-se duas vertentes opostas, uma tendendo á eliminação total do objeto na pintura e a
outra tendendo ao retorno do objeto ao signo, de tendência tachista. Aqui, interessa a primeira
vertente, que somente terá continuidade no Neoplasticismo com a eliminação dos vestígios do
objeto, já desarticulado pela planificação, sobrando então a tela em branco, presença material
que tornar-se-ia o novo objeto da pintura.
A partir desses argumentos, podemos voltar nosso olhar para a figura de Albert Gleizes,
que junto com Jean Metzinger publicou a obra Du cubisme, primeiro texto teórico a respeito do
movimento cubista. Apesar de seu ponto de vista ser exagerado, polêmico e em parte falso a
cerca da definição do que é o cubismo, Gleizes toca muitas vezes em problemas fundamentais da
estética cubista. Um deles diz respeito à ideia de quadro-objeto. Em seu livro Etapas da Arte
Contemporânea: Do cubismo ao neoconcretismo, Ferreira Gullar transcreve as palavras de
Albert Gleizes que definem o quadro-objeto:
O quadro-objeto não será mais uma redução ou uma ampliação dos espetáculos
exteriores, tampouco será uma enumeração de objetos ou de acontecimentos
transportados de um meio onde existem verdadeiramente a outro onde não são mais que
aparências. Será um fato concreto. Terá sua independência legítima, como toda criação
natural ou não; não conhecerá outra escala que não a sua própria, não despertará a ideia
de comparação por semelhança. (GLEIZES apud GULLAR, 1999: 63)
Em face dessas declarações, podemos afirmar que as palavras de Gleizes pretendiam ser
mais uma tomada de posição frente à produção artística impressionista, já esgotada, e uma

Graduando em História da Arte na Escola de Belas Artes da UFRJ, bolsista PIBIAC/UFRJ.
140
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
tentativa de consolidar a arte dita abstrata, do que ser um divisor de águas entre tradição e
modernidade. No entanto, elas já constituem um prelúdio às transformações e rompimentos com
o conceito de quadro, representação e espaço tradicionais, que só tomariam forma de fato no
Neoplasticismo.
As ideias de Gleizes de certa forma lembram a posição tomada por Theo Van Doesburg,
um dos principais artistas integrantes do movimento De Stijl, quando procurou uma nova
definição para a arte abstrata, referindo-se a ela como arte concreta, porém sem nada acrescentar
à problemática da arte abstrata, diferentemente das colocações de Mondrian, através de sua arte
ou seus escritos. Essa posição de Doesburg somente teria influência anos à frente, quando as
pesquisas no campo artístico se direcionaram para uma arte dita construtiva e, segundo Gullar,
contribuíram para a exacerbação racionalista dos concretistas. Ao afirmar que “nada é mais
concreto, mais real que uma linha, uma cor, uma superfície” (DOESBURG apud GULLAR,
1999: 168), Doesburg atribuía à forma uma condição de realidade, desligando-a de seu contexto
significativo geral, numa posição que conduziria a uma objetividade entre o artista e a forma,
semelhante à do cientista e a natureza.
De modo geral, essas tomadas de posição, sejam a de Gleizes ou anos depois a de
Doesburg, representam uma crise frente a um sistema de representação e de um espaço
tradicional que já não dava mais conta da experiência moderna. A partir do cubismo e depois,
com o neoplasticismo, o espaço tradicional se rompe e o novo objeto passa a ser a presença
material da tela. A arte concreta, entretanto, dá pouco ou nenhum seguimento às pesquisas em
torno da questão do objeto nas artes visuais depois das pesquisas da Bauhaus e do movimento De
Stijl. Os concretistas propunham a criação de uma arte baseada em concepções matemáticas e
perceptivas, cujo processo criador começaria na imagem-ideia e resultaria na imagem-objeto.
Segundo uma citação de Tomás Maldonado, transcrita em Etapas da Arte Contemporânea por
Ferreira Gullar, este processo de criação concreta se resumiria em tornar uma teoria matemática
um objeto visual traduzido para um quadro.
No Brasil e na América Latina em geral, o projeto construtivo europeu foi retomado e
transformado em um projeto de vanguarda, sendo que em solo brasileiro, esse projeto foi
implementado em meio a um cenário artístico ainda, até certo ponto, pré-moderno, dominado
pelas figuras de Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Segall e Pancetti. Um cenário onde as
questões fundamentais da arte moderna ainda não tinham se desenvolvido de maneira madura,
estando limitadas apenas a algumas soluções inteligentes aplicadas a obras de alguns artistas.
141
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
No projeto concretista brasileiro, identifica-se uma vontade de superação do
subdesenvolvimento e do atraso tecnológico, em uma tentativa de modernização do país. Em um
de seus artigos, O paradoxo concretista de 1959, Mario Pedrosa sinaliza esse desejo
desenvolvimentista enaltecendo a “gramática concretista” e colocando-a como fator de
transformação da qualidade artesanal e mesmo estética da arte brasileira, inclusive da industrial,
além de sinalizar uma melhora significativa nas artes gráficas, que demonstrariam agora,
segundo ele, um aspecto menos “provinciano” (PEDROSA, 2007: 25).
Na busca intensificada da racionalização dos processos artísticos e culturais, processos
produzidos a partir da realização de relações formais e cromáticas previamente definidas pela
teoria da Gestalt, seguindo um esquematismo reducionista, o concretismo acabou por fazer com
que a maior parte de sua produção fosse composta por exercícios ópticos. Assim, de simples
manipulação das descobertas da Gestalttheorie, acusa-se a arte concreta de tornar-se uma prática
acadêmica, guiada por regras e medidas rígidas.
A reação neoconcretista a esses aspectos dogmáticos concretistas acabaria por causar a
retomada das pesquisas em torno das questões do objeto, que ocasionariam, de fato, o
rompimento dos conceitos tradicionais de quadro e escultura. Considerando as leituras de Gullar
e também de Pedrosa, este rompimento atinge sua maior realização nos trabalhos de Lygia Clark,
nos quais a artista enfoca o quadro como um todo orgânico, atribuindo significação à moldura e
enfrentando-o não como um apoio para representação, mas como um objeto-símbolo.
A partir das experiências neoconcretas, Ferreira Gullar publica a teoria do não-objeto em
uma edição do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil como contribuição à II Exposição
Neoconcreta. Em seu Diálogo sobre o não-objeto, Gullar justifica esse nome como algo não
pertencente à pintura nem à escultura, desprovido de elementos de uma arte representativa e que
tem como condição de existência o fator de transformação espacial, resultado de um trabalhar e
refundar do espaço, como renascer permanente da forma e do espaço. Diferente do quadro-objeto
cubista, o não-objeto teorizado por Gullar é algo que já constitui uma teoria consolidada, mas
nada nos impede de traçarmos um estudo comparativo entre ambos, partindo da premissa de que
o estudo de um objeto pode ocasionar maior entendimento do outro.
A obra pictórica de Gleizes jamais conseguiu alcançar a independência por ele exigida
para a obra cubista. Sua produção, inicialmente voltada mais para o cubismo analítico, traz
simples estilizações, como por exemplo, em sua tela Mulheres Costurando, onde ele desestrutura
a figura feminina e os objetos representados. Mesmo alcançando a abstração, Gleizes mantém
seu compromisso com a estilização exterior, como na obra Em um Veleiro. Logo, o conceito de
142
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
quadro-objeto, como fato concreto, independente da figuração, não se vê realizado em suas
obras, que sempre partem de um objeto real, existente, para a sua estilização ou abstração, sem
chegar a compreender as experiências de Braque, por exemplo, que introduziu a colagem de
objetos diretamente na tela.
O quadro-objeto cubista, segundo Gleizes, ainda afirma-se como quadro tradicional (e
necessita disso para se fazer valer como obra), apesar de não corresponder exatamente a nenhum
objeto exterior e não suscitar comparações por semelhança. Já quanto ao não-objeto
neoconcretista, este abdica da base na escultura e integra a moldura ao quadro, eliminando assim
todos os elementos tradicionais da pintura e da escultura para inserir-se diretamente no espaço.
Nesse ponto, “pintura” e “escultura” mesclam-se no não-objeto, e isso acaba por gerar discussões
sobre a atribuição dessas antigas nomenclaturas tradicionais às produções neoconcretas. Mario
Pedrosa, em dois de seus artigos a respeito da obra de Lygia Clark, Significação de Ligia Clark e
Lygia Clark, ou o fascínio do espaço, faz dois pequenos apontamentos em torno desta
problemática.
Em Significação de Ligia Clark, Mario Pedrosa trabalha inicialmente a problemática da
escultura na arte moderna para em seguida partir para as descobertas de Lygia Clark, descobertas
que decorrem de longas pesquisas e experimentações que conduziriam a artista a rebelar-se
contra as formas seriadas concretistas e a integrar a moldura ao quadro para, em seguida,
desestruturar a noção mesma de quadro. Lygia rebate a visão puramente óptica concretista, para
desejar uma interação entre espectador e obra e uma procura por compor um espaço, colocando
dessa maneira, segundo Pedrosa, um problema de escultor.
Já em Lygia Clark, ou o fascínio do espaço, Pedrosa discorre sobre a descoberta que a
artista chama de “linha orgânica”. Não diferentemente do outro artigo, Pedrosa nos fala da
aproximação de Lygia com a arquitetura e seu interesse pelos problemas de “integração das
artes”, porém aqui, ele trata de analisar como ela conduziria suas possíveis influências e contatos
com as obras de Josef Albers, mestre da Bauhaus, para realizar suas próprias experiências
plásticas. Experiências que culminariam na transformação do quadro em um todo orgânico,
armado e que permite ao espectador a produção de uma consciência fenomenológica efetiva, não
só sensorial e óptica.
Citado direta ou indiretamente em ambos os artigos, os Bichos de Lygia Clark
representam um resultado de experiências plásticas radicais e um desdobramento dos seus
Casulos. Seus Bichos combinam um todo orgânico com um dinamismo espacial, sendo não só
essencialmente não-objetos, pois transcendem os conceitos tradicionais de pintura e escultura
143
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
para se tornarem objetos híbridos, que se inserem no espaço e realçam valores plásticos,
arquitetônicos e escultóricos. O Bicho pede ao espectador uma relação nova, onde este coloca-se
também como criador, a cada movimento, pois no subir e descer das placas metálicas ele
desencadeia o modificar do objeto, que se transforma em algo novo a cada momento, o que
acaba por somar à questão da espacialidade o fator temporal. Por fim, o binômio temporalidade e
espacialidade constituiriam posteriormente dois fatores fundamentais na produção artística
contemporânea.
Referências Bibliográficas:
AMARAL, Aracy (org.). Projeto construtivo brasileiro na arte. Rio de Janeiro/São Paulo:
MAM/Pinacoteca do Estado, 1977.
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São
Paulo: CosacNaify, 2007.
GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea: do Cubismo ao Neoconcretismo. Rio de
Janeiro: Revan, 1999.
PEDROSA, Mario. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2004.
_____________.Dos Murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981.
_____________. Mundo, Homem, Arte em Crise. São Paulo: Perspectiva, 1986.
144
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
VEREDAS NO GRANDE SERTÃO:
APORTES DA HISTÓRIA DA ARTE PARA O ESTUDO DA CRIAÇÃO POPULAR
Everardo Ramos
No mundo ocidental, o interesse pela cultura e arte populares se inicia na Europa a partir
do fim do século XVIII, na confluência de dois movimentos de idéias. Por um lado, intelectuais e
artistas começam a criticar a cultura e a arte eruditas, desenvolvidas no âmbito das academias.
No campo artístico, o principal alvo dos ataques é a arte neoclássica, que passa a ser atacada em
várias frentes: os românticos criticam seu racionalismo exagerado, que explicaria o caráter frio e
calculado de suas obras; já no século XIX, os realistas condenam o artificialismo de suas
fórmulas e regras de representação, tão distantes do mundo real; os nacionalistas, enfim, chamam
a atenção para o caráter internacional das obras neoclássicas, que podiam ter as mesmas
características independentemente de terem sido feitas em Paris, Londres ou Berlim. Por outro
lado, com o progresso da Revolução Industrial e suas conseqüentes transformações sócioculturais, surge um sentimento coletivo de nostalgia do passado, que estimula um culto ao
mundo antigo, pré-industrial, onde a produção se dava de maneira essencialmente artesanal.
Nesse duplo contexto, as criações literárias e artísticas populares começam a se
apresentar, para os críticos da cultura erudita e da estética neoclássica, bem como para os
insatisfeitos com o novo mundo mecânico e industrial que se formava, como exemplos
privilegiados de arte espontânea, autêntica, nacional e pura, merecendo assim uma atenção
particular por parte de artistas e intelectuais (SCHAPIRO, 1941).
Esse interesse cresce muito e muito rapidamente, a ponto de estimular o surgimento, na
metade do século XIX, de uma nova “ciência”, especialmente dedicada a estudar as
manifestações culturais e artísticas das classes menos instruídas da sociedade: o folclore. Com
um programa essencialmente nacionalista e um discurso profundamente romântico, os
folcloristas passam, então, a registrar e descrever essas manifestações, considerando-as
reveladoras da verdadeira alma de uma nação. Ao mesmo tempo, se propõem a proteger e
preservar seu objeto de estudos, certos de que as produções populares são sempre vestígios de
um passado artesanal e que estão constantemente ameaçadas de desaparecimento em meio às
transformações do presente industrial (BELMONT, 2002).

Professor de História da Arte na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Natal), Doutor pela Université
Paris X – Nanterre (França).
145
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
As pesquisas de caráter verdadeiramente científico só surgiriam, no entanto, no século
XX, no âmbito das modernas Ciências Sociais, da Antropologia em particular. Distanciando-se
do discurso romântico e nacionalista dos folcloristas, busca-se, então, aprofundar a análise das
produções populares, inserindo-as em seus respectivos contextos sociais. Dos ritos comunitários
às festas urbanas, dos objetos utilitários às produções artísticas, todas as manifestações coletivas
passam a ser elementos para se estudar as práticas e os comportamentos das classes menos
favorecidas da sociedade, frequentemente consideradas subalternas e submissas. Introduzida e
disseminada nas universidades, a abordagem antropológica se tornaria referência para os estudos
sobre cultura popular, determinando ainda as formas de apresentação dessa cultura nos museus
especializados que se multiplicam em diversos países (CANCLINI, 2003).
Nascidas na Europa, essas diferentes correntes de pensamento, do Romantismo à
Antropologia, passando pelo Folclore, se espalhariam pelo mundo de tradição ocidental,
motivando e influenciando, em diferentes épocas e em diversos lugares, novas pesquisas sobre as
criações populares. No Brasil, é possível desenhar uma linha que, atravessando os séculos XIX e
XX, liga os nomes de José de Alencar, Sílvio Romero, Amadeu Amaral, Mário de Andrade, Luís
da Câmara Cascudo, Renato Almeida, Florestan Fernandes e Édison Carneiro, como intelectuais
que pesquisam a cultura e a arte populares sob influência – em maior ou menor grau – das idéias
e das metodologias advindas da Europa (AYALA e AYALA, 1987; ORTIZ, 1992; SQUEFF e
WISNIK, 1982; VILHENA, 1997).
Esse breve panorama dos estudos dedicados à arte popular ressalta, portanto, a ausência
de trabalhos realizados sob o ponto de vista específico da História da Arte, tanto no Brasil,
quanto na Europa. Sem se aprofundar nas razões que poderiam explicar essa ausência, o presente
trabalho se interessará mais em analisar suas conseqüências, tentando mostrar a importância de
uma abordagem especificamente histórica e artística para um maior conhecimento e uma melhor
compreensão das criações populares. Para isso, será analisado o exemplo de uma produção em
particular, a gravura popular brasileira.
O conhecimento sobre a gravura popular brasileira
No Brasil, as manifestações de interesse da cultura oficial pela gravura popular
começaram na metade do século XX, quando intelectuais do Nordeste “descobriram” as
ilustrações dos folhetos de cordel e passaram a promovê-la fora do universo da edição popular.
Em 1949, o folclorista Théo Brandão publicou um artigo na imprensa de Maceió em que chamou
a atenção para a obra de José Martins dos Santos, poeta que tinha improvisado xilógrafo para
146
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
ilustrar seus próprios folhetos. Três anos mais tarde, em 1952, surgiu o primeiro texto
inteiramente dedicado ao tema, publicado na imprensa do Recife pelo então jovem escritor
Ariano Suassuna (RAMOS, 2008). A essas iniciativas pioneiras se seguiram várias outras, na
década de 1960, incluindo novos artigos em periódicos, textos para folders de exposição e
prefácios de álbuns (iniciativas realizadas tanto no Brasil como no exterior), que fixaram os
conhecimentos iniciais sobre a gravura popular, legitimando-a como nova categoria da arte
brasileira (RAMOS, 2010a).
Esses conhecimentos se expandiram em novos estudos pontuais (SOBREIRA, 1984;
LUYTEN, 1982; PONTUAL, 1970; e QUEIROZ, 1982) e, na década de 1990, em trabalhos
mais aprofundados, desenvolvidos no âmbito de programas de pós-graduação de universidades
brasileiras, por pesquisadores formados no campo das Letras e da Comunicação, que chegaram
até a gravura através da literatura popular, graças às ilustrações dos folhetos de cordel
(CAMPELLO, 1999; CARVALHO, 1998; HATA, 1999; IGLESIAS, 1992). Tais trabalhos
analisaram capas de folhetos, álbuns de gravuras e gravuras independentes (estas últimas
surgidas para atender ao novo mercado consumidor de “arte popular”), pondo em evidência as
principais características das obras: a técnica artesanal da xilogravura, os temas ligados ao
imaginário e ao cotidiano nordestinos e as imagens extremamente estilizadas, definidas muitas
vezes como “primitivas” (il. 01). Também foram estabelecidas as biografias dos principais
xilógrafos, chamando-se a atenção para suas origens sempre muito humildes e o fato de terem se
iniciado na arte da gravura de forma improvisada, como autodidatas.
Este é o quadro que se apresentava quando a presente pesquisa foi iniciada, no âmbito de
uma tese de Doutorado sobre a gravura popular brasileira, realizada em uma universidade
francesa (RAMOS, 2005a). A intenção foi, então, abordar essa produção com os instrumentos da
História da Arte, analisando os contextos de criação e as obras com os objetivos e métodos da
disciplina. Sem poder relatar aqui todas as conclusões a que chegou essa tese, serão apresentadas
aquelas que podem evidenciar a contribuição desse tipo de abordagem para o estudo da criação
popular.
Redefinindo uma categoria
Desde o estudo de Liêdo Maranhão sobre as ilustrações e os ilustradores da literatura de
cordel (SOUZA, 1981), sabia-se que a gravura popular tinha surgido nas primeiras décadas de
século XX, nas capas dos folheto de cordel. No entanto, nem esse nem outros autores se
propuseram a analisar com mais atenção as origens dessas obras e seus primeiros
147
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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desenvolvimentos, na primeira metade desse século. Assim, o conhecimento produzido sobre a
gravura popular foi essencialmente produzido a partir das obras produzidas a partir de 1960,
principalmente aquelas que, participando das diversas ações promovidas por intelectuais e
instituições culturais (exposições, publicações, constituição de coleções, vendas), passaram a ser
reconhecidas como “obras de arte”, servindo de referência para conceitos e definições.
O presente trabalho se propôs a estudar toda a gravura popular brasileira, desde suas
origens até a produção mais contemporânea. Para isso, foram consultados diversos arquivos e
acervos de instituições públicas e privadas, bem como de particulares, em diversas cidades
brasileiras e estrangeiras1. Dessa investigação exaustiva resultou a constituição de um importante
corpus documental – representativo de diferentes momentos, lugares e tipos de obras – que
permitem redimensionar a história da gravura popular no Brasil.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a importância das ilustrações dos folhetos de cordel
publicados na primeira metade do século XX, época em que essa produção ainda não tinha
chamado a atenção dos estudiosos. Em Recife, berço e principal centro de edição do cordel nesse
período, destacam-se as obras realizadas por um autodidata que ficaria esquecido das pesquisas
sobre a gravura popular: Antônio Avelino da Costa, ou simplesmente Avelino, ilustrador oficial
de João Martins de Athayde, maior editor de literatura de cordel nos anos 1930-1940, cujos
folhetos eram distribuídos em todo Nordeste e, até, na região amazônica. Extremamente
chamativas e atraentes, ocupando toda a capa do folheto com desenhos e grafismos variados, à
maneira de outros tipos de impressos da época, tais ilustrações foram de fundamental
importância para o sucesso das publicações de Athayde, retendo a atenção e seduzindo os
compradores nas feiras e mercados populares (il. 02). E esse sucesso, por sua vez, contou muito
para consolidar a importância da literatura de cordel no cenário cultural brasileiro (RAMOS,
2008b).
Por outro lado, é possível recuar ainda mais no tempo, para encontrar as verdadeiras
origens da gravura popular, numa produção anterior aos folhetos de cordel. Trata-se dos
1
Instituições públicas e privadas: Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano (Recife), Biblioteca Amadeu
Amaral (Rio de Janeiro), Biblioteca Central Zila Mamede-UFRN (Natal), Biblioteca Pública Governador Menezes
Pimentel (Fortaleza), Bibliothèque nationale de France (Paris), Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro),
Fundação Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), Fundação Casa das Crianças de Olinda (Olinda), Fundação
Joaquim Nabuco (Recife), Fundação Memorial Padre Cícero (Juazeiro do Norte), Instituo Cultural do Vale
Caririense (Crato), Instituto de Estudos Brasileiros-USP (São Paulo), Instituo do Ceará (Fortaleza), Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (Natal), Musée d’Ethnographie (Neuchâtel), Museu da Imagem e do
Som de Pernambuco (Recife), Museu da Imagem e do Som do Ceará (Fortaleza), Museu de Arte da Universidade do
Ceará (Fortaleza), Museu Lauro da Escóssia (Mossoró). Arquivos e coleções privadas: Idelette-Muzart Fonseca dos
Santos (Paris), Liêdo Maranhão de Souza (Olinda), Lívio Xavier Júnior (Recife).
148
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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periódicos de imprensa publicados no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, em
diferentes cidades do Nordeste, cujas ilustrações antecipam as que seriam utilizadas nos livrinhos
de cordel, tanto em termos de técnica, quanto de temas e formas. É o que provam, por exemplo
as xilogravuras satíricas, de estilo popular, publicadas em jornais políticos do Recife nos anos
1830-1840 (il. 03), que estão dentre os mais antigos exemplos de imprensa ilustrada no Brasil
(RAMOS, 2009). Essas novas obras obrigam, então, a uma revisão conceitual o objeto de estudo:
para além do folheto de cordel, a gravura popular corresponde, na verdade, em sua forma
tradicional, à ilustração de impressos baratos de vários tipos, todos destinados a um público
extremamente largo. Vê-se, portanto, que o exemplo brasileiro se aplica perfeitamente à
definição corrente na Europa, onde a categoria “gravura popular” engloba ilustrações de
diferentes impressos de grande circulação, publicados entre os séculos XVI e XIX (il. 04).
Assim, graças ao trabalho do historiador da arte, é possível revelar novas obras, novos
autores e uma nova cronologia que permitem não apenas reescrever a história, mas também
propor novas definições para a gravura popular no Brasil.
Princípios de criação popular
A maioria dos estudos sobre a gravura popular brasileira se concentrou em suas relações
com a literatura de cordel e com o imaginário nordestino, ignorando ou abordando de maneira
insuficiente suas especificidades enquanto manifestação artística, reveladora de processos
criativos particulares. No âmbito da presente pesquisa, sem desconsiderar as importantes
conclusões a que chegaram os estudos anteriores, privilegiou-se justamente o caráter
especificamente artístico dessa gravura, analisando-se cuidadosamente as características internas
das obras, tanto técnicas, quanto iconográficas e estilísticas, segundo os métodos comumente
utilizados nos estudos de História da Arte.
Nessa nova perspectiva, as análises revelam dados novos e bastante significativos.
Contrariamente à idéia que prevalece no senso comum, a gravura popular, realizada por
autodidatas, não corresponde apenas a xilogravuras rústicas, representando temas regionais com
formas primitivas, tal como se apresentam a maioria das obras realizadas na segunda metade do
século XX (il. 01). Na primeira metade deste século, ela corresponde também às zincogravuras
desenhadas por Avelino e gravadas, por processos mecânicos, nas gráficas bem equipadas do
Recife, representando temas diversos (urbanos, poéticos, cômicos, segundo a própria variedade
da literatura de cordel), em um estilo naturalista muito influenciado pela estética da caricatura
(observe-se, por exemplo, os personagens com cabeça desproporcional em relação ao corpo, il.
149
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
02)2. No mesmo período, mas em Juazeiro do Norte, no Ceará, outro grande centro de edição de
cordel, a gravura popular corresponde, ainda, a obras extremamente refinadas, que imitam e
copiam as obras do Recife, mas reproduzindo as imagens na madeira, já que as gráficas locais,
rudimentarmente equipadas, não permitem realizar as zincogravura semi-mecânicas (il. 05).
Por outro lado, detendo-se com cuidado nas imagens produzidas, o olhar do historiador
da arte revela elementos essenciais para se compreender melhor seus processos de criação. Um
princípio de base se destaca: o da cópia de modelos prévios, oriundos de fontes diversas. Às
vezes, tais modelos são apenas pressentidos, como é o caso das zincogravuras dos jornais
licenciosos publicados no início do século XX, no Recife, que muito provavelmente copiam
fotografias importadas da Europa, representando mulheres nuas e em poses estudadas (il. 06).
Uma investigação exaustiva permite, no entanto, determinar com precisão outros modelos
originais, como provam diversos exemplos de ilustração de folhetos de cordel, tanto em
zincogravura como em xilogravura, cujas imagens são cópias fiéis de quadros eruditos, de
folhinhas de oração, de periódicos da imprensa e, mesmo, de outras capas de folhetos de cordel 3
(il. 07 e 08).
A prática recorrente e generalizada da cópia não significa, porém, que a criação popular
se resume a uma reprodução estéril de modelos prévios, que impede qualquer análise estilística.
Muitas vezes, detalhes na imagem copiada traem a mão de quem copiou, revelando assim
mecanismos complexos de apropriação e transformação de modelos. Veja-se, por exemplo, as
xilogravuras de Mestre Noza, do Ceará, que apresentam sempre personagens com o mesmo
biótipo (boca pequena, nariz pontudo, grands olhos amendoados, corpo com pouquíssimos
detalhes), mesmo quando a imagem é copiada de uma fotografia 4 (il. 09). Por outro lado, as
cópias sucessivas favorecem a modificação progressiva de uma imagem original, como mostra
uma série de xilogravuras criadas sucessivamente a partir de uma fotografia, em que o motivo
inicial – um casal abraçado que sorri e se mira, com um buquê de flores – vai se tornando cada
vez mais estilizado, até que os dois personagens se tornam como gêmeos de traços idênticos (il.
10).
Interessa notar, ainda, que os processos acima definidos não são exclusivos da gravura
popular brasileira, mas podem ser identificados também na gravura popular européia, como
2
As ilustrações deste trabalho apresentam folhetos publicados na segunda metade do século XX, mas com gravuras
realizadas na primeira metade deste século. As atribuições que forem indicadas nas legendas das ilustrações
resultam de análises aprofundadas, realizadas no âmbito da tese de Doutorado (RAMOS, 2005a).
3
Os diversos motivos que explicam a prática da cópia na gravura popular são analisados em RAMOS (2005b), p.
91-129.
4
Vale salientar que a biografia de Mestre Noza ajuda a entender como se formou o estilo artístico expresso em suas
gravuras, como foi analisado em outro estudo (RAMOS, 2010b).
150
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atestam exemplos de cópia de modelos originais e de transformação desses modelos (il. 04).
Essas situações tão semelhantes, em contextos cronológicos e geográficos tão distintos,
possibilitam, assim, uma nova compreensão da criação popular em geral, ressaltando princípios
que parecem guiar – mesmo que de forma inconsciente – o trabalho dos criadores populares.
Nova interpretações
Surgida, como categoria de pesquisa e investigação, em um momento de crítica à cultura
erudita, a arte popular quase sempre foi considerada o avesso da arte oficial. Assim, se esta é
pensada como uma manifestação perfeitamente fincada na história de uma sociedade, a arte
popular é muitas vezes concebida como uma manifestação atemporal, cujas origens se perdem
num passado longínquo e cuja evolução ocorre às margens dos fatos que fazem a História. Do
mesmo modo, se desde o Renascimento a arte oficial é associada à criação individual de sujeitos
autônomos, que reivindicam a autoria de suas obras e são reconhecidos por ela, as produções
populares são definidas muitas vezes como criação coletiva, de sujeitos que compartilham
técnicas, temas e estilos comunitários, trabalhando de maneira anônima. Enfim, enquanto a arte
oficial é entendida como resultado dos progressos da civilização, devendo muito à noção de
inovação, a arte vernacular é vista como naturalmente avessa à idéia de modernidade, seu destino
sendo o de perpetuar modelos antigos e arcaicos, baseando-se exclusivamente na noção de
tradição. Tais pressupostos nasceram com os folcloristas, no século XIX, mas até hoje perduram
na maioria dos estudos sobre cultura e arte populares.
No caso da gravura popular brasileira, a esses pressupostos de base foram acrescidos
outros, de ordem histórico-geográfica: além de expressar as características “inerentes” a toda arte
popular, a gravura se explicaria também pelas condições sócio-culturais do local onde nasceu e
se desenvolveu, o Nordeste brasileiro, região onde a recusa da modernidade e o apego ao atraso
teriam provocado a manutenção de uma categoria tão arcaica quanto a xilogravura artesanal, de
temas essencialmente regionais e formas predominantemente rústicas. As reflexões feitas em
torno dessa produção, partindo do conceito de “identidade nordestina” como o avesso do
cosmopolita, do industrial e do moderno (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999), serviram, então,
para descartar as zincogravuras semi-mecânicas, com imagens não regionais e formas não
rústicas, do movimento de valorização e promoção da gravura popular na segunda metade do
século XX (RAMOS, 2010a).
A presente pesquisa vem, no entanto, contrariar esses significados. Não é correto associar
a arte popular em geral, e a gravura popular brasileira em particular, apenas ao que se enquadra
151
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nos conceitos definidos pelos folcloristas desde o século XIX e pelos construtores da identidade
nordestina no século XX. Essa arte e essa gravura não correspondem apenas ao artesanal, ao
regional, ao anedótico, ao rústico, ao naif, ao primitivo. Superando limitações materiais e
simbólicas, improvisando meios e recursos, elas podem perfeitamente se inserir no curso da
História, perpetuando técnicas, temas e formas do passado, mas também se abrindo ao novo e
incorporando os frutos da modernidade, sob a ação individual, criativa e transformadora dos
criadores populares. Essa capacidade de adaptação, essa liberdade de poder estar entre o antigo e
o atual, entre o individual e o coletivo, entre o único e o múltiplo seria mesmo uma das
principais características dessa arte e de seus artistas.
Como veredas num grande sertão, os objetivos e métodos da História da Arte
representam, portanto, novas alternativas e novas perspectivas para o estudo das produções
populares, possibilitando um redimensionamento – tanto histórico, quanto artístico – de obras e
autores que se desenvolvem às margens do sistema oficial, mas inteiramente integrados na
dialética da criação.
Referências bibliográficas:
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Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas-UNICAMP,
Campinas.
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SCHAPIRO, Meyer. Courbet and Popular Imagery: An Essay on Realism and Naïveté. Journal
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SOBREIRA, Geová. Xilógrafos do Juazeiro. Fortaleza: Edições da Universidade Federal do
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SQUEFF, Ênio e WISNIK, José Miguel. O nacional e o popular na cultura brasileira. São
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VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947 –
1964. Rio de Janeiro: Funarte/Fundação Getúlio Vargas, 1997.
LEGENDAS DAS ILUSTAÇÕES:
S. l.: sem lugar de edição
S. ed.: sem editor
S. d.: sem data de edição
Col.: coleção ou acervo
As atribuições aparecem [entre colchetes]
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Il. 01. Ilustrações de folhetos de cordel:
a. Xilogravura de J. Borges. In: Discussão dum fiscal com uma fateira. Bezerros: Folhetaria
Borges, s. d. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
b. Xilogravura anônima. In: Segunda queixa de Satanás a Cristo sobre a corrução no mundo. S.
l.: Vicente Vitorino de Melo, s. d. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
c. Xilogravura de Dila. In: Senhô Ferreira e o Negro Furacão. Caruaru: Folhetaria Borges, s. d.
Col. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
d. Xilogravura anônima. In: Dalvina a Moça que teve o filho do Diabo. Guarabira: J. A. Pontes,
1973. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
Il. 02. Ilustrações de folhetos de cordel:
a. Zincogravura [de Avelino]. In: A cura da quebradeira. Juazeiro do Norte: Tipografia São
Francisco, s. d. Col. Instituto de Estudos Brasileiros/USP (São Paulo).
b. Zincogravura [de Avelino]. In: Ai se o passado voltasse. Juazeiro do Norte: Tipografia São
Francisco, 1954. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
c. Zincogravura [de Avelino]. In: O estudante que se vendeu ao Diabo. Juazeiro do Norte: Filhas
de J. Bernardo da Silva, 1978. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
d. Zincogravura [de Avelino]. In: O casamento do calangro. Juazeiro do Norte: Filhas de J.
Bernardo da Silva, 1980. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
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Il. 03. Ilustrações de periódicos:
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a. Xilogravura anônima. In: O Carcundão. Recife, 25/04/1831. Col. Fundação Biblioteca
Nacional (Rio de Janeiro).
b. Xilogravura anônima. In: O Gallego. Recife, 15/12/1849. Col. Arquivo Público Estadual
Jordão Emereciano (Recife).
c. Xilogravura anônima. In: Marmota. Recife, 12/04/1844. Col. Arquivo Público Estadual Jordão
Emereciano (Recife).
d. Xilogravura anônima. In: Marmota. Recife, 24/04/1844. Col. Arquivo Público Estadual Jordão
Emereciano (Recife).
Il. 04. Ilustrações de impressos populares europeus:
a. Xilogravura anônima. In: Exemplaire punition du violement et assassinat commis par
François de la Motte (…). S. l., s. ed., 1607. Col Bibliothèque Nationale de France (Paris).
b. Xilogravura anônima. In: La triste et lamentable complainte du Capitaine La Quinte (…).
Douai, s. ed., 1608. Col Bibliothèque Nationale de France (Paris).
c. Calcogravura anônima. In: Charles Philippe Comte d’Artois. Paris: Basset, [entre 1815 e
1824]. Col. Musée des Civilisations de l’Europe et de la Méditérranée (Marselha).
d. Xilogravura anônima. In: Sem título. Nantes: s. ed., s. d. Col. Musée des Civilisations de
l’Europe et de la Méditérranée (Marselha).
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Il. 05. Ilustrações de folhetos de cordel:
a. Xilogravura de [Damásio Paulo]. In: História de Juvenal e Leopoldina. Juazeiro do Norte:
Tipografia São Francisco, [anos 1950]. Col. Museu de Arte da Universidade do Ceará
(Fortaleza).
b. Xilogravura de [Damásio Paulo]. Antiga ilustração do folheto História de João de Calais. S.
d. Col. Museu de Arte da Universidade do Ceará (Fortaleza).
c. Xilogravura de [João Pereira da Silva]. Antiga ilustração do folheto Lourival e Eunice. S. d.
Col. Museu de Arte da Universidade do Ceará (Fortaleza).
d. Xilogravura de [João Pereira da Silva]. In: Historia de Carlos e Adalgiza. Juazeiro do Norte:
J. Bernardo da Silva, 1956. Col. Museu de Arte da Universidade do Ceará (Fortaleza).
Il. 06. Ilustrações de periódicos:
a. Zincogravura de Benevenuto Teles. In: O Quengo. Recife, 08/05/1903. Col. Arquivo Público
Estadual Jordão Emereciano (Recife).
b. Zincogravura anônima. In: O Periquito. Recife, 08/01/1902. Col. Arquivo Público Estadual
Jordão Emereciano (Recife).
c
e
d.
Fotografias
eróticas
francesas
do
início
do
século
XX.
Obtidas
em
http://1900.acextreme.com (acesso em 15/10/2011)
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Il. 07. Exemplos de cópias de imagens:
a. Edmund Blair Leighton. The Accolade. Óleo sobre tela, 1901. Col. Particular.
b. Zincogravura [de Avelino]. In: A pérola sagrada. Juazeiro do Norte: Filhas de J. B. da Silva,
1976. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
c. Fotografia. In: O Dia. Rio de Janeiro, 18/06/1977. Col. particular.
d. Xilogravura de José Costa Leite. In: O Monstruoso crime de Serginho, em Bom Jesus de
Itabapoana, Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apolônio Alves dos Santos, 1977. Col.
particular.
Il. 08. Exemplos de cópias de imagens:
a. Zincogravura anônima. In: História Sagrada – As sete espadas de dores de Maria Imaculada.
Campina Grande: Estrela do Oriente, 1976. Col. particular.
b. Xilogravura de Antônio Batista Silva. In: Novena do Desterro de Jesus, Maria e José. S. l: s.
ed., s. d. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
c. Folhinha de oração. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. [São Paulo]: Paulinas, s. d. Col.
particular.
d. Xilogravura de João Pereira da Silva. Antiga ilustração de folheto não identificado. S. d. Col.
particular.
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Il. 09. Ilustrações de folhetos de cordel:
a. Zincogravura anônima. In: As grandes aventuras de Armando e Rosa conhecidos por “Côco
Verde” e “Melancia”. Juazeiro do Norte: Filhas de J. B. da Silva, 1976. Col. particular.
b. Xilogravura de Mestre Noza. Antiga ilustração de folheto não identificado. S. d. Col.
particular.
c. Xilogravura de [Mestre Noza]. In: O encontro da velha que vendia tabaco com o matuto que
vendia fumo. S. l.: s. ed., s. d. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
d. Antiga ilustração de folheto não identificado. S. d. Col. particular.
Il. 10. Ilustrações de folhetos de cordel:
a. Zincogravura anônima. In: História de Paulino e Madalena. Juazeiro do Norte: Filhas de J. B.
da Silva, 1977. Col. Biblioteca Central Zila Mamede (Natal).
b. Xilogravura anônima. Antiga ilustração de folheto não identificado. [Antes de 1960]. Col.
Museu da Universidade do Ceará (Fortaleza).
c. Xilogravura anônima. In: Lourival e Teresinha. S. l.: s. ed., s. d. Col. particular.
d. Xilogravura anônima. Antiga ilustração de foheto não identificado. [Antes de 1960]. Col.
Museu da Universidade do Ceará (Fortaleza).
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SÃO JERONIMO NOS TROPICOS
O UN SAVANT TRAVAILLANT DANS SON CABINET DE DEBRET
Fernando Morato
Este trabalho começa com uma curiosidade de minha parte: trabalhando há alguns anos
com a obra do poeta neoclássico brasileiro Manuel Inácio da Silva Alvarenga, de quem não
existe nenhum retrato, deparei-me com a imagem do Un savant travaillant dans son cabinet
(Imagem 1) de Jean-Baptiste Debret na capa do primeiro volume da História da vida privada
no Brasil e achei que ela casava bastante bem com a situação que deveria ser vivida pelo poeta,
idealizador da Sociedade Literária do Rio de Janeiro (na qual se leram algumas memórias
científicas), dono de um pequeno museu em sua casa1 e da maior biblioteca privada do país. Foi
essa fantasia anacrônica que me levou a procurar conhecer algo a mais a respeito da imagem de
Debret e imaginar que, mesmo sendo impossível o contato deste com Silva Alvarenga (que
morreu em 1814, enquanto o pintor só chegou ao Brasil em 1816), ele havia captado de maneira
interessante o ambiente imaginário de um intelectual no Brasil do fim da Colônia e início do
Império.
Um fato curioso a respeito da imagem do Savant travaillant é que ela é uma das diversas
aquarelas preparatórias que não foram transformadas em litografias para a publicação dos três
volumes da Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d’un artiste français au Brésil ,
depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement. (Paris, 1834-36). Para as 220 litografias que ilustram a
obra, foram feitas 250 aquarelas ao longo da viagem que Debret realizou pelo país imaginando
uma alternativa rentável para o fracasso do projeto da Academia de Belas Artes do Rio de
Janeiro.
Essas aquarelas permaneceram desconhecidas por muito tempo, até serem descobertas
pelo bibliófilo e colecionador de arte Raymundo Ottoni de Castro Maya em Paris, nos anos 1930.
O marchand de arte Roberto Heymann mantinha contato com os herdeiros de Debret e
intermediou a compra do acervo do pintor, incluindo papéis, esboços e as aquarelas. Assim, elas
passaram a fazer parte da Coleção Castro Maya e foram finalmente expostas. Mas o que me

1
Fernando Lima e Morato é professor de Literatura e mestrando em Teoria e História Literária na Unicamp
BARBOSA, Januário de Cunha. “Doutor Manoel Ignacio da Silva Alvarenga (Biographia dos Barsileiros
distinctos por Letras , Armas, Virtudes, etc). in Revista Trimestral de Historia e Geographia ou jornal do
Instituto HIstorico e Geographico Brasileiro. Rio de Janeiro, na Typographia de D. L. dos Santos, 1841.
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interessa é o fato de o “savant travaillant” não ter sido convertido em litografia para ilustrar a
viagem que Debret fez pelo Brasil.
Há alguns aspectos em que a imagem destoa das outras que compõem o conjunto. Um
primeiro é a coloração da aquarela: composta basicamente por tons terrosos, a aquarela se opõem
às cores brilhantes que dominam a maior parte das outras imagens. A vivacidade das cores
exteriores (como, por exemplo a Cena de carnaval) contrasta nitidamente com esta pálida cena
de interior. Mas isto não é suficiente para justificar a diferença, porque mesmo em outras cenas
de interior a paleta é reconhecivelmente mais colorida, como na Visita a uma fazenda.
A predominância de tons de marrom no chão e nos móveis ajuda a apagar a pequena
possibilidade de vivacidade que o amarelo do camisão que o Savant usa poderia trazer á
composição, e mesmo a pálida luz que entra pela janela se anula pelo emprego de cinza nas
paredes. Toda a aquarela transite um melancólico repouso através do seu quase
monocromatismo. Repouso que se reforça através da composição, que também destoa do
conjunto da Voyage pittoresque. Enquanto o Savant descansa solitário sobre a rede no meio do
quarto vazio, a maior parte das demais imagens coloca em cena um conjunto de personagens em
movimento ou pelo menos em interação. São poucas as aquarelas em que haja apenas uma
personagem (em especial, parada), e menor ainda o número de litografias. Mesmo nas cenas de
interior, que favoreceriam o isolamento de personagens, Debret prefere a introdução de um
conjunto variado de figuras (um pouco para permitir a representação de diversos aspectos do dia
a dia brasileiro em um único quadro), como acontece em Une dame d’une fortune ordinaire dans
son intérieur au milieu de ses habitudes journalières (Imagem 2) ou em Um après dîner d’été
(Imagem 3). A aproximação destas duas imagens ao Savant pode ajudar a revelar alguns pontos
interessantes.
O interesse na aproximação destas três aquarelas se deve não apenas porque são todas
cenas de interior, mas também porque, em alguma medida, são representações de atividades
intelectuais, enquanto a maior parte das aquarelas e litografias se dedicam a outros aspectos da
vida brasileira.
Mas mesmo esta aparente semelhança apresenta um contraste flagrante: o sentido que as
atividades intelectuais assumem. Debret faz acompanhar suas litografias de comentários
explicativos para o leitor europeu, desconhecedor dos hábitos e costumes dos trópicos, e, ao
mencionar os hábitos intelectuais, é enfático na sua desqualificação. A legenda que acompanha
Une dame d’une fortune ordinaire é a seguinte:
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“O sistema dos governadores europeus, nas colônias portuguesas, tende constantemente a
deixar a população brasileira privada de educação e isolada na escravidão de seus hábitos
rotineiros. Isso levou a educação das senhoras ao simples cuidado de sua faina doméstica:
assim, desde nossa chegada ao Rio de Janeiro, a timidez, resultado da falta de educação,
reduziu as senhoras nas reuniões mais ou menos numerosas e, ainda mais, impediu toda
espécie de comunicação com os estrangeiros.
“Então, tentei captar essa solidão habitual desenhando uma mãe de família, de pequenas
posses, em seu lar, onde a encontramos sentada, como de hábito, sobre uma marquesa
(...), lugar que serve, de dia, como sofá fresco e cômodo em um país quente, para
descansar o dia inteiro, sentada sobre as pernas, à maneira asiática. Imediatamente ao seu
lado bem ao alcance se encontra o gongá (paneiro) destinado a conter os trabalhos de
costura; entreaberto, deixa à mostra, a extremidade do chicote enorme feito inteiramente
de couro, instrumento de castigo com o qual os senhores ameaçam seus escravos a toda
hora. Do mesmo lado, um pequeno mico-leão, preso por uma corrente a um dos encostos
desse móvel, serve de inocente distração á sua dona (...) A criada de quarto, mulata,
trabalha sentada no chão aos pés da madame – a senhora. É reconhecido o luxo e as
prerrogativas dessa primeira escrava pelo comprimento de seus cabelos cardados, (...)
penteado sem gosto e característico do escravo de uma casa opulenta. A menina no centro
à direita, pouco letrada, embora já crescida, conserva a mesma atitude de sua mãe, mas
sentada numa cadeira bem menos cômoda, e esforça-se por ler as primeiras letras do
alfabeto traçadas sobre um pedaço de papel.(...)”2
Mãe e filha são “pouco letradas” ou “sem educação”, e quando se esforçam no sentido de
alguma atividade, ou é a menos nobre (a “simples faina doméstica”) ou é ao custo de alguma
dificuldade. Isso não impede uma composição bem mais viva e dinâmica que a do Savant: o tom
azul claro do fundo acompanha a pequena diagonal que desce da esquerda, da mãe sentada na
marquesa, em direção à filha na cadeira, mas é pontuado pela presença de escravos negros,
inclusive o que entra pelo lado direito da composição. O marasmo da atividade é acompanhado
pelo discreto sorriso da dama e pela movimentação das crianças no chão, o que diminui bastante
a possível monotonia da atividade. Isso sem contar os toques de azul intenso que se equilibram
nos extremos da composição e o tecido estampado que reverbera da dama no escravo sentado à
direita.
2
BANDEIRA, Júlio. Debret e o Brasil: obra completa 1816 – 1831 Rio de Janeiro, Capivara, 2008
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Toda esta composição é marcada por dinamismo, tanto cromático quanto composicional,
da mesma maneira que ocorre em Um après dîner d’été. O texto de Debret que acompanha a
litografia insiste de modo mais enfático na precariedade da vida intelectual tropical:
“Na França, a conversação ao final da refeição torna-se mais generalizada e mais alegre,e
prepara um amável pós-jantar; cuja amenidade cresce com a aproximação produzida entre
os convivas à mesa, distribuídos com discernimento pelo dono da casa, de modo a fazer
nascer ou reavivar entre eles uma ligação geralmente baseada no interesse ou na afeição.
Esse amável ambiente passa da mesa ao salão e é compartilhado pelas senhoras que dão
brilho ao círculo, e assegura o charme de um anoitecer cuja lembrança será preciosa.
Assim se desenvolve a vida social sob um clima temperado, que garante uma atividade
infatigável
“Mas isso não é possível na ardente América. No Rio de Janeiro, por exemplo, onde o
brasileiro rico deixa a mesa no momento em que o clima, aquecido após seis ou sete
horas, estende sua influência abafadora até o interior das habitações e, com a boca
abrasada pelo estimulante dos temperos e o céu-da-boca queimado pelo café fervendo, já
semidespido, procura, quase em vão, a sombra e o repouso, ao menos durante duas ou
três horas. Afinal adormecido, banhado de suor, desta vez sem se dar conta, acordado lá
pelas seis da tarde, momento mais fresco em que começa a viração.
“Agora, com a cabeça um pouco pesada, cansado pelo trabalho da digestão, manda trazer
um enorme copo d’água, que bebe, enxugando lentamente o suor que escorre em seu
peito. Retomando pouco a pouco os seus sentidos, escolhe uma distração agradável que
lhe ocupe até o cair da noite, momento em que , fazendo sua toalete, se prepara para
receber as visitas, ou sai de casam a qual examinaremos mais tarde em detalhe. (...) É
muito natural que, sob uma temperatura que se eleva até 45 graus, sob um sol
insuportável durante seis a oito meses do ano, o brasileiro tenha adotado o uso da varanda
em suas construções; também encontrada, embora de forma mais simples, na mais pobre
habitação. (...) Gozando assim, durante grande parte do dia, de todas as vantagens de
liberdade prescritas pelo calor do clima, o brasileiro jovem e rico, filho mimado da
natureza, desenvolve talentos agradáveis, apreciados nas reuniões noturnas, onde brilha o
luxo europeu e cujo ambiente ele completa com o charme de sua música.”
Aqui, da mesma forma que na Une dame d’une fortune ordinaire, o contraste entre a
descrição d a completa entrega que o calor excessivo causa com o dinamismo da composição da
aquarela é flagrante. Mesmo descrito como “afinal adormecido, banhado de suor, desta vez sem
se dar conta, acordado lá pelas seis da tarde, momento mais fresco em que começa a viração”, o
168
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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personagem despojado que está deitado no centro da composição passa mais uma sensação de
leve despreocupação, com a perna erguida e a atenção presa no livro, que de imobilidade. O
tecido estampado levemente aberto da sua camisola ecoa no da figura que bebe água à direita,
nas moringas de água e nas plantas do primeiro plano. O equilíbrio entre as duas figuras dos
extremos é contrabalançado pelo esguio apoiar-se da personagem que toca violão ao fundo. O
que poderia gerar um ambiente de prostração é equilibrado pela sequência de linhas verticais que
pontua a composição (da esquerda para a direita: coluna e um pequeno muro, a quina da parede,
as roupas penduradas num cabide, a mureta e a porta).
Todos estes elementos das duas aquarelas geram uma tensão que está completamente
ausente no Savant, e, ao mesmo tempo se contrapõem à própria essência das cenas
representadas: a desconcentração. Os comentários de Debret insistem, em ambos os casos, na
superficialidade e descompromisso das atividades que estão sendo representadas, mas a
representação em si não dá, como foi visto, a mesma sensação de superficialidade e diletantismo
que o texto reforça. A sensação de leveza e aparente descompromisso é dada, sim, pela figura do
Savant travaillant dans son cabinet: a mesma sequência de linhas verticais vai se sucendendo (da
esquerda para a direita: a janela, as pernas dos móveis, os livros, as laterais e as janelas do
armário, os batentes e as tábuas da porta), mas são atenuadas pela disposição bem mais informal
dos móveis e pelo “movimento” diagonal que a rede faz ao atravessar a composição.
Infelizmente, como a aquarela não foi transformada em litografia, não existe comentário
à composição feito por Debret, mas as particularidades desta imagem falam por si mesmas. É,
como já foi dito, uma das poucas cenas que representa o trabalho intelectual feito “com
seriedade”; soma-se a este particular o fato de ser uma das poucas cenas de interior e ainda uma
das pouquíssimas que representam personagens solitários. Esta combinação de fatores me traz à
mente o ensaio de George Steiner que abre o volume Nenhuma paixão desperdiçada, “O leitor
incomum”3.
Ao analisar o quadro Le philosophe lisant (Imagem 4), de Jean-Baptiste- Siménon
Chardin, Steiner reconhece na representação do homem que se recosta sobre o in-folio uma
imagem quase arquetípica de certa relação com o saber: as roupas cerimoniosas indicam uma
situação fora do cotidiano que consiste na aproximação do conhecimento representado pela
atitude descansada sobre o grosso volume, acompanhado pelos discos que servem para alisar as
páginas do livro, pela pena com a qual fará anotações sobre as meditações que a leitura lhe
suscita, pela ampulheta, que indica uma relação diferente com o próprio passar do tempo. Todo o
3
STEINER, George. Nenhuma paixão desperdiçada, ensaios. Tradução de Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro/
São Paulo, Record, 2001
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quadro é uma série de representações emblemáticas, quase alegóricas, de uma certa relação com
a leitura e o conhecimento. George Steiner se preocupa em usar estas indicações para refletir a
respeito das mudanças que o ato de leitura assumiu modernamente, mas a mim interessa fazer
uma outra associação a partir das indicações dadas pelo filósofo suiço.
A ideia de que não apenas a atitude a composição, mas também a indumentária são
significativas na significação do ato de leitura representado em Le philosophe lisant é fecunda
para aproximação com o Savant travaillant dans son cabinet de Debret: a imagem da aquarela é
significativamente mais “cheia” que as demais cenas de interior da Voyage Pittoresque, que são
extremamente pobre na representação de mobiliário. Isso não é um traço apenas notado pelo
pintor francês, já que vários viajantes estrangeiros insistem na “pobreza” com que o lar brasileiro
é decorado; basta comparar a Une dame d’une fortune ordinaire com o Savant para notar a
diferença: há mais de uma cadeira na sala do Savant, uma banqueta, uma mesa alta e um enorme
armário ao fundo, sem contar os objetos científicos, mais um quadro na parede e duas aves
empalhadas. A sala está repleta e, da mesma maneira que em Le philosophe lisant, são objetos
extremamente significativos.
Os livros são os primeiros a chamar a atenção. Além do in-folio que está apoiado na
cadeira em frente ao Savant, há os que estão no armário vidrado e também uma quantidade
considerável nas estantes ao lado do armário (13 no total, mais por volta de 64 dentro do
armário) e dois abertos, um na mesa ao lado da rede e outro na prancheta que se apóia no colo;
trata-se de uma quantidade expressiva para o acanhado meio intelectual que existia no Rio de
Janeiro de então; basta lembrar que a livraria do cônego inconfidente Luis Pereira da Silva, a
maior de Minas Gerais em 1789, contava apenas 270 obras. O in-folio aberto sobre a cadeira
nitidamente é um volume de ciência, já que apresenta uma série de ilustrações na página direita;
a impressão se reforça através dos outros objetos que cercam o Savant: um globo terrestre, um
termômetro ou barômetro na parede e os animais empalhados ao lado do armário. Na mesa ao
lado da rede há penas e um tinteiro que são utilizados em uma prancheta que se apóia no colo do
Savant. As páginas escritas vão se acumulando e displicentemente caindo sobre o chão enquanto
o rosto descansa sobre a mão esquerda. O mobiliário todo aponta para um luxo austero, já que
indica certa abundância material mas ao mesmo tempo uma concentração de objetivos que
deveria ser reforçada pela atitude do Savant, mas que não o é.
Os trajes leves e o panejamento assemelham-se aos representados em Um apès dîner
d’été e que se devem à “influência abafadora” do clima, mas aqui com mais intensidade: a gola
se abre, as mangas escorrem ao longo do braço que apóia o rosto e a barra do camisão, erguida
sobre as coxas, desliza de maneira displicente. Trata-se de um panejamento que destruiria a
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solidez da figura, caso ela já não fosse fisionomicamente e gestualmente “desmoronante”.
Compare-se o rosto da Dame d’une fortune ordinaire e com o do Savant e se nota a diferença na
alegria e sustento com que o corpo observa o trabalho manual que está sendo efetuado – mesmo
a menina “pouco letrada, embora já crescida” se mostra menos displicente na dedicação á
primeiras letras. O trabalho intelectual no Savant dans son cabinet é representado com razoável
sustento material, mas com pouco sustento emocional.
Na verdade, Debret não cria sua aquarela apenas a partir da observação empírica do fato.
A formação acadêmica do pintor, efetuada na França e na Itália lhe deu instrumentais técnico e
retórico extremamente refinados, conforme já analisou Rodrigo Naves 4, e muitas vezes o
processo de transformação de um rascunho em “aquarela acabada” e, por fim, em litografia, é
elaborado e laborioso5. É neste ponto que a pista dada por George Steiner pode ser útil, pois já
existe uma tradição iconográfica de representação do sábio em seu recolhimento espiritual para o
trabalho intelectual: a figura de São Jerônimo.
Existe uma grande tradição iconográfica de representação do santo eremita com os
atributos do estudioso (livro, instrumentos de escrita, alguns objetos científicos, cadeira de
leitura) em um escritório isolado do convívio social. É essa a imagem no quadro de Antonello da
Messina (Imagem 5), no de Domenico Ghirlandaio, no Santo Agostinho de Sandro Botticelli
(uma variante da representação de São Jerônimo) e na gravura de Albrecht Dürer (Imagem 6).
Este tipo de representação percorre os séculos XV e XVI, associando a concentração e
retiro que vimos no Savant dans son cabinet de Debret ao ambiente religioso, que não parece
estranho ao do conhecimento e da ciência. Nos séculos XVI e XVII, entretanto, uma pequena
variação vai cada vez mais se configurando e acentuando. Primeiro, a compenetração do estudo
começa a ser partilhada por outra figura que não a do santo, a do filósofo. Neste caso, os
instrumentos da leitura (o livro, objetos de escrita) passam a fazer parte do ambiente tanto do
pensador religioso quanto do pensador leigo. É o que se observa tanto no retrato de Erasmo em
seu escritório feito por Hans Holbein quanto no São Jerônimo de Michelangelo Caravaggio
(Imagem 7): ambas figuras concentradas, isoladas e tranquilas, conduzindo para a representação
do Philosophe lisant de Chardin.
Um segundo ponto de transição da imagem do sábio é a presença dos objetos científicos,
que desaparece dos quadros religiosos e passa a figurar exclusivamente nos retratos de cientistas.
Certamente isto acompanha o rumo da revolução científica do século XVII, que especializa o
conhecimento e vincula o uso de instrumentos a uma tradição diferente da do conhecimento
4
5
NAVES, Rodrigo, “Debret, o neoclasicismo e a escravidão”, in A forma difícil. São Paulo, Ática, 1996.
Cf. BANDEIRA, Júlio. Debret e o Brasil: obra completa 1816-1831. Rio de Janeiro, Capivara, 2008.
171
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livresco: o conhecimento empírico. Mais ainda, procura desvincular esses dois conhecimentos e
quase opô-los como se fossem inconciliáveis. Isto é reconhecível tanto nos quadros de Joseph
Wright, preocupados em afirmar o lugar simbólico do homem de ciência, rodeado de
admiradores incrédulos e estupefatos, quanto no retrato de Lavoisier pintado pelo primo e mestre
de Debret, Jacques-Louis David (Imagem 8).
Nos dois casos a presença de instrumentos científicos ajuda a marcar o lugar simbólico
ocupado pelas figuras centrais e a distinguir suas atividades enquanto homens de saber, mas um
saber bastante diferente do mostrado nos quadros anteriores, já que os livros estão ausentes das
duas representações: pouco ou nenhum é o contato com o saber acumulado, muito pelo contrário,
pois o que importa é a prática da experiência que, no máximo é registrada, visto que Lavoisier
está escrevendo folhas novas a partir de sua mesa de trabalho.
O erudito de Debret parece estar num meio caminho entre o recolhimento religioso de
São Jerônimo, atualizado na figura do Philosophe lisant de Chardin, de o cientista moderno
representado por David. Homem de cultura nos trópicos, ele ainda se liga à tradição livresca,
ainda divide seu tempo entre a leitura e a descoberta de uma nova realidade que o cerca, que é
medida com instrumentos e registrada em folhas que, como as de Lavoisier, se acumulam, mas
displicentemente vão caindo pelo chão.
É aqui que está a principal diferença entre os “cientistas modernos” dos quadros e o de
Debret. Figura solitária neste mundo de multidões que a Voyage pittoresque registra, ele se isola
de maneira que os outros grupos sociais não conseguem fazer. A atividade intelectual verdadeira,
diferente do mero “diletantismo” do Après dîner ou da monotonia iletrada da Dame d’une
fortune ordinaire, isola e “pesa” em sua seriedade. A figura melancólica que se apóia sobre o
braço esquerdo enquanto acumula páginas de informações científicas não está inserida
socialmente como os outros grupos, não está passando o tempo com alguns companheiros nem
está cercada por diligentes escravos que executam tarefas domésticas, pois não há solidariedade
possível neste campo a não ser a dos livros.
É uma retomada da solidão descrita por George Steiner a respeito do Philosophe lisant,
mas numa chave melancólica, não a do prazer do estudo e da leitura, mas a da sensação da
solidão em terra inóspita, pois as roupas de cerimônia que acompanham o “ritual” do contato e
meditação dos clássicos, aqui, é substituído pela informalidade do camisão, pela displicência dos
gestos e pela simplicidade da rede que, ao mesmo tempo, se opõe à “riqueza” do mobiliário.
Ainda mais interessante é aproximar a imagem registrada por Debret no Savant dans son
cabinet com mais duas outras aquarelas que ele também não transformou em litografias, mesmo
porque foram enviadas a seu irmão, na França, logo após sua chegada ao Brasil, em 1816. São
172
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duas aquarelas que, quase a título de diário, representam o próprio artista: Debret à l’auberge
(Imagem 9) e Mon atelier de Catumbi à Rio de Janeiro (Imagem 10).
É interessante notar como os mesmos elementos que distinguem o Savant das demais
aquarelas que foram transformadas em litografias estão presentes independentemente nestas duas
aquarelas. Debret à l’auberge também apresenta uma figura solitária, isolada dentro de uma
construção em meio à suposta exuberância tropical que se imagina “lá fora.” Trata-se, como já
mencionei, de uma aquarela enviada pelo pintor a seu irmão, ou seja, pode-se imaginar por trás
desta cena uma intenção informativa, mas que certamente não se prende no suposto exotismo
que poderia encantar o estrangeiro. A outra figura que vem do fundo não interage com o pintor,
não apenas solitário quanto deslocado em sua indumentária, trajando casaca e cartola,
excessivamente cerimoniosas, num visível ambiente de precariedade, onde frutas e travessas se
acumulam no chão. Da mesma forma, a simetria das vigas e das paredes, que reforça a solidez da
composição, ajuda a destacar, no contraste, a postura desfeita do pintor, que quase se debruça
sobre a mesa, deixando a perna esquerda distendida na segunda diagonal da aquarela que não
está reforçando a perspectiva. Também as roupas azuis destacam esta figura na composição.
Debret se representa de forma tão isolada, deslocada e desolada quanto o Savant que se debruça
sobre seus papéis.
De maneira paralelamente diferente ao conjunto das imagens, o mobiliário que se
acumula no Atelier, assim como o do cabinet, é farto, constando de várias cadeiras, de uma arca,
uma estante, uma banqueta, uma cômoda (apenas entrevista à esquerda) e um número bastante
grande de quadros (simétricos aos livros do Savant), num total de 9, sem contar o retrato em
grandes proporções que está sendo pintado. Também aqui há certa adaptação de funções, na
medida em que uma cadeira faz as vezes de cavalete para apoiar a tela que está sendo pintada,
assim como, lá, apóia o in-folio que serve de fonte para os manuscritos do Savant. Neste
universo, apenas a ausência de personagens cria um contraste mais acentuado, mas, já que a
inscrição na base da aquarela dá conta de que se trata do atelier do artista, a mesma figura
deslocada que foi nomeada na aquarela anterior, esta de certa forma se projeta sobre o vazio do
quarto. As duas aquarelas poderiam até ser combinadas para gerar uma terceira imagem,
surpreendentemente próxima, em espírito, do Savant travaillant dans son cabinet: igualmente
solitária, igualmente melancólica, igualmente vinculada a certo passado por um lado (os quadros
ao fundo ocupam espaços semelhantes ao dos livros) e a certa construção de conhecimento por
outro (escrita/ pintura), igualmente ativa mas também deslocada em meio ao ambiente que se
constitui ao redor, já que são quartos isolados, onde o exterior só comparece insinuado pela
luminosidade que entra pela janela.
173
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Esta possível projeção parece, de certa forma, criar analogia entre a figura do Savant e a
do próprio Debret, ambos homens de cultura “exilados” nos trópicos. No caso particular do
pintor, mais evidentemente exilado, já que, como artista ligado ao círculo napoleônico, o
ambiente político da Restauração lhe era francamente hostil, o que certamente foi determinante
na aceitação do convite feito por Joachin Lebreton para a vinda ao Rio de Janeiro no intuito de
fundar a Academia Real de Belas Artes.
Ao combinar, em 1827, os mesmos elementos das duas aquarelas de 1816, ele nos
permite trazer de volta as sugestões significativas desses registros de cotidiano nos trópicos. O
“artista civilizador” que descansa no auberge e que trabalha de maneira nostálgica no seu atelier,
cercado de reminiscências (é possível reconhecer na parede ao fundo a Madonna della seggiola,
de Rafael Sanzio), tem atitudes paralelas às do Savant que melancolicamente se debruça sobre os
livros e registra dados recolhidos em leituras ou em observações científicas. Da mesma forma
que o projeto da Academia Real de Belas Artes foi abortado, ainda não há espaço institucional
para os homens de Ciências e Letras, então ambos ficam sozinhos em suas atividades, à sombra
de um possível reconhecimento oficial. É, inclusive, possível reconhecer no único quadro
pendurado no cabinet do Savant um provável retrato de autoridade, devido à posição austera da
figura cujos traços não são tão nítidos. Essa atividade solitária, identificável à leitura do
Philosophe lisant e à tradição de representação de São Jerônimo destaca o indivíduo
intelectualmente ativo das diversas outras atividades mundanas com mera aparência de atividade
intelectual.
O erudito (este é outro nome pelo qual a aquarela é conhecida), aqui, é uma figura tão
solitária quanto o exilado que acabou de chegar à terra “bárbara”. Pode até ser lembrado, nesta
aproximação, “O cajueiro”, o terceiro rondó do livro mais famoso de Silva Alvarenga, Glaura
(publicado em 1799):
Cajueiro desgraçado,
A que Fado te entregaste,
Pois brotaste em terra dura
Sem cultura e sem senhor!
O que chama a atenção no conjunto de todas estas imagens, tanto as de Debret quanto a
criada por Silva Alvarenga, é o traço comum de certa insistência na atividade intelectual mesmo
a despeito das adversidades. Da mesma maneira que o cajueiro enfrenta voluntariamente (já que
“se entrega a”) um fado ingrato, pois a terra em que brotou tem as marcas da incultura e da
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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arbitrariedade, as aquarelas aqui analisadas apresentam figuras que se isolam das relações
interpessoais de poder que abundam nas imagens da Voyage pittoresque. Em nenhuma delas há
escravos, marcas claras de autoridade ou de mando; as figuras solitárias, tão independentes
quanto as da tradição de representação de São Jerônimo, se alheiam da natureza bruta da terra em
que estão para se voltarem para uma “comunidade de espírito” na qual assumem tranquila e
conformadamente seu lugar, quase como o “Fado” do cajueiro. Não há revolta nem desespero,
apenas a aceitação melancólica da persistência que a atividade intelectual (arricaria dizer: “de
salvação”) requer.
Referências Bibliográficas
BANDEIRA, Júlio. Debret e o Brasil: obra completa 1816 – 1831 Rio de Janeiro, Capivara,
2008
BARBOSA, Januário de Cunha. “Doutor Manoel Ignacio da Silva Alvarenga (Biographia dos
Barsileiros distinctos por Letras , Armas, Virtudes, etc). in Revista Trimestral de
Historia e Geographia ou jornal do Instituto HIstorico e Geographico Brasileiro. Rio
de Janeiro, na Typographia de D. L. dos Santos, 1841.
CARDOSO, Rafael, Castro Maya, colecionador de Debret. São Paulo: Capivara; Rio de Janeiro:
Museu Castro Maya, 2003
JOLLY, Penny Howell. “Antonello da Messina’s Saint Jerome in His Study: an iconographic
analysis”, in The art bulletin , Vol 65, n. 2 (jun. 1983) pp. 238-253.
LIMA, Valéria Alves Esteves, J. B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica
ao Brasil (1816 – 1831). Campinas, Editora da UNICAMP, 2007
NAVES, Rodrigo, A forma difícil, ensaios sobre arte brasileira. São Paulo, Ática, 1996
Rio de Janeiro, cidade mestiça: nascimento da imagem de uma nação/ ilustrações e comentários
de Jean-Baptiste Debret; textos de Luiz Felipe de Alencastro, Serge Gruzinski e
Tierno Monénembo; reunidos e apresentados por Patrik Straumann; tradução de Rosa
Freire a’Aguiar. – São Paulo, Companhia das Letras, 2001
SILVA ALVARENGA, Manuel Inácio da. Obras poéticas (intrdução, organizaçãoe fixação de
texto de Fernando Morato). São Paulo, Martins Fontes, 2005.
STEINER, George, Nenhuma paixão desperdiçada. Tradução de Maria Alice Máximo. Rio de
Janeiro, Record, 2001
IMAGENS
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Imagem 1 - 1827,Jean-Baptiste Debret - Um savant travaillant dans son cabinet, aquarela sobre
papel, Fundação Castro Maya, Rio de Janeiro
Imagem 2 - 1823, Jean-Baptiste Debret – Une dame d’une fortune ordinaire dans son intérieur
au milieu de ses habitudes journalières, litogravura sobre papel pertencente à Voyage pittoresque
et historique au Brésil, ou séjour d’un artiste français au Brésil , depuis 1816 jusqu’en 1831
inclusivement. (Paris, 1834-36)
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Imagem 3 - 1826, Jean-Baptiste Debret Um après dîner d’été, 1826, litogravura sobre papel
pertencente à Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d’un artiste français au
Brésil , depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement. (Paris, 1834-36)
Imagem 4 - 1734 Jean-Baptiste-Siméon Chardin, Le philosophe lisant, óleo sobre tela, Museu
do Louvre, Paris
Imagem 5 – 1460 (circa), Antonello da Messina, São Jerônimo no seu estúdio, óleo sobre
madeira,National Gallery, Londres
177
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Imagem 6 – 1514, Albrecht Dürer, São Jerônimo no seu estúdio, gravura a metal, Staatliche
Kunsthalle, Karlsruhe
Imagem 7 – 1606, Michelangelo Caravaggio, São Jerônimo, óleo sobre tela, Galeria Borghese,
Roma
Imagem 8 – 1788, Jacques-Louis David, Retrato de Antoine-Laurent Lavoisier et de sa femme,
óleo sobre tela, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Imagem 9 – 1816, Jean-Baptiste Debret - Debret à l’Auberge, aquarela sobre papel, Fundação
Castro Maya, Rio de Janeiro
Imagem 10 – 1816, Jean-Baptiste Debret - Mon attelier de Catumbi à Rio de Janeiro, aquarela
sobre papel, Fundação Castro Maya, Rio de Janeiro
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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O DESENHO E A ARQUITETURA EM LEON BATTISTA ALBERTI E GIORGIO
VASARI
Fernando Guillermo Vázquez Ramos
Que é Arquitetura? Quando, e por que surge (nasce)?
Ainda que desmedido, eis aqui o questionamento inicial para este trabalho. Para evitar
entendimentos equívocos sobre nossas intenções devemos advertir, imediatamente, que não
pretendemos desenvolver um estudo ontológico, propriamente dito (filosófico, digamos). Não
pretendemos entender ou explicar a essência da Arquitetura, como fonte da qual emana seu ser,
entre outras coisas porque pensamos que essa essência não passa de uma construção cultural
historicamente determinada. Contudo, nos interessa refletir sobre aquilo que permite que ela seja
como ela é. Destarte, aceitar e assumir que a Arquitetura existe circunstancialmente é uma
premissa fundamental para a construção deste trabalho. Entendemos também que estabelecer
essa circunstância nos permitirá refletir mais claramente sobre o sentido da Arquitetura e definir,
com melhor precisão, este objeto de estudo.
Nosso mundo, isto é, nós humanidade do século XX-XXI, tende a pensar na arquitetura
como tudo aquilo que como patrimônio construído da cultura material nos rodeia desde sempre.
A Arquitetura é considerada uma das artes (de fato um dos ofícios) mais antigas praticadas pela
humanidade. A necessidade de nos proteger das intempéries obrigou a nossos antepassados
hominídeos a começar a construir abrigos que com o andar do tempo, da técnica e dos costumes,
se transformaram no que conhecemos como Arquitetura.
Assim, qualquer História Geral da Arquitetura começa nas cavernas e nos primeiros
assentamentos das sociedades re-coletoras para se focar a seguir na Babilônia e no Egito.
Demoram-se, depois, largamente, na Grécia e na Roma Imperial, para na seqüência mergulhar
em séculos de arte medieval, chegando ao Renascimento e ao Barroco, esplendorosos estilos que
emergem das trevas góticas. Depois, passa pelo Classicismo e pelo Romantismo, com suas

Doutor Arquiteto. Professor assistente do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Arquitetura e Urbanismo
e do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu, São Paulo – SP.
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conotações sociais e políticas. Chegando, finalmente, ao período moderno, isto é, ao século XX,
mudo de grandes transformações e novos estilos.
Mas, podemos reduzir todas estas diferentes “arquiteturas” à Arquitetura, tal qual a
conhecemos hoje? Dito de outra forma: o que hoje definimos como Arquitetura pode ser
remetido a todas as construções do passado da Humanidade? As Humanidades passadas têm
construído e pensado seu entorno da mesma forma que nós o fazemos? E, esse “nós”, do qual
estamos falando, refere-se a qual Humanidade precisamente? Quando esse “nós” tem inicio?
Desde quando podemos falar aludindo à arquitetura, de um “nós” que serve de referência a uma
específica forma de ser e de fazer arquitetura?
O primeiro impasse que devemos enfrentar é a adjetivação. Não só os adjetivos que a
designam desde um ponto de vista estilístico, isto é, grega, romana, gótica, renascentista,
barroca, etc., mas também os que a situam num horizonte histórico cultural, como antiga,
clássica, moderna. Cada uma destas denominações contém uma série de especificidades
(geralmente estilísticas, mas também técnicas e culturais) que permite diferenciá-las e identificálas como realidades únicas. As diferenciações estilísticas se sustentam em questões figurativas
que aproximam determinadas formas e fazem que estas se integrem a uma família particular.
Contudo, arquiteturas como a grega, a romana, algumas ramificações do gótico, a renascentista,
o barroco (à sua maneira) e o neoclassicismo, ou até, o pós-modernismo do século XX,
compartem formas arquetípicas muito similares, como as ordens. O assunto estilístico trata de
sutilezas e de intervalos. Assim, a sucessão de estilos poderia ser entendida antes como uma
forma de periodização que como uma análise profunda da arquitetura. O entendimento da
arquitetura como antiga e moderna, ou como clássica e moderna é bem mais interessante para
nosso trabalho e para nosso ponto de vista.
A diferenciação das arquiteturas entre antigas e modernas já foi abordada de uma forma
precisa por Jürgen Habermas, no seu pequeno ensaio “Modernidade versus Pós-modernidade”
(1983). Nele o alemão lembra que a primeira vez que o termo “moderno” apareceu foi no século
V para diferenciar o mundo pagão (antigo) do mundo cristão (moderno). Durante o renascimento
carolíngio os homens também se consideravam modernos, e no século XVII a Querelle des
Anciens et des Modernes levou a questão à polêmica sobre a autoridade e a introdução do
progresso como novo aspecto a ser atendido. O século XX, herdando este entendimento da
modernidade como progresso e seguindo o posicionamento romântico de uma modernidade
estética e não estilística (isto é, uma modernidade do gosto – do artista – e não da autoridade –
181
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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acadêmica) apelou para a novidade, para o valor intrínseco do novo, como fator determinante da
modernidade.
O Classicismo, antes entendido como um momento reverencial dos mandamentos do
passado transformou-se em algo simplesmente “clássico”, algo que se caracteriza por ter-se
imposto no passado ao passado, como um momento de novidade, transformando o passado de
referente atualizável em dado obsoleto. Assim, Habermas disse que a “modernidade cria seus
próprios e auto-referidos cânones do que considera clássico”. (1983, p. 86)
O século XX achatou as diferenças entre modernidade e antiguidade (ou classicismo)
projetando sua própria forma de entender o mundo, sua weltanschauung, sobre todas as outras
Humanidades anteriores. Contudo, o embate entre moderno e antigo, como dicotomia grata à
ótica do século XX para explicar o novo como superação, não se aplica a um especifico
momento da história da arte no ocidente, nos referimos ao Renascimento. O próprio Habermas
passa totalmente às margens deste momento, centrando sua atenção nos séculos XII, XVII, XIX
e XX, mas não toca o século XV. Século onde as alterações estilísticas, resultantes de novas
práticas que deslocaram às antigas, são evidentes e relevantes, mas que contudo não podem ser
reduzidas à dicotomia antigo/moderno.
A visão do século XV é diferente, pelo menos no que à arquitetura se refere. A
arquitetura humanista não se apresenta em oposição ou como superação da arquitetura gótica,
que a precede no tempo. Pelo contrario, os humanistas referiam-se à arquitetura gótica como
“arquitetura moderna” da qual pouco tinham a dizer1. Não é pertinente pensar num diálogo entre
o mundo gótico e mundo renascentista no Quattrocento, nem favorável nem desfavorável, como
ainda acontecia no século XIV, século propriamente de transição. A Arquitetura que, pela pena
dos humanistas, nasce naquele período apresenta-se como um retour à l'ordre que invoca a
retomada formal da “verdadeira arquitetura”, aquela que se encontrava ainda presente nas ruínas
romanas, esparramadas pelas cidades da península itálica.
Mas, as ruínas da Roma imperial só serviam, pelo menos até o século XV, como simples
jazidas de onde extrair pedras para as novas construções. O que mudou foi uma forma de pensar
e de ver essa realidade. Parte desta mudança de perspectiva se deveu a um ato fortuito: a
descoberta, em 1416, no mosteiro de Sankt Gallen, de uma cópia do De Architectura libri decem
1
Ainda que Vasari seja bem mais contrario à arquitetura e a arte gótica que Alberti, o que demonstra em alguma
medida que o século XV convivia melhor com o gótico que o XVI. Ver Vasari, 1807, p. 252, por exemplo.
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2011
(~27ac), um tratado romano sobre arquitetura escrito pelo arquiteto Marcus Vitruvius Pollio
(~70-20/25ac). Aquelas ruínas passaram a ter uma significação enorme estudadas sob a ótica
deste tratado. Não só quando coincidiam com as descrições do romano, mas também quando
não.
A possibilidade do uso de uma referência bibliográfica modificou a relação que o mundo
gótico tinha estabelecido com a construção através da forma de atuar das guildas. O principio de
autoridade que no mundo gótico se identificava com o trabalho hermético dos artesãos,
desenvolvido dentro da relação cíclica “mestre / aprendiz”, foi aniquilado num passar de pena
quando o principio de autoridade foi assumido pelas escrituras, pela força incontestável do
Verbo, plasmado num tratado: o poder das Escrituras!
Se na poesia Francesco Petrarca (1304-1374) assentou as bases desta nova sensibilidade,
no campo da arquitetura a proeza se deve a Leon Battista Alberti (1404-1472) que demonstrou
sua maestria de “padre fundador” da Arquitetura na elaboração do tratado De Re aedificatoria
Libri Decem (Roma, 1452). Texto instituidor certamente, pois pela primeira vez encara a
arquitetura não como um trabalho braçal, mas como uma disciplina do intelecto exercida por um
“artista” que aprendia a arte “pela razão e pelo método” (ALBERTI, apud BLUNT, 2001:23): o
arquiteto, que era, pela primeira vez, capaz de projetar em teoria, além de fazer na prática.
Antes de prosseguir acho que seria conveniente dizer a quem exatamente eu chamo de
arquiteto; pois não colocarei diante de vós um carpinteiro e vos pedirei que o vejais como
o equivalente de homens profundamente versados nas outras ciências, embora seja
verdade que o homem que trabalha com as suas mãos serve como instrumento para o
arquiteto. Chamarei de arquiteto aquele que, com razão e preceito seguros e maravilhosos
sabe em primeiro lugar como dividir as coisas com sua mente e inteligência, e, em
segundo, como, ao levar a cabo sua tarefa, colocar corretamente juntos todos aqueles
materiais que, pelo movimento dos pesos e a associação e acúmulo dos corpos, podem
servir com sucesso e dignidade às necessidades do homem. E, ao levar acabo essa tarefa,
ele precisará do conhecimento maior e que mais excele. (ALBERTI, apud BLUNT,
2001:22)
2
2
Estamos usando a tradução ao português que aparece no livro de Blunt, porém o texto pode ser encontrado em
tradução ao castelhano em (ALBERTI, 2007:57), ou ao português em AlBERTI, 2011. Para as versões em latim
(1485) e em inglês (1775) ver The Archimedes Project.
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2011
A arquitetura e o arquiteto modernos nasceram deste modo, do conceito e da razão onde
um logos (λόγος) antigo reinterpretado a partir de uma “visão moderna”, que o posiciona como
conhecimento, centraliza o problema da arquitetura não mais na materialização mecânica e direta
da Ideia (BATTISTI, 1993:53), como se fizera no mundo gótico, mas sim como resultado de um
processo intelectual capaz de “dividir as coisas com sua mente e inteligência”. (Op. cit.)
Esta é a forma na qual se faz arquitetura: esta é “A Arquitetura” – pelo menos na sua
circunstância moderna. Uma Arquitetura resultado do “controle racional” exercitado por um
intelecto livre sobre aqueles que trabalham a pedra. Encontramo-nos aqui frente ao que Argan
chama do princípio teórico da representação como modo de conhecimento (1984:107).
Procedimento que, como disse Alberti, requer de “doutrina, sabedoria e discernimento” (apud
BATTISTI, 1993:53) unificados na postura de um novo artista, o arquiteto – que utiliza outros
homens como instrumento.
Argan disse que Alberti “se propõe fundar uma nova arquitetura” (1984:105), mas este
pressuposto é incorreto, pois parte de assumir que existindo uma arquitetura, neste caso a gótica,
o Renascimento funda uma “nova” que evidentemente a supera. Argan trabalha no umbral
conceitual da modernidade que é movida a novidade. Portanto, nos parece importante esclarecer
que a denominação “arquitetura gótica” não é procedente se o entendimento do termo
“arquitetura” se refere a sua acepção moderna, isto é: aquela que se instaura como procedimento
resultante do intelecto só a partir do século XV. Esta Arquitetura, a dos últimos quinhentos anos,
utiliza um complexo instrumento de precisão (BATTISTI, 1993:47) capaz de gerar arquitetura
sem a necessidade de construí-la: a projetação.
Deste modo, a arquitetura como nós a conhecemos, isto é a Arquitetura Moderna, surge
junto com o Projeto. Ou dito de uma forma mais contundente: é através do projeto (como atitude
mental) que Alberti se propõe fundar a Arquitetura. Esta arquitetura não é o resultado da
materialização pragmática da visão escolástica da natureza em pedra. Ela se desenvolve como
forma mentis que se trans-forma em sedimentação gráfica (lineamenta) para só depois resolverse numa forma-plástica (a construção) que, contudo lhe é externa. Para Alberti a Ideia “não é
conhecida pela experiência senão ditada pelo raciocínio, que é o elemento fundamental e
prioritário da arte” (ARGULLOL, 1988:9). O raciocínio é o substrato lógico do projeto, sem ele
não há processo projetual, e sem este não há Arquitetura (moderna).
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2011
Esse ditado da mente é recolhido nos desenhos que estruturam o projeto onde a
arquitetura exprime sua circunstância. Assim, Alberti funda, em certo sentido ex nihilo, não só a
disciplina e a profissão, a maneira de fazer e de pensar a arquitetura, mas inventa a maneira de
pensar a arquitetura para fazê-la, o que expõe um sentido e um significado disciplinar que não
tinha cabimento no mundo gótico, a pesar de que possa ainda usar algumas das ferramentas
representacionais típicas deste mundo (como as maquetas, por exemplo)3.
No capítulo I do De Re aedificatoria, Alberti proclama que “tota res aedificatoria
lineamentis et structura constituta est” (ALBERTI, 1485:5)4, isto é, “toda edificação é
constituída por desenhos e estrutura”. Evidentemente querer resumir em oito palavras (ainda que
sejam em latim) o significado de uma disciplina (de uma arte) como a arquitetura é
extremamente complexo. Obriga-nos a prestarmos especial atenção em cada termo utilizado pelo
nosso autor. Portanto, o primeiro que resulta evidente é que o genovês não escreve “arquitetura”
e sim “coisa edificada”5. Se bem é certo que o “confuso” tratado de Vitrúvio6 desfecha o
(re)nascer da arquitetura, não é menos evidente que é no texto de Alberti que se expõe realmente
seu parto. Tal vez seja esta a razão pela qual o tratado não usa o termo “Arquitetura” e sim “Arte
Edificatória”7: nos alicerces não enxergamos ainda a fachada. Contudo, o entendimento de que a
edificação pode ser assumida no seu sentido profundo como Arquitetura vem dado pela
denominação do artista que é capaz de levá-la acabo, e que se descreve na introdução da obra: o
“Arquiteto”.
Mas, como esta prática é? Do que esta res esta constituída? Primeiro de desenhos e a
seguir de estrutura, nos disse o humanista.
Mas, lineamentis não são “desenhos” em geral. São desenhos feitos de linhas, isto é,
lineamentos8. Neste tópico Alberti é enfático e reiterativo durante todo seu texto. A definição de
quais são os desenhos adequados ao arquiteto e sua arte estão perfeitamente determinados no
3
Ainda que voltaremos sobre este assunto, é importante lembrar que Alberti defende a utilização de maquetes, entre
outras coisas, porque em meados do século XV o modo de ser da arquitetura moderna estava surgindo e não era
dominante. Arquitetos da relevância de Brunelleschi (1377-1446) ainda usavam maquetas para desenvolver o
trabalho construtivo, e sendo Alberti um grande admirador do florentino não imaginamos como poderia criticar
esta forma de trabalhar tão cara ao grande arquiteto e amigo
4
De Re aedificatoria Livro I, cap. I:5 (isto é na pg. 5 do texto do site) ou ver: ALBERTI, 2007:61.
5
Na maioria das traduções utiliza-se a expressão “arte da construção”, ver op. cit.
6
Alberti criticou o texto de Vitrúvio por considerá-lo confuso. Ver o Capítulo I do Livro V, donde disse que “seu
latim era tal que os latinos diziam que parecia grego e os gregos que ele tinha escrito em latim” (2007:243).
7
Seguimos a tradução ao português de 2011, op. cit..
8
Em português é um tipo específico de desenho no qual só se empregam líneas geometricamente determinadas.
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2011
“Começo do Livro I”, onde exige também que a “conformação inteira da edificação e sua
configuração descansem previamente no traçado mesmo” (2007:61). A “coisa edificada” deve
ser constituída a partir de um desenho linear que respeite “ângulos e linhas em uma direção e
com uma relação determinada” (Idem:62) e não por desenhos e modelos enganosos “que
intentam desviar e entreter a mirada de quem contempla o modelo e afastar sua atenção de uma
estrita análise das partes que têm que ser consideradas” (Ibidem:94). Por esta razão Alberti
descarta o uso da perspectiva (“desenho de pintores”) que considera enganosa (“impressões
visuais”), pois não mostra as “linhas invariáveis e os ângulos verdadeiros” (Idem:95)
preocupando-se só pelas aparências. Advoga por desenhos que sejam capazes de refletir “a
inteligência do autor do projeto e não a habilidade de operário”. (Ibidem:95)
Estes desenhos específicos, disse, “constituem” às edificações. No entanto, que significa
que a “coisa” está “constituída”? Por que não, simplesmente dizer, que a “coisa” é?
O termo “constituído” tem uma acepção que resulta interessante para nosso raciocínio. É
algo que se estabelece segundo as leis, daí vem “Constituição”, por exemplo. Deste modo, a
“coisa edificada” não está (ou no é) “feita” de linhas, e sim estabelecida segundo as leis que estas
linhas propõem. E as linhas não são de qualquer tipo, são as que resultam do uso da geometria,
são traçados geométricos que dependem de leis conhecidas – aferíveis. Estes desenhos são
resultado de processos de conceituação e de verificação que o artista desenvolve, substituindo
uns por outros num procedimento totalmente novo: o projeto de arquitetura.
Devo dizer que com freqüência me ocorre conceber obras com formas que, em princípio,
me pareciam muito acertadas, mas que uma vez desenhadas revelavam erros gravíssimos,
precisamente naquelas partes que mais me tinham dado prazer; tendo que voltar depois,
de forma meditativa, a tudo o que tinha desenhado, e medindo as proporções, reconhecia
e deplorava minha negligencia. (apud BATTISTI, 1993:58)
A “coisa edificada” esta feita segundo as leis da estrutura. Ainda que normalmente o
termo “structura” se traduz por “construção” ou “materialização”9, pensamos que como a
“arquitetura do Renascimento é antes que mais nada uma arquitetura do gosto” (SCOTT,
1970:37), e não uma arquitetura preocupada com a construção, as preocupações de Alberti tal
9
Traduzem structura por “construção” Battisti (1993) e na tradução do Re aedificatoria ao português
(ALBERTI:2011), por exemplo, e por materialização na tradução do mesmo livro feita ao castelhano por Javier
Fresnillo Núñez (ALBERTI:2007).
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vez tampouco sejam com a construção, mas sim com as previsões que têm que ser tomadas para
construir.
O próprio de pessoas bem entendidas é conceber tudo previamente e desenhá-lo
mentalmente, para que não possa ser dito depois durante a obra ou quando esta
esteja finalizada que “não era este meu desejo”; “como teria preferido aquilo
outro” . (ALBERTI, 2007:93)
Destarte, o termo “structura” não deveria ser entendido como construção e sim como
“estrutura” mesmo10. Por esta razão apela Alberti ao velho costume que têm os construtores “que
consiste em que meditemos e sejam consideradas uma e outra vez a obra na sua totalidade em
cada uma das medidas de todas as partes do edifício”. (Idem:94)
O “desenho” albertino é um procedimento de precisão que pretende evitar erros no
futuro, é um mecanismo de projetação cuja finalidade é a de desenvolver uma ideia que
posteriormente deverá ser materializada seguindo a exata informação transmitida por esses
lineamenti. A “coisa edificada”, a arquitetura constituída nos desenhos, poderá vir a ser uma
“coisa construída” só depois que o esforço do pensamento tenha parido a estrutura completa da
arquitetura (das partes e do todo) como resultado da transmutação da Ideia em projeto (de
arquitetura).
Esta particular forma de ser da Arquitetura (moderna) só foi possível logo que o
esclarecido pensamento albertino alcançou o papel. Por esta razão arriscamos a dizer que não há
Arquitetura (moderna) antes de Alberti, e que a certidão de nascimento desta Arquitetura sem
dúvidas é o De Re aedificatoria. Neste tratado imortal ficaram fixadas as definições do que a
arquitetura e o arquiteto são, ou pelo menos foram nos últimos 500 anos.
Talvez por esta razão, Giorgio Vasari (1511-1574), grande admirador e leitor de Alberti,
no seu livro Vite de piu eccellenti Pittori Scultori e Architetti (1550/68) não define
expressamente o que seja a arquitetura, embora trate dela nos primeiros sete capítulos do
primeiro volume. A apresentação da arquitetura é descritiva e relacionada com os materiais ou
com as cinco ordens, por exemplo. Ainda assim, numa passagem escrita para criticar certos
10
Uma das acepções que o dicionário Aurélio dá para a palavra estrutura é: “a disposição dos elementos o partes de
um todo; as formas como esses elementos ou partes se relacionam entre si, e que determina a natureza, as
características ou a função ou funcionamento do todo” (1999:845). Esta definição surge da acepção latina da
palavra, o que reforça o entendimento que Alberti poderia estar dando ao termo.
187
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
arquitetos “plebeus e presunçosos” de sua época, define o que a Arquitetura não é: toda aquela
obra “sem desenho feita quase ao acaso, sem o uso de decoração, ou de arte, nem ordem
nenhuma, todas as coisas monstruosas e piores que o alemão”11. (1807:252)
Ainda que pelo avesso, esta definição se enquadra perfeitamente na definição positiva
feita pelo genovês: arquitetura como estrutura e desenho, produto da inteligência do autor do
projeto que foi capaz de meditar e considerar a totalidade e cada uma das medidas de todas as
partes do edifício.
Mas, existe uma diferença interessante na maneira de ver o processo de projetação de
Alberti e de Vasari quanto a suas opiniões sobre o modelo. Alberti defende o uso de modelos no
mesmo capítulo que apresenta os linemaineti como desenhos adequados para o trabalho do
arquiteto, insistindo em que “graças aos modelos se consegue que possamos ver e considerar à
perfeição” (ALBERTI, 2007:94) todos os aspectos do projeto. Ainda apresenta o modelo como o
objeto no qual será possível “sem nenhuma repercussão” (monetária) fazer todas as alterações
necessárias para atingir a perfeição do projeto.
Vasari tem ultrapassado conceitualmente esta reminiscência gótica e defende o uso
exclusivo de “perfis’ e “lineamentos”, pois eles são “o princípio e fim” da arte (de construir), o
que resta (incluídas as maquetas) são obras de artesãos.
Aqueles [desenhos] que têm as primeiras linhas em torno [do objeto] são chamados de
perfis, contornos ou lineamentos. E todos estes perfis ou lineamentos, como queiram
chamá-los, servem tanto à arquitetura e à escultura como à pintura. Mas especialmente à
arquitetura; pois os desenhos daquela não são compostos senão de linhas, que é
exatamente o que o arquiteto [faz], que [é] o princípio e o fim de aquela arte, porque o
restante, utilizando modelos de madeira provenientes daqueles desenhos, nada mais é que
o trabalho de marmoristas e de pedreiros. (VASARI, 1807:300)
Entretanto, a definição do desenho, e da relação que o arquiteto tem com ele, é
apresentada no primeiro capítulo dedicada à pintura (Cap. XV, Idem:298). Ainda que, percebe-se
claramente a influência do pensamento albertino nas distinções estabelecidas entre as diferentes
maneiras de entender o desenho para cada uma das artes (arquitetura, escultura e pintura), não
deixa de chamar nossa atenção a debilitação do rigoroso enquadramento apontado por Alberti.
11
O texto trata de uma crítica ao uso da ordem composta e às referências à arquitetura “Tedesche” (alemão), isto é,
gótica (VASARI, 1807:255).
188
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Certamente a árdua tarefa de definição de uma disciplina (uma arte) inexistente antes do século
XV estava concluída à época de Vasari, isto é, cem anos depois da finalização do Re
aedificatoira. A História da Arte encontra a arquitetura definida e assimilada pela sociedade
maneirista do século XVI. Já não cabe dúvida para este autor o que um arquiteto é, quais suas
funções e seus deveres. Não cabem dúvidas, tampouco, sobre a significação da Arquitetura, suas
especificidades e suas intenções.
Em “Che cosa sia disegno” o aretino disse que o desenho “padre de nossas três artes (...)
procede do intelecto, cavando de muitas coisas um juízo universal semelhante a uma forma ou
ideia de todas as coisas da natureza” (1807:298). Expressa aqui o esforço demandado, pois os
desenhos não são um produto do intelecto, são o próprio processo de “cavar” que é capaz de
extrair a forma.
Ainda que possa ser encoberto pela grazia, o esforço implícito no processo do desenhar é
reconhecido como um procedimento árduo que precisa de um esforço de aprofundamento e de
reflexão para dirimir entre “molte cose”. Alberti já tinha advertido a seu leitor, e Vasari era um
leitor atento e devoto, para não se precipitar, nem sequer quando tudo estivesse desenhado e
acertado, pois quando “cesse o entusiasmo” deverá voltar o artista a “examinar todo o projeto de
novo mais a fundo (...) de uma maneira mais reflexiva” (2007:95). Desenhar é um processo
árduo que requer reflexão, e ainda que no tempo de Vasari este fadigoso trabalho tivesse que
ficar escondido embaixo do manto da genialidade do artista, capaz de declarar e expressar o
conceito que se esconde na alma, fica evidente no texto do historiador que era consciente desta
situação já apontada por Alberti.
A consolidação da profissão de arquiteto, na Accademia delle Arti del Disegno (1562),
também obra de Vasari, dá a pauta do grande avanço que a profissão alcançou em tão pouco
tempo, uma demonstração sem dúvidas de que se tratava de uma necessidade social e produtiva.
A projetação, como arte de prever e de garantir a construção, era uma atitude imprescindível para
a construção de um mundo que tinha ultrapassado as fronteiras das muralhas medievais, e ainda
mais, as fronteiras do Mar-oceano. Se bem pode ser certo, como disse Blunt, que a energia e o
racionalismo renascentista já não existem no maneirismo (2001:123) e que a ênfase na grazia
destrói a qualidade racional que instaurou as regras que fizeram possível o reconhecimento da
profissão e da Arquitetura (moderna), também é certo que a alteração e a liberação dos sistemas
de projetação das regras clássicas, estipuladas por Alberti, abriram novos caminhos de
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experimentação que possibilitaram, por exemplo, a entrada da perspectiva como forma projetiva,
o que acontecerá no século XVII.
Foi Vasari, por último, o primeiro em chamar de moderno (ou de maniera moderna) a seu
tempo (CASTELLI, 2005:22), destruindo a relação única que, na época de Filarete e de Ablerti,
mantinham essas duas concepções do mundo, só que invertidas na sua temporalidade. Acabava o
período da fundação e começava o da consolidação da modernidade, que se estenderia até nossos
dias sob o signo da genialidade do artista e da capacidade do desenho como procedimento de
concepção daquilo que formado na mente se “expressa com as mãos”. (VASARI, 1807:299)
Referências Bibliográficas:
ALBERTI, Leon Battista. De Re aedificatoria. Madri: Akal, 2007. [1485]
_________Da Arte Edificatória. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. [1485]
_________De Re aedificatoria libri decem. Original em latim (1485) e tradução inglesa (1775),
ver:
“The
Archimedest
Project”.
Digital
Research
Library,
em:
http://www.archimedes.mpiwg-berlin.mpg.de. Acesso em 2009 e 2011.
ARGULLOL, Rafael. El Quattrocento. Barcelona: Montesinos, 1988.
BATTISTI, Eugenio. En lugares de vanguardia antigua. De Brunelleschi a Tiepolo. Madri: Akal,
1993. [1985]
BLUNT, Anthony. Teoria artística na Itália 1450-1600. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. [1940]
CASTELLI, Patrizia. A estética do Renascimenro. Lisboa, Estampa, 2006.
HOLANDA, Aurélio B. de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.
HABERMAS, Jürgen. “Modernidade versus Pós-modernidade”. In Arte em Revista, São Paulo:
Centro de Arte Contemporânea, ano 5, nº 7, p. 86-91, 1983.
KRÜGER, Mário. “As leituras e a recepção do De Re aedificatoria de Leon Battista Alberti”.
Ver: Revista eletrônica Monalisa (Acesso em 2009) http://homelessmonalisa.darq.uc.pt/
MarioKruger/ParaumaLeituradoDeReAedificatoria.htm..
SCOTT, Geoffrey. Arquitectura del Humanismo. Un estúdio sobre la historia del gusto.
Barcelona: Barral, 1970. [1914]
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2011
VASARI, Giorgio. Vite de piu eccellenti Pittori Scultori e Architetti. Milão: Società Tipografica
de’Classici Italiani, 1807.
_________“O primado do desenho”. In: LICHTENSTEIN, Jaqcqueline. A pintura. Textos
essenciais. Vol. 9: O desenho e a cor. São Paulo: Editora 34, 2006, pgs. 19-23
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ARQUITETURA
BANDEIRISTA
NA
SERRA
2011
DO
ITAPETI:
UM
CASO
INTERESSANTE PARA O ESTUDO DA ARQUITETURA COLONIAL PAULISTA
Francisco de Carvalho Dias de Andrade
Eduardo Costa
Dentre as mais características manifestações da arquitetura antiga de São Paulo, está, sem
dúvida, o que se convencionou chamar de “casa bandeirista”. Constituindo-se em um verdadeiro
“tipo” da arquitetura colonial paulista – para lembrar o conceito arganiano – o partido bandeirista
já foi mesmo definido como uma arquitetura “paravernacular” da antiga área de colonização
vicentina. (LEMOS, 1999: 21)
O termo bandeirista é, geralmente, empregado para definir as casas-sede dos antigos
estabelecimentos agrícolas disseminados por ampla área do Planalto Paulista, mais
especificamente, pela região do vale do rio Tietê à jusante da cidade de São Paulo. E define-se
pela presença, nessas sedes, do alpendre entalado, ladeado por dois cômodos de função social,
sendo mais comum um servir como capela e outro como quarto de hóspedes, uma espacialidade
a qual já se referia o jesuíta Manuel da Fonseca, em texto do século XVIII e que tem como ponto
fulcral, a grande sala central que distribui os deslocamentos pelo resto dos cômodos. Construídas
sempre com a técnica da taipa de pilão, é sempre cercada por uma camada de lajes de pedra e
utiliza também madeiras nobres para o madeiramento do telhado e para as envasaduras, como a
canela-preta e a embaúva.
Intimamente relacionada com o desenvolvimento de uma economia de abastecimento que
foi sendo constituida no planalto a partir do início do século XVII, esse partido subsistiu em
algumas áreas do território paulista durante o século XVIII e foi abandonada no século XIX,
suplantada por novos hábitos de morar e trabalhar no campo advindos com a cultura do café.
Despovoadas, a ruína foi o destino da maioria. Contudo, algumas casas que permaneceram sendo
usadas por novos moradores – em sua maioria, pequenos lavradores caipiras – alcançaram o
século XX em um estado razoável de conservação. Deu-se início, então, ao processo de
redescoberta e posterior “patrimonialização” dessas antigas sedes rurais.
Embora o reconhecimento dessas arquiteturas como objetos de valor histórico e artístico
esteja intimamente ligado á própria invenção de uma história paulista – como pode ser conferido
na cuidadosa atenção despendida à essas casas por figuras como Washington Luiz – sua


Historiador e Mestre em História pelo IFCH/UNICAMP.
Arquiteto pela FEC/UNICAMP e Mestre em História pelo IFCH/UNICAMP.
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2011
valorização como patrimônio distintivo da arquitetura e do passado paulista, tanto material
como intelectualmente, não pode ser vista em separado da figura proeminente de Luiz Saia.
Arquiteto formado pela Politécnica e diretor do SPHAN-SP desde 1941 até sua morte em
1975, Saia foi, em seu tempo, para todos os efeitos, o “Patrimônio” em São Paulo. (Cf. IPHAN,
2008) Coube a ele a executar as primeiras obras de restauro do SPHAN em São Paulo –
experiências pioneiras no restauro da taipa de pilão no Brasil – e que tiveram, desde seu início, a
casa rural seiscentista e setecentista como um de seus bens privilegiados. Assim, ainda na década
de 1940, Saia esteve a frente das obras no sítio do Padre Inácio, em Cotia, e no sítio Santo
Antonio, em São Roque, ambas ainda hoje em propriedade do IPHAN e dos mais emblemáticos
exemplares da arquitetura colonial de São Paulo. Dessas primeiras experiências, resulta o
primeiro texto de Saia sobre o tema, publicado em 1944 na Revista do Patrimônio: Arquitetura
rural paulista do segundo século. (Cf. SAIA, 1944) Cabe notar que nesse texto não parece o
termo “bandeirista”, sendo que Saia se limita, praticamente, a descrever e analisar os ainda
poucos exemplares que tinha conseguido identificar em seus trabalhos de reconhecimento pelo
SPHAN.
O termo “bandeirista” só foi cunhado por Saia em um texto por ele escrito em um
contexto bem diferente daqueles anos inicias, nos quais a familiaridade era pouca e qualquer
tentativa de interpretação esbarrava na falta de conhecimentos mais aprofundados no tema.
Sintomaticamente, o termo surge em um texto escrito por Saia pela ocasião da inauguração da
“Casa do Bandeirante”, museu instalado em uma antiga casa seiscentista localizada no bairro do
Butantã cujo restauro fora realizado por Saia e integrava os festejos pela comemoração do IV
centenário da cidade de São Paulo. Assim, foi em meio a uma atmosfera festiva, na qual as
formulações identitárias acerca do que seria o “ser paulista” (Cf. MARINS, 2003) refletiam-se na
recriação mitológica do bandeirante, que Saia cunhou seu mais duradouro termo, que faria
carreira nos estudos sobre a arquitetura colonial em nosso estado.
Contudo, mais importante que ressaltar as ligações entre a interpretação de Saia e um
certo “ufanismo quatrocentão” – ao qual, de fato, ele sempre se mostrou pouco afeito – é
perceber que sua conceituação acerca do que seria a casa bandeirista se referia a um tipo muito
especifico de casa rural dentro da história da arquitetura em São Paulo. Pois Saia traça uma
separação entre o que para ele seria uma planta “clássica” da casa bandeirista, exemplarmente
presente na casa do Pd. Inácio, e uma posterior degeneração do partido bandeirista. E vai além,
relacionando cada uma dessas fases a um tipo humano próprio: à planta clássica corresponderia o
paulista do século XVII, bandeirante heróico que desbravou o sertão, vinculando sua pretensa
rusticidade ao caráter simples e despojado das casas mais antigas, nas quais a separação entre a
193
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2011
faixa fronteira social e a vida familiar seria mais rígida e a casa apresentava apenas um alpendre
e uma grande sala central. Posteriormente, ao bandeirante conquistador segui-se um tipo humano
mais “aburguesado”, sedentarizado e enriquecido pelo ouro das Minas Gerais. À essa figura
corresponderia as mudanças espaciais na planta da casa rural paulista, que modificaria o partido
bandeirista do século XVII, amolecendo a divisão entre faixa social e recintos da família e
acrescentando um alpendre posterior à planta. (SODRÉ, 2003: 7-9) Posteriormente, essa divisão
seria ratificada por estudos posteriores, já no âmbito universitário, como o de Júlio Katinsky, que
postula claramente a divisão entre “casas bandeiristas” e casas de “tradição bandeirista”,
repetindo, em linhas gerais, o esquema traçado por Saia. (Cf. KATINSKY, 1976)
Desde a morte de Saia muitos outros estudos se seguiram, sendo que alguns podem
mesmo ser considerados mais influentes hoje entre os arquitetos e historiadores do que os do
antigo diretor do SPHAN. Contudo, embora muitas de suas teses hoje tenham sido
desconsideradas, permanecem ainda hoje a terminologia por ele cunhada e sua correspondente
caracterização. De fato, tratam-se de termos tão poderosos que percebe-se hoje uma tendência a
sua extrapolação para fora do campo delimitado por Saia, sendo, ás vezes, (pessimamente)
empregado para definir toda a arquitetura paulista anterior ao café, seja ela urbana ou rural,
religiosa ou civil, colonial ou pós-independência.
À cada novo estudo sobre a casa bandeirista que saí do prelo corresponde uma nova
interpretação sobre qual seria a origem desse partido, quem teria sido seu introdutor em terras
paulistas, quais os hábitos de morar e os espaços de trabalho, que equipamentos e construções
anexas lhe cercariam. As sucessivas interpretações se seguem sem que respostas mais seguras à
tais perguntas pareçam mais próximas. De fato, a casa bandeirista já foi bem definida por um de
seus maiores estudiosos como sendo uma “esfinge semi-decifrada”. (LEMOS, 1999: 21) Em
grande parte, esse mistério que envolve essas arquiteturas se deve a enorme lacuna documental
que o historiador da arquitetura tem que lidar quando seu assunto é o período colonial em São
Paulo. Escassa é a iconografia, raros foram os viajantes que por aqui passaram e deixaram
registros. Contratos e plantas também são pouco numerosos.
Frente às dificuldades em trabalhar com fontes documentais tão lacunares, se faz de suma
importância uma análise cuidadosa das construções que sobreviveram a passagem do tempo e
chegaram até nós. Cumpre, então, para que novos avanços possam se dar na investigação da
história da arquitetura bandeirista que não só se incorpore na pesquisa histórica as materialidades
desses vestígios, como que se procure sempre aumentar o rol de casas identificadas. E de fato,
desde a época das investigações de Saia várias foram as casas bandeiristas que foram
194
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
identificadas, algumas já sob proteção oficial ou conservadas de forma particular por seus
proprietários.
Assim, procuramos por meio desse texto apresentar perante a comunidade acadêmica a
identificação de mais dois exemplares de clara filiação ao partido bandeirista, descobertas
durante um trabalho de pesquisa na serra do Itapeti, que está localizada entre os municípios de
Guararema e Mogi das Cruzes, constituindo-se em um verdadeiro divisor de águas, de onde
nascem afluentes tanto da bacia do rio Paraíba do Sul como da bacia do Alto Tietê. Com a
altitude máxima em torno de 1600m, seu relevo se caracteriza por fortes ondulações, mediadas
por terrenos mais baixos, o que confere às estradas e caminhos da região feições quase
labirínticas, além de tornar difícil o trajeto para veículos comuns.
No entanto, as características que tornam a serra do Itapeti um lugar único para a atuação
de órgãos de pesquisa e de preservação do patrimônio cultural no estado de São Paulo são duas.
Em primeiro lugar, trata-se de uma área de povoamento antigo, uma vez que foi a principal via
para se alcançar o Vale do Paraíba a partir dos Campos de Piratininga e, desse modo,
freqüentada pelos colonizadores desde cedo na história da ocupação do território paulista. Assim,
não foi surpresa encontrar ali vestígios de ocupação primeva como sobrados coloniais e ruínas de
antigas fazendas, sempre construídos em taipa de pilão, a técnica construtiva dominante durante
o período colonial em São Paulo. A segunda característica que confere um aspecto singular a
região é que ali, em meio a serra, a técnica da taipa de pilão ainda era utilizada para a edificação
de casas, pequenas capelas rurais e outros edifícios até poucos anos atrás, sendo, provavelmente,
a última região conhecida no estado onde ainda praticava-se essa técnica construtiva. Trata-se,
assim, para utilizar uma formulação recente no campo da preservação do patrimônio, de uma
verdadeira paisagem cultural em sua totalidade, abrangendo um território específico e o modo
como seus habitantes o agenciam, por meio das técnicas disponíveis e de suas práticas culturais,
na construção de seu modo de vida.
Foi nesse contexto local que encontramos os dois exemplares que agora trazemos à
público. Percebe-se logo de início, que não se tratam de construções vinculadas às arquiteturas
de terra recentes típicas da região. São exemplares que atestam uma ocupação antiga, que nos
permite filiá-los a época característica do partido bandeirista.
O primeiro deles é a chamada fazenda da Estiva, localizada no município de Guararema,
às margens da antiga estrada Rio – São Paulo. A ocupação das terras em que a sede está
localizada date de cerca de 1680, quando se instala no local um pouso no caminho que ligava a
vila de Mogi ao aldeamento da Escada e dali rumo ás vilas de Jacareí e Taubaté, rio Paraíba
abaixo. Contudo, não se pode afirmar ainda que a casa seja dessa data, havendo uma boa chance
195
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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de ser construção de época posterior. A implantação da casa obedece ao padrão comum às
demais casas bandeiristas, com a casa localizada em uma plataforma plana, à meia altura do
terreno. Ainda de acordo com o padrão regular a essas arquiteturas, a casa da Estiva apresenta o
telhado em quatro águas e as paredes portantes de taipa de pilão. Embora haja paredes internas
feitas com taipa de mão, temos motivos para crer que sejam obras de feitura bem posterior, uma
vez que a sede apresenta sinais de ter sofrido bastante alterações ao longo do tempo. As mais
claras modificações, adequações de uma velha arquitetura aos tempos cambiantes, podem ser
verificadas numa análise de sua fachada pela qual podemos ver, nos sinais evidentes de um
antigo alpendre, o padrão bandeirista da faixa fronteira. Descobre-se, assim, a fachada primitiva
e percebe-se que ela obedece ao padrão comum à grande parte dessas casas, que tem sua fachada
fronteira voltada para o Norte/Nordeste (fig. 1). A partir daí, elaboramos uma hipótese,
meramente conjectural, de como poderia ter sido a organização interna da casa (fig. 2).
A segunda casa encontrada, que merece um maior detalhamento, é a casa Botelho, em
Mogi das Cruzes. Em uma primeira vista, a casa Botelho para quem tem em mente construções
do porte de casas bandeiristas como o sítio Santo Antonio ou a casa do Padre do Padre Inácio,
causa estranhamento. Realmente, além do tamanho mais modesto, faltam-lhe o grande telhado
em quatro águas, o alpendre reentrante com os pilares em madeira-de-lei. Contudo, um olhar
mais apurado revela a existência de um alpendre na fachada original da casa, posteriormente
fechado: em comparação com o porte e as secções das ombreiras das janelas com vergas
curvadas com a porta central e as duas janelas menores que a ladeiam, percebe-se claramente que
ali havia um alpendre reentrante (fig. 3). E quanto ao telhado, existem casas bandeiristas que
apresentam um telhado em duas águas, como o sítio da Ressaca e a casa do Tatuapé, ambas na
capital.
Mesmo assim, o aspecto do telhado, o porte apequenado da casa e, ainda, os acréscimos
de construções mais recentes anexas ao imóvel dificultam seu enquadramento no rol de casas
bandeiristas, além da orientação de sua fachada ser voltada para o Sudoeste (fig. 4). Contudo, são
justamente essas características que tornam a casa ainda mais interessante: o porte modesto da
casa, que faz ela aparentar uma casa bandeirista “miniaturizada” faz com que sejamos levados a
pensar se a casa no sítio Botelho não seria uma casa bandeirista “vernacularizada” pelo
isolamento e contexto social diferente daquele do Vale do Tietê que essa tradição construtiva
encontrou ao alcançar a Serra do Itapeti. Infelizmente, não nos foi possível entrar no interior da
casa, tendo que nossas hipóteses ficarem restringidas ao que podemos deduzir de suas fachadas.
Também não foi possível que se estabelecesse uma data estimada para a construção da casa, o
que ajuda a postergar observações mais conclusivas a respeito do imóvel. Ainda assim, essa
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hipótese aponta para um aspecto interessantíssimo da arquitetura da região, que faz com que a
Serra do Itapeti seja um lugar especialmente promissor para a compreensão do vernacular em
nossa arquitetura: o contexto social para o estabelecimento de habitats rurais na região do Itapeti
pode ter causado uma vernacularização de padrões e partidos construtivos antes característicos
da arquitetura dos grandes potentados paulistas. As casas dos grandes sertanistas ou dos grandes
senhores de engenho do Vale do Tietê, acabam adquirindo proporções mais modestas, se
adaptando a uma região em que os recursos técnicos eram mais escassos e aos modos de vida do
proprietário de terras que está ligado a outras atividades produtivas que não o açúcar e outras
culturas que caracterizam a economia da casa bandeirista.
Essas, entretanto, são palavras apressadas, proferidas antes pelo entusiasmo em tecer
hipóteses e imaginar conjecturas do que pela cautela e apego à evidências mais sólidas, como o
tema exige. Ainda mais descabidas se tornam quando se lembra que não é o propósito desse
texto oferecer uma interpretação desses exemplares, muito menos de sua importância ou lugar
dentro do rol das demais casas do partido ao qual se filiam. Tarefa legítima, mas para a qual
pesquisas mais aprofundadas precisariam ser feitas. Queremos apenas trazer à luz a identificação
de mais dois exemplares de casas bandeiristas, localizadas ainda em uma zona que sempre
intrigou a Luiz Saia por nunca ter revelado um testemunho dessa arquitetura. Acontecimento
que, além de alertar para o fato de que a descoberta de novas casas é uma tarefa que – ao
contrário de estar concluída – continua em aberto, aponta para a enorme diversidade cultural que
nosso território ainda guarda a esperar que se faça, finalmente, um trabalho de inventário
exaustivo do nosso (cada vez mais) rico patrimônio cultural.
Referências Bibliográficas:
IPHAN, atrimônio: 70 anos em São Paulo. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2008.
KATINSKY, Júlio R. Casas bandeiristas: nascimento e reconhecimento da arte em São Paulo.
Tese de doutorado, IG-USP, 1976.
LEMOS, Carlo A. C. Casa Paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo
café. São Paulo: Edusp, 1999.
MARINS, Paulo C. G. O Parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista. Anais do
Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 6/7. 2003
SAIA, Luiz, Arquitetura rural paulista do segundo século. In Revista do Patrimônio Histórico e
artístico Nacional, nº 8, Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1944.
____________ Morada Paulista. São Paulo: Perspectiva, 1972.
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Figura 3: Fotomontagem da casa da Estiva
Figura 4: Desenho com a planta hipotética da casa
da Estiva
Figura 5: Foto da casa Botelho em Mogi das
Cruzes.
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Figura 6: Implantação da casa Botelho
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“DA
ADVERSIDADE
VIVEMOS!”
–
A
INFLUÊNCIA
2011
DAS
VANGUARDAS
ARTÍSTICAS NORTE-AMERICANAS E INGLESAS NO TROPICALISMO
Gabriel Barbosa dos Santos
INTRODUÇÃO
Apesar de breve – meados de 1967 até a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968 – o
Tropicalismo foi um movimento que marcou profundamente as produções futuras,
principalmente, no campo das artes visuais, que já vinham apresentando transformações
decisivas para a arte contemporânea brasileira desde o início da década de 1960. Mesmo que não
se autodenominassem “tropicalistas” à época, artistas de diferentes manifestações estéticas
compartilhavam o interesse pelo intercâmbio de experiências e pela circulação de ideias e
influências novas, todos na tentativa de investigar a realidade brasileira e questioná-la.
Houve, assim, uma rearticulação de noções como a da cultura pop (pop art e música pop
internacional), do processo industrial e da comunicação de massa, ao mesmo tempo em que eram
fundidas à bossa nova, ao cinema novo, ao concretismo e neoconcretismo brasileiro. Celso
Favaretto acrescenta em seu texto Tropicália: a explosão do óbvio que a especificidade da
vanguarda brasileira decorreria justamente dessa fusão das propostas surgidas com o projeto
concretista e neoconcretista, bem como, da assimilação das manifestações populares brasileiras
(o samba, por exemplo) com as correntes internacionais – européia e norte-americana.
(FAVARETTO, 2007)
Outra característica do Tropicalismo que também pode ser encarada como uma influência
ao movimento é a antropofagia de Oswald de Andrade. 1 Sendo assim, os elementos do cenário
nacional ganham novo significado a partir desse contato, ou melhor, dessa deglutição da
produção internacional quando mesclada à nossa realidade tropical. No entanto, cabe observar
uma possível diferença em relação ao conceito antropofágico modernista. Neste momento, a
cultura nacional e as próprias identidades nacionais eram vistas como repletas de diversidades e
bastante heterogêneas. Assim, não se buscava mais uma única imagem que caracterizasse o
Brasil, pois lidavam agora com todas essas contradições sem colocá-las como problemas em
termos de oposições excludentes (intentando superá-las). Buscava, sim, articular e estabelecer
campos de tensões entre essas ambigüidades.

1
Mestrando pelo programa de Pós-graduação em História Social da Cultura pela PUC-Rio.
Hermano Vianna a denomina como “voracidade cultural-antropofágica” em seu texto Políticas da Tropicália.
200
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2011
Cabe salientar que o nome e as ideias do movimento foram inspirados na obra de 1967 de
Hélio Oiticica, Tropicália. Tal obra também expõe a necessidade de caracterizar um espírito
brasileiro nas vanguardas artísticas nacionais; uma tentativa consciente de exprimir
peculiaridades do Brasil nas manifestações artísticas em geral. Sendo assim, Oiticica queria
acentuar essa proposta objetiva com elementos brasileiros, numa tentativa de criar uma
linguagem que fosse nossa frente às internacionais. É por isso que se opõe fortemente ao
conformismo, pois acredita que é através da antropofagia que a cultura brasileira será cada vez
mais reforçada.
Essa idéia fica muito clara em Brasil Diarreia, texto escrito pelo artista em 1970.
(OITICICA, 1970) Aí, Oiticica deixa transparecer que o contato com as influências estrangeiras
é uma forma de reafirmar e consubstanciar a identidade da arte nacional. Mais ainda, copular
com o mundo é uma forma de criar uma arte revolucionária – um exemplo disso, segundo o
próprio, é Gil e Caetano. Pois, para Oiticica, a ambivalência é uma forma de crítica, desde que
assumida. Ser ambivalente com convicção não é aceitar tudo “conformisticamente”, mas, ao
contrário, colocá-las em questão. E por isso a importância do diálogo com o exterior.
Portanto, proponho esboçar e balizar essas influências estrangeiras em cujo o movimento
da Tropicália se inspirou. Meu objetivo, em outras palavras, é entender e perceber as influências
do rock nas obras de Hélio Oiticica. Pois balizar e perceber essas influências é tirar da
obscuridade os limites e as tensões entre a cultura genuína brasileira e a estrangeira na pessoa de
Oiticica. Cultura esta que, de algum modo ou de outro, aqui chegou e influenciou a juventude
nacional da época.
***
Antes de enveredar nas análises, sinto a necessidade de inserir este trabalho num objetivo
maior. Caso contrário, seu sentido e relevância serão bastante empobrecidos. Esse é um esboço
das análises sobre o tema que procurarei esmiuçar e aprofundar num futuro próximo. 2 O objetivo
principal da dissertação – e não tanto do presente trabalho – é, grosso modo, procurar entender a
influência do rock e seus ideais na contracultura nacional da década de 60 e 70. Mas, para tal,
entendo o rock como um fenômeno sócio-cultural de importância ímpar, e a contracultura do
Brasil dos primeiros anos da ditadura civil-militar de 1964, como ambivalente. Ou seja, se por
um lado havia aqueles que defendiam a cultura genuinamente brasileira acima de tudo,
2
Objetivamente, na dissertação de mestrado, que defenderei, em 2012, pelo Programa de Pós-graduação em História
Social da Cultural da PUC-Rio.
201
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rechaçando qualquer tipo de “contaminação” vinda de fora – como no caso da marcha contra
guitarra elétrica, de 1967 –, por outro se tinha os que deglutiam as vanguardas culturais
estrangeiras e amalgamavam-nas com as idiossincrasias nacionais. Portanto, vejo, sim, Hélio
Oiticica como integrante desse último grupo da contracultura brasileira.
ANÁLISES
O contato de Hélio Oiticica com o rock antes de sua temporada em Nova York foi
pequeno. Segundo Daniel Alves, ele se restringiu à idealização do cenário, das roupas e de
algumas capas de discos do grupo do tropicalismo musical3. (ALVES, 2007: 55) Mais ainda, era
(e ainda é) constantemente ligado ao samba e ao Morro da Mangueira. Isso porque, em 1964,
Oiticica subiu ao Morro da Mangueira e, daí, traçou relações íntimas com a cultura popular das
favelas. Passou a adotar, então, temas com teor de manifesto social, aclamando pela
marginalidade e lutando contra a repressão política.
Foi, entretanto, em Nova York que Oiticica teve um forte contato com o rock. Não o
suficiente, lá, ele viveu o rock! Graças a uma bolsa de estudos cedida pelo Guggenheim Museum,
em 19710, o artista se autoexilou – como ele mesmo afirmava – numa Nova York que respirava
vanguardismo. Além disso, Hélio Oiticica se encantou, sobretudo, pela contracultura e pelo
underground nova-iorquinos.
O rock influenciado pelo psicodelismo da “geração Woodstock” caia na concretude da
vida real, assim como os próprios hippies. Estes, depois da fase de contestação da vida
tecnocrata e burocrática a partir do “vamos-só-curtir-a-vida”, viram que a realidade é dura, e a
necessidade de adaptação à vida capitalista, imperativa.
Ganhava relevo, concomitantemente ao declínio do flower power, um rock oriundo do
underground da vida urbana, das grandes cidades. Se elas – as cidades – cresceram e
prosperaram, principalmente, com o desenvolvimento econômico do pós-II Grande Guerra,
passavam por tempos sombrios em função da primeira crise do petróleo, em 1973. O colorido do
purple haze hippie foi cedendo lugar ao dark da noite underground. E o rock acompanhou essas
mudanças. Bandas como MC5, Alice Cooper, New York Dolls, Velvet Underground, David
3
Frederico Coelho divide o Tropicalismo em dois grupos: tropicalismo musical seria o grupo liderado por Caetano
Veloso e Gilberto Gil, tendo como companheiros Tom Zé, os Mutantes, Jorge Ben, entre outros; e tropicália,
abarcando as artes plásticas (de Hélio Oitiica, Lygia Clark, Ligia Pape etc.), o cinema (de Glauber Rocha, Júlio
Bressane, Rogério Sganzerla, entre outros), poesia (de Torquato Neto, Waly Salomão e Duda Machado) e
escritos (de Rogério Duarte e José Agrippino). Cf. COELHO, 2010b.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Bowie, Iggy Pop And The Stooges; todos passaram a fazer parte desse movimento musical do
submundo dos grandes conglomerados capitalistas em decadência. Todos concentravam seus
esforços na subversão. Alguns extrapolavam para subversão do próprio corpo. Como diz Daniel
Alves,
(...) todos tinham uma ligação com a violência urbana; todos tinham uma ligação com o
disfarce, com as aparências, com a potência do falso; todos apontavam para uma política
do desejo, para uma certa invenção, construção de si; todos estes performers apontavam
para um trânsito que subvertia a identidades fixas e cotidianas, através do uso de roupas,
usando muita glitter, muita maquiagem e máscaras. (ALVES, 2007: 62-63)
Andy Warhol, e sua Factory, foi um dos alvos da admiração de Hélio Oiticica. O clima
inventivo e underground que o artista americano dava ao seu “refúgio artístico” o atraiu e o
influenciou de maneira substancial. Foi na Factory que Oiticica assistiu ao Explonding Plastic
Inevitable. Considerada uma das primeiras obras multimídias, os EPI’s misturavam música,
cinema e teatro. Ou seja, enquanto o Velvet Underground – “afilhados” de Warhol – entoava
suas canções experimentais, dançarinos sadomasoquistas apresentavam performances ao mesmo
tempo em que o próprio Warhol projetava imagens sobre os músicos. (ALVES, 2007: 70-71)
É inevitável pensar a repercussão de toda a concepção dos EPI’s em trabalhos como a
Cosmococa – programa in progress4. A tônica dessa obra é a quebra de paradigmas do cinema.
Em outras palavras, com a influência da ideia de Warhol em mente, Oiticica estabelecia uma
maior interação do ambiente na apresentação, assim como o fim da apatia dos espectadores
frente à tela e a cessão do regimento ditatorial das sequências do filme. Daí vem o conceito de
“quase-cinema”, idealizado pelo artista brasileiro. “Quase-cinema” porque daria fim à
“unilateralidade do cinema-espetáculo”. (OITICICA, 74: 4). A Cosmococa, em suma, constituía
a projeção de slides multidirecionais (paredes, tetos, chão) sem ordem pré-estabelecida
acompanhada de uma trilha sonora.5 A participação dos espectadores também influenciaria na
arte, dando um ar de imprevisibilidade. As imagens projetadas são fotos de capas de discos ou de
revistas nas quais encontram-se, sobre elas, carreiras de cocaína fazendo o contorno da foto. E
uma das fotos é da capa do disco War Heroes de Jimi Hendrix.
4
As palavras de Cauê Alves sintetizam bem a junção do termo in progress ao nome da obra, “O termo ‘em
progresso’, recorrente em sua escrita e que parece substituir o termo duração empregado principalmente em seus
escritos dos anos de 1950 e 1960, longe de significar um avanço positivo rumo ao futuro, indica uma obra não
acabada, um processo que pode ser sempre recomeçado e reinventado”. (ALVES, 2009: 1)
5
De acordo com Frederico Coelho, em seu livro “Livro ou Livro-me os escritos babilônicos de Hélio Oiticica
(1971-1978)”, os textos nos quais Oiticica escreveu e teorizou sobre as Comococas também fazem parte da obra.
Aliás, para o autor, é um dos seus principais elementos. Cf. COELHO, 2010b: 139.
203
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Vale salientar que Jimi Hendrix foi um grande ídolo e uma forte inspiração para Hélio
Oiticica. Numa das páginas do texto Bodywise, o artista discorre exclusivamente sobre o
guitarrista, maravilhado por Hendrix ter queimado a guitarra no palco – cena que Oiticica
compara com um ato sexual. Toda a movimentação corporal e insinuação para o público do
músico eram vistas, por Oiticica, como uma quebra de paradigmas com o moralismo ocidental
para com o corpo. O comportamento de Hendrix enquanto sua guitarra flamejava, no final de sua
apresentação no Festival Pop de Monterey, em 1967, é comparado com movimentações do coito,
transferindo à guitarra o caráter de um órgão sexual, e ao fogo, a ejaculação. (OITICICA, 1973b)
Além disso, vê em Hendrix o fim do elitismo negro. Ou seja, o negro no palco não tentava mais
se elitizar perante o público branco tocando jazz. Ali, era Hendrix por Hendrix; rock por rock.
Hendrix era dono de si. E mais: autônomo de sua performance – subversiva, diga-se de passagem
–, sem preocupar-se com moralismos.
O rock, com Jimi Hendrix, principalmente, provocou uma reflexão, em Oiticica, acerca
da questão do corpo e da performance. Porém, Alice Cooper e Mick Jagger foram os
provocadores do brain-storming que o fez repensar suas antigas concepções. Muda a relação
“corpo-ambiente”, “espetáculo-espectador” e “espectador-ambiente”. Ou seja, Oiticica adensa as
concepções do Programa Ambiental, cujo mote principal era o Parangolé.
Os Parangolés são formados por capas, tendas, estandartes, bandeiras, tudo colorido,
com poemas escritos sobre o tecido de náilon, e estão ligados às visitas de Hélio Oiticica ao
Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, em meados da década de 60. Essas capas se
relacionavam com as movimentações do corpo, através do samba, e com a interação do público.
A dança, expressão-mor da liberdade do corpo, traçava a relação corpo-ambiente. Em outras
palavras, samba, Parangolé, ambiente e espectador formavam, no imaginário de Oiticica, o auge
da integração e liberdade em performances. Até que ele conhece o rock.
Em Nova York, recodifica as concepções e ideias acerca do Parangolé. Muda e repensa,
sobretudo, assistindo a reação e participação da plateia perante o concerto de Alice Cooper. No
texto Time is on my side, Hélio Oiticica chama atenção para os movimentos das mãos da plateia,
no show do roqueiro, ao ritmo da música. E deixa claro que eram movimentos que em nada
tinham a ver com a histeria dos fãs ante seu ídolo: era dança. Dança anônima. "(...) libertação da
dança corpo-cabeça-braços-mãos q se juntam num espetáculo só". (OITICICA, 1973a: 8) Em
outra palavras, Oiticica presenciou uma nova relação entre performer-performance.
Em Mick Jagger, vê uma nova compreensão da roupa do performer. Quando a
indumentária é escolhida sem intenções ou funções premeditadas, ganha, junto com o corpo,
uma relevância e interação com o ambiente. Vira CAPA-CLOTHING, conceito criado por
204
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Oiticica para representar esta ideia: a vestimenta sem um papel específico, passando, então, a
fazer parte da totalidade “roupa-corpo-performance-ambiente-plateia”.(OITICICA, 1974: 72)
Desta forma, Oiticica vê no rock a quintessência da relação corpo-ambiente. Muito mais
do que o samba. Pois o samba tinha(tem) o problema da mesmice ritualística. Por mais que seja
também uma forma de extravasar os sentimentos e liberar energia acumulada – uma maneira de
interação social entre corpos contentes e animados – o samba tem, grosso modo, uma regra de
passos(dança). Passos esses que acabam caindo na mesmice. E pior: nem todos estão aptos a
realizá-los. Ao contrário do rock, que influencia o corpo a fazer o que tem vontade de fazer. É
um balanço natural, quase instintivo, de movimentos aleatórios reagentes à música. As palavras
de Oiticica sintetizam bem essa distinção entre um estilo musical e outro.
Foi com a Mangueira que eu descobri que a dança é a dança que se dança. A única
diferença que há entre samba e rock é que no samba, você tem que ser iniciado nele, pra
você poder usufruir dessa descoberta do corpo dançando sozinho. Agora, o rock dispensa
esse estágio de iniciação. Ao passo que o samba é uma coisa mais ligada à terra, ligada a
coisas míticas das quais o rock prescinde. O rock já sintetiza tudo isso, você já é iniciado
desde que ele te atinge. O samba, eu tive que ir a ele. (OITICICA apud JACQUES, 2007:
41)
O rock era reflexo do que se sentia naquele instante. Aliás, foi o próprio Oiticica quem
viu o rock como uma ligação ao momento: "Nada prova que o Rock é Rock a não ser o momento
em que se reconhece que é Rock". (OITICICA, 1973a: 14) Em suma, o rock é uma dança
libertária, no sentido mais anarquista que essa palavra pode apresentar.
A partir dessas novas proposições, vislumbradas, como já salientado, por Oiticica durante
sua estadia em Nova York, o Parangolé foi repensado e recodificado. Agora, como o próprio
artista afirma, o Parangolé não era mais samba: era rock; não era mais “obra de vestir”: era um
fenômeno de interação “corpo-plateia-ambiente-performance”. (OITICICA, 1973a: 12) Mais
ainda, passou a ser uma forma de alterar situações do cotidiano urbano, de mudar a rotina dos
indivíduos, que viviam aquela vida enfadonha da pequena-burguesia nova-iorquina. De acordo
com Daniel Alves, “o Parangolé integra dessa maneira um tipo de ação ou performance onde o
passante anônimo/espectador é convertido em participador.” (ALVES, 2007: 71). Do Rio a Nova
York. Do samba ao rock. Do morro ao metrô. O Parangolé, então, passou a ser o que Hélio
Oiticica vivia naquele momento. E nada mais “momento” do que o rock!
205
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CONCLUSÃO
O escopo principal das reflexões acima apresentadas não foi apresentar a obra de Hélio
Oiticica, grandiosamente estudada e reestudada, a partir de uma “nova” abordagem. Não foi
entender as mudanças reflexivas e analíticas do artista quando em Nova York. Tampouco
adentrar nas profundezas etéreas de suas obras relacionadas ao rock. Foi, entretanto, mostrar uma
outra vertente da contracultura do Brasil ditatorial. Vertente essa que, ao contrário daqueles que
viam nas raízes culturais brasileiras genuínas uma única inspiração, deixavam-se influenciar pelo
espírito do tempo, pelas vanguardas da época, mesmo sendo elas oriundas de culturas
estrangeiras. E, por isso, incluo o artista no bojo desse grupo.
Mas há ainda um objetivo maior e de importância mais urgente.
O telos basilar – ligado a uma objetividade emocional, diga-se de passagem – de todos
esses esforços é de tentar incrustar a ideia do rock como um fenômeno social. Um acontecimento
de suma importância para as relações inerentes às sociedades da segunda metade do século XX.
Que o rock é um fenômeno cultural, todos sabem. Porém, infelizmente, o cultural é muitas vezes
visto como o exótico, como algo de pouca relevância para a vida social. Quase um objeto de
antropólogos e seus trabalhos de campo, portando seus caderninhos de anotações e seus coletes
em tom pastel. Principalmente frente às suas “irmãs bem-sucedidas”, a política e a economia –
parafraseando a metáfora da história cultural como Cinderela de Peter Burke. (BURKE, 2008: 7)
Hélio Oiticica é um ator de suma importância para entendermos o rock também como um
fenômeno social. Ele – o rock – provocou mudanças na vida desse artista muito além das
inspirações estéticas, inventivas, metafísicas e conceituais. Como pudemos ver, mudou, ao
transformar sua visão de mundo e seu modo de pensar paradigmas artísticos, suas relações
sociais. Suas relações com o mundo.
Oiticica é só um exemplo de vários indivíduos que tiveram suas revoluções internas
impulsionadas pelo rock. Porém, esse, indubitavelmente, é um dos exemplos mais ricos e
interessantes que podemos ter. Não só pela obra, mas, principalmente, pelo modo de pensar – ou
por que não “modo de não-pensar”? – a arte.
Referência Bibliográfica:
ALVES, Daniel Cassin Dutra. H2 O2: Hélio por Hélio; Oiticica pós Oiticica. Belo Horizonte:
UFMG, 2007, 145f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Artes da
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Todas as fontes primárias foram analisadas através do acervo digital dos documentos escritos
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
MARTA TRABA E A CONSTRUÇÃO DE DUAS HISTÓRIAS DA ARTE NA AMÉRICA
LATINA
Gabriela Cristina Lodo
Marta Traba (1930-1983) foi uma importante escritora e crítica de arte argentinocolombiana, formada em Filosofia e Letras pela Universidade Nacional de Buenos Aires, e
História da Arte pela Sorbonne de Paris. Radicou-se em Bogotá na década de 1950, onde obteve
a cátedra de História da Arte na Universidade Nacional da Colômbia, residindo no país até 1968,
quando passou, então, por outras cidades, como: Montevidéu, Caracas, San Juan de Puerto Rico,
Washington, Princeton, Barcelona e Paris. Convivendo com a produção artística de diferentes
países do continente, e fora dele, publicou inúmeros estudos sobre a arte latino-americana, dentre
eles o livro Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericana 1950-1970, de 1973.
A postura de Marta Traba diante da arte sempre foi a de atribuir às obras mais que prazer
estético, mas demarcar sua relação com a produção social e política, num confronto com seu
tempo e contexto de criação. Sua posição torna-se ainda mais marcada na segunda metade do
século XX, principalmente entre décadas de 1950 e 1960, quando passa a defender e requerer
dos artistas latino-americanos uma atitude contrária às influências teóricas e artísticas vindas da
Europa e Estadas Unidos, em resistência e proteção a uma arte da América Latina. A crítica
considera que “a arte, em sua definição marxista, é uma modalidade da atividade real e criadora
do homem; que, de modo nenhum, reflete uma suposta realidade externa a ela, nem cópia nem
ato reflexo, mas constrói tal realidade com sua capacidade criadora”. (TRABA, 1977: 17). Traba
defende que a obra de arte deve estabelecer uma comunicação com a sociedade, pois sua
dimensão real seria a da mensagem passada e recebida criticamente, “a obra de arte como
mensagem e o público como indivíduo hábil para manejar essa mensagem, bem seja analisando,
aceitando ou rechaçando encerram o circuito para que a obra de arte exista totalmente e exerça
um peso sobre a comunidade”. (CATÁLOGO, 1978). Sua postura é, sem dúvida, em defesa de
uma socialização da arte.
Traba observa nos artistas da América Latina modos diferentes de estabelecer essa
comunicação proposta. Ela divide, ainda, o cenário artístico latino-americano em “zonas”, e
essas zonas; a saber, áreas fechadas, áreas abertas, ilhas, e México, corresponderiam à atuação
do artista e do mercado de arte do continente em relação a uma teoria e arte internacionais, e seu

IFCH/UNICAMP. Mestrado (em andamento) pelo Programa de Pós-Graduação em História, sob a orientação do
Prof. Dr. Nelson Alfredo Aguilar, com financiamento da CAPES.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
grau de dependência a estes. Apesar de quatro regiões distintas podemos nos deter apenas nas
duas primeiras. As áreas fechadas estariam compostas pelos artistas da Colômbia, Peru, Equador,
Bolívia e Paraguai, e seriam os menos dependentes dessa cultura externa, estaria, ainda, à
margem da avalanche de influências vanguardistas vindo da Europa, primeiramente, e depois dos
Estados Unidos, mantendo uma produção coerente com suas realidades imediatas, como a força
do ambiente, a influência da cultura pré-colombiana, a manutenção das tradições e certo
“nativismo” na arte. Pode-se destacar a atuação dos artistas colombianos Alejandro Obregón e
Fernando Botero, e do mexicano Ricardo Martinez. Já nas áreas abertas encontramos artistas da
Venezuela, Argentina, Brasil e Chile, predispostos à realização de uma arte de vanguarda,
constantemente voltada para o futuro e para o novo, marcadas pelo progresso e a modernização,
com forte presença de tendências abstratas, sejam elas construtivas ou cinéticas, com um
crescente desuso da pintura como principal meio expressivo, conversando com produções e
artistas estrangeiros, e estando, muitas vezes, os artistas latinos radicados no exterior. Assim,
ressalta-se a produção dos venezuelanos Cruz-Diez e Alejandro Otero, e do argentino Julio Le
Parc. Pode-se tomar como principal exemplo desse antagonismo criado pelas áreas abertas e
fechadas, o caso da Venezuela e Colômbia, os maiores representantes de suas áreas, de acordo
com Traba, como esta afirma em sua palestra no Simpósio da I Bienal Latino-Americana de São
Paulo, em 1978. Apesar de esses países serem limítrofes e compartilharem de uma mesma
história no período da Independência e primeira fase da República, a arte produzida por seus
artistas possuíram características similares até a primeira metade do século XX, quando tomaram
caminhos distintos. Surge, então, ante a maior parte dos artistas colombianos, a partir da década
de 1950, uma tentativa de interromper a orientação européia, acompanhada de uma valorização e
incentivo do orgulho da arte nacional, vinculada a tentativas conservadoras, como o retorno à
paisagem, ao retrato, o alarde político, e quase total eliminação de experimentos vanguardistas; e
mesmo os artistas que utilizam expressões abstratas, nesse período, as condicionam para a
sociedade. Na Venezuela o processo é diametralmente oposto, o fim da ditadura rural no final da
década de 1940 e a rápida modernização do país devido à economia petrolífera são alguns dos
fatores determinantes. A partir da década de 1950, muitos artistas migram para a Europa e
estabelecem contato com artistas e movimentos estrangeiros. A relação desses artistas e a
contribuição dos mesmos às expressões contemporâneas européias fazem com que na Venezuela
haja uma maior recepção e diálogo com tendências internacionais. A principal delas foi a arte
cinética, amplamente difundida na Venezuela, tendo o apoio da elite dominante.
Traba era acirradamente contrária à produção artística dos países das áreas abertas, pois
considerava que a dominação cultural exercida por séculos em nosso continente era mantida,
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
ainda no século XX, com a postura de artistas que não deixavam de se reportar às tendências
européias e americanas. Seria preciso ignorar essas influências vindas de fora, e instituir uma
resistência para que se possa, assim, pensar em uma autonomia, e uma identidade para a arte
latino-americana. (BAYÓN, 1975: 42).
Quanto mais fechados e arcaicos são os países, mais capacitados estão os pequenos
núcleos criadores para exercer esse distanciamento entre o modelo e a verdade cotidiana;
sentem-se mais unidos a ela e estão menos dispostos a praticar um corte que, claramente,
resulta-lhes grotesco. Em proporção inversa, as capitais abertas, que presumem um alto
desenvolvimento de sua cultura local, incorrem mais facilmente na perda da visão da vida
cotidiana e tendem a expressar-se como superestruturas. (TRABA, 1977: 28).
A resistência a essa colonização cultural, que de acordo com Traba começa a delinear-se
ainda na década de 1950, era antes de tudo uma visão conservadora da arte, em que a maior
expressão artística era representada pela pintura, e por uma pintura ligada ao social, à figuração,
à realidade imediata do artista e do seu país, e à construção de uma mensagem; não admitindo a
realização, por parte dos artistas do continente, trabalhos em acordo com tendências
contemporâneas tidas como estrangeiras, como objetos, happenings, a cultura pop americana, a
abstração, entre outros. Para ela, seria necessário trabalhar, ao mesmo tempo, as obras e as
concepções ideológicas, resistindo à invasão da América Latina por vanguardas que nada têm a
ver com nossa realidade, para então definir e promover uma arte legitimamente latino-americana.
Cabe, contudo, questionar o que seria legitimamente latino-americano, de que forma o artista
latino-americano responderia à sua realidade imediata, e em que medida este deveria buscar, e se
buscar, uma resposta no exterior.
A teoria da crítica argentino-colombiana contou com o apoio de alguns outros críticos e
artistas, como o artista peruano Fernando de Szyszlo (1925-), considerado um artista da
“resistência”. Szyszlo era pintor e acreditava, assim como Traba, que o artista latino-americano
vivia sob as mesmas condições de um artista marginal de outros tempos, submetido a uma
situação colonial, política, social e culturalmente imposta pelas grandes metrópoles, o que o
colocaria em uma situação dúbia, incapaz de repelir a linguagem estrangeira, como as buscas,
preocupações, experimentos e linguagem plástica trabalhadas por artistas internacionais; e a
tentativa de ser fiel a si mesmo e leal à tradição local, e sua circunstância marginal, resistindo aos
modelos importados que o aliena quando obedecidos. (BAYÓN, 1975: 36-37).
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Esta confusão e dissolução de modelos e pontos de referências na chamada pintura
ocidental trouxeram uma conseguinte contestação do que se entende de pintura, ou arte
em geral, (...) de um lado, propõe como padrão uma tendência fugaz; e de outro, (...) se
tudo está perdido, o crítico de arte colonizante (sic), que antes dava indicações por esses
modelos, hoje está órfão de diretrizes e tem optado na maioria dos casos (...) pelo silêncio
ou seu equivalente, a negação da possibilidade de se fazer pintura no atual período.
(BAYÓN, 1975: 37).
Um ponto significativo para um artista da resistência é a manutenção da pintura como
uma expressão que se sobressaia sobre as demais. O próprio ato de pintar em tempos de objetos,
instalações, happenings seria uma resistência. O pintor peruano acredita, ainda, que a arte não
deve ser medida pelo seu sucesso ou exposição mais ou menos internacional, mas pela
autoridade com que a qual manifesta a seriedade de seus motivos e a seriedade com que os
artistas a produzem. (BAYÓN, 1975: 37). Essa mesma seriedade é ressaltada por Traba na
produção de outros artistas da resistência. No entanto, Szyszlo não era um artista defensor de
uma arte figurativa, já que foi responsável por uma renovação artística em seu país nas décadas
de 1950 e 1960, ao introduzir a cultura peruana e pré-colombiana em suas obras através da
abstração. O artista definiu o curso que tomou o ancestralismo dentro da abstração lírica em seu
país, como se observa na obra Puka Wamani, de 1968, [IMAGEM 1]. Nessa pintura notamos a
presença de formas arquetípicas como o círculo, condensado de energia e rigor conceitual
dotados de menções mágicas. Suas obras são repletas de alusões evocativas a rituais, mitos e a
associações de locais sagrados pré-colombianos. Para Traba, ao refletir sobre a produção de
Szyszlo e outros artistas da resistência, “a contribuição que a América Latina pode dar ao lúdico
encontram-se, justamente, em sua diversa natureza, em sua interpretação com elementos míticos
reais, nos contextos mágicos que afloram das culturas andinas, centro-americanas ou caraíbas de
onde provêm”. (TRABA, 1977: 48). A crítica atribui, assim, excessivo valor a uma arte que
mantenha vínculo com sua origem e com a coletividade. Desvalorizando, por conseguinte, a arte
abstrata, por acreditar que esta assinale a existência de uma visão individual. (TRABA, 1977:
58).
A arte abstrata manteve-se no nível da estrita emissão individual de significados. Mas o
mérito de um artista abstrato não está unicamente no ato de destruir as imagens e suas
coordenadas históricas espaço-temporais; isto seria um ato revolucionário, mas não da
mesma forma um ato estético. O mérito cresce em relação direta com a capacidade do
artista para criar esse código de associações internas que nos dê novas opções do visível,
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
destinadas a substituir as que se aboliram. Se o aparecimento da pintura abstrata na
Europa e se, depois, a explosão do expressionismo abstrato nos Estados Unidos tem uma
necessidade plenamente justificável, na América Latina obedece, acima de tudo, a uma
vocação e a uma moda. (TRABA, 1977: 59).
Entretanto, não são todos críticos e artistas que concordam com as teorias de Traba, esse
é o caso do brasileiro Frederico Morais, o argentino Jorge Romero Brest, o peruano Juan Acha,
os mexicanos Jorge Alberto Manrique e Rita Eder, o argentino Damián Bayón, entre outros.
Apesar de o crítico brasileiro Frederico Morais admitir uma possível divisão do cenário artístico
latino-americano entre áreas fechadas e abertas, pois há, visivelmente, uma distinção no modo
em que os artistas trabalham suas técnicas e temáticas; e admitir que as teorias construtivas
sejam importadas, principalmente em áreas com pouca influência da cultura pré-colombiana e/ou
barroca, como Buenos Aires, Montevidéu, Caracas, e o eixo Rio/São Paulo; Morais, aponta
divergências quanto à oposição às vanguardas, principalmente quanto a valorização de uma área
em detrimento da outra. Para o crítico brasileiro, a manutenção forçosa de uma linguagem ou
tendência, conduziria a produção artística do continente à conservação de uma posição inferior e
atrasada ao que se é discutido no resto do mundo, e essa seria uma nova submissão. “Resistir e
libertar. Mas resistir com novas linguagens, ou melhor, com o novo. Nós somos a diferença que
eles necessitam para ativar seu próprio processo criador” (MORAIS, 1979: 13). Morais também
propõe uma resistência, mas esta seria ao “bloqueio das multinacionais do mercado de arte e a
colonização imposta pelas grandes mostras internacionais” (MORAIS, 1979: 13), tendo, os
latino-americanos, o direito de devorar tudo que possa ser útil à construção de sua arte. A arte da
América Latina seria construída com o novo, com formas novas, repelindo as formas antigas que
serviram à opressão do nosso ambiente artístico e nossos artistas. Ambos os críticos defendem a
resistência na arte latino-americana, mas será que estamos diante de duas resistências diferentes?
Ou será que ambos propõem a mesma resistência, mas por caminhos distintos?
Morais defende uma possível vocação construtiva nas artes plásticas da América Latina, e
essa vontade seria anterior e mais profundo que a própria existência do construtivismo em alguns
países europeus. Para o crítico brasileiro, a arte construtiva ganha significado primeiramente em
países europeus desenvolvidos, como Alemanha, Holanda e Suíça, mas suas primeiras
manifestações ocorreram na URSS durante a revolução de 1917, coincidindo com manifestações
políticas e sociais. A vocação construtiva trata-se, portando, segundo Morais, de uma construção
de uma nova realidade. E isso seria inerente ao artista latino-americano. (MORAIS, 1979: 78,
85). “Nos manifestos madistas, concretistas, neoconcretistas ou invencionistas, não são feitas
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
alusões às possíveis implicações políticas desses movimentos, mas esta ausência não nos impede
de localizar em suas propostas uma presença política ou o desejo utópico de renovar e
transformar a sociedade”. (MORAIS, 1979: 87). A discussão de uma realidade imediata também
é observada na produção de artistas das áreas abertas, mesmo que estes não se utilizem da
pintura, como se nota na instalação Penetrável [IMAGEM 2], realizada na década de 1960 pelo
artista Jesús Soto (1923-2005). O artista venezuelano radicado em Paris, desde 1950, foi um
expressivo representante da arte cinética. Sua produção trabalha com questões relacionadas a
movimento, espaço, tempo, a vibração como efeito óptico, e transformação da obra perante o
público, envolvendo materiais diversos. Essas questões pouco, ou nada, estariam envolvidas com
uma pertinência política, mas como demonstra o próprio artista, seus trabalhos indicam uma
reação social.
Tinguely [escultor suíço], por exemplo, que era um homem brilhante, muito culto, surge
do perfeccionismo mais absoluto, que é a Suíça. (...) Mas nós, na Venezuela, não temos
nada disso; temos toda a natureza a nosso favor, mas estamos começando a domá-la e até
que não tenhamos uma estrutura social perfeita formada, não temos direito a destruir. Por
isso tenho defendido sempre a ideia da estrutura, e quis deixar a meu país pelo menos
essa ideia. Não sei que valor possa ter, que intensidade possa alcançar, mas pelo menos
tento deixá-la clara e precisa. Eu quero estrutura para a Venezuela e para a América
Latina. O mais importante, o que mais me preocupa, é deixar em meu campo uma ideia
do que este país tem de ser algum dia. (JIMENEZ, 2005: 107).
Para Morais o cinetismo venezuelano está dentro da mesma perspectiva do que ele
denomina de vontade construtiva, acompanhando o concretismo argentino, brasileiro e uruguaio,
e as tendências geométricas que também despontam na Colômbia e no México no mesmo
período. No entanto, Traba se coloca veementemente contrária a essa expressão na Venezuela.
Não sou contra os artistas cinéticos, mas estou contra o modo como a classe dominante
deste país manipulou sua produção como uma espécie de arte-modelo. A classe
dominante criou a ilusão de um país super desenvolvido, tecnologicamente avançado e
industrializado. O que não é verdadeiro, pois o país segue sendo rural e se desenvolve
lentamente. A classe dominante se deixou envolver por essa visão de futuro,
tecnologicamente superior, que proporciona o cinetismo. Em conseqüência disso, ou seja,
dessa concepção do cinetismo como expressão nacional da arte venezuelana atual, todas
as demais correntes foram marginalizadas. Posso até considerar o cinetismo como um
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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aspecto positivo da arte venezuelana, mas me nego, rotudantemente, a considerá-la como
expressão da sociedade venezuelana. (MORAIS, 1979: 139)
Traba, ainda, se posiciona contrária à saída dos artistas latino-americanos para o exterior.
Os cinéticos venezuelanos e os construtivos argentinos foram os que se radicaram na Europa em
maior número, podendo citar Soto, Otero, Cruz-Diez, Le Parc, entre outros. Esses artistas foram
significativos não só para a arte do continente, mas também para a produção das tendências
internacionais. Soto participou da primeira mostra de arte cinética em Paris, na Galeria Denise
René, em 1955, e na concepção do Manifesto Amarelo, apresentado na mesma ocasião; e Le
Parc foi um dos fundadores do Groupe de Recherche d’Art Visuel (GRAV) na década de 1960.
Jorge Alberto Manrique define que o geometrismo latino-americano seja diferente de qualquer
outro, pois estaria carregado de uma resposta à realidade do continente, e esse seria o fator
decisivo para o sucesso dos artistas latinos no exterior.
O que se faz característico na arte latino-americana é o fato de que (...) produzindo arte,
responde-se às suas circunstâncias (...), o geometrismo que se faz em um país latinoamericano tem apenas o fato de que, em um sentido diferente, está dando uma explicação
sobre a realidade latino-americana, e cobra assim, um sentido diferente de uma expressão
artística semelhante e realizada em quaisquer outras capitais modelos do Ocidente.
(BAYÓN, 1975: 69)
Pode-se afirmar que a arte construtiva se desenvolveu em determinada parte da América
Latina em detrimento de outra, contudo, não se podem criar segregações dentro do continente, as
influências vindas da Europa e dos Estados Unidos não atingiram a certos países e artistas e a
outros não; a abstração seja ela geométrica ou lírica, o pop americano, os happenings, os objetos,
ou os ambientes, estão presentes em toda a produção latino-americana, mesmo naquela
considerada de uma área fechada. O artista Fernando de Szyszlo, já citado, pertencente à
chamada área fechada, e ainda assim, utiliza-se da abstração lírica para compor suas paisagens
ou atmosferas míticas; enquanto, o artista brasileiro Rubem Valentim (1922-1991), que faz parte
do que seria a área aberta, trabalha seu vínculo com as raízes nacionais, principalmente as
origens africanas do seu país, através de uma linguagem construtiva, como notamos na referência
totêmica da obra Templo de Oxalá [IMAGEM 3], de 1977. Os artistas de áreas fechadas também
foram influenciados pelas tendências externas, na mesma medida, que artistas das áreas abertas
não deixaram suas origens e suas realidades imediatas de lado.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Torna-se notório nos discursos dos críticos, desse período, certo questionamento sobre o
que há de legítimo e de peculiar na arte latino-americana, e o que distinguiria essa produção das
demais. Apesar de uns acreditarem na valorização da distinção abstrata no continente, e outros
na resistência da pintura como espaço social, ainda assim, não podemos limitar as possibilidades
que nos levaria a uma compreensão ampla do assunto. Resta, então, questionar o que há
particular, de fato, na produção artística da América Latina nas décadas de 1950, 1960 e 1970,
em todas as suas diferentes manifestações. Contudo, devemos nos prevenir que, talvez, não haja,
ou não encontremos, resposta para esse questionamento.
BIBLIOGRAFIA
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Editores, 1975.
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Ministério das Relações Exteriores; Ministério da Educação e Cultura; Fundação Bienal de São
Paulo, 1978.
MORAIS, Frederico. Artes plásticas na América Latina: do transe ao transitório. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979.
RIMENEZ, Ariel (org.). Conversaciones con Jesús Soto. Venezuela, Caracas: Fundación
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TRABA, Marta. Duas Décadas Vulneráveis nas Artes Plásticas Latino-Americanas – 19501970; tradução de Memani Cabral dos Santos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
IMAGENS
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[Imagem 1]
Fernando de Szyszlo
Puka Wamani, 1968. Acrílica s/ madeira.
Peru, Museu de Arte de Lima.
[Imagem 2]
Jesus Soto
Penetrável.
Tubos de metal e mangueiras plásticas.
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[Imagem 3]
Rubem Valentim
Templo de Oxalá, 1977.
220x78x78cm.
Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, Museu de arte Moderna da Bahia.
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VI JAC: EXPERIMENTAÇÃO NA CONTRUÇÃO INSTITUCIONAL DA HISTÓRIA
DA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA DURANTE A DITADURA MILITAR.
Heloisa Olivi Louzada
A importância do estudo das exposições para a construção da história da arte pode ser
justificada devido às exposições serem o local no qual se encontram diversos aspectos que
permeiam o sistema da arte: obras, instituição, política, arquitetura, percepção, curadoria,
artistas, etc. Desta forma, as exposições, tomadas como objeto de estudo, alargam o campo da
história da arte ao adicionar elementos e questões relativas ao mercado de arte, à política
institucional, ao discurso curatorial, entre outros aspectos que pautam e influenciam tanto a
produção artística como as narrativas para história da arte.
Not only does looking at exhibitions reveal previously ignored works and enlarge the cast
of characters beyond the established players, it adds to the descriptive explanatory mix a
range of social, economic and political factors. And provides a vehicle for setting the
objects of art history within broader regimes of perception and values. (ALTSHULER,
2011:10)
Ao analisarmos a história das exposições no século XX é possível dizer que a história da
arte moderna e contemporânea vêm sendo escrita através das exposições realizadas por
instituições museológicas, e portanto, pautada por seus enquadres institucionais.
Nesse sentido, proponho uma reflexão sobre a VI exposição Jovem Arte Contemporânea
realizada no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1972,
considerada um marco na história do MAC, das exposições de arte e na forma como elas são
concebidas. A VI JAC, como ficou conhecida, é fruto de um debate iniciado dentro do próprio
museu durante a gestão de Walter Zanini (1963-78), período em que também se vive no Brasil os
anos mais duros da ditadura militar.
O MAC-USP é fundado em 1963, a partir da doação total do acervo do MAM para a
Universidade de São Paulo. Walter Zanini assume a direção do museu e aos poucos começa,
juntamente com jovens artistas e professores da Universidade de São Paulo, a dar forma a um
novo projeto de museu.

Mestranda pelo Programa de Pós Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São
Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Cristina Freire, com o financiamento da CAPES.
219
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Durante os primeiros anos na direção do MAC-USP, Zanini concentrou seus esforços no
preenchimento das lacunas e na exibição do imenso acervo de arte moderna da instituição,
realizando diversas exposições itinerantes.
Ao mesmo tempo, e principalmente, a partir de fins da década de 1960, o museu dedicou-se
a experiências expositivas que buscavam fomentar e legitimar a produção de jovens artistas
brasileiros, em uma série de exposições anuais que ficaram conhecidas como Jovem Arte
Contemporânea.
As primeiras edições foram dedicadas exclusivamente às técnicas de desenho e gravura,
chamando-se, portanto, Jovem Desenho Nacional e Jovem Gravura Nacional. A partir de 1967,
as exposições se tornaram mais abrangentes, e passaram então a se chamar Jovem Arte
Contemporânea, englobando todas as técnicas e suportes das artes visuais.
As JACs foram, aos poucos, aprofundando tensões e discussões sobre o papel de um museu
de arte contemporânea como fórum e laboratório durante os duros anos da ditadura militar. O
MAC buscou se afirmar como um local de produção de conhecimento e plataforma crítica para
se pensar a construção e legitimação de narrativas sobre a historiografia da arte, o papel do
artista e o estatuto da obra de arte. Essa postura também se contrapõe radicalmente à lógica do
sistema repressivo que se instaurou com o golpe de 1964.
Dentro dessa trajetória do museu, a sexta edição, realizada em 1972 contou com várias
mudanças estruturais – que serão detalhadas mais adiante, como loteamento do espaço do museu,
sorteio dos lotes entre os artistas, ausência de pré-requisitos para inscrição, ausência de júri e
prêmio, estímulo à arte conceitual e à produção coletiva. Essas mudanças foram fruto dos
debates iniciados pela edição anterior da mostra, realizada em 1971. Foi na V JAC que os
primeiros trabalhos conceituais entraram na mostra, discutindo o papel do artista, do espectador e
da instituição, problematizando as velhas estruturas sob as quais uma mostra de arte dita jovem
estava sendo organizada.
No debate público realizado em 18 de setembro de 1971, foram levantadas as seguintes
questões:
“Porque a exposição se chama Jovem Arte Contemporânea? É dedicada aos jovens? para os jovens?
Porque se é de jovens deveria ter também um júri jovem – ‘Um júri jovem para uma arte jovem. Em vez
de comprar a obra do jovem não seria melhor dar o dinheiro para esse jovem pesquisar?’
“O júri não poderia ser aberto, isto é, discutir com o artista o ‘por quê’ da sua inclusão ou não
inclusão?”1
1
Falas de um grupo de estudantes da FAAP e de pessoas desconhecidas registradas por escrito nos Debates da 5ª
JAC em 18 de setembro de 1971. Arquivo MAC USP. 100/002 V1.
220
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Na contra capa do catálogo da mostra, foi também publicado o seguinte texto (ANDRE,
1970: 105-106):
1- QUEM É ARTISTA?
a- O artista é alguém que diz ser artista.
b- O artista é alguém que possui o diploma de uma academia de arte.
c- O artista é alguém que faz arte.
d- O artista é alguém que faz dinheiro com a arte.
e- O artista não é nada disso, é alguma coisa disso, é tudo isso ao mesmo tempo.
2- QUE É ARTE?
a- A arte é o que o artista diz ser arte.
b- A arte é o que o crítico diz ser arte.
c- A arte é o que o artista faz.
d- A arte é o que traz dinheiro para o artista.
e- A arte não é nada disso, é alguma coisa disso, é tudo isso ao mesmo tempo.
3- QUE É VALOR ARTÍSTICO?
a- O valor artístico é uma ficção do artista.
b- O valor artístico é uma ficção do crítico.
c- O valor artístico é o preço de um objeto de arte.
d- O valor artístico é o preço de venda de um objeto de arte.
e- O valor artístico não é nada disso, é alguma coisa disso, é tudo isso ao mesmo tempo.
4- QUAL A RELAÇÃO ENTRE ARTE E POLÍTICA?
a- A arte é uma arma política.
b- A arte nada tem a ver com política.
c- A arte serve ao imperialismo.
d- A arte serve a revolução.
e- A relação entre arte e política não é nada disso, é alguma coisa disso, é tudo isso ao
mesmo tempo.
5- PORQUE EU CONTINUO?
a- Continuo porque a arte é a obra de minha vida.
b- Continuo porque a arte é meu ganha-pão.
c- Continuo pois a arte morrerá se eu parar de trabalhar.
d- Continuo pois a arte permanecerá inalterada se eu parar de trabalhar.
e- Continuo por nenhuma dessas razões, por alguma dessas razões, por todas essas razões
ao mesmo tempo.
221
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Esses questionamentos levantados por artistas, estudantes, críticos e professores iam de
acordo com a preocupação de Walter Zanini, diretor do MAC, de “os museus de arte
contemporânea se constituírem em órgãos de comunicação para o artista e o público, através da
montagem de centros de documentação onde se colete e selecione amplo material sobre a
atividade artística contemporânea”.2
Em relação ao espaço da mostra, os debates levaram em consideração também a realização
de uma exposição menos elitista, que se realizaria na Praça da República ao invés de dentro do
museu no Parque do Ibirapuera. Porém, a solução adotada foi a de lotear o espaço de 1000 m² do
MAC, sugerida pelo artista Donato Ferrari. O projeto foi realizado por alunos de comunicação
visual da Fundação Armando Álvares Penteado, sob a orientação do professor Laonte Klawa. Os
lotes foram então previamente desenhados e numerados no espaço do museu, contando com
dimensões e formatos bem variados.
Em 1972, a exposição então se organiza através da livre inscrição de qualquer pessoa e do
sorteio dos 84 lotes entre os inscritos; em cada lote poderiam ser realizadas produções em
equipes e também permutas entre os participantes. Os prêmios, existentes nas edições anteriores,
foram transformados em verba para pesquisa, e depois, por decisão dos participantes, em um
fundo para a organização de uma documentação e publicação de um catálogo sobre a exposição.
Essa nova estrutura buscava incentivar a produção coletiva 3, alargar o âmbito da
manifestação e provocar uma tomada de consciência das significações desses processos,
exigindo de todos os participantes propostas escritas sobre as intenções de seus trabalhos e omitir
os critérios de valor que presidem a aceitação ou recusa de trabalhos.4
A exposição se desenvolve da seguinte maneira: o dia da inauguração é o dia do sorteio dos
lotes entre os inscritos, depois se seguem oito dias para a elaboração e montagem dos trabalhos
nos lotes – nesse momento a exposição já está aberta ao público para visitação. Nos três dias
seguintes aconteceram a apresentação e debate público sobre os trabalhos e propostas
apresentadas. Durante todo o decorrer da exposição foram verificadas a ocupação dos lotes e a
execução das propostas, que foram entregues por escrito para debate, posteriormente.
A estrutura adotada pela VI JAC foi alvo de diversas críticas por parte da imprensa da
época que não compreendeu a importância das discussões que estavam sendo propostas ali.
2
3
4
Comunicado de Walter Zanini enviado ao ICOM publicado no Jornal da Tarde em 14 de setembro de 1971.
Arquivo MAC USP. 100/004.
A exposição contou com 210 inscritos para 84 lotes. Muitos dos artistas não sorteados formaram equipes para a
realização de propostas coletivas; outros que viviam fora do Brasil no momento, como Jannis Kounellis, Arthur
Luiz Piza e Jaques Castex, tiveram suas propostas realizadas pela equipe formada por Lídia Okumura, Genílson
Soares e Francisco Inarra em seu projeto intitulado “Incluir os excluídos”.
Boletim Informativo n181 de 14/09/72. Dossiê VI Jovem Arte Contemporânea, 1972. Fundo MAC/USP.
0101/002.
222
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Destaco, entre outros temas, as problematizações sobre a mercantilização da obra de arte, a
construção institucional da história da arte, os papéis desempenhados pelo artista, pelo
espectador e pelas instituições dentro do sistema das artes e no contexto brasileiro.
Durante o período da exposição se desenvolveram, no espaço loteado do MAC,
performances, instalações, experiências e construções tridimensionais que discutiam o contexto
político brasileiro e a própria estrutura da JAC, através da re significação de gestos e objetos
cotidianos.
Pode-se dizer que a experiência da VI JAC foi singular e fundamental para a constituição
de um museu vivo, fórum e laboratório, no sentido de que se abriu totalmente para o diálogo com
os artistas, estudantes e intelectuais. Isso possibilitou a construção inédita e experimental de um
museu enquanto um local de encontros, crítica, resistência e debate, através do encorajamento
da incipiente produção conceitual, em suas múltiplas manifestações.
No que diz respeito à historiografia da arte contemporânea, em que o júri e/ou o curador
assumem o papel de definir quem deve ou não entrar na narrativa institucional oficial proposta
pela instituição, o MAC ao propor o sorteio de lotes, encorajar o desenvolvimento de propostas
em contraposição à colocação de obras prontas e abolir o prêmio final, afirma novamente o seu
papel político e social durante a ditadura militar: constituir um local de liberdade para
manifestações artísticas, pesquisa e crítica. Firmar-se como plataforma crítica para a reflexão
sobre as práticas museológicas, a própria instituição e também sobre as práticas sociais e
políticas do período.
Referências Bibliográficas:
ALTSHULER, Bruce. Salon to Biennial – Volume 1: 1863-1959. New York: Phaidon,2008.
FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo: Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Iluminuras,
1999.
_______________. Território de Liberdade: um museu de arte contemporânea durante a ditadura
militar no Brasil. In: MANESCHY, Orlando; LIMA, Ana Paula Felecissimo de Camargo (org.)
Já! Emergências Contemporâneas. Belém: EDUFPA/Mirante- Território Móvel, 2008.
FERGUSON, Bruce; GREENBERG, Reesa; NAIRNE, Sandy (org.) Thinking about
Exhibitions. Londres: Routhledge, 1996.
JAREMTCHUK, Daria. Jovem Arte Contemporânea no MAC da USP. Dissertação de
mestrado, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
museológica e o conhecimento histórico. In: Anais do Museu Paulista História e Cultura
Material, São Paulo, p 9 - 42, 1993.
OBRIST, Hans Ulrich. A Brief History of Curating. Londres: JRP Ringier, 2011.
O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Catálogos:
5ª Jovem Arte Contemporânea, São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de
São Paulo, 1971.
6ª Jovem Arte Contemporânea, São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de
São Paulo, 1972.
Periódicos:
Manifesta Journal n11, The Canon of Curating. 2010/2011.
Fontes Primárias:
Arquivo MAC USP.
Ficha de inscrição da VI JAC. Arquivo MAC USP.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Sorteio de Lotes na VI JAC. Arquivo MAC USP.
VI JAC: Vista da exposição durante a montagem dos lotes. Arquivo MAC USP.
VI JAC: Vista parcial da exposição. Arquivo MAC USP
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
A REFLEXÃO SOBRE A PASSAGEM DO TEMPO E SUAS REPRESENTAÇÕES NO
RENASCIMENTO
Isabel Hargrave Gonçalves da Silva
Minha pesquisa de mestrado é centrada no Retrato do Cardeal Cristóforo Madruzzo, de
Tiziano, pertencente ao acervo do MASP [img.1]. Eu comecei essa pesquisa na Iniciação
Científica sob orientação do professor Luiz Marques e, ao mesmo tempo em que partia para a
investigação de conhecer a personagem do quadro, seu pintor e as condições de execução da
obra, fui percebendo quanto espaço, quanta pesquisa e reflexão poderiam surgir de um detalhe
desse quadro. Um detalhe que, entretanto, é verdadeiramente o personagem da obra, o relógio
mecânico. O Cardeal abre a cortina pesada, de um vermelho vibrante e tencionado pelas estrias
brancas para apresentar o relógio ao espectador. A pintura é uma verdadeira mis-en-scène do
relógio. Não apenas isso, o relógio também nos diz algo. Ele marca uma hora certa (coisa rara na
representação de relógios nessa época), e a mesma data de execução do quadro (1552), inscrita
no alto à direita, aparece gravada em escorso na lateral da caixa metálica, adornada também com
o brasão da família Madruzzo. Sob o mecanismo, papéis hoje ilegíveis poderiam descrever um
acontecimento. É sabido que o Imperador Carlos V – da família dos Habsburgos, que tinha
relações políticas próximas da família Madruzzo – deu um relógio semelhante para Cristoforo na
ocasião de sua entrada na cidade de Trento, em 2 de julho de 1541, durante o Concílio, do qual o
cardeal era nada menos que anfitrião, como Príncipe-Bispo da cidade. Os papéis sob o relógio
poderiam conter uma menção ao imperador, ainda que dez anos depois da doação? M. A.
Mariani, citado por Ettore Camesasca relata a sublevação contra a religião católica pelo Duque
Maurício da Saxônia, em 1552, que ameaçou vir a Trento contra o Concílio e foi causa da
interrupção imediata das sessões. Os papéis, segundo Camesasca, poderiam mencionar tal
interrupção. Mas isso não sabemos e as radiografias da obra feitas até hoje não nos dizem nada a
respeito. O que sabemos é que o relógio está lá, e nos diz alguma coisa além do fato imediato. O
mecanismo carrega consigo uma série de conotações latentes sedimentadas, através de um
caminho impreciso, mas constante, da tradição de representação de relógios mecânicos em obras
de arte.
Como Ernest Gombrich analisou em seu ensaio The Aims and Limits of Iconology
(GOMBRICH, 1985, vol. 2), qualquer elemento simbólico presente em uma obra de arte possui,

Mestranda pela Universidade Estadual de Campinas, Agência Financiadora: FAPESP.
226
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
de acordo com seu contexto de produção, um significado preciso. Entretanto, Gombrich lança
mão da terminologia cunhada por D. E. Hirsch para defender que, além do significado preciso, o
signo simbólico contém ainda uma série de implicações. A análise de tais implicações,
entretanto, possui um caráter muito mais aberto que a do significado preciso, e envolve o resgate
dos diversos usos do elemento simbólico, nas diversas manifestações artísticas, ao longo da
história. O interesse dessa comunicação será recuperar historicamente algumas das alusões às
quais o relógio mecânico pode estar relacionado, e como elas foram transmitidas de um a outro
elemento simbólico.
O relógio mecânico, de mesa, parede ou em forma de tambor carrega consigo diversos
topos (tópicos, assuntos) cujas origens remontam, iconograficamente, a objetos como a caveira e
a ampulheta, e textualmente, às reflexões, desde a Antiguidade, sobre a inexorável passagem do
tempo e a brevidade da vida. Devemos nos perguntar, então, como esses tópicos chegaram ao
Renascimento, e como esses conceitos evoluiram, sendo representados por diferentes objetos,
por vezes condensados no artefato mecânico e moderno, e por outras, ainda ligados à caveira e à
ampulheta tradicionais.
A reflexão sobre a passagem do tempo no século XVI é uma tópica humanista que se
origina na Antiguidade. Textos como os de Cícero, Saber envelhecer (CÍCERO, 1997), ou de
Sêneca, Sobre a Brevidade da Vida (SÊNECA, 1993), e trechos de suas Cartas a Lucílio
(SÊNECA, 2004), refletem sobre a passagem do tempo e sobre a atitude que devemos ter em
relação a ela. Para Sêneca, a única maneira de não sofrermos com a passagem dos anos – que
destrói e desordena todas as coisas – é procurar levar uma vida virtuosa, isto é, uma vida
dedicada ao estudo da filosofia. Nos escritos desse filósofo é possível identificar a procedência
de temas como o memento mori (a lembrança da morte), a vanitas (vaidade), a temperanza
(temperança) e a prudentia (prudência), temas estes que começam a despontar de maneira
expressiva em obras do século XVI. Para o filósofo, virtuoso é aquele que não se preocupa com
os vícios terrenos, mas apenas se dedica à filosofia com a finalidade de se desenvolver
moralmente. Aquele que assim o fizer terá uma vida longa, pois cada momento dessa vida terá
sido inteiramente vivido, e não desperdiçado; este saberá também morrer, pois o terá aprendido
na vida, e o fará sem temor. Nesse sentido, o filósofo sabe que vai morrer, e se prepara para isso
levando uma vida virtuosa e com temperança, sem vícios e vaidades.
No século IV Santo Agostinho (AGOSTINHO, 1984: 291-319) também reflete sobre a
passagem do tempo em suas Confissões, já sob uma perspectiva cristã. De acordo com este
filósofo, o tempo se diferencia da eternidade. Esta é imóvel e sempre presente, é passado e futuro
ao mesmo tempo, e é onde Deus está. Já o tempo, ao contrário, é criação de Deus, corre sempre,
227
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
nunca pára, e é mensurável. Agostinho se debruça sobre a percepção humana do tempo e sobre a
questão de se ele pode ou não ser mensurável, uma vez que o futuro ainda não existe, e o
passado já deixou de existir. Na época em que o filósofo escreve, os relógios mecânicos ainda
estavam longe de serem criados, e o tempo era medido por ampulhetas ou clepsidras –
ferramentas bastante imprecisas e que não forneciam ao homem a noção de divisão do tempo em
horas e minutos. Ainda que o dia já fosse, desde a Antiguidade, conceitualmente dividido em
vinte e quatro horas, os instrumentos que mediam esse período o faziam mediante o contínuo
escorrer da areia, ou pingar da água, ou ainda pelo caminhar da sombra de um relógio de sol.
Dessa forma, a percepção da passagem do tempo era muito diferente de como a concebemos
hoje, ou de como ela passou a ser concebida a partir da criação, no século XIII, dos primeiros
relógios mecânicos.
Para Santo Agostinho o tempo era fugidio. Procurando solucionar sua angústia quanto a
sua mensuração, ele a definiu como a medida perceptível em nosso intelecto, da expectação
(relativa ao devir), atenção (percepção do presente que transcorre) e memória (referente ao que já
passou, mas que ainda permanece na lembrança). As conlusões de Agostinho atravessaram os
séculos, permanecendo como a visão mais usual acerca deste tema.
Quase mil anos depois, já nos princípios do Renascimento, Francesco Petrarca retomou a
preocupação com o tema da passagem do tempo em seus Triunfos (PETRARCA, 2006). Petrarca
estudou atentamente textos antigos, realizou leituras de Plutarco, Sêneca, Cícero, e suas
considerações sobre a passagem do tempo certamente estão relacionadas às desses autores.
Escritos por volta de 1350, os Triunfos não tratam apenas do tempo. A obra é composta por seis
poemas que louvam, na seqüência, o Amor, a Castidade, a Morte, a Fama, o Tempo e a
Eternidade. Cada um dos triunfos celebrados supera aquele abordado anteriormente. Desse
modo, o Tempo triunfa sobre todos os outros, exceto sobre a Eternidade. Nesse sentido Petrarca
se aproxima da visão de Santo Agostinho (ele havia lido as Confissões), ao situar a Eternidade
como a morada de Deus, ao passo que o Tempo é dos homens, e aniquila a natureza – por isso
triunfa sobre as outras coisas: transforma-as e as extingue todas.
É a partir das ilustrações dos Triunfos de Petrarca, especificamente das ilustrações do
Triunfo do Tempo, que a representação iconográfica incorpora o relógio mecânico para significar
a passagem e a fugacidade do tempo. Uma dessas primeiras representações é a ilustração de
Jacopo Sellaio (Florença 1442-1493) de 1480 [img.2]. Nessa ilustração o relógio de foliot e roda
de escape aparece detalhadamente representado e está envolto a outras representações simbólicas
(como os cães, negro e branco e os cervos que puxam o carro). Chama a atenção o fato de a
aparição do relógio não impedir que também uma ampulheta esteja presente na mão direita do
228
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
ancião alado, em pé sobre o enorme artefato mecânico. O velho com asas e segurando uma
bengala e a ampulheta representa a personificação do tempo, como é tradicionalmente descrita e
apresentada. Essa ilustração é um dos pontos de inflexão entre a representação da passagem do
tempo através de objetos como a ampulheta para sua representação por meio do relógio
mecânico.
Os Triunfos de Petrarca alcançaram grande sucesso e influenciaram profundamente as
artes e a poesia ao longo dos séculos XV e XVI. Luis de Camões (CAMÕES, 1980: 11) ilustra
essa influência através do soneto “O tempo acaba o ano, o mês e a hora”, que eu leio:
“O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
a força, a arte, a manha, a fortaleza;
o tempo acaba a fama e a riqueza,
o tempo o mesmo tempo de si chora.
O tempo busca e acaba o onde mora
qualquer ingratidão, qualquer dureza;
mas não pode acabar minha tristeza,
enquanto não quiserdes vós, Senhora.
O tempo o claro dia torna escuro,
e o mais ledo prazer em choro triste;
o tempo a tempestade em grã bonança.
Mas de abrandar o tempo estou seguro
o peito de diamante, onde consiste
a pena e o prazer desta esperança.”
(CAMÕES, 1980: 11)
Como se nota, também para Camões o tempo passa ininterruptamente e transforma e acaba com
todas as coisas. A temática da instabilidade da natureza, provocada pela passagem destrutiva do
tempo, é tratada por Gustav Hocke no texto O Relógio como Olho do Tempo (HOCKE: 1986). O
autor insere a representação de relógios como símbolos do tempo na problemática maneirista,
reconhecendo que este, assim como o espaço, fascinaram os pintores desse período. Esse
fascínio advinha principalmente da ação destrutiva do tempo, que age e avança no espaço,
deixando-o numa eterna instabilidade física (já notada por Camões). Assim, o relógio seria um
“objeto símbolo de destruição”, pois o tempo, por correr incessantemente, sempre destrói todas
as coisas. Nada é alheio a ele. Erwin Panofsky (PANOFSKY, 2003: 97-113) apresenta a relação
entre o tempo e a morte como derivados da simbologia dos antigos relógios de água e areia. O
tempo seria o “devorador de todas as coisas” (tempus edax rerum), ao passo que a morte
consuma o que o tempo preparou. Alguns relógios de mesa, a maior parte dos quais fabricados
na Alemanha, vinham gravados com sinistras expressões como “uma ex illis ultima” (uma dessas
229
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
horas será a última). A constante passagem do tempo transforma a juventude em velhice, a
felicidade em infortúnio, a força em fraqueza e assim por diante.
O relógio mecânico, como herdeiro da figuração da clepsidra e da caveira, incorpora
também a representação do memento mori, uma espécie de eterna lembrança de que um dia
vamos morrer, ou de que a vida é demasiado transitória; são representações que indicam que a
morte é certa, mas sua hora é incerta, como um aviso de que se deve viver uma vida reta e
cautelosa. Nesse sentido, da vida frágil e da eterna possibilidade da morte, o relógio pode ser
associado ao tema da vanitas, se estiver acompanhado por outros objetos que simbolizam a
riqueza. Dessa forma, o relógio e os outros objetos significariam as riquezas da vida, que não
representam nada diante da certeza da morte.
No que tange à retratística, a essência do retrato moderno e a idéia de tempo representada
pelo relógio mecânico se baseiam num substrato humanístico comum: a mentalidade moderna
que traz ao homem a medida das coisas. As aparições mecânicas na retratística anterior a 1500
eram demasiado raras. Um possível antecedente deste tipo de representação é uma cópia antiga
de Rogier van der Weyden, o “Homem com flecha”, de cerca de 1450 [img.3]. Nessa obra
existem duas inscrições que lembram que a hora da morte está próxima. O ponteiro do relógio
aponta para as onze horas, próximo da meia-noite. Sua função é lembrar ao retratado, mas
também ao espectador, da irrevogabilidade da morte e da impossibilidade de se dispor de tempo
suplementar, conduzindo o espectador a abraçar sua fé, em busca da salvação, enquanto ainda há
tempo. A retratística com relógio surge, portanto, na perspactiva do memento mori.
É preciso considerar, entretanto, que paralelamente às invetigações filosóficas e literárias
acerca da passagem do tempo e da transitoriedade da vida, assim como à representação
iconográfica dessas noções, o próprio artefato mecânico, o relógio, foi mudando conforme à
evolução da ciência, desde seu surgimento, no século XIII, até o período ao qual nos reportamos,
o século XVI. Contíguo a essa evolução, se desenvolveram algumas novas possibilidades
interpretativas relativas à presença de relógios mecânicos em ilustrações e pinturas. O
surgimento desses primeiros mecanismos está muito associado à vida regrada dos mosteiros
medievais. Naqueles ambientes as horas canônicas eram anunciadas pelo soar dos sinos a
intervalos regulares que ofereciam um ritmo, fosse ao local de reclusão, fosse ao espaço urbano.
Nas palavras do historiador da ciência Alexander Koyré (KOYRÉ: s/d):
“Foi nos mosteiros, e por necessidade do culto, que terão nascido e que se terão
propagado os primeiros relógios, e terá sido este hábito da vida monástica, o hábito de se
conformar com a hora, que, difundindo-se em redor da muralha conventual, impregnou e
230
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
informou a vida citadina, fazendo-a passar do plano do tempo vivido ao do tempo
medido”.
Os relógios mecânicos dos séculos XV e XVI eram engenhos bastante complexos e
traziam uma inovação em seu mecanismo: graças ao emprego do foliot e da roda de escape, eram
sensivelmente mais precisos do que as máquinas antigas de movimento contínuo. Esse sistema
interrompia regularmente a decida do peso do relógio, transformando as horas em medidas
praticamente idênticas. Com isso, o tempo passou a ser percebido como algo isolado da vida, em
sua forma pura. Foi a partir do relógio mecânico, precisamente através do uso desse instrumento
de medida, que a idéia de exatidão tomou posse desse mundo, transformando-o no mundo da
precisão. O relógio é essencialmente o instrumento da modernidade.
Essa nova maneira de medir o tempo, por meio de um engenho, uma engrenagem, era
muito diverso daquele escorrido pela areia ou pela água, ou medido pela sombra. O nascimento
do tempo mecanizado coincide com o advento de uma nova mentalidade, que traz para o homem
a medida de todas as coisas. O primeiro grande contato que as populações urbanas teve com essa
nova medida temporal foi através do relógio da cidade, normalmente uma enorme estrutura
instalada em uma das torres principais. Esse era o único mecanismo complexo que as pessoas
viam e ouviam todos os dias repetidamente; ele lhes ensinou que o tempo, invisível, inaudível e
ininterrupto, podia ser composto de quantidades.
No âmbito iconográfico, o relógio começa a tomar um espaço de bastante relevo
principalmente no que se refere à retratística nobiliar e burguesa, que intencionava fazer dele um
elemento de ostentação e de equilíbrio moral ao mesmo tempo. A nova necessidade humana de
se basear nas possibilidades de exatidão e moderação seriam traduzidas pelo relógio, esse
instrumento de complexos, porém exatos, mecanismos de rodas dentadas, molas metálicas e
ponteiros, quase alheios à vontade do homem.
Progressivamente, portanto, esse artefato mecânico apareceu cada vez mais relacionado,
não apenas no âmbito iconográfico, à noção de medida, moderação, sobriedade, certeza e
confiança, que correspondem ao topos da temperanza. Tais atribuitos, ao lado do relógio, foram
associados à idéia do Bom Governo, a necessidade de saber agir, mas principalmente, saber agir
na hora certa, no momento certo. A associação entre o aparelho mecânico e a noção de Bom
Governo ocorreu não somente em homens de Estado, como o Imperador Carlos V – ele mesmo
um colecionador de relógios mecânicos –, que neste retrato se mostra ao lado de sua esposa,
Isabel de Portugal [img. 4]. O relógio representa também a idéia de Bom Governo - como a idéia
da ação certa na hora certa – em retratos de comerciantes, como nesta obra de Hans Holbein
231
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
[img. 5], ou de eclesiásticos, como é o caso do papa Paulo III [img. 6] ou mesmo do Cardeal
Cristoforo Madruzzo [img. 1].
A reflexão sobre a passagem do tempo é uma constante no Renascimento e, como
mencionado no início, remonta a textos clássicos, mas no século XVI se apresenta em diversos
tipos de manifestações, desde obras literárias, como poemas ou investigações filosóficas, até
representações iconográficas.
Referência Bibliográfica:
AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução J. Oliveira Santoa e A. Ambrósio de Pina. 11.ed. Porto:
Livraria Apostolado da Imprensa, 1984.
CAMESASCA, Ettore. Da Raffaello a Goya... da Van Gogh a Picasso. 50 dipinti dal Museu de
Arte di San Paolo del Brasile. Catálogo da Exposição. Milão: Palazzo Reale, 1987.
CAMÕES, L. Lírica Completa II: sonetos. Prefácio e notas Maria de Lurdes Saraiva. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1980.
CÍCERO, Marco Túlio. Saber Envelhecer e A Amizade. Trad. Paulo Novaes. São Paulo: LP&M
editores, 1997.
CROSBY, Alfred W. A mensuração da realidade: a quantificação e a socieade ocideeltal 12501600. São Paulo. Editora Unesp. 1999. p. 81-97.
GOMBRICH, Ernest H. Gombrich on the Renaissance. Vol. 2: Symbolic Images. 3.ed. London:
Phaidon Press Limited, 1985.
HOCKE, Gustav R. Maneirismo: o mundo como labirinto. Tradução Clemente Raphael Mahl.
2.ed. São Paulo. Perspectiva. 1986. (Coleção Debates 92).
KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão e Do Mundo do “mais ou menos” ao Universo da
Precisão. Lisboa. Gradiva. S/d. p. 57-89.
LOURENÇO, Eduardo. “Camões e o tempo ou a razão oscilante”. In: Poesia e Metafísica:
Camões, Antero, Pessoa. Sá da Costa Editora. Pp. 31-49.
PANCHERI, Roberto. “L’Orologio meccanico e il ritratto: variazione sul tema da Tiziano a
David”. In: BRUSA, Giuseppe (curadoria). La Misura del Tempo: L’antico splendore
dell’orologeria italiana dal XV al XVIII secolo. Trento: Castelo del Buon Consiglio, 2005. p. 5285.
PANOFSKY, Erwin. Tiziano: problemas de iconogrfia. Madrid: Akal, 2003.
PETRARCA, F. The Sonnets, Triumphs, and Other Poems of Petrarch. [S.l.]: Thomas Campbell,
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<http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=1509033>. Acesso em: 17/03/2011.
232
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
PRÀ, Laura Dal. “Il tempo ‘maestro d’oriuoli’. Divagazioni iconografiche sul tema”. In:
BRUSA, Giuseppe (curadoria). La Misura del Tempo: L’antico splendore dell’orologeria
italiana dal XV al XVIII secolo. Trento: Castelo del Buon Consiglio, 2005. p. 29-49.
SÊNECA, Lucius Annaeus. Cartas a Lucílio. Trad., prefácio e notas J. A. Segurado e Campos.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. 2ed.
SÊNECA, Lucius Annaeus. Sobre a brevidade da vida. Trad., introdução e notas William Li.
São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
Imagens
Img.1: 1552. Tiziano Vecellio, Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo, Óleo sobre tela, 210 x 109 cm, Museu de
Arte de São Paulo.
Img. 2: 1480 c. Jacopo Sellaio, Triunfo do Tempo, óleo sobre
madeira, Museo Bandini, Fiesole.
233
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Img. 3: 1450. Cópia ou derivação antiga de Rogier van der Weyden, Homem com flecha. Óleo sobre painel, 75 x 50
cm. Koninklijk Museum voor Schone Kunsten, Antuérpia.
Inscrições na faixa preta: “Hora est jam / nos de supno surgere / Ad Roman Paulus / Quia novissima hora est / Epist.
Johis.” [“Já é hora / acordemos do sono / De Paulo para Romanos / Pois é a hora novíssima / Epístola de João”].
Img. 4: 1548. Cópia de Tiziano atribuída a Rubens. Retrato de Carlos V e Isabel de Portugal. Óleo sobre tela.
Coleção Frank Sabin, Londres.
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2011
Img. 5: 1532. Hans Holbein, o Jovem. Retrato do mercador Georg Gisze. Óleo sobre madeira, 96,3 x 85,7 cm.
Staatliche Museen, Berlin. Inscrição na parede ao fundo: Nulla sine merore voluptas “não há prazer sem
arrependimento/pesar”].
Img. 6: 1546. Tiziano Vecellio. Paulo III e seus sobrinhos Alessandro e Otavio Farnese. Óleo sobre tela, 210 x 174
cm. Galeria Nacional de Capodimonte, Nápoles.
235
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2011
ALCOVA TRAGICA DE GIUSEPPE AMISANI E A BELLE ÉPOQUE PAULISTANA
Letícia Badan Palhares Knauer de Campos
Resumo
A presente comunicação é um recorte da pesquisa de iniciação científica “Acerca de La
Culla Tragica – Giuseppe Amisani no Brasil”, que encontra-se ainda em andamento e
desenvolvida sob orientação do Prof. Dr. Jorge Coli, no Departamento de História do
IFCH/UNICAMP. Como principal objetivo visa-se abordar a passagem de Giuseppe Amisani
(1881-1941) pelo Brasil, durante a belle époque – entre os anos de 1912 e 1913 – quando o
pintor monta seu atelier na cidade de São Paulo. Este artista, originário de Mede Lomellina,
pequena cidade italiana localizada na província de Pavia, trabalhou principalmente como
retratista dentro e fora da Itália. Passou pela Inglaterra, pela América do Sul e foi no Cairo onde
conseguiu sua maior fama, ao imortalizar em suas pinceladas ágeis e coloridas o rosto juvenil e
vivaz do príncipe herdeiro, Farouk I (Ritratto di Farouk bambino, 1924 – Coleção privada). Na
América do Sul passou por Buenos Aires e fez sua passagem pelo Brasil em duas datas até hoje
conhecidas – 1912 e 1913. Nesta comunicação trataremos sobre sua segunda viagem.
Apresentando algumas das obras trazidas, das realizadas aqui, bem como sua relação com
algumas importantes figuras políticas nacionais.
1.1
O artista na capital paulistana
Em dezembro de 19121, aos 31 anos, Giuseppe Amisani, que já tinha sua carreira
consolidada em Milão, faz sua primeira vinda ao Brasil. Instala-se no Hotel Bella Vista, traz
consigo poucos quadros, dentre eles o já ganhador do prêmio Fumagalli, o Retrato de Lyda
Borelli, o Dança de Apaches, Êxtase, e Alcova Tragica – sobre os quais trataremos mais adiante
– e os expõe em um improvisado ateliê na Galeria de Crystal2. A intenção, de ser reconhecido
em sua arte, parece se concretizar com sua chegada aqui. Amisani conquista diversos
admiradores, dentre eles o senador Freitas Valle, o secretário do interior Altino Arantes, e o
presidente do Estado Rodrigues Alves e consegue logo de início encomendas de alguns retratos.
É n’O Correio Paulistano, de 1º de dezembro de 1912, em que aparece, pela primeira vez, uma
notícia sobre Amisani:

1
2
Graduanda em História com ênfase em História da Arte pela UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. Bolsista FAPESP. Pesquisadora do Centro de História da Arte e Arqueologia (CHAA).
É provável, que ele já estivesse no Brasil há alguns dias, mas até o presente momento só foram encontradas
notícias a partir de 1/12/1912.
Conhecida também como Galeria Werbendoerfer, a Galeria de Crystal existiu até o ano de 1916 e se localizava
entre as ruas 15 de Novembro e Boa Vista.
236
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
“O pintor Amisani
[...] Fomos encontrai-o, a trabalhar freneticamente no seu pequeno (e modestissimo)
atelier, improvisado no quarto n. 62 da Galeria de Crystal (Hotel Bella Vista); e, apesar
do pouco que encontrámos para vér, muito nesse pouco nos foi dado admirar.
Amisani é um rapagão de 31 annos, de origem milaneza, attitude modesta e
despretenciosa, figura sympathica e attrahente. (...) Giuseppe Amisani, nestes cinco dias,
segue para a Italia, sem poder ainda apresentar-se ao nosso grande publico por serem
poucos os quadros que lhe restam e de outra parte, ter de partir sem demora para alli a
executar o retrato da princeza Yolanda, distinguido como foi com o honrosissimo convite
da casa real italiana. [...]” (Correio Paulistano. Registro de Arte. O pintor Amisani. 1º de
dezembro de 1912)
O pintor permanece por apenas poucos dias na capital, regressando para a Itália em 5 de
dezembro do mesmo ano, na promessa de realizar o retrato da Princesa Jolanda de Savoia (19011986), à pedido da Casa Real Italiana. Em seu regresso ao Brasil, anunciado n’O Correio
Paulistano, de 20 de agosto de 19133, Amisani traz consigo um elenco de 104 obras, para além
das que realiza durante sua estadia no país. No Fanfulla, de 1º de setembro de 1913, e
posteriormente em 05 de setembro, no jornal O Correio Paulistano4, é apresentada, juntamente
com uma pequena reportagem anônima sobre o artista (a primeira infelizmente fragmentada), a
lista de tais quadros.
Em meio aos 104 quadros, destacavam-se, Alcova Tragica (n.5), foco central desta
pesquisa, um studio per l’Alcova Tragica (n.53), cuja localização é hoje tida como desconhecida,
Allodola (n.7), o retrato da S. A. R. La Principessa Jolanda (n.16), Danse des Apaches
(fragmento) (n.19), Danse des Apaches (n.32), retrato de Lyda Borelli (n.28), Il Gentiluomo
(retrato de Carlo Zen) (n.33), Capello Nero (n.37), Capelli d’Oro (n.51), Reginetta (n.71) e La
parola non mai udita (n.93). Desta lista, trataremos, sobretudo, daquelas destacadas em negrito.
1.2
Alcova Tragica
A primeira, Alcova Tragica (fig 1), encontra-se na Pinacoteca do Estado de São Paulo,
assinada e datada de 1910. Trata-se de uma pintura de veia simbolista e decadentista, cujo tema
diverge consideravelmente dos outros trabalhos do pintor, lembrando apenas, em tema e
composição a sua Cleopatra Lussuriosa, 1900 (fig 2). Neste trabalho de tom verde
monocromático, Amisani insere, talvez pela primeira vez, o tema da mulher fatal. Cleópatra
lança-se frontalmente para a figura masculina aos seus pés, e beija-o. O corpo suntuoso, os seios
3
Nota na sessão hospedes e viajantes, da coluna Chronica Social , que, apesar da grafia errada do nome – “Juseppe
Amisani” –, relata a chegada do pintor no Hotel Bella Vista, em São Paulo.
4
Em: Exposição Amisani. O Correio Paulistano. 05 set. 1913.
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à mostra, demonstram a volúpia e a luxúria desta mulher. O delicado ornamento dourado no
braço direito reforça ainda mais seu caráter de elegância e sedução. Seus cabelos tocam o rosto
do homem, escondendo sua verdadeira identidade de nós, espectadores. Ele sustenta-se pelos
calcanhares, de costas para a mulher e recebe o toque de seus lábios, “impregnando a cena de
uma bestialidade latente que atingirá seu ápice na Alcova Tragica”5.
Esta, por sua vez, acompanha Amisani durante suas duas vindas ao Brasil. Contudo, apesar
de fazer parte de uma importante coleção nacional, são poucos os documentos e informações
oficiais existentes sobre a obra. Dentre as muitas incertezas que a circundam, destacam-se a
aquisição em 1913 pelo museu, a data e, sobretudo a nomenclatura. Seu título, na etiqueta,
aparece como La Culla Trágica (sic). Culla, que em italiano significa berço reforçaria a ideia de
uma mulher como origem do sofrimento masculino. Entretanto, durante a realização do projeto,
surgir a dúvida de que o nome “oficial” da tela, estivesse equivocado. A primeira fonte
descoberta foi o texto Almeida Júnior, de Monteiro Lobato. Nele, o autor critica, em tom de
deboche, a aquisição da pintura pelo Governo do Estado, e refere-se à ela como Alcova Tragica.
De início, surgiu a hipótese, por ser um texto muito marcado pela opinião e irritação de Lobato,
de ser um termo jocoso. Ou seja, um apelido infame dado por ele para demonstrar seu desgosto
pela compra. Nas palavras do autor:
“Quem visita aquele começo de museu é na intenção de conhecer as obras dos nossos
pintores e não para estarrecer de assombro diante de cromos de Salinas, charadas de
Amisani pagas a preços fantásticos, e mais patifarias a óleo como que brochadas
especialmente para comer o cobre fácil do Tesouro paulista, sempre franco em se tratando
de negociatas. [...] Revolta ver toda a obra do maior pintor paulista [Almeida Júnior]
oculta em galerias particulares, e propositadamente mantida lá para que os Amisanis
possam receber boladas em troca de blagues mistificatórias. Com o dinheiro que o Estado
deu pela Alcova trágica, risível em si e contristadora pelo atestado de inépcia que passa
aos nossos homens entendidos em coisas da arte... de comprar quadros, entraria para lá
meia dúzia de obras-primas.” (LOBATO, Monteiro, Almeida Júnior IN Ideias de Jeca
Tatu, pp. 91-92)
Monteiro Lobato revolta-se com o fato do Governo do Estado preferir financiar artistas
estrangeiros, tais como Amisani ou Ettore Ximenes, à brasileiros de grande relevância, como
Almeida Júnior ou ainda Pedro Américo. É possível, que a intermediação da compra tivesse
5
Em: GATTI, Chiara., LECCI, Leo. Giuseppe Amisani (1879-1941) – Il pittore dei re. Milão: Skira, 2008.
Tradução livre.
238
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2011
certa influência do já citado senador e mecenas José de Freitas Valle, visto que este foi um dos
partícipes na fundação da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1906.
1.2.1
Alcova Trágica, a “Phoenix de lábios rubros”
Alcova Tragica apresenta na região central de sua composição, uma figura feminina. Um
voluptuoso corpo nu de traços sinuosos e forma retorcida. Sob o seio direito uma mão, da qual
escorre majestosamente algo como um véu azul-prateado, que perde-se no fundo da tela. Sua
cabeça inclinada derrama os cabelos vermelho-fogo, que recobrem os olhos dessa criatura das
trevas e se alastram fatalmente, assim como seus dedos, sobre o rosto de uma outra figura – um
homem. Um ser, que na presença dessa mulher impassível, ergue suas mãos num ato de prece.
Sob seus pés, outros homens. Antigas vítimas, outrora devoradas, e que agora agonizam e
morrem. Mas que mesmo dilacerados, retornam, como que enfeitiçados, para rogar-lhe um
último beijo. E aos pedaços, convergem-se em parte desse assombroso pano de fundo. Como
uma bruxa do sexo, cujo desejo nunca se sacia, consome um a um, encanta e devora-os. Agora
não são mais necessários, pois já lhe serviram do sangue que lhe banha os cabelos. Seus lábios
sugaram-lhes toda a força, arrancaram-lhes a vida. É uma femme fatale: uma vampira –
devoradora de homens. Tudo no quadro é sugestão. Não sabemos ao certo o que inicia esse
massacre, o motivo que faz a mulher lançar-se contra esses homens. Apenas sabemos que ela
aparece, os toca e isso provoca o caos. Em um artigo anônimo do Correio Paulistano, de
setembro de 1913, há uma análise da obra, na qual podemos perceber todo o ambiente fin-desiècle, na qual ela encontrava-se imersa:
“Em Alcova Tragica – essa creação ousada, quase temeraria, da figura sobre-humana da
mulher-sereia, que, em meio ás preces, ás imprecações, aos gemidos, aos estertores,
renasce sempre, qual Phoenix encantada, pompeando sobre esse cahos do sacrifício
humano, para alçar-se cada vez mais formosa e promissora e offerecer nos lábios rubros
de uma immortal luxuria, o fructo maléfico do sofrimento infinito...” (O Correio
Paulistano. Registro de Arte. Exposição Amisani. 12/09/1913)
1.3
Jolanda
Outra obra que o artista porta consigo é o retrato da S. A. R. La Principessa Jolanda, 191213 (fig 3). A tela foi comprada pelo Sr. Menotti Falchi e doado por ele ao Circolo Italiano, em
São Paulo, do qual era então presidente. Entretanto, seu paradeiro hoje é desconhecido. O
Circolo teve em seu total cinco diferentes sedes, até instalar-se definitivamente na rua São Luis,
nº 50. Ficou fechado durante a Segunda Guerra Mundial e retornou suas atividades apenas em
1950. Desta forma, muito do acervo deu-se por perdido, bem como, o retrato da Princesa Jolanda
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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de Savoia6. A notícia da venda é informada no dia 02 de outubro de 1913, nos jornais O Estado
de São Paulo e Fanfulla:
“A Exposição Amisani
A Exposição do pintor Amisani permanecerá aberta ainda hoje e amanhã.
Foram vendidos diversos outros quadros.
O senhor Menotti Falchi comprou o retrato da Princesa Jolanda.
Sabemos que o senhor Menotti Falchi presenteará este belo retrato ao «Circolo Italiano», do qual é
hoje presidente.”
7
(Fanfulla. Arte e Artisti. L’Esposizione Amisani. 02/10/1913)
No dia 25 de setembro, logo na primeira página d’O Correio Paulistano, é impressa uma
reprodução do retrato de Jolanda de Savoia, e abaixo uma carta, com várias partes ilegíveis,
escrita pelo Conde S. Oldofredi em resposta ao retrato tão admirável de Amisani:
“EXPOSIÇÃO AMISANI
Retrato da Princesa Yolanda, esplendido trabalho do notável pintor Giuseppe Amisani e
que lhe valeu a seguinte carta de agradecimento da rainha da Italia:
«Casa de Sua Majestade a Rainha Mãe. – Roma – Senhor Amisani, pintor:
Estamos felizes em comunicá-lo, que sua majestade a rainha mãe muito adimirou o
retrato realizado da s. a. r. A princesa Yolanda, o qual lhe apresentei, e me foi dada a
tarefa de exprimir-lhe sua soberana aprovação, não apenas pela semelhança, mas também
pelo domínio do pincel e da cor.
No cumprimento de meu trabalho eu gostaria de acrescentar a expressão de minha
particular admiração, com minhas melhores saudações. Conde S. Oldofredi.»”
(O
Correio Paulistano. Exposição Amisani. 25/09/1913)
Cabe então questionar o motivo da venda do quadro no Brasil. Giuseppe Amisani recebe o
convite da Casa Real Italiana ainda em 1912, regressa a seu país no intuito de realizá-lo, mas
vende-o no Salão Mascarini, em São Paulo. Se a Casa Real Italiana reconhece a qualidade
artística do retrato e parabeniza seu autor, qual seria o motivo de trazê-lo a um país estrangeiro
para negociá-lo entre os comerciantes e admiradores de arte?
1.4
Lyda Borelli
O Retrato de Lyda Borelli, 1912 (fig 4), é outro. Na pintura, a musa e diva, que encarnava
o papel da femme fatale no divismo italiano, é figurada em pé com o corpo inclinado, cujas mãos
apóiam delicadamente seus joelhos. O rosto, que nos fita de cima para baixo, é trabalhado por
Amisani como em todos os outros retratos que executa da atriz. O vestido em tons de cor-de-rosa
6
7
Informação concedida pelo próprio Circolo Italiano em uma conversa via e-mail, no dia 17 de maio de 2011.
Salvo marcação, todas as traduções são de responsabilidade da autora.
240
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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e lilás recobre-lhe com sensualidade os ombros, deixando à vista o colo, apenas para deleite do
espectador. Giuseppe Masinari, em seus relatos sobre o pintor, comenta sobre a realização da
tela:
“Amisani segue atentamente a atriz no palco, a estuda durante os ensaios da “Fiammata”
e toma rápidas notas e depois segue até sua casa a pintá-la sob a luz artificial. Essa
dificuldade o levou a desenvolver certamente seus talentos instintivos de imediatez, de
visão instantânea, de inspiração fácil, de impressões fiéis à realidade e livremente
elaboradas, que sempre o caracterizaram.” (MASINARI, Giuseppe. Giuseppe Amisani.
IN Rob ad Med. 1ed. Mede Lomellina: Rotary Club Vigevano - Mortara, 1973, p. 3)
Masinari reforça sempre o caráter ágil da pincelada de Amisani. A inventividade constante
e própria do pintor. Todavia, trata-se de uma visão romantizada do artista. No mesmo ano da
execução do retrato, em 1912, Emilio Sommariva fotografa a atriz nas mesmas vestes que o
pintor, provavelmente ainda durante a apresentação, ou os ensaios da Fiammata (fig 5). Não é
possível saber qual foi o primeiro a realizar o retrato, sendo muito provável que fosse
Sommariva, entretanto é evidente que a imagem da atriz, sedutora, fatal e languida perpassa
pelas duas obras. Adquirido em 28 de setembro de 19138, pelo Conde Silvio Penteado, no valor
de dez contos de réis, a tela foi ganhadora do prêmio Fumagalli, segundo prêmio conquistado
por Amisani, sendo o primeiro com a obra L’Eroe, 1908, a qual lhe rendeu o prêmio Milius.
1.5
Allodola
A pose de Lyda Borelli é retomada em diversos retratos femininos do artista. Dentre eles,
Allodola (fig 6), na qual o pintor apresenta uma nua mulher sorrindo, de pescoço retorcido. A
composição é utilizada em outra obra, um afresco no banheiro senhorial da Villa Kyrial,
residência de Freitas Valle, intitulado L’Anima dei fiori, 1913 (fig 7). Uma “alegoria com traços
art nouveau exibindo uma ninfa em êxtase”9 ladeada por dois retratos femininos, do pintor
Checca10. Talvez, por um gosto pela pintura, o senador tenha encomendado o afresco de mesmo
arranjo, para enfeitar seu tão moderno salão de banho.
Em 1960, com o falecimento do político11, a Villa Kyrial é vendida à Joelma S.A.
Importadora Comercial e Construtora. Em 1961 é demolida e em seu lugar é erguido um
condomínio. As obras recebem destinos muito diversos. Algumas foram doadas a museus, outras
tornaram-se herança e fazem parte das coleções privadas dos filhos, netos e bisnetos. Mas
infelizmente, algumas delas, como o majestoso afresco, tiveram um destino lamentável: em meio
8
Aquisição noticiada tanto no jornal O Correio Paulistano, quanto no Fanfulla, ambos de mesma data.
CAMARGOS, Marcia. Op cit. p. 51.
10
A informação foi retirada do livro já citado de Marcia Camargos, mas ainda carece de pesquisas.
11
José de Freitas Valle falece em 14 de fevereiro de 1958.
9
241
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2011
aos lustres, às portas e às paredes, foram derrubadas e destruídas. E hoje, só podem ser vistas e
relembradas através de poucas fotografias.
2
As obras da Villa Kyrial
Dentre os tantos amantes da arte de Giuseppe Amisani, José de Freitas Valle (1870-1958)
era um de seus grandes admiradores. “Foi poeta simbolista, professor de francês, advogado,
perfumista, gourmet, mecenas, deputado e senador estadual”12, uma importantíssima figura
dentro do ambiente artístico e cultural de São Paulo. Como grande incentivador e financiador das
artes, promoveu em sua residência, a já mencionada Villa Kyrial – localizada no número 10 da
rua Domingos de Morais, hoje nº 300 – uma série de reuniões, nas quais personagens como
Lasar Segall, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Graça Aranha
faziam-se presentes. Além da participação diária na Exposição Amisani, Freitas Valle, bem como
alguns de seus familiares, os filhos Leilah e Cyro adquiriram várias telas do artista. Nas paredes
da Villa Kyrial figuraram algumas delas.
No inventário da casa, feito no ano da morte de seu proprietário, e assinado por Paulo
Freitas Jr., em 26 de abril de 1958, consta um total de dez quadros do pintor. Na galeria
encontravam-se as obras: 1. T. Mulher (200x120) – Cr$150.000; 7. P. Cab. Mulher (30x46) –
Cr$15.000; 8. T. nú (45x135) – Cr$50.000; 96. - Tb. Cab. Mulher (16x15) – Cr$5.000; 109. Tb.
Mulher (71x35) – Cr$30.000. Na sala de visitas: 190. Tb. árvore (50x26) – Cr$5.000; 220. T.
mulher (34x19) – Cr$20.000. No quarto Freitas Valle: 306. T. busto mulher (39x23) –
Cr$20.000. No banheiro Freitas Valle: 321. Tb. mulher (13x24) – Cr$7.000. E na biblioteca:
328. T. Retrato Vovó (61x53)13.
Senhora em pé, c.1912-15 (fig 8), cuja nomenclatura no inventário é tida como “1. T.
Mulher (200x120)”, apresenta uma distinta senhora, de traços muito delicados e sorriso singelo,
trajada em um sóbrio vestido negro. A obra, que hoje habita a reserva técnica do Museu de Arte
de São Paulo – MASP, pode ter sido feita por Amisani enquanto estava na cidade, no ano de
1913. Contudo, infelizmente não há nenhuma inscrição na tela, nem em seu verso, que nos dê
algum indicativo do ano de execução. No inventário consta, também, a informação de que a
pintura foi “doada ao museu de arte moderna”. Todavia, é apenas em 1961, que ela é doada, por
José de Freitas Valle Filho, ao MASP. Em meio a todas as obras que habitavam a Villa Kyrial,
Freitas Valle dedicava ao quadro Senhora em pé uma parede exclusiva na galeria da casa. Sob o
piano de cauda, sustentava-se essa mulher de sorriso caloroso e sincero (fig 1-a).
12
13
Em: CAMARGOS, Marcia. Villa Kyrial: crônica da Belle Époque paulistana. 2ed. São Paulo: SENAC, 2001.
Segundo a legenda no inventário da casa: T. – Tela a óleo; Tb. – Tábua a óleo; P. – Pastel. Os valores em
cruzeiros, marcados à caneta no documento, referem-se à estimativa de preço das obras.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Em um canto na parede do fumoir achava-se a obra de número 220 “T. mulher (34x19)”
(fig 9), hoje parte da coleção de Zé Luiz de Freitas Valle. Na documentação, a tela aparece não
na lista de obras do fumoir (fig 9-a), mas da sala de visitas, ao lado de outra obra de Amisani.
Assinada e datada em 1913, e retrato da mulher em perfil, lembra muito outras pinturas, o Figura
Femminile ou Lyda Borelli, 1912 c. (fig 9-b), ou ainda Profilo di Lyda Borelli, 1913 (fig 9-c). A
pose, o cabelo, a vestimenta, tudo se assemelha. Logo, é plausível, que a mulher retratada seja a
tão admirada musa Borelli.
Apelidado carinhosamente por Paulo Freitas Jr. como Retrato de vóvó, o quadro de número
328 (fig 10), que dividia a parede da biblioteca da Kyrial com o retrato de Freitas Valle (fig 10a), exibe o busto de Antonieta Egídio de Freitas Valle, nascida Antonieta Egídio de Souza
Aranha e esposa do senador, falecida aos 39 anos, em 1910, que hoje ocupa o corredor da
residência de Zé Luiz. De todas aquelas telas fortemente elogiadas nas ligeiras notas de jornais,
que “as suas telas têm alma, vibram, palpitam, deixam o visitante emocionado” 14, talvez aquele
em que Amisani consiga inserir com tamanho ardor todos esses elementos, seja o retrato de
Antonieta. A obra vibra, lateja, expressa de maneira tão sublime, tão divina, o sofrimento através
do olhar da jovem e falecida mulher. A pincelada ligeira e despretensiosa transpassa uma incrível
leveza.
Embora suas visitas ao país ainda sejam consideravelmente lacunosas e o destino e
localização atual das obras trazidas ou executadas aqui permaneçam quase desconhecidas,
Amisani foi uma figura que causou grande impacto no ambiente das artes em São Paulo. Como
demonstram suas duas estadias no Brasil: seja por meio das vendas de quadros, das encomendas
de retratos ou de seu profícuo relacionamento com políticos e críticos.
Referência Bibliográfica:
Periódicos
O pintor Amisani. O Correio Paulistano, São Paulo, p. 3, 01 dez. 1912.
GIUSEPPE AMISANI. O Correio Paulistano, São Paulo, 05 dez. 1912.
HOSPEDES E VIAJANTES. O Correio Paulistano, São Paulo, 20 ago. 1913.
EXPOSIÇÃO AMISANI. O Correio Paulistano, São Paulo, 03 set. 1913.
EXPOSIÇÃO AMISANI. O Correio Paulistano, São Paulo, 05 set. 1913.
14
Em: O Correio Paulistano. Registro de Arte. Exposição Amisani. 05/09/1913.
243
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EXPOSIÇÃO AMISANI. O Correio Paulistano, São Paulo, 12 set. 1913.
EXPOSIÇÃO AMISANI. O Correio Paulistano, São Paulo, 25 set. 1913.
EXPOSIÇÃO AMISANI. O Correio Paulistano, São Paulo, 28 set. 1913.
MOSTRA AMISANI. Fanfulla, São Paulo, 01 set. 1913.
L’Esposizione Amisani. Fanfulla, São Paulo, 05 set. 1913.
Il magnifico sucesso all’Esposizione Amisani. Fanfulla, São Paulo, 28 set. 1913.
L’Esposizione Amisani. Fanfulla, São Paulo, 02 out. 1913.
EXPOSIÇÃO AMISANI. O Estado de São Paulo, São Paulo, 02 out. 1913.
Livros
BUCCI, V., MELANI, A. Mostra Individuale del pittore Giuseppe Amisani. Galeria Pesaro
Milano. Milão: Bestetti e Tumminelli, 1926.CALZINI, Raffaele. Artisti contemporanei :
Giuseppe Amisani. IN Emporium, 52.1920, p. 283-293.
CAMARGOS, Marcia. Villa Kyrial: crônica da Belle Époque paulistana. 2ed. São Paulo:
SENAC, 2001.
COMANDUCCI, A. M. Dizionario illustrato dei pittori e incisori italiani moderni (1800-1900).
Milano: Pizzi & Pizio, 1945. v.1.
GATTI, Chiara., LECCI, Leo. Giuseppe Amisani (1879-1941) – Il pittore dei re. Milão: Skira,
2008.
____________. Giuseppe Amisani e il ritratto di primo Novecento IN Da Pellizza a Carrà :
artisti e paesaggio in Lomellina. A cura di Alberto Ghinzani. Comune di Vigevano. 1ed.Milano :
Skira, 2007.
LOBATO, Monteiro. Idéias de Jeca Tatu. 1ed. São Paulo: Globo, 2008.
MASINARI, Giuseppe Giuseppe Amisani. IN. Rob ad Med. 1ed. Mede Lomellina: Rotary Club
Vigevano - Mortara, 1973.
NICODEMI, Giorgio. Giuseppe Amisani. 1ed. Milano: Pizzi e Pizio, 1923?.
244
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2011
PITTA, Fernanda. Pintores Italianos em São Paulo – O caso da Culla Tragica de Giuseppe
Amisani.
19&20.
Rio
de
Janeiro,
v.
III,
n.
2,
abr.
2008.
Disponível
em:
http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_pf_cullatragica.htm. (acessado em 03 de junho de
2011).
ROSSI, Mirian Silva. Circulação e mediação de obras de arte na Belle Époque paulistana.
Anais do Museu Paulista, ano/vol.6/7, número 007. São Paulo, Brasil. pp. 83-122.
ANEXO DE IMAGENS
Fig 1 – Giuseppe Amisani
Alcova tragica, 1910
Óleo sobre tela
242 x 176 cm
Pinacoteca do Estado de São Paulo
245
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Fig 3 – Giuseppe Amisani
S. A. R. La Principessa Yolanda, s/d
Óleo sobre tela
Localização desconhecida
Reprodução: O Correio Paulistano
Fig 4 – Giuseppe Amisani
Ritratto di Lyda Borelli, 1912
Óleo sobre tela
Localização desconhecida
Fig 5 – Emilio Sommariva (1883-1956)
Lyda Borelli
1912
Gelatina-brometo de prata/carta
Biblioteca Nazionale Braidense, fondo Sommariva, Milão - Itália
246
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
Fig 6 – Giuseppe Amisani
Alodolla, s/d
Óleo sobre tela
Localização desconhecida
Reprodução: O Correio
PaulistanoFig 2 – Giuseppe
Amisani
Cleopatra lussuriosa, 1900
Óleo sobre tela
193 x 151 cm
Comune di Mede, Itália
2011
Fig 7 – Giuseppe Amisani
L’Anima dei Fiori, 1913
Afresco
Demolido em 1961
Fig 8a – Galeria da Vila Kyrial, 1916c.
Fotografia
Arquivo Freitas Valle
Fig 8 – Giuseppe Amisani
Senhora em pé, 1912-15c.
Óleo sobre tela
200 x 117 cm
MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Doado por José de Freitas Valle Filho em 1961
247
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
Fig 9 – Giuseppe Amisani
Sem título, 1913
Óleo sobre tela
34 x 19 cm
Coleção José Luiz Freitas Valle
Fig 9b – Giuseppe Amisani
Perfil de Lyda Borelli, 1913
Coleção particular
2011
Fig 9a – Fumoir da Villa Kyrial, 1916c.
Fotografia
Arquivo Freitas Valle
Fig 9c – Giuseppe Amisani
Figura feminina ou Lyda Borelli,
1912c.
Localização desconhecida
248
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
Fig 10 – Giuseppe Amisani
Retrato de Antonieta Egídio de Freitas Valle, s/d
Óleo sobre tela
61 x 53 cm
Coleção José Luiz de Freitas Valle
2011
Fig 10a – Biblioteca da Villa Kyrial, 1916c.
Fotografia
Arquivo Freitas Valle
249
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
REVISÕES FEMINISTAS DAS HISTÓRIAS DA ARTE: CONTRIBUIÇÕES DE LINDA
NOCHLIN E GRISELDA POLLOCK
Lina Alves Arruda
Linda Nochlin inicia o artigo Why Have There Been No Great Women Artists? (1971)
analisando os problemas e armadilhas da tentativa de se responder à pergunta que o intitula.
Segundo a autora, trata-se de um questionamento de natureza falsa, que leva à presunção
automática de que realmente não houve grandes mulheres artistas, aludindo, conseqüentemente,
à idéia de que essas são incapazes de atingir a grandiosidade. Esse é um dos principais pontos de
contínua incisão do texto: a desnaturalização da atribuição da condição da mulher ao sexo
biológico. Alusões diretas ao útero, em fragmentos que trabalham jocosamente a crueza
biológica, são recorrentes, evidenciando a preocupação de Nochlin de revogar o argumento
centrado na biologia, em prol de uma análise social da condição da mulher.
Nochlin cita as possíveis respostas-ciladas acarretadas pela pergunta inicial. A primeira
delas se resume à tentativa de algumas teóricas feministas de re-descobrir artistas mulheres e
integrá-las acriticamente às instituições e à história da arte, as quais, segundo a autora, as
negligenciaram. Nochlin esclarece que outras práticas similares, como as que propõem releituras
“de um ponto de vista feminista” e visam descobrir um “Michelangelo Feminino” ou
reinterpretar biografias femininas, apesar de muitas vezes serem importantes por trazerem novas
pesquisas sobre artistas mulheres, resultam em um no-win-game justamente por não
questionarem a natureza da pergunta que intitula o artigo: reafirmam o questionamento ao tentar
respondê-la rejeitando uma análise do sistema da arte em simbiose com ideologias e estudos
sociais.
Complementarmente, Nochlin discursa sobre os problemas implícitos na tentativa de
“legitimação” das práticas artísticas femininas por meio de desestabilizações dos valores do
sistema da arte (shifting grounds), como, por exemplo, a criação de “critérios alternativos” que
redefiniriam o conceito de “grandiosidade” ao aplicá-lo diferenciadamente à arte feita por
mulheres. A autora pontua que a busca e a afirmação de uma essência feminina inerente a toda
prática artística de mulheres (a criação e manutenção de um estilo feminino distintivo),
complementada pelo discurso de que a arte feita por mulheres é dotada de “outro tipo de
grandiosidade”, é uma resposta inválida. Ainda que exista uma experiência feminina que é

Mestranda do programa de pós-graduação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
financiada pela CAPES.
250
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
distinta da masculina, Nochlin afirma que “em todos os sentidos, mulheres artistas e escritoras
parecem estar mais próximas de outros artistas e escritores de seu próprio período e panorama,
que entre si” (NOCHLIN, 1971: p.20) e problematiza o emprego do adjetivo “feminino” como
barômetro para a apreciação de obras de artistas homens.
No artigo em questão, a proposta de Nochlin é a análise da noção de “grandiosidade”. A
autora demonstra como historiadores da arte concebem a qualidade de “gênio” (vinculada a
“talento” e “maestria”) como inata e desassociada de um contexto histórico, social, econômico e
de gênero, apontando que, na historiografia da arte, os atributos culturais que subscrevem o
artista a um determinado contexto e período são tidos como secundários.
Acerca da condição das mulheres artistas, Nochlin esclarece que a referida lógica da
genialidade inata e mítica sistematiza uma falsa premissa centrada na biologia:
“Nesse sentido, a falta de grandes conquistas de mulheres na arte pode ser
formulada como um silogismo: se as mulheres tivessem a pedrinha de ouro do gênio
artístico (golden nugget), então esse se revelaria. Mas como nunca se revelou, fica
demonstrado que as mulheres não têm o gênio artístico.” (NOCHLIN, 1971: p.26)
Ao relacionar os aspectos sócio-econômicos de artistas considerados geniais às
oportunidades de aprendizagem artística que tiveram (considerando o pertencimento a
determinadas castas e subgrupos), a autora utiliza-se da chamada “abordagem sociológica da
arte” para destituir o conceito tradicional mítico de “genialidade” e seus atributos inatos,
naturais, auto-didáticos, miraculosos e intrinsecamente vinculados ao gênero masculino. Com
essa abordagem, Nochlin conclui que “o que nós escolhemos chamar de ‘gênio’ é uma atividade
dinâmica, e não uma essência estática, uma atividade de um sujeito em determinada situação.”
(NOCHLIN, 1971: p.28).
O reforço da idéia de que a condição social (financeira, racial e de gênero) do indivíduo é
o fator condicionante de seu sucesso, se dá com a análise da oportunidade de acesso dos artistas
às instituições de ensino e possibilidade de dedicação integral à carreira artística. Ao demonstrar
que o atributo da genialidade não é inato, Nochlin identifica as bases sob as quais se formulam as
conjunturas em que o talento e a maestria podem ser desenvolvidos e justifica conclusivamente o
“fracasso” de mulheres artistas, tanto de alta como de baixa classe, pelo fato de suas funções
sociais culturalmente atribuídas (as características de suas atividades e o tempo destinado a elas)
as privarem do acesso ao conhecimento e da devoção integral à profissão artística. Essa idéia é
explicitada em:
“A culpa não está em nossas estrelas, nossos hormônios, ciclos menstruais ou
espaços internos vazios, mas em nossas instituições e em nossa educação. Considerando
251
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
que educação inclui tudo o que nos acontece desde o momento em que entramos no
mundo de símbolos, signos e sinais.” (NOCHLIN, 1971: p.28)
Esse fragmento além de desmistificar a premissa de que a mulher era desprovida de
talento e incapaz de grandiosidade, expande o conceito de educação às práticas de socialização,
majoritariamente empregado no artigo para referir-se às instituições de ensino.
Ao propor a conciliação do estudo do campo artístico com demais áreas do conhecimento
para a produção de uma historiografia da arte socialmente crítica e ao enfatizar a importância de
se entender a arte como uma totalidade de práticas sociais, pode-se dizer que Nochlin revoga a
autonomia da história da arte com relação às demais disciplinas e desnaturaliza as hierarquias
que constituem o sistema da arte, evidenciando a parcialidade da disciplina e relacionando-a, de
maneira inovadora, às assimetrias entre os gêneros.
O artigo, por vezes, parece promover uma auto-revisão dos termos, valores e conceitos do
sistema da arte, conforme pode ser interpretado no fragmento: “(o problema) se dá com a máinterpretação, por parte de teóricas feministas e do grande público, do que a arte é: se dá com a
idéia ingênua de que a arte é a expressão direta e pessoal da experiência individual emocional,
uma tradução da vida pessoal em termos visuais.” (NOCHLIN, 1971: p.28) Esse trecho parece
sugerir uma necessidade de se revisar a epistemologia da arte: uma leitura superficial ou um uso
manipulativo do conteúdo do texto poderiam vincular as idéias de Nochlin a uma abordagem
feminista revisionista da história da arte. Entretanto, a proposta real é menos ousada e tende a ser
paradoxal: Nochlin pretende ampliar o campo de estudo auto-contido e hermético da disciplina
“história da arte”, introduzindo, na prática historiográfica, abordagens sociais com foco em
gênero, raça e classe.
O paradoxo inerente à teoria de Nochlin se dá com o fato de que sua proposta (que
relaciona diferentes áreas de estudo, como a arte e a sociologia, desestabilizando a natureza das
disciplinas e desafiando as “políticas do conhecimento”) não promove uma reformulação da
história da arte, como o faz Griselda Pollock: pode-se dizer que Nochlin mantém intactos os
limites da disciplina e trabalha com as estruturas tradicionais construídas socialmente sob bases
que produzem assimetrias de gênero. Segundo Pollock, associações e incorporações de
metodologias e discursos feministas a modelos e noções tradicionais (como a própria idéia de
‘grandiosidade’) são inviáveis. Pode-se dizer que Nochlin se propõe a justificar, por meio de
uma análise social centrada no acesso às instituições de ensino, o motivo pelo qual as mulheres
foram desprovidas da oportunidade de atingir a ‘grandiosidade’, porém não questiona tal noção
como construto social inerente a um sistema que produz hierarquias de gênero, o que limita seu
discurso à lógica avaliativa.
252
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
A conclusão do texto de Nochlin é dotada de colocações controversas referentes à então
atual condição da mulher e das artistas. Segundo Pollock, que revisa o artigo quase duas décadas
depois da primeira publicação, Nochlin almeja a superação da condição feminina (de seu
estereótipo) e resume as pressões da instituição social/ideológica à má-fé ou má-interpretação.
Nochlin propõe que as mulheres atinjam a “grandiosidade” através da transcendência da divisão
sexual e da sociedade, “esquecendo” seu passado, conforme identificado em:
“as mulheres precisam entender a si mesmas como sujeitos potencialmente (senão
realmente) iguais e devem estar dispostas a encarar os fatos de sua situação, sem autopiedade ou pretextos; ao mesmo tempo, precisam olhar essa situação com aquele alto
nível de comprometimento emocional e intelectual necessários para criar um mundo no
qual as conquistas, sem discriminação de gênero, não são somente possíveis, mas
encorajadas pelas instituições sociais.” (NOCHLIN, 1971: p.22)
Quando Nochlin coloca que “o importante é que as mulheres enfrentem a realidade de
sua história e sua situação presente, sem criar desculpas ou se aproveitar da mediocridade”
(NOCHLIN, 1971: p.22) parece sugerir que a condição feminina pode ser simplesmente
excedida através da percepção de que as conjunturas que oprimem as mulheres são meros
“obstáculos” ou empecilhos (advindos da ignorância alheia), que podem ser superados com força
de vontade e pela ação individual livre.
Segundo Pollock, o passado é um fardo das mulheres que deve ser entendido e
desconstruído, não simplesmente superado. A autora defende que a evidenciação da construção
do modelo da ideologia é uma proposição estrategicamente coerente, que ajuda a identificar e
pinçar as limitações ideológico-culturais e a revelar a estrutura inadequada da historiografia da
arte (questionando a disciplina como um todo, já que a evidenciação do modelo prioriza a
desnaturalização dos discursos da historiografia da arte.). Afinal, “quando se pede a
incorporação, se perde de vista o real motivo/discurso que causou a exclusão.” (POLLOCK,
1988: p.51).
Na opinião de Pollock, Nochlin afirma e justifica o ‘fracasso’ das mulheres artistas
(argumenta que é institucionalmente impossível para mulheres alcançar a excelência ou o êxito
artístico no mesmo nível que os homens), promovendo uma explicação sociológica fundada na
desvantagem e no preconceito contra mulheres artistas. Essa idéia é contestada por Pollock pela
colocação de que a descriminação é um sintoma, não uma causa dessa condição.
Outro aspecto controverso é o emprego do termo “mulher” como uma categoria
inquestionável. Segundo a autora, Nochlin defende que a feminilidade é um construto social,
mas afirma a “categoria das mulheres” como sendo autêntica e fixa. Em seu discurso identifica253
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
se a sugestão clara de que as mulheres podem e devem escapar de seus papéis femininos (onde
reside sua desvantagem) para atingirem a neutralidade e a liberdade (tendo como modelo a
experiência masculina).
Pollock menciona que a revisão feminista da historiografia da arte tem como principal
ferramenta a análise da mulher como produtora. Logo, a categoria histórica ‘mulheres’ deve ser
o objeto principal e determinante da análise, considerando-se a constante variação da condição
feminina. Ao discursar sobre a importância da análise social da mulher, Pollock problematiza a
definição do sujeito do feminismo, ou seja, a definição de quem compõe a ‘categoria das
mulheres’. Pollock discursa sobre a dificuldade de se encontrar um marco que unifique a
experiência feminina e coloca que o termo “mulher” postula uma coerência identitária que
parece independer da particularidade das circunstâncias em que se encontram os indivíduos e das
irrevogáveis diferenças entre suas experiências. Acerca dessa problemática, Pollock coloca que a
base da revisão feminista deve centrar-se na ênfase da construção social da diferença sexual,
evitando, assim, o essencialismo do que é denominado ‘mulher’.
Pode-se dizer que Nochlin continua trabalhando numa lógica avaliativa, onde os
parâmetros de avaliação não são criticamente questionados. Em Why Have There Been no Great
Women Artistis? existe uma manutenção do sistema da arte e de seus elementos: ainda que a
forma de se atingir a grandiosidade seja revisada pela autora, o status desse conceito é
naturalizado, como se sua existência precedesse e independesse da ideologia e funcionamento
dos sistemas sociais que o engendram.
Assim sendo, o artigo de Nochlin parece sugerir que o ‘fracasso’ das mulheres artistas é
fruto de um ‘mau-entendimento’ do conceito de grandiosidade e de uma ‘má-interpretação’ do
que se entende por arte. Tal idéia é identificada no fragmento: “A pergunta ‘porque não
existiram grandes mulheres artistas?’ é somente o primeiro décimo de um iceberg de más
interpretações e equívocos; abaixo encontram-se volumes vastos e obscuros de idéias frágeis
sobre a natureza da arte e suas concomitâncias situacionais, sobre a natureza das habilidades
humanas em geral e da excelência humana em particular, e sobre o papel que a ordem social tem
em tudo isso.” Pode-se concluir que Nochlin sugere, positivistamente, que existem verdades
relativas ao sistema da arte e à condição humana a serem expostas. Em contraposição, Pollock
argumenta que trata-se de uma questão de análise das construções dos discursos:
“Aprender arte através do discurso canônico é entender a masculinidade como
poder e significado, e os três como idênticos à Verdade e à Beleza. Enquanto o feminismo
também tentar ser um discurso sobre a Arte, a Verdade e a Beleza, só pode confirmar a
estrutura do cânone ao fazê-lo corroborar com a maestria e o poder masculinos, sejam
254
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
quais forem os números de nomes de mulheres que se trate de adicionar, ou as narrativas
históricas mais completas que se consiga produzir.” (POLLOCK, 1999: p.9)
Tanto Nochlin como Pollock identificam a insuficiência da adição de mulheres à história
da arte (sua inclusão acrítica dentro dos movimentos, estilos e exposições). Entretanto, Pollock
comenta que as mulheres não foram simplesmente excluídas devido ao preconceito, e,
diferentemente de Nochlin, não condiciona a superação da negligência como principal questão
do feminismo. A autora promove uma inspeção da genealogia de poder intrínseca à história da
arte e às práticas sociais para abordar o tema a partir de uma leitura crítica do modelo vigente:
“Pollock chega à conclusão de que o projeto de crítica ao cânone é mais
complexo, porque o objetivo não é explicitar ou expandir o cânone, mas estabelecer uma
crítica que opere desde dentro para produzir contra-historias baseadas em práticas
expandidas de leitura e escritura, que gerem formas de diferenciação da escritura.”
(POLLOCK, 2005: p.25)
Conclusivamente, Pollock defende que é necessário mais que uma inclusão de novos
elementos (mulheres e sua história) a categorias e métodos tradicionais: a proposta ideal reside
em uma auto-análise da disciplina e depende da conceitualização de seu objeto, ferramentas e
métodos, com a finalidade de formular um novo modelo de análise, associado à necessidade de
mudança de paradigmas na disciplina, visto que, nesse caso, o modo dominante de pesquisa já
não serve para o objeto/fenômeno de estudo. Essa idéia parece sugerir a necessidade de se
escrever uma nova história da arte (feminista, atualizada e superior), entretanto, a proposta se
configura mais como uma revisão da história da arte com foco em gênero, ou seja, intervenções
feministas nas histórias das artes.1
Referência Bibliográfica:
MAYAYO, Patricia. Historias de Mujeres, Historias del Arte. Madrid. Ediciones Cátedra, 2007.
POLLOCK, Griselda. Vision and Difference. New York. Routledge, 1988.
POLLOCK, Griselda. Differencing the Canon: Feminist Desire and the Writing of Art Historie.,
New York. Routledge, 1999
POLLOCK, Griselda. Encuentros en el Museu Feminista Virtual. Madrid. Ediciones Cátedra,
2010
1
De maneira relacionada, Pollock esclarece que a pergunta ‘o que é arte feminista?’ deve ser corrigida, de forma
que, em vez disso, se questione qual é a problemática da prática artística feminista, ou seja, qual é o campo
teórico e metodológico em que o conhecimento é produzido.
255
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
A MISSÃO ARTÍTICA DO PRIMEIRO MASP: UM ESTUDO DA CONCEPÇÃO DE
PIETRO MARIA BARDI PARA O MASP EM SEUS PRIMEIROS 20 ANOS
Luna Lobão
Palavras-chave: MASP – Pietro Maria Bardi – Museus brasileiros
Resumo: A presente apresentação de trabalho de pesquisa de Mestrado trata de um estudo da
história do Museu de Arte de São Paulo, buscando traçar a museologia de sua primeira sede, na
Rua 7 de Abril, como um conjunto de atividades, exposições e ações culturais e artísticas, que
dava forma a um centro cultural, um museu novo. Através da análise do discurso de Pietro Maria
Bardi, tendo como fonte revistas de sua editoração e participação, como Quadrante, Habitat e,
com destaque, a Mirante das Artes, a pesquisa tem buscado entender a concepção museológica
de Bardi, suas bases teóricas, o caráter inovador do MASP nesta fase inicial, os principais pilares
formadores, bem como a idéia de educação de arte presente no Instituto de Arte Contemporânea
e, por fim, como esta museologia se altera com a perda dos cursos do MASP para a FAAP,
devido a uma parceria mal sucedida.
Introdução
“Um museu, no seu significado moderno, não é uma simples coletânea de quadros mais ou menos célebres. É
um organismo vivo e participante da vida artística de um país: tem que sentir, tem que se integrar no
ambiente em que funciona.”
1
A pesquisa de Mestrado a qual se refere esta apresentação se constitui em um estudo que
visa analisar e procurar compreender a missão artística do MASP na Rua 7 de Abril. Propõe-se
como objetivo principal traçar a museologia nos primeiros vinte anos de existência do museu, de
1947, data da fundação, até 1967, quando muda sua sede para a Avenida Paulista. O
desenvolvimento desse objetivo envolve buscar compreender os fundamentos das concepções de
museu e de espaço museológico, formuladas por Pietro Maria Bardi, seu principal fundador e
idealizador, e um dos principais pensadores das artes no Brasil.
Aqui entende-se o conceito de museologia, no caso do MASP, como uma abordagem
que inclui o acervo, os cursos e todas as atividades do museu, não a limitando apenas às obras e a

Luna Villas-Bôas Lobão é formada em História pela Universidade Estadual de Campinas e atualmente faz
Mestrado em História da Arte no departamento de Pós-Graduação do IFCH desta mesma Universidade, como
bolsista Fapesp.
1
Discurso de Bardi apud in TENTORI, F. P.M. Bardi. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
256
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
sua organização. Dessa forma mais abrangente é possível se aproximar da concepção que Bardi
tem do museu: algo próximo ao que chamamos hoje de centro cultural.
O desenvolvimento da pesquisa segue quatro vertentes de trabalho: a primeira é procurar
entender a figura de Pietro Maria Bardi; a segunda, analisar, pelo discurso presente nas suas
produções e revistas, o modo como Bardi concebia a idéia de museu, assim como acompanhar
quais eram suas propostas para o MASP; a terceira é investigar a estrutura pedagógica do MASP,
sua escola, seus seminários e palestras, concretizados no IAC, o Instituto de Arte
Contemporânea; e, por fim, averiguar os acontecimentos que podem ter alterado a missão
artística proposta para o MASP.
Pressuposto fundamental para encaminhar e concretizar o objetivo central é compreender
a figura de Pietro Maria Bardi como ponto de partida do MASP no período enfocado. O italiano
é, a bem dizer, o corpo central idealizador do projeto deste museu, por isso, um personagem que,
em suma, é constantemente tratado e referido; a fim de compreender suas propostas para esse
museu brasileiro, paulista, e concebido nos meados da década de 1940, parte da investigação se
dá no trabalho de situar a persona intelectual de Bardi desde as suas primeiras atividades, ainda
na Itália, onde trabalhou como galerista, marchand e jornalista, numa Europa em guerra, até sua
atuação no MASP.
***
Pietro Maria Bardi (La Spezia, 1900 – São Paulo, 1999), foi dono de galeria, jornalista,
crítico, estudioso da arte, professor, autor de diversos livros. Mudou-se para o Brasil em 1946,
junto de sua mulher, a arquiteta Lina Bo Bardi, onde fixaram residência permanente. Bardi já
conhecera o país anos antes, de passagem para Buenos Aires, onde realizou exposições. Aqui,
organizou duas grandes exposições “Exposição de Arte Antiga Italiana” e “Exposição de Pintura
Italiana Moderna”, ambas no Rio de Janeiro, no Ministério da Educação e Saúde, durante os
anos de 1946 e 1947, respectivamente, e foi onde conheceu o empresário e jornalista Assis
Chateaubriand2. Ficando amigos, o interesse pelas artes os uniu em uma idéia antiga dos dois: a
criação de um museu.
P.M. Bardi, ainda na Itália, já tinha participado da organização de diversas exposições, várias
negociações de compra e venda de obras de arte em galerias 3. O crítico era uma pessoa ativa no
2
Há controvérsias sobre quando Bardi e Chateaubriand se conheceram, se foi em uma das exposições de Bardi já no
Brasil, ou ainda em Roma, pela amizade em comum de ambos com o embaixador brasileiro na Itália. A
discussão se dá por contradições nos próprios depoimentos de Bardi. Ver: TENTORI, F., 2000.
3
Em Milão, Bardi foi proprietário da Galleria Bardi (antes Galleria dell’Esame), e depois, em Roma, da Galleria
dell’Arte di Roma que, primeiramente particular, tornou-se pública durante o regime fascista que, por muitos
anos Bardi apoiou, mesmo discordando de algumas medidas relacionadas à arquitetura monumental de
257
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
meio cultural, e a publicação e edição de revistas com artigos seus sobre os acontecimentos
artísticos do momento, fazia dele uma figura ativa e reconhecida, assim como divulgava suas
opiniões. Por fim, o galerista e crítico teve na Itália, com participação de Lina Bo, o Studio
Dell’Arte Palma4, sendo que esse local tinha como objetivos: “exposições de arte antiga e
moderna; perícia e exame científico das obras de arte com laboratório montado; restauro de
obras de arte; gabinete de radiografia e fotografia.”5. Era uma galeria de arte, com cursos
diversos, seminários e encontros entre artistas e estudiosos do mundo artístico-cultural italiano
de então. A revista Quadrante, lançada e editada nesse Studio, foi uma das principais
publicações, em que Bardi expôs seus pensamentos e reflexões, com a colaboração de amigos
que compartilhavam de seus ideais em relação às artes. Essa publicação era uma espécie de
espelho do próprio Studio, que era um complexo de atividades, um centro de encontro, um
propulsor para o museu dos sonhos de Bardi.
***
Para melhor nos aproximarmos da complexa mente bardiana, é necessário entrar em
contato com sua extensa produção. Assim, a partir da leitura de revistas editadas por Bardi e de
outras nas quais ele participou ativamente, o desenvolvimento deste trabalho se dá na busca em
seus artigos, editoriais, diálogos, e mesmo na escolha dos temas, convidados e colaboradores, o
pensamento museológico do autor, as idéias e concepções de museu, arte e educação, que
poderiam ser consideradas como originais para suas futuras propostas para o MASP.
A revista Habitat tem sido estudada com enfoque maior nos primeiros números. Lançada em
1950, era identificada como uma “revista das artes do Brasil”, sob direção de Lina Bo Bardi.
Também com sede nos prédios dos Diários Associados, de Chateaubriand, como o próprio
MASP, a revista teve participação de Bardi, que durante alguns anos também trabalhou na sua
direção. Apesar da proposta inicial de tratar de todas as artes, muito bem sucedida no começo, a
revista acabou ganhando um enfoque mais voltado para a arquitetura. Desta forma, para nosso
caso, torna-se mais relevante o estudo dos primeiros números, em que reportagens sobre o
MASP, sua museologia e organização, aparecem com maior freqüência, bem como os números
sob direção de Bardi, de modo a analisar seu discurso presente.
Como uma das fontes principais da pesquisa, destaca-se a revista Mirante das Artes, etc.
– todos os seus doze números. O enfoque maior nessa publicação, especificamente, se dá pelo
fato de ser uma publicação sob inteira edição de Bardi. A Mirante, podemos dize, é uma espécie
Mussolini, que ia contra sua visão moderna e racionalista. A guerra foi fator determinante que marcou sua
oposição, e ele se tornou, então, figura conflituosa no cenário político e cultural italiano.
4
Localizado na Piazza Augusto Imperatore, 32 Roma, inaugurado em 1944.
5
TENTORI, F., 2000.
258
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
de espelho do pensamento de Bardi no momento, bem como de seu museu; desde seus editoriais
e reportagens, até a escolha dos assuntos, temas e colaboradores. Abrangendo todas as artes, com
sessões de poesia, arquitetura, discussão de museus, música, teatro, cinema, artes plásticas e
escultura, ainda tratava de discussões polêmicas do universo da arte. Os editoriais de Bardi são
bastante pessoais e diretos, permitindo um aprofundamento do seu discurso e pensamento. Além
de relatar a evolução e os eventos que alteraram os fundamentos do museu, acompanhando-o
desde os seus primeiros anos até o projeto, construção e mudança para o MASP–Trianon, na
Avenida Paulista.
O MASP da Rua 7 de Abril
“Pensate a un museo che nasce, potrebbe dirsi, in ascensore, spostandosi da un piano all’altro
del grattacielo in costruzione dei Diarios Associados di cui è proprietario lo Chateaubriand. Per
farlo però dall’interno, come organismo vivente di cultura artistica, e attivare le sue nuone febbri
di crescenza era proprio il Bardi che ci voleva con la rapidità interattiva dei suoi interessi mentali e
con il piglio apostolico, pionieristico, novecentesco che conosciamo fin dai suoi anni italiani”
6
Por uma iniciativa conjunta, os amigos Assis Chateaubriand e P.M.Bardi começaram a
formular os planos do museu. Ao empresário Assis Chateaubriand, acabou recaindo,
principalmente, a função ligada à parte financeira. Ele possuía o capital inicial que moveria o
MASP, assim como uma rede de influência e relações pessoais. Baseando-se na postura
filantrópica do norte-americano Nelson Rockefeller, ele iniciou a compra de obras para o acervo
com a proposta de doação: um empresário brasileiro doava a quantia necessária para aquisição
de uma obra, e cabia aos jornais de Chateaubriand divulgarem a obra e seu doador por toda a
imprensa, dando destaque, status e servindo de exemplo.
P.M. Bardi sempre foi, no MASP, o maior pensador e idealizador. Chamado por
Chateaubriand de “professor”, foi o grande visionário de um museu novo, diferente de tudo,
muito diferente da Pinacoteca do Estado, conservadora coleção de arte principal, até aquele
momento, da cidade de São Paulo. Para compreender a formulação proposta por Bardi para a
construção de um museu, será necessário percorrer, brevemente, a trajetória do seu pensamento.
Bardi acreditava que a arte, um fenômeno complexo, era uma atividade humana por
excelência, uma vez que era a transformação da natureza em produção humana, em objeto.
Partindo desta idéia, tudo na vida era, de alguma forma, arte. Todas as nossas ações, cotidianas
ou não, são artes produzidas por um grupo, em um tempo, que define, de alguma forma, sua
história, valores, conhecimentos e gostos. Para Bardi, então, era preciso não educar no sentido de
6
LONGHI, Roberto. “Il bel museo allestito a San Paolo da un italiano”. In: Critica d’Arte e Buongoverno 19381969, Firenze: Sansoni, 1985
259
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
reformular pensamentos, ou apresentar conteúdos e histórias para serem absorvidos pelo público,
mas sim criar. Criar a consciência dos atos humanos, tanto ao longo da história, do já produzido,
como do presente e do que pode estar por vir. É a troca, entre seres humanos e artísticos, do
conhecimento de pensar e perceber a arte.
Para isso, os museus contemplativos de então, eram limitados. Era preciso um lugar novo,
um museu que mais do que conservar e apresentar cronologicamente obras discutisse sobre elas,
invertesse sua ordem, comparasse, debatesse, ensinasse. Um museu-vivo, como Bardi chamou
depois, um centro cultural, em que as pessoas pudessem ver obras expostas, mas também
aprender sobre a história da arte e tentar produzir as suas próprias obras, unindo todas as diversas
artes.“Um autêntico laboratório de elaboração e de discussão dos problemas artísticos
procurando indicar caminhos de compreensão no campo da arte viva” 7. Um museu dinâmico,
com uma concepção rara até mesmo na Europa, onde boa parte dos museus eram sediados em
prédios históricos e tornaram-se “templos da arte”, ainda segundo a concepção museológica do
início do século XIX, quando surgiram s primeiros museus. “O museu de São Paulo propõe, ao
contrário, misturar arte e vida, passado e presente, é ao mesmo tempo museu e escola, lugar
fervido”8.
A idéia era acabar com a concepção tradicional de museu como lugar de conservação de
obras de arte, apenas expondo-as, de forma cronológica, em um ambiente fechado e parado,
como na já existente Pinacoteca do Estado, e em museus por toda a Europa. Tendo como
inspiração os novos museus que surgiam nos Estados Unidos - como o MoMA (Museum of
Modern Art) em Nova Iorque-, Bardi defendia uma nova visão de museu, de história da arte, de
público; era a busca pela integração do museu à cidade, tanto com relação à sociedade, quanto
arquitetura, posteriormente originando o projeto MASP - Trianon, em toda sua modernidade e
praticidade. O idealizador queria um museu que aceitasse a arte moderna na mesma posição que
a clássica, que misturasse as diferentes artes. Como ele mesmo diz, era preciso criar algo novo:
“Nós sabemos o que são os museus do mundo inteiro: organismos estáticos, sempre especializados
e circunscritos À sua escolha de materiais, sua eficácia educativa e sua força como construção civil
desaparecendo gradualmente. E se não é justo que os jovens, 52 vezes por ano, vão ao futebol e
somente uma única vez ao museu, é preciso mesmo reconhecer que seus organizadores não
cansam seus cérebros para diminuir a ínfima porcentagem que nós imaginamos.
7
8
BARDI, P.M. Op Cit.
BIANCONI, Piero. Il Museo di S. Paolo a Milano. Corriere Del Ticiano. Lugano: 27 de Dez de 1954.
260
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
É preciso conceber novos museus, fora dos limites estreitos e de prescrições da museologia
tradicional: organismos em atividade, não com o fim estreito de informar, mas de instruir; não uma
coleção passiva de coisas, mas uma exposição contínua e uma interpretação da civilização.”
9
A proposta que Bardi oferecia era a criação e assentamento de um museu com princípio
nos museus modernos, em que o trabalho de formação de público, de debates, difusão de idéias,
produção de obras de arte passa a ter função determinante em um museu, além das exposições.
Em um primeiro momento da pesquisa será necessário, portanto, identificar a discussão inicial de
formação do MASP em meio aos questionamentos que começavam a ocorrer no período e
envolviam os museus, chegando a mobilizar idéias para a reorganização e constituição de bases
para uma definição internacional de museu, processo em constante interrogação. Lina Bo
sintetiza essa idéia de efervescência falando sobre o surgimento de alguns museus norteamericanos:
“Junto a cada museu brotou um novo fermento: não só o conservativo e colecionístico, mas o de
pesquisas, o do enriquecimento progressivo, com a contínua e cada vez mais geral colaboração do
público. No centro desse fermento acha-se uma atividade por assim dizer didática e educativa.
Uma atividade vária, multíplice, não cristalizada em rançosos esquemas, mas confiada à iniciativa,
ao espírito inventivo, à imaginação e à experiência dos homens. (...)”
10
Em 1946, com grande influência norte-americana, que se antecipou na idéia da criação de
uma instituição extrovertida com ação de potencial educativo, contra a concepção tradicional de
conservação apenas, foi criado o Conselho Internacional de Museus, ICOM 11, que incentivava o
intercâmbio de propostas no mundo todo e consolidava a idéia de museu como difusor do
conhecimento.
A fundação do MASP se dá neste período, precisamente em 2 de outubro de 1947, se
tornando um dos primeiros museus com essas propostas inovadoras. Não tendo ainda sede
própria, o museu instalou-se em alguns andares do prédio recém inaugurado da rede de jornais
de Chateaubriand, os Diário Associados. A estrutura física do MASP se resumia a uma sala
principal, para a coleção, outra para exposição didática de história da arte e um auditório para
100 pessoas, que era também espaço utilizado para cursos e atividades práticas12, com o detalhe
de possuir todas as cadeiras dobráveis13 de autoria de Lina Bo o que facilitava a utilização do
espaço para múltiplas atividades.
9
Discurso de Bardi presente no livro TENTORI, F. P.M. Bardi. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
BO BARDI, Lina. “Os museus vivos nos Estados Unidos”. In: Habitat n.12. São Paulo, 1952.
11
MORLEY, G. Les musées et lUnesco. Paris : Unesco, 1949.
12
BARDI, P.M. Op Cit e também BARDI, P.M. História do Masp. São Paulo: Inst. Quadrante, 1992.
13
Desde o primeiro momento, a organização do espaço, seu aproveitamento, foi feito por Lina Bo, com uma visão
moderna e racionalista. Ela deu sempre muita importância ao design como solução, e as cadeiras dobráveis
foram o primeiro exemplo no Masp, podendo ser facilmente dobradas e transportadas, alteravam o espaço em
10
261
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Podemos sistematizar brevemente o MASP como tendo três pilares fundamentais: as
Exposições Didáticas e Vitrine das Formas; o acervo (exposição permanente) e as exposições
temporárias; e os cursos. Como primeiro pilar havia as Exposições Didáticas e Vitrina das
Formas14, que tinham o intuito de formar um novo público e tornar o museu viável ao público
leigo, para não limitar o museu a uma parcela restrita da população instruída, e mesmo para
mudar a forma de pensar a arte desta parcela. Em pranchas de vidro, que depois inspirariam os
cavaletes de vidro de Lina no MASP -Trianon, eram coladas fotos e reproduções de obras
antigas e modernas, objetos e utensílios, moda e indústria, expostas em uma das salas do museu,
visando ensinar, educar e questionar os visitantes quanto à história da arte.
Um segundo pilar era formado pelo acervo permanente e pelas exposições temporárias. O
acervo, parte trazido por Bardi de seu Studio, parte da coleção de Chateaubriand, e parte recém
comprada em um ambiente cultural europeu propício15, foi exposto, numa sala permanente, sob
orientação de Lina Bo. Além disso, as exposições temporárias trouxeram importantes nomes da
arte brasileira, como Cândido Portinari, e obras internacionais. A direção do MASP, devido aos
contatos de Chateaubriand e de Bardi, conseguiu trazer ao Brasil importantes nomes,
principalmente de arte moderna, aproximando o país às vanguardas modernas do mundo todo.
Alexander Calder, Ernesto di Fiori, Max Bill e Le Corbusier tiveram suas obras preenchendo a
sala de exposições do MASP, dando consistência e maior legitimidade internacional ao recémnascido museu. Pensado por Bardi e Lina, a organização do acervo era também nova, tentando
romper com a “sacralidade” da obra, a inacessibilidade do artista, que pode nos remeter a autores
como André Malraux, e seu museu imaginário16.
O último pilar base do MASP foram os cursos e edição de revistas de arte. É nesta área que
Bardi fecha seu círculo museológico, constituído pelas principais idéias bardianas de educação
pouco tempo. Esse apreço pelo design industrial vai se refleti nos primeiros cursos do IAC, que veremos a
diante.
14
Pesquisas acadêmicas sobre a visão de Bardi sobre a História da arte, a defesa da não submissão da arte ao tempo,
rompendo com divisões como “arte antiga” ou “arte moderna”, na busca de pensar a arte, como um todo, e mais
especificamente sobre como as Exposições didáticas refletem o pensamento bardiano de formação de história da
arte e formação de público, vem sendo desenvolvidas atualmente, destaque para UNICAMP. Ver: POLITANO,
Stela. Op Cit.
15
Em uma Europa arrasada do pós-guerra, a facilidade de comprar obras de arte era grande. Usando a idéia norteamericana de filantropia, Assis Chateaubriand, jornalista, empresário bem relacionado com a elite brasileira,
começa a campanha de filantropia para a aquisição de obras para o museu, que vai durar por muitos anos, uma
vez que o governo brasileiro não manifestou apoio e interesse no caso. Em troca de doações em dinheiro, o
doador recebia divulgação e propaganda na rede de jornais e rádio de Chato (apelido do jornalista), junto à obra
comprada “em seu nome”.
16
Para André Malraux, cada pessoa tem em si uma espécie de arquivo mental, um acumulo de conhecimento e de
memória visual das obras de arte que já viu : forma-se um museu imaginário, que é individual. Cada formação
depende sempre do que cada indivíduo conhece, viu, memorizou. Esse conhecimento que dá origem ao museu
imaginário se forma pelo contato com obras de arte, tanto pessoalmente, ao ver as obras expostas em museus,
galerias, como pela observação de reproduções. Ver: MALRAUX, André. As vozes do silêncio. Lisboa: Edição
Livros do Brasil, 1952.
262
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
pela arte. Não era necessário criar uma “escola acadêmica”, de transmissão do conhecimento, do
mestre ao aluno, como nas Escolas de Belas Artes. O professor Bardi queria um espaço livre de
criação, de troca e difusão de informação, em um ambiente livre que servisse de estímulo para o
conhecimento, tanto teórico como prático. Isso pode remeter ao projeto pedagógico da
Bauhaus17, em que se buscava formar artistas completos, em um sistema livre de aprendizado e
produção, ou mesmo ao Museu para Operários, de John Ruskin18.
É possível também traçar o paralelo entre o pensamento de Bardi sobre o papel das artes na
educação da sociedade, e os ideais estéticos de Friedrich Schiller19. Também se destacam as
concepções sociais que Bardi tanto leu e discutiu com o colega Le Corbusier 20 de que era preciso
existir uma multidisciplinaridade das artes para conduzir a uma igualdade de pensamento e
conhecimento. Nota-se o interesse de Bardi em rever os ideais estéticos da arte como base
educacional, construindo um museu “transparente”; uma tentativa de aproximar as artes,
aumentar as possibilidades, destruir os limites entre um tipo de arte e outro, buscando uma nova
interpretação, livre, da vida, da arte, estética, e como conseqüência, da própria modernidade,
sociedade em que se vive. Bardi sintetiza seu pensamento:
“As coisas a serem ditas, a enfatizar num museu, não são numerosas e são simples. É preciso
ajudar o homem no seu enorme esforço para perceber as coisas simples, libertá-lo da complicação,
do caos; é preciso deixá-lo à vontade na sua pesquisa da medida, da verdade.”
21
O IAC e o conflito com a FAAP
Assim, foi criada a escola do MASP com diversos cursos, que depois formariam o
Instituto de Arte Contemporânea, o IAC. Foram oferecidos cursos de: gravuras, ministrado por
Poty Lazzaroto e depois Renina Katz; desenho, ministrado por Gastone Novelli e Waldemar da
Costa; escultura, com o docente o polonês August Zamoyski; desenho industrial, ministrado pela
Lina Bo; fotografia com Sacha Harnish; além de outros cursos, palestras e seminários com
participação de nomes como Gregori Warchavchik, Lasar Segall, Jacob Ruchti, Leopold Haar, e
depois Alberto Cavalcanti, Tito Batini, Marcos Margullies, Beatriz de Toledo Segall, Rodolfo
17
A Bauhaus é uma referência fundamental para Bardi. Para melhor entender o mencionado pilar do MASP,
formador de sua museologia, dentre diversos título, ver: ITTEN, Johannes. Design and Form – The basic couse
at the Bauhaus and later. Ravensburg: Van Nostrand Reinhold Company, 1975.
18
Bardi inclusive cita tal referência em seu discurso em Sodalício com Assis Chateaubriand, de 1982: “Longe de
modestos orgulhos inventivos, apressei-me em escrever que havia tirado as idéias do famoso Museu para Operários
de Ruskin”.
19
Em 1791, Schiller se correspondeu com seu mecenas, o Príncipe de Augustenburg, apresentando suas reflexões
sobre arte, estética e educação da humanidade. “As Cartas Sobre Educação Estética” foram publicadas em 1795, na
revista Die Horen [As horas]. É considerado seu maior e mais importante trabalho, sendo definido como o primeiro
conjunto (espécie de manifesto programático) para uma crítica estética da modernidade.
20
LE COURBUSIER, 1979; 1996.
21
BARDI, P. M. Musée hors des limites, traduzido em TENTORI, F. Op. Cit
263
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Lima Martensen, na Escola de Propaganda, que dará origem a atual ESPM, e os maestros Mário
Rossini e André Kovach22. Os temas oferecidos, diversificados, unindo os tradicionais das artes
plásticas, como escultura, gravura, com temas mais modernos, como desenho industrial, fazia
parte da escolha educacional do museu, da sua visão museológica diversificada, que buscava,
acima de tudo, unir a vida a arte. O corpo docente de artistas, críticos, foi determinado visando
tornar concreta a idéia de troca entre os que ensinam e aprendem, a partir das experiências
práticas e teóricas de cada um.
Os cursos oferecidos pelo IAC do MASP tinham, desde sua concepção, até a escolha dos
assuntos e docentes, as idéias de Bardi sobre educação das artes; tem sido, então, parte
importante da pesquisa pensar e buscar reconstruir a formação do IAC, relacionando ao
pensamento sobre educação e arte de Bardi, de modo a entender mais a fundo a base teórica
deste, o processo de desenvolvimento do IAC no MASP, e a importância de ambos na
museologia do MASP na Rua 7 de Abril.
Por fim, a então pesquisa, em um futuro breve, seguirá o trajeto de procurar compreender
alguns dos acontecimentos que podem ter alterado a proposta inicial da missão artística que
cabia ao MASP, como o caso do acordo com a FAAP. Concretizado por volta de 1957, ficou
concordado que a Fundação forneceria o espaço para o MASP se instalar, e este ofereceria seus
cursos e seu acervo. Averiguar os motivos do rompimento desse acordo tornou-se um dos
objetivos centrais da pesquisa, com o intuito de entender o quão significativo foi, para a estrutura
do museu, a perda de sua escola, o IAC, para a FAAP, que ocasionou o retorno do museu à
antiga sede, agora desprovido da sua parte pedagógica. Mais do que os motivos do rompimento
entre as duas instituições, o interesse é investigar o quanto e como este caso influenciou e/ou
alterou o ideal de museu bardiano.
Bibliografia
ARAÚJO, Emanoel. Um certo ponto de vista – Pietro Maria Bardi 100 anos. Catálogo da
exposição realizada na Pinacoteca do Estado em comemoração ao centenário de nascimento do
Professor Pietro Maria Bardi, organizada pelo Instituto Lina Bo e P.M Bardi, São Paulo: 14 a 29
de outubro, 2000.
BARDI, Pietro Maria. A cultura nacional e a presença do MASP. São Paulo: Fiat Brasil, 1982.
_____. História do MASP. São Paulo: Instituto Quadrante, 1992.
22
Para maiores detalhes ver: BARDI, 1992 e também RUGHTI, Jacob. “Instituto de Arte Contemporânea”. In:
Habitat n. 3. São Paulo, 1957.
264
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
_____. Pequena História da Arte – Introdução ao Estudo das Artes Plásticas. São Paulo:
Melhoramentos, 1968.
BASTOS, Elide e RÊGO, Walquiria (orgs). Intelectuais e Política –A moralidade do
compromisso. São Paulo: Editora Olho d’Água, 1999.
BO BARDI, Lina. “Função social dos museus”, In: Habitat n.1. São Paulo: 1950.
LONGHI, Roberto. “Il bel Museo allestito a San Paolo da em italiano”. In: L’Europeo. Milão: 5
de dezembro de 1954.
READ, Herbert. Education through art. New York: Pantheon Books, 1949.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem numa serie de cartas - Friedrich Schiller;
tradução Roberto Schwarz e Marcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990.
TENTORI, F. P.M. Bardi. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles,
1983.
265
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
O TELHADO DE CHUMBO: REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA E A ARTE NA OBRA
DE ANSELM KIEFER
Márcia Helena Girardi Piva
A Catedral de Colônia iniciada na Idade Média e concluída - após várias interrupções - no
século XIX guarda as marcas de toda uma história. Resistiu a duas guerras mundiais e perpassa a
complexidade de mudanças histórico-sociais ocorridas desde o início de sua construção até os
dias atuais. Algumas conexões sobre esta catedral e obra de Anselm Kiefer, tornam-se
propositoras de reflexões relacionadas à materialidade presente na arte contemporânea,
especificamente a utilização do chumbo na obra de Kiefer e sua relação com a história. Questões
que permeiam peculiaridades da produção do artista serão levantadas como maneira de destacar
os ecos de tempos distantes que ainda ressoam na atualidade.
O presente artigo parte da questão sobre a utilização do chumbo como um dos materiais
de predileção de Kiefer e dos elos entre suas várias conotações e seu local de origem. O chumbo
utilizado por Kiefer é originário do telhado da catedral de Colônia - adquirido pelo artista nos
anos 1980 -, durante uma das várias restaurações pela qual passou este monumento.
Inspirada em modelos franceses, a Catedral de Colônia foi projetada no estilo
predominante da época, o gótico. Sua construção foi iniciada no século XIII (1248) e levou, com
as interrupções, mais de 600 anos para ser completada.
A planta do mestre de construções Girard, trazido especialmente da França, previa uma
igreja gótica ainda mais majestosa, alta e elegante do que as francesas. Por mais de três séculos,
os construtores do templo procuraram manter-se fiéis aos planos originais. Porém, em 1560, pela
falta de dinheiro e desinteresse - pois para os renascentistas o gótico estava ultrapassado - a
construção foi interrompida. Iniciativas para concluir a construção acontecem a partir da
redescoberta dos planos originais da Catedral, que em 1842 teve suas obras retomadas.
Concluída em 1880, com seu telhado de chumbo, era o prédio mais alto do mundo.
Ao final da Segunda Guerra a cidade de Colônia encontrava-se em ruínas. A Catedral,
alvo de 14 ataques por bombas, sobressaía em meio aos destroços e ao caos, e a visão de suas
torres majestosas, medindo 157 m de altura, apesar de danificadas, deram à população a coragem
para recomeçar. Sua reconstrução foi completada em 1956, mas até hoje suas restaurações são
constantes.

Universidade Estadual de Campinas –UNICAMP, Doutoranda/Mestre em Artes/FAPESP.
266
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Esta construção, fragmentada pela história, bombardeada pela Guerra, que em meio às
ruínas mostrou sua potencialidade ao resistir às ações humanas e ao tempo, propõe uma
aproximação tanto à história de vida como ao processo criativo de Anselm Kiefer.
O artista, nascido em 1945, vivenciou em sua infância a preocupação generalizada na
Alemanha – durante o período pós-guerra – de reconstrução de moradias. Foi a partir desta
vivência que o pintor registrou a ideia das ruínas não como algo negativo, que chega ao seu final,
mas sim como uma potencialidade de renovação, de transformação e recomeço.
A história da Catedral de Colônia e obra de Kiefer aproxima-se quando o artista adquire o
chumbo proveniente do telhado deste monumento, o qual irá utilizar como material de criação
em suas obras. O artista foi atraído pela ideia de adquirir parte do chumbo de uma catedral
iniciada no século XIII e concluída no século XIX. As placas de chumbo utilizadas por Kiefer
remetem ao registro da história através das marcas do tempo. A história particular ligada à
Alemanha não está somente vinculada ao telhado da catedral, mas insere-se nos vestígios
incorporados pela própria obra do artista, em que seus temas iniciais - ligados à história alemã1 desdobram-se, posteriormente, entre temas universais.
Diversos materiais como a palha, as cinzas, cerâmica, carvão entre outros elementos são
frequentes em sua prática artística e sugerem questões referentes ao transcorrer do tempo, ao
efêmero e ao transitório2. Os materiais, incorporados por Kiefer em suas criações, alcançam uma
nova potencialidade, passam a ser estímulo para a criação e condutores de todo um processo.
Para o artista, os materiais são utilizados quando provocam uma ideia, contida no próprio
material, que causa uma atração. Kiefer foi atraído inicialmente pelo chumbo - ao consertar
algumas tubulações em sua antiga casa na Alemanha -, a água escorrendo pelos encanamentos
deste metal o deixou fascinado. Esta experiência, conta Anselm Kiefer, foi algo impactante - era
um material que podia ser moldado, amassado.
Diferente das cinzas ou da palha, o chumbo propõe transformações. A superfície do
chumbo guarda marcas, através de resultados aleatórios que ocorrem no processo de sua fusão e
1
A frase de Lauterwein (2006): “Uma placa de chumbo cai sobre o povo alemão”, remete ao contexto histórico da
Alemanha pós-guerra e sua influência na trajetória artística de Anselm Kiefer. A arte alemã, e sua tradição dentro da
história, encontravam-se bombardeadas pela catástrofe histórica. O artista não concordava com a amnésia estética e
política - que como um consenso foi instituída entre o povo alemão no pós-guerra – e muito menos ao esquecimento
de todo um seguimento da arte alemã. Desta forma, acaba por transgredir este consenso coletivo, através de suas
obras iniciais de intenso teor provocativo. Nos anos 1980, os temas essencialmente ligados à cultura e povos
germânicos vão tornando-se cada vez mais raros, dirigindo-se, sobretudo aos temas da cultura judaica através dos
quais passa a tecer potentes redes que conectam diversos tempos, configurando outras relações entre a arte e a
história.
2
Suas obras são colocadas ao ar livre - em contato direto com a ação do sol, da chuva e do vento – como busca de
uma aceleração do processo de significação do “passar do tempo”, não como ilusão, mas sim com o tempo agindo
de maneira real.
267
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
coagulação, ou de sua oxidação – que pode ser natural, lentamente esperada ou bruscamente
provocada -, e que nos remete ao processo criativo de Kiefer como um todo.
Para Kiefer tudo é um processo permanente: movimento, mudança, metamorfose. O
chumbo não é somente um instrumento plástico satisfatoriamente estético. Sua potência poética
não é mais reduzível às suas conotações mortíferas, melancólicas ou alquímicas, nem à soma de
suas ressonâncias. Kiefer comenta que o chumbo o “afeta” mais que qualquer outro metal porque
possui uma “aura”, uma aura que o transforma em mais “um material para as ideias”.
Segundo Andreas Huyssen (1997, p.210), o chumbo usado por Kiefer permanece
fundamentalmente ambivalente: ele pode se tornar ouro dos alquimistas, mas continua venenoso.
Ele protege contra radiação, mas absorve toda a luz. É cinza, matéria morta, mas começa a
brilhar se submetido ao processo de erosão e oxidação. É associado a Saturno (o último planeta
iluminado do nosso sistema solar), com escuridão, com amargura negra e melancolia, e a
melancolia sempre foi considerada central à imaginação artística.
Arasse (2007) refere-se à arte de Kiefer como, em parte, clássica: no sentido de manter
uma relação estreita com alguns vestígios ligados à pintura de paisagem, à utilização da
perspectiva ou às grandes dimensões de suas telas. Porém, suas formas artísticas “clássicas” são
habitadas pela presença dos materiais e, portanto, por procedimentos contemporâneos.
O sentimento de melancolia transparece como característica, revelado através da
permanência do conflito presente em seus temas - “opõe a missão espiritual da arte (sobretudo a
tradição alemã) ao pensamento de sua situação histórica – quanto à impossibilidade, depois de
Auschwitz, da continuidade desta tradição” (ARASSE, 2007, p.235, tradução nossa).
A utilização do chumbo passa a ser uma prática constante em suas obras, a
‘melancolia do chumbo’ serve menos a exprimir a situação do artista alemão
que a condição espiritual do artista em geral e, a contradição entre a busca de
um ideal e a tragédia da história (ARASSE, 2007, p.238).
O chumbo condensa a expressão de um desejo espiritual na arte e o sentimento de sua
impossibilidade histórica ou, sobretudo, da perda irremediável para um artista alemão
contemporâneo da confiança na dimensão e na transmissão espiritual da arte. O chumbo faz
referência ao planeta Saturno e ao sentimento de melancolia a que ele nos remete. “Em 1985,
este sentimento dará nascimento à ‘Paleta com Asas’, que pelo seu material, suscita no
espectador a experiência física da impossibilidade da arte em ‘alcançar seu vôo’.” (ARASSE,
2007, p.238 – tradução nossa).
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A enorme escultura de Kiefer “Paleta com Asas” (Fig.1) pôde ser vista pelo público
brasileiro, no terceiro andar do prédio da Bienal Internacional de São Paulo, em 1987. O artista
representa a paleta - instrumento de trabalho dos pintores clássicos - com imensas asas abertas,
insinuando um vôo. Ao contrário da leveza sugerida pela obra, o visitante surpreendia-se ao se
aproximar e constatar que o trabalho era feito de uma pesada estrutura de chumbo. A escultura
reflete a impossibilidade, está presa ao solo, não pode voar, nem expressar o que pretende, é um
conceito materializado em um objeto de arte.
Segundo Lauterwein, Kiefer é um pintor conceitual porque inicia sua produção em uma
época em que a arte da pintura é posta em questão. Andrea Lauterwein e Daniel Arasse analisam
a paleta - elemento constante em muitas obras de Kiefer - como um objeto que simboliza a
discussão sobre a tradição da pintura e a responsabilidade do artista. Segundo os historiadores, a
discussão do pintor em relação à pintura clássica passa a ser conceitual quando Kiefer abandona
a paleta, substituindo-a pelo livro e consequentemente pelo chumbo.
O chumbo passa a ser, muitas vezes o suporte de sua pintura, substituindo a tela,
incorporado sobre ela ou recobrindo partes da mesma. Em “As mulheres da revolução” (Fig.2) apresentada na Bienal de 1987 - a presença do chumbo domina tanto o suporte artístico como a
representação sobre este. São identificados, nesta obra, fragmentos do mundo real: flores e folhas
com qualidades medicinais, mas que na condição em que se encontram - amareladas, sem odor,
apertadas entre a superfície do quadro e pedaços de vidro -, têm um significado ambíguo.
Embora sejam indícios de vida e de cura, elas próprias estão mortas. O funil para colocar
sementes na terra e o instrumento de jardinagem que normalmente seria feito de madeira
sugerem a impossibilidade, pois ambos, presos com arame, são feitos de chumbo, e por isso,
pesados e impraticáveis pelo seu próprio material. Segundo Armin Zweit (1987), “são
contradições inerentes da obra, que consistem em demonstrar que as evocações nela contidas são
estéreis”.
O chumbo, com suas propriedades: macio, flexível e opaco, serviu de ideia para juntar
finas folhas do material para confeccionar livros e para utilizá-lo como elemento estrutural de
suas obras. O livro3, para Kiefer é um repertório de formas, é uma maneira de materializar o
tempo que passa, o tempo que foi. Feitos para serem folheados, tornam-se uma forma entre o
3
Na prática artística de Kiefer, o uso do chumbo passa a ser intensificado principalmente na criação de livros. Os
livros de chumbo e suas imensas bibliotecas refletem questões conceituais relacionadas à função da arte no decorrer
da história. O livro de chumbo como maneira de preservar, em situações catastróficas, registros da própria
humanidade e então possibilitar um recomeço, um futuro. Suscita a idéia de proteção, da preservação da memória e
da história. Estas questões estão relacionadas com o pensamento do artista sobre as ruínas, que envolvem sua
história de vida e propõem diversas reflexões.
269
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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objeto e o quadro, o livro e a escultura. “Em um quadro, em um simples olhar você vê tudo, mas
no livro você vê apenas uma faceta, o resto é como evitado, roubado do olhar”. (KIEFER, 2007
apud AMEL, 2007, p.12)
Segundo Huyssen (1997), a exploração da tensão entre banalidade e sublime pode ser tão
central no trabalho de Kiefer quanto a dialética baudelairiana do eterno e fugidio foi para o
modernismo. Em muitos de seus trabalhos a sensação de resguardar, proteger, deixar registrado
para além dos tempos é evidente. Utiliza o chumbo em suas bibliotecas que guardam imagens do
mundo, quase sempre a paisagem e pedaços dela.
Pisada, esmagada pelas rodas de veículos diversos, expostas ao tempo, o
chumbo adquire uma textura irregular e uma grande variedade de coloridos
(cinzas, ocres, vermelhos, verdes, laranjas...) que dão a estas páginas uma
beleza ímpar, às vezes pesada, às vezes suntuosa, o aspecto de palimpsesto
traça, portanto, intervenções múltiplas, sedimentadas e irremediavelmente
indecifráveis. Como tal, estes livros aparentemente “virgens” participam
plenamente do sentido da obra. Cerca da metade dos livros marcam uma
intervenção artística – eles contêm fotografias, materiais e objetos diversos,
suas páginas contêm traços de pintura, que são recobertas com argila, etc. Estes
livros não têm títulos, mas como sempre, eles manifestam os temas. Aqueles
dirigidos aos quatro elementos aproximam-se a um grande número: o ar
(fotografias aéreas de nuvens), a água (as ondas do mar), a terra (vistas aéreas
ou argila), o fogo (por meio da energia nuclear referida pelo reator instalado no
atelier e cujas fotografias já haviam sido utilizadas em obras anteriores).
(ARASSE, 2007, pp. 169-177 – tradução nossa).
A biblioteca monumental Zweistromland (Fig.3) se refere à Mesopotâmia, terra dos rios
Tigre e Eufrates, origem das tradições cristãs e judaicas. Sua extrema inventividade é provada na
realização de cada livro, na sutileza sempre renovada em relação à colocação do chumbo e dos
outros elementos, como argila aplicada com pincel, areia, cabelo ou colagens de paisagens
aéreas.
Daniel Arasse (2007) chama à atenção para a dimensão íntima desta obra monumental,
cujo conteúdo dos livros nos é ainda desconhecido. O autor salienta que, pelo seu próprio
aspecto, esta escultura nos coloca na presença de um saber também manifestadamente
inacessível e aparentemente imemorial, retornando ao tempo dos titãs que, sozinhos poderiam
manipular estes volumes e colocá-los em desordem sobre as prateleiras.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
O conhecimento deste saber nos é acessível somente através de reproduções fotográficas
em catálogos ou livros, que reforçam ainda a aura dos volumes de chumbo, originais únicos,
irremediavelmente distantes em sua própria proximidade.
Segundo Arasse (2007, p.178), Zweistromland propõe na relação sobre a contemplação
dos vários livros, a da idéia de Livro (remetendo-nos ao Antigo Testamento), contendo um saber
como veículo da memória. A contemplação do conjunto seria uma maneira de nos posicionarmos
conscientemente sobre a inacessibilidade deste saber – os livros são pesados e de difícil
manipulação - e a impossibilidade da transmissão de alguns conhecimentos. Os livros aparecem
como os depositários do conhecimento e os espectadores como destinatários que são,
inevitavelmente, excluídos de sua parte.
As bibliotecas de chumbo assim como as Catedrais Góticas simbolizam uma maneira de
resguardar a memória deste mundo - através dos vestígios - entre as marcas do chumbo ou da
pedra. Tanto os edifícios de pedra, construídos para durar para sempre - com suas torres que
pretendiam a proximidade com o céu -, como as monumentais bibliotecas de chumbo de Kiefer,
direcionam nosso olhar ao passado, mas também ao futuro. Uma visão sobre as grandes obras
criadas pelo homem, condenadas a uma fatídica efemeridade.
Segundo Daniel Arasse (2007) Kiefer procura mostrar um “re-encantamento” do mundo,
entendendo-se no termo “encantamento”, a presença ativa, viva, do sagrado no mundo, e “tudo
que chama esta presença pode comportar a magia e o encantamento, para fazer se reencontrar o
tempo do sagrado e a temporalidade da história humana”. O chumbo da catedral de Colônia na
obra de Kiefer sugere que do mais distante passado ao momento atual, torna-se possível deixar
visível os resíduos da memória do tempo. Kiefer procura resgatar alguns valores, de quando
éramos unidos à natureza e regidos por ela, quando havia uma hierarquia que vinha do céu em
direção à terra e uma permeabilidade entre mundo natural e o indivíduo. Uma estrutura espaçotempo próxima a que se perdeu no Período da Idade Média - onde a fluidez do espaço e do
tempo era emanada pelo corpo e a idéia de tempo não era linear, mas do tempo cíclico.
O afastamento do sagrado é sugerido pelo artista como uma reflexão sobre a sociedade
atual. Através de seus temas o artista evoca tempos distantes para levantar questões
contemporâneas. O exílio, as ruínas do próprio lar da pintura, o distanciamento da tradição
clássica, passam a propor reflexões sobre o contexto atual, como as catástrofes pressentidas pelas
ações devastadoras do homem contra a natureza e suas prováveis consequências no âmbito
global contemporâneo.
Tais questões podem ser observadas na obra “Lilith no mar vermelho”(Fig.4).
Segundo Arasse (2007), seu potencial poético se manifesta na pesada suavidade do chumbo,
271
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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na sua maleabilidade, e no uso que de fato Kiefer lhe dá, quando, em um movimento
ondulatório que evoca as ondas do mar no ciclo de seu vai-e-vem, remete à ideia da retirada
e do retorno eternos. Ele chega assim a condensar nos materiais, inscritos um no outro, um
sentimento de fruição vital e aquele do irremediável peso da morte. A apresentação do tema
evoca irresistivelmente a retirada providencial das águas que permitiram a Moisés e seu
povo de cruzar o mar, em busca da Terra prometida.
Estas obras em chumbo são então exemplares da caminhada de Kiefer. Elas confirmam
um deslocamento de sua inspiração, aprofundados com estratos anteriores, arcaicos, das questões
que são próprias do artista. Para Arasse, elas mostram também que este aprofundamento quase
arqueológico é indissociável de um trabalho rigoroso sobre a escolha e a colocação dos materiais
na obra: Kiefer trabalha para alcançar uma forma na expressão de um sentimento e de uma ideia
que anime sua necessidade criativa. Isto se faz particularmente bem no uso do chumbo - que
promove um distanciamento aos moldes clássicos de representação. A utilização do chumbo está
mais ligada ao efeito, físico e psíquico que sua presença material exerce do que ao que
representa. Por sua plasticidade física e as qualidades visuais que sua elaboração autoriza, o
chumbo permite à Kiefer não somente representar uma idéia ou um sentimento, mas de os
concretizar – ou, segundo Arasse (2007), para empregar um termo melhor adaptado tanto ao
processo técnico de Kiefer como aos registros sedimentados de seu imaginário, de nos colocar
em presença de sua concretização.
Toda sua produção propõe mergulhos profundos, através do significado proposto pela
matéria plástica. O chumbo representa uma reunião de processos, materiais e físicos, mentais e
espirituais. Por suas qualidades naturais, ele se presta a manipulações muito diversas e guarda a
marca das transformações que sofreu. Com relevante peso conceitual, é um material que nos
remete a questões paradoxais: é altamente impermeável, não pode ser penetrado pelos raios X,
porém foi utilizado no telhado de uma catedral gótica que buscava - através de construções cada
vez mais altas -, a união com o céu.
Mesmo ao deslocar-se de um tempo a outro, os temas de Kiefer tornam-se
testemunho de sua história. Eles permeiam toda a sua produção em uma constante busca por
encontrar uma maneira de chamar à atenção sobre a catástrofe a qual a humanidade está
fadada.
A utilização do chumbo, que protege, mas também contamina, nos remete a discussões
sobre a história e a arte. Assim como o telhado de chumbo que guarda as marcas das
transformações que sofreu no decorrer da história, a obra de Kiefer também deixa permanecer
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vestígios da tradição, que através de procedimentos contemporâneos propõe reflexões sobre o
lugar da arte no contexto atual.
Referências Bibliográficas:
AMEL, Pascal. Les bourreaux ont-ils gagné? Entretien Anselm Kiefer avec Pascal Amel. Art
absolument – Grand Palais Anselm Kiefer Sternenfall (Chute d’Étoiles). Paris, Monumenta,
2007.
ARASSE, Daniel. Anselm Kiefer. Paris: Regard, 2007. 343p.
HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. 255p.
LAUTERWEIN, Andrea. Anselm Kiefer et la poesie de Paul Celan. Paris: regard, 2006. 253p.
ZWEITE, Armin. Paisagem Universal e Super-História a respeito de algumas obras de
Kiefer. Tradução George Bernard Sperber. Catálago Biennale São Paulo. República Federal
da Alemanha,1997. 32p.
Imagens:
Fig.1- (1985), Anselm Kiefer, Paleta com Asas, chumbo, aço e estanho, 250 x 700 x 140 cm.
Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo.
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Fig.2- (1991), Anselm Kiefer, As Mulheres da Revolução. Acrílica sobre chumbo com vidro,
madeira, chumbo, lírio e uma rosa, 240 x 400 cm. Fonte: ARASSE, 2007, p.241.
Fig.3 - (1985-1989), Anselm Kiefer, Zweistromlan,. Aproximadamente 200 livros de chumbo
sobre estante de ferro com vidro e fio de cobre. Aprox. 500 x 800 x 100 cm.
Hans Rasmus Astrup, Oslo. Fonte: ARASSE, 2007, p.170-171.
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Fig.4 - (1990), Anselm Kiefer, Lilith no Mar Vermelho. Chumbo, emulsão, roupas e cinzas
sobre tela 280 x 625 cm. Coleção Erich Marx, Berlim. Fonte: ARASSE, 2007, p. 246-247.
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O ATELIÊ GÉRÔME: A FUSÃO ENTRE A TRADIÇÃO DA ÉCOLE DES BEAUX-ARTS
COM A JOVIALIDADE DO MOULIN ROUGE1
Marcela Regina Formico
A presente comunicação propõe desconstruir o ambiente do ateliê acadêmico utilizando
principalmente como fontes, cartas escritas por ex-alunos com relatos de sua instrução, escritos
do próprio Jean-Léon Gérôme, seja em cartas ou mesmo prefácios em publicações de livros de
arte da época, biografias sobre o artista, principalmente as escritas no início do século XX.
“Le peintre est toujours remarqué pour sa silhouette droite, son port militaire, sa peau
lisse "comme peinte par lui-même", ses cheveux en brosse. Les photographies montrent
qu'à plus de soixante ans, c'est toujours un très bel homme. Les exemples de la sévérité
du maître sont nombreux. Plus nombreux encore sont ceux de sa sollicitude pour ses
anciens élèves. Mais si on vante son goût éclectique, son enseignement tolérant, on revèle
parfois ses vues étroites es ses façons autoritaires à l'atelier.” 2 (ACKERMAN, 1992: 197)
A descrição de Jean-Léon Gérôme remete a uma imagem de um artista/professor que
apresenta grande rigor de conduta e de postura perante as cátedras dos ensinos acadêmicos.
Exatamente, era esta a impressão que repercutiu em um primeiro momento das pesquisas a
respeito deste artista francês, a figura de um sargento munido de um pincel e uma paleta disposto
a sempre defender os ideais acadêmicos da École des Beaux-Arts. A fotografia (fig.1) tirada em
1900 quando então Gérôme foi agraciado com a nomeação de Grand Officier de la Légion
d’Honneur seria a perfeita tradução de caráter imagético da descrição citada anteriormente. Um
homem de postura impecável, cujo uniforme acaba por agregar um ar solene e de respeito á sua
figura masculina marcada pelos traços do tempo com sua volumosa cabeleira grisalha e seu
1
Esse artigo desenvolveu-se a partir de um dos capítulos de minha Dissertação de Mestrado em Artes Visuais
intitulada A “Escrava Romana” de Oscar Pereira da Silva: sobre a circulação e transformação de modelos
europeus na arte acadêmica do século XIX no Brasil, orientada pela Profª Drª Claudia Valladão de Mattos. O
segundo capitulo, onde aborda a formação de Oscar Pereira da Silva em Paris dentre os anos de 1890 a 1895,
como aluno do ateliê de Jean-Léon Gérôme.

Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestranda em Artes Visuais. Agência
financiadora – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
2
Tradução de próprio cunho:
O pintor é sempre reconhecido por sua silueta reta, o seu porte militar, sua pele lisa, “como as pintadas por ele
mesmo", e seus cabelos escovados. As fotografias demonstram que mesmo possuindo mais de 60 anos, ainda
Gérôme é um homem muito bonito. Exemplos da severidade do mestre são muitos. Ainda mais numeroso é sua
solidariedade com seus ex-alunos. Apesar de seu gosto eclético, seu ensino tolerante, por vezes revela seus
pontos de vista estreito, que tomam por autoridade no ateliê.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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bigode característico desde os anos em que assumiu o cargo de professor em um dos ateliês da
École em 1863.
Ao aprofundar a pesquisa, a imagem deste artista severo e acadêmico foi se dissolvendo e
ganhando novas formas, mostrado um lado até então desconhecido, a idéia de um espírito jovial
e bem humorado, até mesmo irônico, acabou por complementar sem anular a antiga postura. A
dualidade tradição e jovialidade criaram uma percepção complexa do artista. Gérôme deixou de
ser à primeira vista, aquele artista simplesmente acadêmico, ou pejorativamente conhecido como
pompier. A respeito a essa classificação de pintor/pintura pompier, Gérôme galga de uma postura
enérgica: “Messieurs, Il est plus facile d’être incendiaire que d’être pompier” 3 (MOREAUVAUTHIER, 1906: 8). As palavras proferidas pelo artista demonstram uma defesa irônica frente
a acusação proferida por um político na Assembéia do Institut, pontuando que a arte ensinada na
École des Beaux-Arts
não possui mais lugar, estaria em ruínas. A ironia se encontra na
brincadeira com o termo “pompier” resignado a distinguir a pintura burguesa acadêmica, porém
no francês literal significa bombeiro. Eis então a brincadeira, “é mais fácil ser um incendiário do
que um bombeiro”.
O espírito irônico e bem humorado de Gérôme não se expressa apenas nas palavras, em
suas obras de arte o mesmo fenômeno é perceptível. O exemplo mais completo se encontra na
tela “O PTI CIEN” (1902) (Fig. 2), realizada para um concurso de letreiros aberto no Hôtel de
Ville. O quadro reúne características da pintura acadêmica com uma elaboração da temática mais
próxima das obras da modernidade e a presença de um toque humorístico. A pintura retrata um
cão portando um monóculo, acima dele flutua óculos estilizado conforme a época, emoldurando
um par de olhos sem rosto, e abaixo da figura canina segue os dizeres “O PTI CIEN” sob um
fundo monocromático. A brincadeira da composição reside neste jogo de palavras, da mesma
forma que ocorre com o termo “pompier”, unindo as consoantes forma a palavra oculista em
francês (opticien) enquanto que as mesmas separadas formam, conforme retratada na pintura, os
fonemas: “pti” que se remete a “petit”4 e “cien” relacionado à palavra “chien”5 o que resulta na
encantadora figura do pequenino cão vira-lata “posando” na postura do cachorro sentado
apresentando no olho direito um monóculo. Ao completar toda a moldura da tela foi realizada
segundo a temática proposta, com dois binóculos emoldurando as extremidades superiores, uma
lente de aumento no centro superior e na parte inferior outro óculos no mesmo estilo retratado no
painel.
3
Tradução: “Senhores é mais fácil ser um incendiário do que ser um pompier”. Pompier significa bombeiro em
francês
4
Petit significa pequeno em francês
5
Chien significa cão em francês
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O interessante de observar nesta composição é que apesar de Gérôme criar uma obra de
grande criatividade, a execução pictórica do cachorro continua leal aos pressupostos que o artista
francês persegue fielmente em toda a sua carreira. Um artista acadêmico por excelência, defensor
dos princípios acadêmicos defendidos pela École, baseado no conceito de emulação, ou seja, o
estudo da natureza ligado a tradição clássica, a imitação, compreensão através da observação da
linha natural (principalmente dos corpos), e buscando encontrar através deste estudo o belo na
transmissão da imagem captada pelo olhar e transferida para o desenho. A pintura possui como
estrutura basilar, o desenho, que confere a arte o caráter cientifico, permitindo a imitação fiel da
natureza.
Segundo um dos melhores alunos de Gérôme, Pascal Dagnan-Bouveret, relembra
conversas que teve com seu professor, na declaração abaixo se pode compreender o repetitivo
conselho dado aos alunos sobre ser sempre fiel a natureza e quais seriam seus principais modelos
artísticos:
"Son enseignement devant la nature portrait surtout sur la construction, le caractère de la
forme. Pour la composition, il nous recommandait de voir toujours la scène dans son
ensemble et en plan et d'en faire le tour par l'imagination, pour voir d'où elle se présentait
le mieux comme beautè, comme pittoresque et comme expression. La clarté, c'est ce qu'il
exigeait d'abord, prétendant qu'un paysan, un simple devait tout de suite comprendre. (...)
Les deux sommets de son admiration étaient Phidias et Rembrandt. Ils étaient pour lui
ceux qui avaient le plus aimé et le mieux rendu la nature" 6 (MOREAU-VAUTHIER,
1906: 183-184)
A lembrança de Dagnan-Bouveret, permite observar algumas características presentes no
conjunto da obra de Gérôme. O artista francês é um observador nato, um pintor-viajante,
compondo diversas telas a partir das paisagens clássicas e orientais presenciadas por ele na
passagem por Nápoles, Egito, Turquia, ao longo de sua vida.
O ícone da pintura acadêmica se encontra em Jacques-Louis David e suas obras
neoclássicas, porém Gérôme consegue em parte se desvencilhar do mundo clássico. Dentre os
modelos apontados pelo artista se encontra o escultor clássico, Phidias, que apresenta um
apurado senso de dimensão do corpo humano, e de proporções exatas. Ao mesmo tempo coloca
ao seu lado o pintor da escola Holandesa do século XVIII, Rembrandt, reconhecendo em suas
6
Tradução: “Seus ensinamentos devem frente à natureza se revelam sobretudo a partir de sua composição, o caráter
da forma. Para a composição, ele nos recomendava observar sempre as cenas em seu conjunto e delas fazer um
plano (esboço) e a partir deste momento recriar a cena na imaginação, para então observar onde ela melhor se
apresenta, como belo, como pitoresco e como expressão. A luz, é a primeira que se exige, aludindo um pintor de
paisagem, deve sempre compreender. (...) Os dois mestres de sua admiração eram Phidias e Rembrandt. Eles
eram para ele aqueles que mais amava e que melhor copiavam a natureza.”
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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obras um amor pela natureza, através da simplicidade e sinceridade de suas pinturas e gravuras.
Segundo Gérôme, o artista holandês era um grande pintor e poeta, pois suas obras estão
impregnadas de sensações visuais. Rembrandt seria o mestre ideal da pintura em seu ponto de
vista. A união destes dois modelos de arte torna Jean-Léon Gérôme um mestre segundo as
noções de um realismo acadêmico.
Para finalizar a compreensão da arte de Gérôme, o critico e artista norte-americano Eugene
Benson, escreveu em 1866 um artigo para a revista The Galaxy, a respeito do artista francês, que
consegue reunir em um parágrafo apenas, a caracterização da arte de Gérôme que se encontra
repetida em diversas biografias escritas ao seu respeito, como as obras de Victor M. Guillemin
(1904), Albert Soubies (1904), Moreau-Vauthier (1906), Henri Rameau (1978), e Henry M.
Roujon. É interessante observar que a maioria dos trabalhos biográficos foram publicados dentro
de um curto espaço de tempo, desde o falecimento de Gérôme, em 10 de janeiro de 1904. Entre
as características ressaltadas pelos escritores é apontado a existência de uma mistura de ideais
acadêmicos com um estilo próprio de seu temperamento como artista:
“Ele investiga como um antiquário; ele é severo como os classicistas; ele ousa como os
pintores românticos; ele é mais realista do que qualquer outro pintor de seu tempo, e ele
carrega em sua arte mais do que qualquer de seus contemporâneos, a elaboração da
superfície de suas telas e a ciência de seu design. Como uma mente moderna, ele viaja,
ele explora, ele investiga, ele tenta exaurir seus temas. Ele trabalha sem deixar nada não
mencionado, ele domina em sua totalidade seus temas” (BENSON, 1866: 582)
Abranger ainda que de forma resumida a caracterização da arte de Jean-Léon Gérôme
contribui para a segunda parte deste artigo, compreender o ateliê Gérôme como lugar de
formação de jovens artistas e a rotina vivenciada por eles dentro do ateliê da École des BeauxArts.
A primeira parte do presente texto forneceu uma compreensão da forma como a tradição da
École des Beaux-Arts apenas compõe a superfície do artista. Afirmativamente Gérôme foi um
grande defensor a tradição acadêmica, mesmo quando a própria École realizou em 1884 uma
exposição em homenagem póstuma à Edouard Manet, como professor e representante dos
professores de pintura no Conselho Superior7 não aceitou em nenhum momento que o pintor
impressionista recebesse a honraria de um Memorial. O Impressionismo para Gérôme é
considerado aos seus olhos uma arte degenerada, uma horrível influência aos seus alunos. O
motivo para tanto desafetos não se trata de questões particulares e sim uma questão de afinidade
7
Jean-Léon Gérôme foi nomeado representante dos professores de pintura na administração da École des BeauxArts desde 1874, cargo ocupado por este até a sua morte, apesar do artista não possuir grande afeição por
encargos administrativos que diversas vezes era negligenciado devido as diversas viagens para o Oriente.
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estética, a minúcia do desenho e acabamentos da superfície são características cruciais para o
professor e o Impressionismo seria uma arte que não demanda um aprimoramento técnico, tal
qual, não existe uma observação dos detalhes, que só podem ser representados através do
desenho, um domínio da fatura e da linha.
No entanto, durante os 40 anos que lecionou para mais de 2 mil alunos, não se pode
afirmar que em
sua totalidade não há alunos de Gérôme que não seguiram tendências
Impressionistas. Na verdade, apesar do grande rigor técnico, prevalecendo o gosto pessoal do
professor como critério de avaliação, característica marcante na primeira década como ocupante
deste cargo8, aos poucos foi se tornando cada vez mais brando em suas exigências, perceptíveis
mudanças já ocorrem na década de 1870. De fato o ateliê era dividido de forma não oficial em 2
grupos: os alunos que pintavam de maneira similar ao mestre e outros que se aproximavam do
estilo impressionista. Dentre os alunos estrangeiros que seguiram as novas tendências, constam
os pintores norte-americanos como: Abbott Handerson Thayer, Julian Alden Weir, Dennis Miller
Bunker entre outros.
A liberdade vivenciada por seus alunos não se limitava ao campo metodológico. Todos os
ateliês da École possuíam uma rotina marcada pela ausência da figura do mestre ao longo da
semana, exceto pelas visitas semanais todas as quartas e aos sábados 9, estes dias criavam grande
expectativa nos alunos, a primeira visita às quartas servia para identificar os erros das
composições realizadas desde a segunda-feira com a seleção dos modelos vivos e aos sábados
quando os mestres verificavam se foram feitas as correções.
A importância destas visitas esporádicas se revela em diversos registros deste momento
crucial do cotidiano do ateliê. Particularmente o ateliê Gérôme possui registros de dois de seus
ex-alunos, Edouard Cucuel (fig.3) e Alexis Lemaistre (fig.4) escolhem o momento em que o
mestre está á frente do cavalete para avaliar seu trabalho, nesta ocasião o aluno possuía uma
avaliação particular que sempre era acompanhada pelo restante dos alunos aglomerados em meio
aos disputados espaços livres entre os cavaletes. Perceba que as duas ilustrações retratam
características do ensino acadêmico como as aulas de estudo de modelo-vivo e as aulas de
desenho a partir de esculturas clássicas, onde o jovem artista aprende a dominar a emulação de
membros do corpo humano a partir do ideal clássico.
8
Nos primeiros anos de Jean-Léon Gérôme como professor foi marcado pela passagem de alunos como o pintor
simbolista Odilon Redon, suas lembranças retratam uma atmosfera de ditadura, onde era claramente imposto seu
estilo de arte e como técnica disciplinar, segundo Redon, prevalecia a intimidação expondo seus erros à todos
presentes na sala. As palavras de Redon eram: "Je fus torturé par le professeur.”
Ao mesmo tempo, Gérôme também é adorado por outros alunos, como Pascal Dagnan-Bouveret, que declara a seu
mestre em 1885: “Deixe-me dizer que o senhor não é apenas um mestre que admiro, mas um homem que depois
de um longo tempo escolhi como modelo para a vida e que pretendo seguir com todas as minhas forças”
9
Segundo Moureau-Vauthier, Jean-Léon Gérôme manteve sua rotina de visitas até seus últimos dias de vida.
280
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Dentre os relatos de alunos estes momentos críticos podem ser marcados por incentivos
nas expressões “pas mal” ou “mieux”, considerados elogios em comparação as palavras
frequentemente entoadas pelo mestre: “c’est n’est pas ça”.
A vida no ateliê não é totalmente ausente de uma figura autoritária durante os outros dias
da semana. Para reparar a lacuna, existe a nomeação de um aluno que se encontra em um
patamar avançado de sua formação para coordenar o andamento das atividades do cotidiano do
ateliê. O aluno é escolhido por meio de votação e recebe o cargo de “Massier”. As características
que o almejante ao posto deve possuir são: a inteligência e a astucia, pois é o responsável pelas
finanças do ateliê; ser forte suficiente para contrariar seus camaradas, neste quesito a força física
também é considerada; ser alguém de confiança do mestre, pois o “massier” é responsável pela
disciplina dentro do ateliê, sendo que as infrações mais graves recaem sobre sua
responsabilidade.
Definitivamente os “massier” de Gérôme devem ser os que mais se ocuparam a respeito
de questões disciplinares. O ateliê Gérôme, segundo Ackerman, constantemente recebia
represarias por mau comportamento, freqüentemente os estudantes dos ateliês vizinhos
reclamavam do barulho e algazarra 10. Em 1883 o ateliê Gérôme acabou sofrendo uma forte
represaria sendo obrigado a fechar por 6 meses, o motivo foi o comportamento amoral dos seus
alunos. Durante a usual escolha dos modelos às segundas-feiras no pátio da École, esses
estudantes avistaram uma dama11 escolhendo um desses modelos, neste momento o grupo
masculino a agride verbalmente com diversas grosserias, a rebaixando a figura de uma prostituta.
Um aluno pertencente a outro ateliê reprova a conduta que acabara de presenciar e os denuncia
para o conselho da École.
A presença feminina é pouco comum dentro doa ateliês públicos. Normalmente a pratica
da pintura do nu feminino se resguarda a pratica de ateliês privados. Na École a pratica do estudo
do modelo-vivo é comum com a utilização de figuras masculinas, escolha condizente aos ideais
estéticos neoclássicos. Portanto, a presença feminina acaba por provocar um determinado
alvoroço, como ocorre na ilustração (fig.5), “Un nouveau modèle à l’atelier Gérôme”.
.
10
11
Os ateliês dentro da École de Beaux-Arts eram um grande salão com divisórias, como biombos, para demarcar o
espaço físico.
A presença de alunos do sexo feminino era incomum na École des Beaux-Arts. A formação artística para
mulheres só começa a se solidificar no final do século XIX, em academias em sua maioria particulares, como a
Academia Julian. Dentro dos portões da École passam a ser discutidos esta questão a partir de1884, mas a
aceitação de mulheres entre seus estudantes só ocorreu no inicio do século XX. A maior preocupação era com
relação a presença feminina freqüentando as aulas de modelo-vivo provocando uma situação constrangedora,
devido a exposição do corpo desnudo. Explica, assim, o porquê das mulheres nesta época lidavam com gêneros
menores das artes, como a natureza-morta e a pintura de gênero.
281
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O barulho, as algazarras e o mau comportamento não são as únicas expressões de
jovialidade que permeia o ateliê Gérôme. O próprio mestre possui certas características da
juventude como: a curiosidade, o espírito aventureiro, o porte ágil, homem de palavras vibrantes,
um espírito cômico, alegre e zombeteiro. Segundo Moreau-Vauthier, um dos conselhos mais
professados à seus alunos era: “Sejam sempre estudantes!”, o que realmente o artista francês
sempre foi, sua juventude de espírito, seu amor a vida, seu ávido desejo por conhecimento e seu
respeito pela verdade.
Na figura 6, onde é retratada uma fotografia do ateliê Gérôme percebe-se nos detalhes do
ambiente que o mestre francês cultivava em seu local de ensino. A foto oficial de 1896 retrata a
figura do velho mestre rodeado por seus alunos e uma série de figuras enigmáticas, alunos
fantasiados de Árabe, de Papa, de São Sebastião e seus Algozes. Diferente das fotos oficiais de
outros ateliês, onde todos apresentam uma postura austera, a fotografia do ateliê Gérôme exalta a
irreverência, nem todos estão prestando atenção no fotografo, o ambiente ao redor chama a
atenção, alguns aparecem de perfil, como observadores da imagem cômica do entorno
fotográfico, outros se escondem, só aparecendo o rosto, como o caso do rapaz serelepe, quase
invisível ao observador, no lado esquerdo inferior de Jean-Léon Gérôme, enquanto o próprio
mantém uma postura austera. A releitura da postura de Gérôme pode ser realizada devido a
indumentária do artista, com o uniforme da Legion d’Honneur que lhe confere a imagem de um
respeitoso general, mas de um exército de loucos, graças ao ambiente “nonsense”
que
desenvolve-se ao seu redor, compondo a imagem perfeita da dualidade tradição e jovialidade.
Realmente Jean-Léon Gérôme sabe cultivar um ambiente criativo e ser amado e respeitado
por seus alunos, e o Bal des Quat’z’Arts12 é o cenário, onde as qualidades do ateliê Gérôme se
destacam. O baile se assemelha a um carnaval, todos os ateliês convidados montam uma espécie
de carro alegórico, que move um tableau-vivant que segue em parada rodeado por membros do
ateliê fantasiados até o Moulin Rouge. Na metade da festa ocorre o clímax, a premiação do
carro-alegórico mais original, cujo premio era 50 garrafas de champanhe.
O baile esbanjava graça, beleza e suntuosidade, composto por todos os artistas renomados
da época, o que deixa claro que o espetáculo não condiz para qualquer artista ou estudante. Além
do concurso, o baile era provido de uma equipe de 200 garçons responsáveis por servir o
banquete.
12
Trata-se do baile anual que ocorreu desde 1892 até 1966 reunindo as quatro artes (pintura, escultura, arquitetura e
gravura), onde o Moulin Rouge serve de palco para a celebração. O baile permite a entrada apenas de pessoas
autorizadas, estudantes, professores e modelos munidos de credenciais. A festa sempre ocorre durante a
primavera após as submissões dos trabalhos no Salão de arte.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Nas ilustrações de Edouard Cucuel (fig. 7) o ateliê Gérôme figura grande presença. Em
1898 o ateliê montou uma imensa estrutura, onde uma modelo nua posa como a escultura de
Gérôme inspirada em figuras de terracotta da Antiguidade grega chamada “Tanagra” (fig.8) em
frente a uma enorme paleta. Acompanhando o carro alegórico segue o pavilhão com os
estudantes do ateliê vestidos com togas gregas ou armaduras romanas que carregam estandartes
com o nome de Gérôme.
Enquanto o ateliê se inspira no clássico para compor sua fantasia, o mestre prefere se voltar
para o oriente exótico. Gerôme fantasia-se com uma elaborada roupa verde de mandarim chinês,
tingindo seu bigode grisalho de preto enquanto sua cabeleira branca aparece escondida por um
chapéu, espécie de gorro preto, com apêndice de uma longa trança. A escolha singular condiz
com sua personalidade apreciadora de extravagâncias e excentricidades, quase um dândi se não
considerarmos seu grande empenho ao trabalho artístico e assíduo professor. Antes de ser
professor, Gérôme vivia em um reduto de artistas chamado de Boîte à Thé 13, um verdadeiro
falanstério de artistas, e como elemento excêntrico deste momento de sua vida, Gérôme possuía
como animal de estimação, um pequeno macaco, que responde ao nome de Jacques. Todas as
noites o vestia em traje à rigor para jantar em uma minúscula mesa, localizada no mesmo recinto
ocupado pelos indivíduos.
Em virtude, o ambiente de ensino de Jean-Léon Gérôme condiz com sua própria
personalidade de artista. A idade do artista não importa, ele sempre se mantém jovial, vigoroso,
ativo, cheio de vida e simpático. É de comum acordo de que Gérôme trata-se de um homem
versado com as palavras, pensativo, dono de um incrível bom humor, respeitoso a sua arte,
franco e leal, adorado por seus alunos, ele é o professor que ensina três virtudes básicas:
simplicidade, empenho nos estudos e trabalho. Em outras palavras, Gérôme é um notável
exemplo de como um mestre no século XIX deve ser: um artista na alma e um soldado no
temperamento, com um coração de ouro em um corpo de aço.
Referência Bibliográfica:
ACKERMAN, Gerald M. La vie El l’oeuvre de Jean-Léon Gérôme. Paris, ACR, 1992.
BENSON, Eugene. « Jean-Léon Gérôme ». In : The Galaxy. 1866.
CEMAISTE, Alexis. L’École des Beaux-Arts recontée sur sont eleves. Paris, 1989.
CLARETIE, J. Peintres & Sculpteurs Contemporains - Jean-Léon Gérôme, Paris, Libraire
des Bibliopliles, 1881
13
Boîte à Thé significa caixa de chá. O reduto recebe este nome graças a decoração em motivos japoneses. O espaço
era freqüentado por artistas como Baudry e Cabanel.
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2011
GÉRÔME, Jean-Léon. Notes autobiographiques (presentées et annotées par Gerald M.
ACKERMAN). VESOUL, S.A.L.S.A. 1981.
JACQUES, Annie. Les Beaux-Arts, de l’Académie aux Quat’z’arts. Collection Beaux-Arts
Histoire. École nationale supérieure des beaux-arts, Paris, 2001
LAFONT-COUTURIER, Hélène. Gérôme. Herscher, 1998.
MILNER, John. The Studios of Paris - the capital of art in the late Nineteenth Century.
New Haven and London. Yale University Press.1988.
MOREAU-VAUTHIER, CH. Gérôme (peintre et sculpteur) - l’homme et l’artiste :
d’après sa correspondance, ses notes, les souvenirs de ses élèves et de ses amis. Librairie
Hachette et Cie, Paris, 1906.
ROUJON, M. Henry (org.). Gérôme. Paris, Pierre Lafitte et Cie-Éditeurs,s.d.
SOUBIES, Albert. J-L Gérôme -souvenirs et notes. Paris, Ernest Flammarion(éditeur),
1904.
WEINBERG, Helene Barbara. The american pupils of Jean Leon Gérôme. Amon Carter
Museum, 1985.
____________. The Lure of Paris : Nineteenth-Century American Painters and their
French teachers. Abbeville Press, 1991.
Imagens:
284
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Figura 1 - 1900. Sem titulo, Fotografia. Gérôme aos 76 anos, quando foi nomeado
Grand Officier de la Légion d’Honneur.Aqui o pintor veste o uniforme.Fonte:
ACKERMAN, Gerald M. La vie El l’oeuvre de Jean-Léon Gérôme.
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Figura 2 - 1902, Jean-Léon Gérôme, O PTI CIEN. Tela, 87 x 66 cm. Collection
Nanoukian, NY.
286
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Figura 3 - 1899, Edouard Cucuel, Gérôme teaching at the École des Beaux-Arts.
Ilustração.Fonte: MILNER, John. The Studios of Paris - the capital of art in the late
Nineteenth Century. New Haven and London. Yale University Press.1988.
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Figura 4 - 1889, Alexis Lemaistre, L’École des Beaux-Arts dessinée et racontée par un
élève, « La correction du professeur ». Ilustração. Bibliothèque nationale, Cabinet des
Estampes.
288
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Filgua 5 - s. d.Un nouveau modèle à l’atelier Gérôme. Ilustração. Fonte:
JACQUES, Annie. Les Beaux-Arts, de l’Académie aux Quat’z’arts. Collection BeauxArts Histoire. École nationale supérieure des beaux-arts, Paris, 2001.
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Figura 6 - 1896, Gérôme dans son atelier de l’École des Beaux-Arts. Fotografia. The
Getty Reserch Institute for the History of Art and the Humanities, Los Angeles.
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Figura 7 - 1899, Edward Cucuel, “Tableau vivant” de l’atelier Gérôme au Bal des
Quat’z’Arts, Gravura.Fonte: MILNER, John. The Studios of Paris - the capital of art in the
late Nineteenth Century. New Haven and London. Yale University Press.1988.
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Figura 8 - 1890, Jean-Léon Gérôme, Tanagra. Estatua policromada em mármore.
Musée d’Orsay, Paris
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O CORPO SONORO SOB O COMANDO DA COR:
FLÁVIO DE CARVALHO E OS ANOS 30
Marcelo Téo
1931 foi um ano movimentado no cenário artístico nacional. A Revolução de 1930
encerra a República Velha e inaugura um novo período na gestão cultural do país. Nas artes
plásticas, a primeira repercussão foi a nomeação de Lúcio Costa como diretor da Escola
Nacional de Belas Artes, incumbido de reformar o ensino artístico.1 É então que o arquiteto
organiza a XXXVIIIª. Exposição Geral de Belas Artes – o Salão de 31 –, a primeira aberta à arte
moderna, na qual o pintor Cândido Portinari tomou parte, o que o levou a conhecer o futuro
mentor, Mário de Andrade. No mesmo ano realizou-se também o 2º. Salão de Humoristas, no
hall do Hotel Trianon, e o 1º. Salão Feminino de Arte, uma iniciativa da Sociedade Brasileira de
Belas Artes e da Associação dos Artistas Brasileiros, na Escola Nacional de Belas Artes
(VIEIRA, 1984: 25).
Após a Revolução de 1930, o Rio de Janeiro ampliava suas atitudes modernistas, e a
atuação da Pró-Arte. Fundada neste mesmo ano (1930) pelo alemão Heuberger, um dos maiores
incentivadores da arte moderna na capital federal, a sociedade intensificou suas atividades em
1931. O arquiteto Frank Lloyd Wright visitava o Brasil, permanecendo por três semanas na
capital, onde fez publicar diversos artigos em prol da nova arquitetura. Um grupo de pintores de
tendências modernas fundava o Núcleo Bernardelli, em busca de uma alternativa para o ensino
oficial da Escola Nacional de Belas Artes. É o ano, ainda, em que Tarsila e Osório César
realizam a viagem à União Soviética, evento que está na base da guinada social na obra da
pintora e que será tema de sua palestra proferida no Clube dos Artistas Modernos em São Paulo.
Flávio de Carvalho passa os últimos meses do ano anterior e os primeiros deste recluso,
pintando e esculpindo (TOLEDO, 1994:98), preparando-se, muito provavelmente, para o Salão,
no qual seria o único artista a expor nas três seções (pintura, escultura e arquitetura). É também o
ano em que realiza a Experiência n. 2, fato que coloca, mais uma vez, seu nome em evidência na
imprensa paulista a poucos dias da abertura do Salão. Após uma longa temporada de
investimentos na construção de uma imagem de artista moderno através de artigos polêmicos,
projetos-manifesto engavetados, chegava a hora de o artista oferecer uma posição mais concreta
de sua visão moderna. E o Salão de 1931 parecia ser uma boa oportunidade.

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
1
O arquiteto assume a direção da Escola no dia 8/12/1930.
293
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Flávio já era, perante a imprensa do período, o mais polêmico, o mais citado e o mais
combatido artista paulista. Sua postura anti-dogmática e anti-religiosa causava espanto entre os
leitores que acompanhavam suas ações inusitadas e seus depoimentos, sempre construídos de
forma propositadamente controversa. Ao ser consultado sobre a nova estrutura proposta por
Lúcio Costa para o Salão de 1931, o autor da Experiência n. 2 declarou:
O entusiasmo de poder raciocinar, compreender e construir novas teorias colocou o
homem moderno defronte de outra visão da vida, de um campo ilimitado preso apenas às
diretrizes econômicas das idéias da máquina e da eficiência. Ambas abrem um novo rumo
à humanidade, um rumo que nada tem que ver com o estado de religião e despotismo, que
dominou até hoje. (...) Vivemos ainda no pavor do Deus antropomórfico e dos santos
heróis. Em parte ainda nos comportamos como coristas numa capela de jesuítas. Sair da
fórmula sacra é perder o ponto de segurança, é confessar inferioridade (Diário da Noite,
São Paulo, 21/8/1931).
Afirmando sua postura radical, evoca a temática religiosa ciente do seu potencial em criar
polêmica. É interessante, entretanto, o uso que o artista faz da imagem do coro religioso,
contrapondo a disciplina homogênea ao espírito livre do artista e da arte moderna. Ao louvar a
institucionalização da arte moderna na estrutura de ensino artístico nacional, Flávio de Carvalho
elege como anti-referência justamente uma imagem que, pouco mais tarde, será eleita pelo
governo Vargas como molde no projeto de unificação e homogeneização cultural do país – a da
aula de música dada pelos missionários jesuítas aos índios como momento fundador da
civilização brasileira. Sua visão, ingênua em certa medida, sobre as possibilidades da arte
moderna ia de encontro aos propósitos programáticos do Estado, o que de fato pode ser
confirmado pela sua completa exclusão das vias oficiais ao longo dos anos que seguem.
No Salão de 1931, Flávio apresenta quatro obras, sendo uma na seção de arquitetura (o
Projeto para o Farol de Colombo), uma na seção de escultura (À beira da morte, 1930) e apenas
dois óleos (Anteprojeto para Miss Brasil e Pensando, ambas de 1931), embora tenha produzido
vários outros durante aquele ano, talvez após o salão. Procurarei me ater aqui à sua produção
pictórica, a qual oferece algumas soluções para problemas aparentemente comuns entre os
artistas modernos que expunham no Salão.
Após as discussões até aqui propostas, não deve ser mais surpresa o fato de que, para
alguns dos principais nomes do Salão, o problema da corporalidade associado à realidade
nacional tenha ganhado grande atenção. Hélio Seelinger investiu numa gestualidade expressiva,
estabelecendo contrastes e complementaridades entre o homem e a máquina nas novas lógicas do
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2011
trabalho (ver Ferreiro e Máquinas, ambas de 1930). O alemão Leo Putz, que em passagem pela
América do Sul (1929-1933) deu aulas na ENBA a convite de Lucio Costa, tratou de temas
locais numa linguagem dividida entre o expressionismo (Pão-de-acúcar, 1929) e o fauvismo
primitivista de Gauguin (Samba e Dança de Paquetá, s/d). Sobretudo em Samba, é visível a
atenção e o investimento do artista na tradução de uma gestualidade local, marcada pela
convivência com os ritmos africanos. As obras de Di Cavalcanti expostas no Salão apenas
afirmam a identidade do pintor alcançada nos anos 20. Em Mulata (1931), a fusão entre corpo e
meio é evidente: o artista utiliza não apenas o mesmo tom terroso para pintar a pele da mulher e
o solo no qual se encontra, mas também uma coincidência rítmica entre as curvas que vão do
horizonte ao corpo troncudo da mulata. Antônio Gomide, em sua Menina com violão (c. 1930)
apresenta uma linguagem cubista, próxima tanto do Picasso de Les Demoiselles d'Avignon
(1907) quanto do Franz Marc de Red woman (1912). A figura do violão insinua mais um
trabalho rítmico ostensivo, junto às linhas que enjaulam o corpo da menina, do que a atmosfera
lírica evocada pelo instrumento em si. Ismael Nery também faz referência à forma do violão em
O Luar (dois irmãos) (1925), confundindo corpo e instrumento de forma a associar vibração
sonora e simultaneidade.
Estes são apenas alguns exemplos que servem aqui como prelúdio para melhor
entendermos as obras de Flávio. Há, nos seus dois óleos apresentados no Salão, um
amolecimento das formas ausente em seus projetos arquitetônicos e mesmo nos murais para o
palácio do Governo de São Paulo analisados na comunicação do VI EHA no ano passado. Tanto
no Anteprojeto projeto para Miss Brasil [figura 1] quanto em Pensando [figura 2], é a cor, e não
mais a linha, quem organiza o espaço. As figuras não perdem o tom caricatural de seus desenhos
publicados na imprensa durante a década de 20, embora o artista abdique do traço rápido em prol
de um investimento cromático que manterá ao longo de sua carreira. O descompromisso com a
representação permanece, chegando mesmo à deformação, com alterações significativas na
estrutura anatômica das figuras. Ambas as obras trazem o feminino como tema central,
explorado não de forma narrativa, mas numa perspectiva psicológica que se tornará característica
da pintura de Flávio de Carvalho.
Nas duas figuras expostas no Salão, a constituição do corpo é mista, composta por uma
variedade de cores, divididas em zonas cromáticas bem definidas. Em Pensando, o corpo da
mulher em pose sensual é formado por regiões de cor que vão do amarelo ao marrom escuro,
como se um único corpo sustentasse diferentes tonalidades de pele, uma espécie de mestiçagem
heterogênea, polifásica, insinuando a preservação e a convivência simultânea dos elementos
primordiais da mistura. Cor e forma agem juntas, dando consistência às melodias e harmonias
295
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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que fazem o corpo vibrar. Deitada sobre as cores da bandeira, numa cama listrada em verde e
amarelo – cores estas dominantes na tela –, a figura descansa o corpo híbrido em terreno tropical.
Ao fundo, círculos vermelhos e verdes, parecendo melancias, exaltam a dimensão carnal, erótica
da mulher – supostamente brasileira –, sem identificá-la, como o faz Di Cavalcanti, a uma ou a
outra matriz étnica. Para Flávio, a mestiçagem parece ser um fenômeno mais psicológico do que
puramente étnico. Para além da cor da pele, a sensualidade seria transmitida através dos tempos,
pelas tradições comportamentais, pela ação do clima, pelos contingentes populacionais.
Seu vivo interesse pelo homem primitivo, seus costumes, seu vestuário e sua arte sempre
foi marcado, como apontam seus escritos, por uma abordagem psicanalítica.2 Por isso, chegou a
freqüentar o curso de antropologia da Universidade de São Paulo, ministrado por Paulo Duarte.
Porém, a antropologia cultural era sempre reavaliada sob o ângulo da psicanálise. Seguindo Luiz
Carlos Daher, para Flávio “os mitos e o comportamento dos grupos primevos, desenvolvendo-se
ao longo dos séculos, projetaram suas experiências no inconsciente das sociedades futuras,
determinando-lhes a estrutura e o comportamento”. Nesse sentido, o determinismo na história
seria o próprio inconsciente coletivo de Jung (DAHER, 1984: 55). 3 Ao discutir a obra de Tarsila
em artigo publicado no Diário da Noite (20/9/1929), Flávio deixa bem clara sua compreensão da
ação do tempo sobre a consciência:
A percepção do homem destaca do universo uma verdade relativa. Esta verdade, variável
quanto ao número dos seres, possui característicos comuns que se manifestaram e
repetiram no decorrer do tempo, formando um conjunto inconsciente. Essas
características viajam em ciclos em relação à história. As reações produzidas pelos ciclos
são gigantescas e representam na história as revoluções mentais dos povos. O tempo,
porém, funciona como um condensador em relação aos acontecimentos. Todos os
detalhes que compõem uma manifestação do passado são condensados num conjunto. E
esse conjunto se manifesta quase sempre por uma imagem mental. A manifestação do
homem é um simbolismo de sua experiência do passado e muitas vezes esse simbolismo é
uma condensação de sensações abstratas. A arte de Tarsila do Amaral é uma condensação
dessas sensações.
2
É importante lembrar que em seus escritos históricos, sobretudo em seu programa para uma história do vestuário
(manuscritos no CEDAE-IEL-UNICAMP), Flávio opta por explicações de viés psicológico, bastante genéricas e
sempre associadas a estereótipos comportamentais característicos a determinadas nações, regiões ou climas. A
título de exemplo, ver ensaio “O tabu da vegetariana” (CARVALHO, 2005: 96-102), sobre os efeitos
psicológicos do vegetarianismo.
3
O autor levanta ainda algumas das principais obras de referência para Flávio, dentre as quais podem ser destacadas
a Interpretação dos sonhos (1900) de Freud, The golden bough (1890) do antropólogo escocês James George
Frazer, e a Mitologie universelle (1930) do mitólogo Alexandre Haggerty Krappe (DAHER, 1984: 55-6).
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Assim, o mérito da pintora seria justamente a capacidade de, mais uma vez, condensar as
referências provenientes dos ciclos mentais que deram forma a uma personalidade nacional na
sua construção formal, elaborando sínteses eficazes da nossa flora e fauna, da nossa arquitetura
ou do nosso ímpeto libidinoso.
Se a pintora realizava tal tarefa através de esquemas da natureza, Flávio o faria a partir do
corpo. O Anteprojeto para Miss Brasil segue basicamente as mesmas premissas. Embora os
cabelos da mulher, bem como parte de seu rosto e suas largas ancas sugiram sua ascendência
africana, continuam os indícios de uma convivência, ou melhor, de uma sobreposição de
camadas cromáticas, sendo a cor uma representante de conteúdos interiores, de um gesto
sentimental, de um ritmo vibrante que expõe a sensualidade dos corpos musicais. Como numa
mistura heterogênea, coloca lado a lado os traços fortes e curvilíneos da matriz africana, os
ângulos claros e sutis da mulher branca, os tons terrosos e as formas elásticas da mulher
indígena, além de toda uma sorte de entre-tons que multiplica exponencialmente os elementos da
mistura. As cores vibrantes de superfície irregular e aguada remetem ao colorido das frutas
tropicais, sendo o corpo feminino sempre passível de ser devorado. A sensualidade nasce, então,
pela sugestão material das cores, suas texturas cambiantes, sua alternância entre a solidez da
madeira e do solo, e a moleza da fruta madura.
Neste mesmo ano, Flávio estendeu a associação entre cor e corporalidade, realizando
diversas obras focadas neste problema [figuras 3-4]. Nestas, a questão do nu como motivo
pictórico, tal qual fora a paisagem para os impressionistas, alcança centralidade. A cor associa-se
mais ao temperamento, aos estados de ânimo, aos calores sexuais num formato individualizado,
retratístico, do que ao problema das misturas étnico-culturais ou de uma psicologia nacional,
como nas obras anteriores, embora o predomínio do amarelo, do azul e do verde permaneça em
algumas delas [figura 3]. Em A inferioridade de Deus [figura 5], também de 1931, o pintor se
vale de uma linguagem mista, dividida entre o surrealismo e o cubismo, explorando um ideal de
composição extremamente musical, beirando a abstração. O polêmico título da obra sugere a
inversão daquele “estado de religião” que se confrontava com o homem moderno na era da
máquina e da eficiência (Diário da Noite, São Paulo, 21/8/1931), afinando-se também com a
preparação da publicação de sua Experiência n. 2, que sairia em meados de setembro do mesmo
ano.
A partir de 1932 Flávio intensifica sua produção, encontrando soluções mais uniformes
para a tensão que permeia seus primeiros óleos entre as formas orgânicas e geométricas,
excluindo progressivamente estas últimas de suas obras, passando a enfatizar o trabalho sobre o
corpo e o gesto em suas relações com a cor. Mas essa tensão permanece, de certa forma, ao
297
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2011
longo da carreira, tendo em vista que parece emergir não de um dilema puramente plástico, mas
da dinâmica gerada pela sua formação em ciências exatas, unida ao crivo sistemático da
educação britânica, de um lado; e os espaços disponíveis no campo artístico brasileiro,
necessários à movimentação que daria ao artista a positividade do gesto criador, de outro. Ou
seja, uma tensão entre sua tendência organizadora, geométrica, calculada, abstrata, e o meio
artístico brasileiro, apegado a uma arte do corpo e do gesto, negando assim a abstração
autônoma.
Tal dualidade, que caracterizou boa parte do trabalho de Flávio, encontrava-se em vias de
resolução através da conquista de um estilo próprio por volta de 1934, ano em que participa de
duas exposições importantes: sua primeira individual, no prédio Alves Lima, à Rua Barão de
Itapetininga, n. 10, inaugurada em 28 de junho; e o 1º Salão Paulista de Belas Artes, que teve
início em 25 de janeiro. A mostra individual foi, como esperado, cercada de polêmicas, e Flávio
era referido na imprensa como um dos artistas “mais discutidos na vida artística de São Paulo”. 4
Obras foram apreendidas pela polícia e, dias depois, devolvidas ao artista. A censura acabou
servindo como propaganda, levando imensas levas de curiosos ao térreo do edifício Alves Lima,
atrapalhando, para o desespero das autoridades, o trânsito da Barão de Itapetininga. Flávio
encerrou a exposição no dia 8 de agosto com todos os trabalhos vendidos.
O período compreendido entre 1932 e 1934 foi muito profícuo para Flávio, que expõe
mais de cem trabalhos em sua primeira individual (esculturas, quadros a óleo, desenhos a tinta,
nanquim e carvão, aquarelas e pastéis). A presença do corpo nas telas desse período é quase
absoluta. Um aprofundamento das relações entre gesto e cor é visível nas obras que seguem ao
ano de 1933. Uma obra em especial me chama atenção por apresentar soluções interessantes,
destinadas a mediar as tensões que circundavam a produção de Flávio: a Mulher nua, de 1934
[figura 6]. Um óleo sobre tela que parece ter merecido um grande investimento por parte do
pintor.5
Apesar da comunhão de cores e tons entre a figura e o fundo, o contraste é alcançado
através da sensação de volume, criada por meio de dois recursos simultâneos: luminosidade e
tactilidade. O desenho, percebido isoladamente, não pronuncia as formas na tela, sendo os efeitos
de luz responsáveis pela emergência da figura sobre do fundo, que tende ao obscuro. O caráter
táctil atribuído às tintas, que sobrepõem um fundo negro, simulando rachaduras na carne,
4
5
Diário da Noite, São Paulo, 28/6/1934.
Aparentemente a Mulher nua não consta na relação de obras da exposição individual de 1934. Considerando o fato
de que até os estudos mais toscos e inacabados entraram no conjunto de obras expostas, nos restam duas
possibilidades para a ausência do óleo Mulher nua na exposição: a obra ter recebido um título diferente ou ter
sido realizada após o evento.
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acentua o volume do corpo que, pela sua solidez geométrica, tende ao escultórico. Traço este que
acaba por masculinizar, em certa medida, a figura da mulher. A posição das pernas sugere a
necessidade de sustentação para um peso estático, como uma estátua, atribuindo à mulher algo
da rudez moderna, da força maquínica, da robustez desportiva. É visível o papel dissolvente das
tintas, criando, além da sensação de movimento, direcionado da esquerda para a direita do
observador, uma atmosfera onírica em que a cor é levada ao vento, como se fosse som, diluindo
a paisagem e, de forma menos agressiva, a própria figura, cuja face encontra-se já em princípio
de desmoronamento. As cores, praticamente restritas às da bandeira nacional – verde, azul,
amarelo e branco –, parecem funcionar como armadura, protegendo a corpo da tempestade que
toma conta do fundo.
Difícil sugerir apontamentos mais precisos sobre o possível caráter político da obra, tendo
em vista o complicado relacionamento do pintor com o mundo da política, sem vínculo com
nenhuma das correntes disponíveis no país. A escolha das cores, contudo, me parece
significativa. A obra foi realizada num ano bastante tenso, de grande instabilidade nos cenários
nacional e internacional. A emergência do Nazismo, quando Hitler assume a presidência do
Reich, fazia crescer a tensão e o medo de um conflito de amplas proporções. No Brasil, a
constituição de 1934, de caráter progressista, prometia uma realidade diferente, promessa que
durou apenas três anos, até a instauração do Estado Novo. A morte de Olívia Penteado, grande
mecenas da capital paulista, também causara grande impacto no meio artístico local. E a Mulher
Nua, nesse contexto, consciente ou inconscientemente, coloca em pauta a angústia e a incerteza
provocada pela situação nacional e internacional, discutida de forma febril em praticamente
todos os jornais e cafés, no país e no mundo. A eminência da guerra mundial e a situação
instável em que se encontrava o país parecem mover o pintor que, sem tomar partido, busca
expressar, como fez em diversas de suas obras, os estados e fatos psicológicos do homem diante
da realidade. Sem comungar das causas nacionalistas, o pintor manifesta um sentimento
ambíguo, que se alterna entre a crença na força da nação, encarnada na mulher rígida, em pose
insolente, protegida pelas cores da bandeira; e o seu progressivo desfazer-se em função dos
ventos fortes que faziam tremer o cenário mundial. A resistência do corpo sólido é contrastada à
face derretida, apagando a individualidade, ressaltando a força coletiva, espalhando-se pelo ar
como um hino que chama à participação política.
Embora Flávio fosse taxado pela imprensa e por parte da sociedade paulistana de
comunista, jamais chegou a indicar qualquer ligação direta com tal ideologia, sendo considerado
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por seus biógrafos um homem “apolítico”.6 A companhia de Di Cavalcanti, filiado ao partido
comunista, bem como as atividades proporcionadas pelo CAM durante os anos de 1933 e início
de 1934, causaram em Flávio, sem dúvida, grande impacto. A ida de sua amiga Tarsila do
Amaral à União Soviética, a palestra por ela proferida sobre a arte proletária, as conferências de
Mário Pedrosa (“As tendências sociais de Kaethe Kollwitz”, proferida em 16/6/1933) e de Caio
Prado Jr. (“A Rússia de hoje),7 também não passariam despercebidos pelo atento artista. O
impacto das dinâmicas sociais, tanto internacionais quanto locais, na obra do pintor parece
evidente e deve ser levado em conta. Sua postura independente não pode ser tomada como
apolítica, termo excessivamente neutro e passivo para um artista tão ativo e polêmico. Mesmo
suas decisões de cunho puramente estético são, ao fim, posturas políticas, tendo em vista que
delas dependia também sua inserção profissional no campo artístico local. A filiação moderna de
sua obra, conectada, em alguns momentos, ao modernismo mais radical é, portanto, parte deste
jogo de decisões e constrições próprio à sua posição.
Referência Bibliográfica:
CARVALHO, Flávio de. Experiência n. 2: realizada sobre uma procissão de Corpus Christi.
São Paulo: Irmãos Ferraz, 1931.
____________________. Os ossos do mundo. São Paulo: Editora Antiqua, 2005.
____________________. “A pintura do som e a música do espaço”. In: Revista Clima, n. 5, São
Paulo, 1941, 28-42.
DAHER, Luiz Carlos. Flávio de Carvalho e a volúpia da forma. São Paulo: MWM-IFK, 1984.
LEITE, Rui Moreira. Flávio de Carvalho: o artista total. São Paulo: Editora Senac São Paulo,
2008.
_________________. Flávio de Carvalho (Catálogo). São Paulo: Museu de Arte Moderna de
São Paulo, 2010.
6
Para J. Toledo, Flávio manteve-se, ao longo de sua vida, apolítico, embora “com respingos de liberalismo oriundo
de sua nova amizade com Di Cavalcanti, que se mostrava cada vez mais radical e engajado em movimentos de
esquerda. Di, generoso e boêmio, agora assíduo freqüentador do novo estúdio, seria então o arauto das crepitantes
atividades modernistas: tanto as de fora para dentro como as de dentro para fora. Houve até um momento em que
ambos pensaram numa sociedade cultural... mas isso só aconteceria bem mais tarde e Flávio, decidido com a melhor
seriedade a criar uma verdadeira obra prima arquitetônica, continuou ali mesmo, solitário, produtivo e segregado
pela família” (TOLEDO, 1994: 45). Para o autor, o termo significa tão somente a ausência de vínculos partidários, à
direita ou à esquerda. Não pode ser tomado, entretanto, na totalidade de sua experiência, sempre conectada, pelo
exercício artístico, ao campo da política num sentido mais geral.
7
Recém-chegado de viagem à Rússia stalinista, a exemplo de muitos outros intelectuais, Caio Prado voltara
impressionado com as transformações sociais ocorridas naquele período. Sua palestra, exemplo tanto do papel
central que alcançara o CAM na vida cultural paulistana quanto da relevância do tema, abrigou, ainda que de
forma precária, uma audiência de mais de 600 pessoas, além de uma multidão que ficara do lado de fora, na rua
Pedro Lessa, ouvindo a fala do jovem sociólogo através de auto-falantes instalados em postes especialmente para
o evento (ver TOLEDO, 1994: 162-3).
300
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
SANGIRARDI JÚNIOR. Flávio de Carvalho: o revolucionário romântico. Rio de Janeiro:
Philobiblion, 1985.
TÉO, Marcelo. “Flávio de Carvalho e a febre do corpo”. In: Atas do VI Encontro de História da
Arte da UNICAMP. Campinas: UNICAMP, 2010.
TOLEDO, J. Flávio de Carvalho: o comedor de emoções. São Paulo; Campinas: Brasiliense;
Editora da UNICAMP, 1994.
VIEIRA, Lúcia Gouvêa. Salão de 1931: marco da revelação da arte moderna em nível nacional.
Rio de Janeiro: FUNARTE; Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1984.
301
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 1. Flávio de Carvalho. Anteprojeto
para Miss Brasil, 1931. Óleo s/ tela, 40 x
24cm. Col. Fúlvia e Adolpho Leirner, São
Paulo.
Figura 2. Flávio de Carvalho. Pensando, 1931.
Óleo s/ tela, 30 x 52cm. Col. Fernando B. Milan, São Paulo.
302
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2011
Figura 3. Flávio de Carvalho. De manhã cedo,
1931. Óleo s/ tela, 49 x 36,5cm. Col. Richard
Akagawa.
Figura 4. Flávio de Carvalho. Sem nome, 1931.
Reprodução do acervo do pintor. CEDAE-IELUNICAMP.
303
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 5. Flávio de Carvalho. A inferioridade de Deus, 1931. Óleo s/ tela, 54,5 x 73 cm. Col.
Gilberto Chateaubriand/MAM, Rio de Janeiro.
Figura 78. Flávio de Carvalho. Mulher nua, 1934. Óleo s/ tela, 52 x 34,5cm. Col. Rubens Schahin, São Paulo.
304
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
A ARTE CONTEMPORÂNEA E O MUSEU: DESAFIOS DA PRESERVAÇÃO PARA
ALÉM DO OBJETO.
Mariana Estellita Lins Silva
Até a Arte Moderna as obras de arte eram concebidas como objetos únicos, produtos da
expressão do artista, como a concretização de um momento singular de criação. A materialidade
da obra é o elemento que une o ato criativo do artista ao momento de contemplação do
espectador. Esta relação é trabalhada por Walter Benjamin a partir do conceito de aura, onde a
obra é um signo que remete ao tempo histórico no qual foi concebida, como testemunho de uma
tradição. Em seu suporte acumulam-se vestígios da passagem do tempo, que, agregados a
elementos simbólicos, lhe conferem valor de culto.
Neste contexto, os museus são compreendidos como espaços sagrados de contemplação.
Ao longo dos corredores, os visitantes posicionam-se enquanto observadores de um conjunto de
objetos dispostos no espaço, onde o silêncio e a distância das obras devem ser mantidos,
garantindo o conforto contemplativo do público e a segurança do acervo.
A partir do século XX, paralelamente às categorias de obras tradicionalmente existentes,
surgem no âmbito da arte contemporânea, objetos relacionais, obras perecíveis, efêmeras, entre
outras tipologias que problematizam a função do objeto no processo artístico. A arte passa a ser
vista como um dispositivo de interatividade entre o artista, o espaço social e o espectador, e não
mais como um suporte estático a ser contemplado.
As obras podem se desenvolver através da relação com o tempo, com o espaço e por
intermédio de quaisquer dos cinco sentidos, não sendo passíveis de geração de significado
apenas por meio da contemplação. A obra de arte se constitui então como relação. Ao se
transformar em processo, não só precisa ser vista, mas vivenciada, para que haja produção de
novos significados.
Esta nova concepção torna-se problemática para o museu de arte, que, originalmente,
teve sua área de atuação desenvolvida em função do objeto material. Surge então a questão:
Como manter o potencial de comunicação das obras de arte contemporâneas e ao mesmo tempo
preservá-las como documento para as gerações futuras? A melhor forma de garantir o poder
comunicacional de cada obra deve ser definida pela instituição museológica a partir da
compreensão da proposta elaborada pelo artista. Ao privar o público de manipular obras táteis,

Mestranda em História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/UFRJ).
305
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
limitar as obras relacionais à observação, ou retirar o movimento de obras cinéticas, o museu
inviabiliza a relação que deveria ser desenvolvida com o espectador. Se, devido à conservação,
essas obras estão restritas à contemplação visual, elas não provocam a articulação de novos
significados, e, portanto, não se completam enquanto processo informacional. A incompreensão
da proposta do artista, por parte da instituição museológica, desencadeia, portanto, uma
desarticulação do processo informacional da obra.
O recorte conceitual da pesquisa baseia-se, em primeiro lugar, no conceito de obra
relacional trabalhado por Nicolas Bourriaud. O autor caracteriza a obra de arte contemporânea
como um dispositivo capaz de articular novas relações, e não mais como o produto final do
processo criativo do artista. Segundo ele, as obras são proposições, que criam uma coletividade
instantânea, convidando o público, outrora apenas observador, a tornar-se participante, “a
completar a obra e participar da elaboração de seu sentido” (BOURRIAUD, 2009 a: 82).
Neste contexto, a exposição é fundamental para a constituição da obra de arte. O museu
não se destina mais a mostrar resultados de um processo, mas se caracteriza como um local de
produção, já que é nele que acontece a interação. Há, portanto, a necessidade de sistematização
de uma prática museológica que viabilize o processo artístico. Diversos autores defendem que as
transformações conceituais da arte não foram acompanhadas nem técnica, nem filosoficamente
pelo museu. Para Mario Chagas, as novas concepções artísticas, acentuadas no Brasil na década
de 1970, colocam-se como questionadoras para o modelo clássico de museu, fazendo com que as
instituições se reposicionem diante do novo paradigma.
As experiências que nos anos 70 opunham-se teórica e praticamente ao caminho adotado
pelos museus clássicos, de caráter enciclopédico, desaguaram caudalosas nos anos 80,
permitindo a construção de veredas alternativas e a busca de sistematização teóricoexperimental. (CHAGAS, 2002: 57)
Em consonância, Cristina Freire defende a idéia de que a alteração do conceito de obra de
arte é uma transformação epistemológica. Neste cenário, o contraste com o modelo moderno da
instituição museológica é maior, sendo necessário não só uma reavaliação técnica, mas uma
mudança de mentalidade.
[...] o paradigma moderno dos museus já não se adéqua às políticas artísticas há algumas
décadas. Uma alteração do que chamamos “obra de arte” vem ocorrendo desde, pelo
menos, a segunda metade do século XX. Não se trata aqui de uma simples alteração
semântica, mas sim epistemológica; ou seja, não apenas o objeto de arte, mas, sobretudo
o objeto da arte deve ser reconsiderado. O que implica, necessariamente, uma crítica às
instituições que pavimentam o caminho à legitimação das narrativas. E a tarefa que se nos
306
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
apresenta é bastante complexa e exige ainda uma mudança de mentalidades. (FREIRE,
1999: 169-170)
Em uma perspectiva mais técnica, a autora descreve situações práticas de instituições
dentro e fora do país onde há um descompasso em relação à proposta do artista, causando
perda de sentido à obra de arte, evidenciando a necessidade de discussão e reformulação do
sistema museológico. Neste sentido, Freire nos traz um exemplo ocorrido no MoMA:
Joseph Kosuth (EUA, 1945), um dos mais importantes artistas conceituais norteamericanos, apresentou no MoMA de Nova York o trabalho One and Three
Chairs (1965) onde justapôs a cadeira real às suas representações (definição de
cadeira do dicionário e fotografia de cadeira). Apesar de ter sido adquirido pelo
MoMA, essa obra foi destruída ao ser incorporada à coleção do museu, uma vez
que a cadeira foi encaminhada ao Departamento de Design, a foto ao
Departamento de Fotografia e a fotocópia da definição de cadeira à biblioteca.
(FREIRE, 1999: 45-46)
A teoria museológica tem trabalhado com o conceito de museu voltado para o
desenvolvimento da sociedade no presente. A partir da definição de museu utilizada pelo
Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM em que “O museu é uma instituição com personalidade
jurídica própria ou vinculada a outra instituição com personalidade jurídica, aberta ao público, a
serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (...)” (grifo nosso), é possível perceber a
preocupação com que os museus não constituam entraves às transformações culturais.
Atualmente, os museus são vistos como locais de construção de valores, extrapolando a
concepção tradicional voltada para a conservação e disposição de objetos no espaço. Entretanto,
existe uma questão, que precisa ser permanentemente reavaliada: a relação entre a preservação
da memória e as constantes transformações da sociedade contemporânea. Nas palavras de Mario
Chagas:
Operando com objetos herdados ou construídos, materiais ou não-materiais, os museus
trabalham sempre com o já feito e já realizado, sem que isso seja, pelo menos em tese,
obstáculo para a conexão com o presente. Essa assertiva é válida tanto para os museus de
arte contemporânea, quanto para os ecomuseus envolvidos com processos de
desenvolvimento comunitário. (CHAGAS, 2002: 55)
A arte contemporânea impõe às instituições museológicas uma reavaliação de sua prática.
A conservação exercida pelos museus – eficiente até a arte moderna – não se mostra adequada
307
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
aos acervos de arte contemporânea, limitando as possibilidades de interação propostas pelos
artistas.
Não há ainda uma discussão estabelecida entre o campo da arte e da museologia que
aponte soluções estratégicas para a preservação dos acervos em expansão. Enquanto isso, por
ausência de uma normatização, a forma com que a obra será exposta fica a critério de cada
instituição e ao gosto dos profissionais envolvidos. Isso leva a uma fragilização do potencial
comunicacional do acervo, e compromete a percepção que o público tem das obras.
Esta pesquisa tem como foco central a dinâmica que a obra de arte relacional estabelece
com a instituição museológica. Para isso serão entrecruzados conceitos e aspectos da museologia
contemporânea com a percepção e a prática de artistas e curadores.
Do ponto de vista museológico, houve, no âmbito da museologia contemporânea, uma
mudança de paradigma, da conservação para a preservação. A conservação se refere à
manutenção da integridade física dos objetos, como o controle de temperatura e umidade,
higienização e acondicionamento das peças etc. Já a preservação é um conjunto de práticas que,
além da conservação, incluem a documentação, a divulgação do acervo, e todas as ações
possíveis para viabilizar o processo de comunicação das obras, tendo como foco não puramente
o objeto, mas a relação estabelecida com o público.
Por outro lado, os artistas e curadores, que não são diretamente responsáveis pela
atividade de preservação das obras, trabalham a arte contemporânea apenas do ponto de vista das
propostas e dos conceitos, e não do ponto de vista dos suportes. Entretanto, dentro do conceito de
preservação, eles desempenham papel fundamental, visto que, sem outras preocupações além da
própria obra, eles elaboram artifícios para viabilizar a exposição (e a re-exposição) de obras
relacionais. Estes artifícios que são utilizados pontualmente em algumas obras, sem qualquer
pensamento estratégico de preservação de acervos, serão analisados nesta pesquisa como
possíveis ferramentas para a sistematização de tratamento desse tipo de acervo. Esses artifícios
são: os registros, os projetos e as réplicas.
Os registros (fotográficos, filmográficos ou sonoros) se aplicam às obras efêmeras,
perecíveis ou que de alguma maneira se desenvolvem no tempo. Os projetos (ou roteiros) são
utilizados pelos próprios artistas, que desenvolvem um planejamento da obra, descrevendo seu
processo de montagem ou de acontecimento, tal como uma receita, permitindo sua remontagem
por outras pessoas com outros materiais idênticos. Já as réplicas (ou substituições) se adequam às
necessidades dos objetos relacionais, de obras que demandam a manipulação do público ou
simplesmente objetos que sofreram ação do tempo e podem ser substituídos, no todo ou em
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
partes, sem perda simbólica para a obra. Estes mecanismos são articuláveis entre si, sendo
possível realizar réplicas a partir de projetos, fazer registros a partir de roteiros etc.
Referência Bibliográfia:
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac
Naify, 2006.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras
Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BENSE, Max. Pequena Estética. São Paulo, Perspectiva, 1971.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009 a.
__________________. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São
Paulo: Martins Fontes, 2009 b.
CAUQUELIN, Anne. Frequentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte
contemporânea. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008.
CHAGAS, Mario de Souza. Memória e Poder: dois movimentos. Cadernos de Sociomuseologia.
Nº19 - ULHT, Lisboa, 2002.
DANTO, Arthur. Após o fim da arte: A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
Odysseus, Edusp, 2006.
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. (orgs.). Escritos de artistas - anos 60/70. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. Caderno de
Ensaios, Rio de Janeiro, no 2, p.65-74, 1994.
FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: arte conceitual no museu. São Paulo, Iluminuras, 1999.
Internet:
Sistema Brasileiro de Museus
Disponível em: http://www.museus.gov.br/ (acesso em 25 set 2010)
309
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
ALGUNS APONTAMENTOS
CHASSÉRIAU
IMPULSOS FEBRIS
ACERCA
VÉNUS
2011
MARINE
DE
THÉODORE
Martinho Alves da Costa Junior
A Vênus Marine ou Anadyomène1, 1838 de Théodore Chassériau foi realizada juntamente
com outra obra, Suzanne au bain, 1839, para o Salão do mesmo ano. Neste momento, diversos
críticos assinalam um grande salto qualitativo em seus trabalhos, começando, a partir de então, a
ser encarado seriamente. Certamente, após esses apontamentos, tais observações tornam-se um
lugar comum na historiografia, e, em menor ou maior grau, as vemos repetida em diversos
lugares diferentes. Théophile Gautier, que fora o grande entusiasta de sua obra, assinala no ano
mesmo em que o quadro foi exposto no Salão:
Théodore Chassériau, apesar de já ter expostos diversas vezes, é um homem muito jovem
e seu início só deve, de qualquer maneira, datar deste ano. Os primeiros quadros
anunciavam felizes disposições, mas eles não deixavam suspeitar todo escopo e todo
alcance de seu talento, ele estudou com coragem e consciência, ele procurou
insistentemente e se encontrou, ele livrou sua verdadeira natureza das fraldas da imitação
[...] [Seus antigos quadros] não tem realmente nenhuma relação com sua pintura atual: a
transformação está completa (GAUTIER, 1839).
A importância e qualidade dessas obras são indiscutíveis, contudo, basta lembrarmo-nos
de alguns de seus retratos anteriores, (sobretudo os de sua família) para notar a qualidade dessas
obras, por exemplo, o seu autorretrato, de 1835.
Na tela em questão, vemos a deusa enxugando seus cabelos, dos quais, caem no chão
espessas gotas d’água: a ligação com a fecundação é imediata, o sêmen que a gerou escorre pelos
seus cabelos.
Ela tem o rosto levemente inclinado, seus olhos fechados e uma soberba linha serpenteada
e escultórica. A figura misteriosa, entregue aos seus pensamentos, paira luminosa e dourada
frente a uma paisagem sombria, esverdeada – remetendo ao ambiente marinho.
A atmosfera crepuscular e tempestuosa contrasta com a forte beleza marmórea da deusa
de braços fortes e largos, ou mesmo atléticos. O nascimento é encarado, de fato, como algo
melancólico, solitário e inóspito em um local entre a areia e o lamaçal.

1
IFCH-UNICAMP, doutorando em História da Arte (CNPq).
Segundo a obra de Bénédite, o título de Anadyomène não foi empregado senão na litografia. Cf. BÉNÉDITE,
1931: 94.
310
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Fig. 01 – Théodore Chasséirau, Vénus Marine ou
Vénus anadyomène. 1838. Musée du Louvre.
Aos pés de Vênus uma concha aberta de onde provavelmente tenha saído. Atrás da deusa,
abrem-se montanhas e vemos a forte calmaria das águas.
Ao fundo, uma grande mancha escura, negra, raja o céu então esverdeado de cinza e
preto, caindo como fuligem, uma tempestade que se forma atrás da deusa, corroborando ainda
mais para uma ideia de ambiente sombrio e, especialmente de torpor. A figura, pálida e
irradiante retira o excesso de água dos cabelos quase em um movimento de espreguiçar-se.
O rosto de Vênus está em um recorte conciso da linha de medalhas antigas. Não é apenas
a paisagem que está imersa no crepúsculo. Se por um lado seu corpo é banhado por uma forte
luz, deixando-o ainda mais dourado, por outro, os sombreamentos são extremamente precisos: o
rosto da deusa conserva-se no escuro, bem como seu sexo. A figura possui forte introspecção,
seu rosto inclinado volta-se a si mesma e, escondida, nas sombras, seus olhos se mantêm
fechados, recém-chegada às margens, o invisível de seus pensamentos deixa a figura inquieta.
Entretanto, há um outro detalhe nesta luz que incide sobre Vênus. Caprichosamente, neste
jogo sutil entre sombra e luz, o seio esquerdo, ou melhor, o bico do seio esquerdo da figura
feminina fica ainda mais em evidência. Seios pequenos, em formação, a luz fica mais forte no
extremo do bico deste seio que, cintilante, aponta diretamente ao observador.
*
311
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Nesta imagem de Chassériau a figura feminina está permeada de questões completamente
originais: a torpeza da figura, seus pensamentos perdidos em um ambiente tenebroso e
misterioso. Aproximar dessa, outras imagens de Vênus, de fato, é muito plausível. Entretanto,
mesmo o fazendo a imagem ainda parece nos escapar.
Léon Rosenthal colabora e nos dá uma pista, descortinando um aspecto importante no
complexo dessa Vênus.
Estes quadros não jogam nossos corações em uma agitação trágica; eles agem como um
charme ou como um encantamento; segundo a palavra de Ary Renan, reina em tais
quadros uma belle inertie; eles provocam o sonho que fascina e que entorpece
(ROSENTHAL, 1987: 162).
Este conceito, aparentemente usado para as imagens de Chassériau primeiramente por
Ary Renan, ilumina aspectos que merecem ser vistos. A Vênus marinha está inserida neste
conjunto de imagens, que “fascina e que entorpece” ao mesmo tempo. Para tentarmos
compreender de fato a belle inertie dois fatores são preponderantes, o primeiro é quadro de
Delacroix, Femmes d’Alger. A sensação de torpor dessas moças presente naquele ambiente, no
momento no qual se entregam ao narguilé, faz o tempo parecer suspenso. Há uma beleza neste
estado que contamina as mulheres, especialmente a do lado direito, com o rosto inclinado e de
olhos quase fechados. No detalhe, podemos por em fragmentos o rosto inclinado dessa moça do
quadro de Delacroix com a figura que aparecerá quatro anos depois, de Chassériau. Ambas,
compartilham uma sensação de fadiga prazerosa, mesmo possuindo origens diversas.
Fig.02 – Detalhes: Eugène Delacroix. Femmes d’Alger. 1834. Théodore Chassériau. Vénus
Marine, 1838.
312
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Outro fator é que esta obra que parece fazer eco ao poema LIII das Flores do Mal, O
convite à Viagem, de Baudelaire:
[...]Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
_ Os sanguíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canais, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.
Lá, tudo é paz e rigor
Luxo, beleza e langor2.
A atmosfera baudelairiana está em consonância com esse tipo de representação. “Lá, tudo
é paz e rigor; Luxo, beleza e langor”. Cansaço, fadiga e alhures liga-se ao Luxo e beleza, tudo
feito ao seu prazer. Chassériau explorou bastante esse modo, digamos, de Delacroix e
Baudelaire, em suas primeiras obras. O impacto criado com tais trabalhos será forte motriz para
artistas como Gustave Moreau e Pierre Puvis de Chavannes.
Como aparece na obra de Mélisande, de 1895 de Fernand Khnopff. A obra faz referência
à peça de Maurice Maeterlinck, Pélleas et Mélisande, de 1892. Provavelmente, Mélisande está
perdida na floresta, momentos antes do encontro com Goulaud. Khnopff, traz uma atmosfera
2
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa : volume único. Trad. Port. Ivan Junqueira. 1ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995. P. 145-146. Poema completo: O convite à Viagem: Minha doce irmã, / Pensa na manhã / Em que
iremos, numa viagem, / Amar e valer, Amar e morrer / No país que é a tua imagem! / Os sóis orvalhados /
Desses céus nublados / Para mim guardam o encanto / Misterioso e cruel / Desse olhar infiel / Brilhando através
do pranto. / Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor. / Os móveis polidos, / Pelos tempos idos, /
Decorariam o ambiente; / As mais raras flores / Misturando odores / A um âmbar fluido e envolvente, / Tetos
inauditos / Cristais infinitos, Toda uma pompa oriental, / Tudo aí à alma / Falaria em calma / Seu doce idioma
natal. / Lá tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor. / Vê sobre os canais / Dormir junto aos cais / Barcos de
humor vagabundo; / É para atender / Teu menor prazer / Que eles vêm do fim do mundo. / _ Os sanguíneos
poentes / Banham as vertentes, / Os canais, toda a cidade, / E em seu ouro os tece; / O mundo adormece / Na
tépida luz que o invade. / Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor.
313
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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pertinente ao mundo de Maeterlinck, em que o mistério e a sugestão possuem papel
preponderante. A misteriosa dama, da qual não temos nenhuma informação senão que estava
perdida às margens das águas. Quando Goulaud se aproxima, logo sabemos que havia uma coroa
no fundo das águas, uma coroa que, certamente é rejeitada por Mélisande.
Goulaud: O que é que brilha tão forte no funda da água?
Mélisande: Onde? Ah! É a coroa que me deram. Ela caiu enquanto eu chorava.
Goulaud: Uma coroa? Quem lhe deu uma coroa? Tentarei pegá-la...
Mélisande: Não, não; eu não quero! Eu prefiro a morte...
Goulaud: Poderia retirá-la facilmente. A água não é tão profunda.
Mélisande: Eu não a quero mais! Se você retirá-la me jogo no lugar dela!...
(MAETERLINCK, 1912:10-12)
Fig. 03 – Fernand Khnopff, Mélisande.
1895.
A peça inteira é inserida neste ambiente misterioso, os fatos e as ações vão se
desenrolando sem conhecermos muito bem esta figura feminina que acaba desembocando a
discórdia na família de Goulaud.
Em Khnopff, Mélisande olha para as águas, vemos o gracioso perfil com os dedos
delicados pousados sobre seu queixo. Um pescoço bem alongado e o começo de uma cabeleira.
Entretanto, essa Mélisande está olhando para além da coroa, seu olhar perdido no infinito, mira
provavelmente o mistério que nunca saberemos resolver. O fascínio e atração se junta ao estado
314
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
praticamente paralisado de Mélisande, como que nos estados alterados da mente, proporcionado
pelos prazeres em Femmes d’Alger de Delacroix.
A ópera realizada por Claude Debussy – inclusive Pélleas et Mélisande será a única
ópera do compositor francês – sobre a mesma história, estreia em 1902. A música de Debussy
evoca esta atmosfera misteriosa, peculiar ao teatro de Maeterlinck.
*
Nas análises até este ponto, salientamos elementos da Vénus Marine de Chassériau
diversos: tais quais, a belle inertie, o sombrio, e algo da ordem da sugestão, do não dito.
Entretanto, potencializando algumas dessas questões presentes na obra de Chassériau, podemos
inferir em outras conclusões.
A Vênus reduzida à pura sexualidade, um ser que não possui um sexo, mas todos e exala
por todos os poros o cheiro de órgãos sexuais é apresentada na imagem alegórica da Luxúria de
Paul Cadmus. Bram Dijkstra, em sua análise das imagens do nu na arte americana, não se furta
ao falar da sexualidade e erotismo desta imagem de Cadmus, para ele:
Paul Cadmus, entretanto, solta seu veneno contra as mulheres em sua
imagem de 1945, Luxúria, mostrando ela como determinada para afirmar a
si mesmo como uma Vênus Genetrix, a (mulher-dominatrix) origem do
mundo personificada. Ele também a mostrou como sendo trapaceira da
sexualidade reprodutiva, pois o fato que a capa para a sua lascívia era nada
menos que uma camisinha com um buraco (DIJKSTRA, 2010:410).
315
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Fig. 04 – Paul Cadmus, The Seven Deadly Sins: Lust. 1945. The
Metropolitam Museum of Art. Nova York.
A Vênus/Luxúria de Cadmus é hermafrodita, não que tenha os dois sexos, mas seu corpo
é os dois sexos: seus dedos-pênis, o umbigo-anus, as axilas-vulvas ou mesmo a divisão dos
cabelos também vulva. Todo o erotismo e imagem de beleza e de amor são postos em estado
arcaico ou em estado primário da sexualidade. O buraco na camisinha está situado bem no rosto
da Luxúria, andrógeno e extremamente maquiado. Seu olhar é de desafio e malícia, maléfico e
pronto para o próximo feitiço. O fundo vermelho e negro, terrificante e o chão em pequenas
erupções, de fato, apontam para algo profundo e desconhecido, e remete aos delírios desejosos
do inconsciente.
A imagem impregnante de Vênus aparece também esfolada, de entranhas à mostra, mais
uma vez como objeto de desejo e cobiça, de maneira estritamente perversa e bela ao mesmo
tempo. Trata-se de um episódio de Tales from The Crypt3, de 1992, intitulado Beauty Rest e
dirigido por Stephen Hopkins. Neste episódio, uma moça levada à tentação de ganhar um papel
para propaganda e, sobretudo sair vitoriosa em um misterioso concurso é capaz de tudo. Logo,
sem saída e transloucada mata sua roommate, concorrente direto ao papel e ao concurso. Uma
vez lá é preciso eliminar ainda outra que insiste em ficar em seu caminho. No fim, ela consegue
o que tanto perseguia e ganha o concurso que mal sabia do que se tratava. Ela entra na sala de
3
Famosa série de TV do final dos anos 80 até meados da década de 90. Histórias curtas, com teor de suspense e
horror. Sempre uma atmosfera que lembra algo dos contos de Edgar Allan Poe, a cada episódio um conto
filmado pelos mais diversos diretores, entre quais: Arnold Schwarzenegger, Tom Holland, Tobe Hooper,
William Friedkin entre muitos outros.
316
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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maquiagem para a apresentação final e, nós, espectadores só a veremos juntamente com o
público que a espera.
Fig. 05 – Stephen Hopkins, Tales from the Crypt:
Beauty Rest. 1992.
Eis que surge, aos poucos, com o panejamento sendo retirado de seu corpo quase todo
coberto, a vencedora do concurso Miss autópsia 1992.
Enquanto era exibida, o público satisfeito batia palmas e o apresentador a mostrava
cantando, bem ao estilo de Frank Sinatra, a seguinte letra: “Ela é encantadora, mesmo de frente
ou de costas / Que prazer que foi poder cortá-la às postas / Ela é magnífica mesmo depois de
morta / Porque é o interior que importa!”.
Vemos como a exibição da Miss Autópsia se deu, em suas formas de Vênus, nem mesmo
a concha do mar escapou, figurando acima da modelo no misto de objeto marinho e coroa. Vênus
posta à mostra naquilo exatamente que sempre fica escondido, seu interior. Se o mistério e o
inquietante eram o que a deusa guardava dentro de si, em seus devaneios, Stephen Hopkins
explora esses meios, liberando tais elementos à visualidade do observador.
317
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Imediatamente somos postos diante da Vênus dos médicos de Clemente Susini, na qual, a
Fig. 06 – Clemente Susini, Vénus des médecins. 1781-1782.
partir de uma escultura em cera, o aluno ou professor poderia desmontá-la até as últimas
entranhas para estuda-la. Um artefato científico certamente, mas com um grau de apresentação
extraordinário: pelos pubianos, colar, cabelos e uma pose graciosa. O rosto, inclusive faz alusão
à grande Vênus de Botticelli.
Trata-se de uma figura desmontável, para se estudar ou para o “médico metodicamente,
tranquilamente, ultrapassar os limites de sua carne” (DIDI-HUBERMAN, 1999:106). Desta
forma, podia chegar facilmente até as vísceras da figura feminina.
Fig-07 Papperitz Fritz Georg, Vênus. s/d. Coleção privada.
Provavelmente cabe à Vênus nada senão uma fuga, como no poema de Rilke, que corre
depois de vermo-la crescida4. Ou sozinha, melancólica e escondida, na imagem de Papperitz
Fritz Georg.
4
Poema de 1907, na tradução de Augusto de Campos: Esta manhã, depois que a noite inquieta / esmoreceu entre
urros, sustos, surtos – / o mar ainda uma vez se abriu e uivou. / E quando o grito aos poucos foi cessando / e do
alto o dia pálido emergente / caiu no vórtice dos peixes mudos – / o mar pariu. / Ao sol reluzem os pelos de
espuma / do amplo ventre da onda, em cuja borda / surge a mulher, alva, trêmula e úmida. / E como a folha nova
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Referências Bibliográficas:
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa : volume único. 1ed. Rio de Janiero: Nova Aguilar,
1995.
BÉNÉDITE, Léonce. Théodore Chassériau: sa vie et son oeuvre. 2tomes. Paris: Les Éditions
Braun, 1931
DIJKSTRA, Bram. Idols of Perversity: Fantasies of Feminine Evil in Fin-de-Siècle Culture.
Oxford: Oxford University Press, 1988.
FOCILLON, Henri. La peinture au XIX siècle. 1ed. Paris : Renouard, 1927.
JOUMOT, Paul. “La ‘Vénus Marine’ de Chassériau”. In La Revuede l’art ancient et moderne,
Paris. n.38, 1920.
PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Trad port. Philadelpho
Menezes. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
RILKE, Rainer Maria; CAMPOS, Agusto de. Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva,
2001.
que estremece, se estira e rompe aos poucos a clausura, / ela vai desvelando o corpo à brisa / e ao vento intacto
da manhã. / Como luas erguem-se os joelhos claros, / résteas de nuvem soltam-se das coxas, / das pernas caem
pequeninas sombras, / os pés se movem bêbados de luz, / vibram as juntas como gorgolhantes / gargantas. / Na
taça da bacia jaz o corpo, / como um fruto na mão de uma criança, / o estreito cálice do umbigo encerra / tudo o
que é escuro nessa clara vida. / Em baixo alteiam-se as pequenas ondas / que escorrem, incessantes, pelas ancas,
/ onde, de quando em quando, a espuma chove. / Porém, exposto, sem sombras, emerge, / como um maço de
bétulas de abril, / quente, vazio e descoberto, o sexo. / A balança dos ombros paira, ágil, / em equilíbrio sobre o
corpo ereto / que irrompe os longos braços fluindo / veloz pela cascata dos cabelos. / Então bem lentamente vem
o rosto: / da sombra estreita da reclinação / para a clara altitude horizontal. / Após o qual fecha-se, abrupto, o
queixo. / Eis que o pescoço surge como um fluxo / de luz, ou talo, de onde a seiva sobe, / e se estiram os braços
como o colo / de um cisne quando busca a ribanceira. / Então, da obscura aurora desse corpo, / ar da manhã, vem
o primeiro alento. / No fio mais tênue da árvore das veias / há como que um bulício e o sangue flui / a sussurrar
nas fundas galerias, / e essa brisa se expande: agora cresce / como todo o hausto sobre os peitos novos / que se
intumescem de ar e a impulsionam, – / e como velas côncavas de vento / levam a jovem para a praia. / Assim
aportou a deusa. / Atrás dela, pisando a terra nova, / lépida, ergueram-se toda a manhã / flores e caules, quentes,
perturbados, / como num beijo. E ela foi e correu. / Porém, ao meio dia, na hora mais intensa, / o mar se abriu de
novo e arremeçou / no mesmo ponto o corpo de um delfim. / Morto, roxo e oco. Cf. RILKE, Rainer Maria;
CAMPOS, Agusto de. Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2001. Pp 97-101.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
ROSENBLUM, Robert. 1900: art at the crossroads. New York: Harry N. Abrams, 2000.
ROSENTHAL, Léon. Du romantisme au réalisme. La peinture en France de 1830 à 1848.
Paris : Macula, 1987.
320
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
FUNDAÇÃO DE SÃO PAULO: A ORIGEM DA CIDADE REPRESENTADA POR
OSCAR PEREIRA DA SILVA E ANTÔNIO PARREIRAS
Michelli Cristine Scapol Monteiro*
Introdução
Esta comunicação pretende apresentar resultados obtidos durante a pesquisa para
elaboração da dissertação de mestrado, em desenvolvimento, na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP e financiada pela FAPESP. O objeto da dissertação é a obra Fundação de
São Paulo, realizada em 19071 por Oscar Pereira da Silva, e que, atualmente, encontra-se no
Museu Paulista da USP, inserida na exposição Imagens recriam história, na sala Imaginar o
início, dedicada às obras de arte que têm por tema momentos vinculados ao início da conquista
portuguesa na América.
A dissertação propõe demonstrar a inserção dessa pintura histórica como representação
relativa às origens urbanas de localidades do Brasil. E tem como objetivo específico traçar a
trajetória da Fundação de São Paulo e recompor, assim, o circuito social da tela, que inclui a sua
concepção/realização, recepção pela crítica, aquisição, musealização e sua difusão por meio de
reproduções.
A fim de compreender algumas dimensões de representações presentes na tela, sobretudo
no que diz respeito às figuras e o papel que desempenham na representação, propõe-se, neste
artigo, realizar uma leitura formal do quadro de Oscar Pereira da Silva, a partir de três eixos:
extensão de espaço que ocupa a tela, a estrutura da paisagem e a distribuição de personagens e
suportes de atividade humana, método esse proposto por Meneses2. Propõe-se também uma
comparação com a tela de título homônimo, realizada por Antônio Parreiras apenas seis anos
depois, procurando traçar o que há de divergências e convergências que possam indicar
caminhos para se refletir acerca do conceito de cidade que estas obras contribuíram para criar.
A fundação como tema
1
A bibliografia sempre indicou o ano de 1909 como data da tela. Porém, como ficou demonstrado no artigo
“Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva: a construção de uma representação urbana na pintura
histórica” apresentado no Simpósio Nacional de História, em julho de 2011, a tela foi finalizada e exposta ao
público em 1907.
2
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de . Benedito Calixto como documento: sugestões para uma releitura histórica. In:
D. Sala. (Org.). Benedito Calixto: memória paulista. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1990, v. , p. 37-47.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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As telas históricas aqui são entendidas como representação, como propôs Roger Chartier3,
sentido oposto àquele comumente estabelecido no processo de apropriação dessa tipologia de
obras de arte em museus históricos do final do século XIX e início do XX, isto é, que seriam
uma “janela para o passado” (BREFE, 2005). Não são obviamente documentos do evento nelas
retratado, e sim fontes de informação do imaginário de sua própria época de concepção ou
apropriação, já que servem de plataforma de observação da sociedade que a produziu e consumiu
(MENESES, 1992: 24). Por isso, a análise formal e comparação das telas são de grande
relevância, já que permitem refletir sobre as representações das origens da cidade elaboradas no
início do século XX de modo a ressaltar, para além de suas diferenças, suas escolhas
convergentes.
Durante o Oitocentos, foi recorrente a utilização de obras de arte a fim de comunicar
valores cívicos. O universo das imagens constituía um campo fértil para fixar sínteses simbólicas
de alto impacto, uma vez que as telas eram consideradas suporte nobre e adequado de
documentação de episódios da História em museus (MENESES, 1990: 44). Nesse sentido, a
história e a arte eram as ferramentas com as quais certos agentes sociais inventavam tradições e
formulavam a história do país. Dessa maneira, historiadores de então fundamentavam
cientificamente uma “verdade” desejada, enquanto os artistas criavam crenças que encarnavam
num corpo de convicções coletivas. A história e a arte se imbricavam, assim, numa imanência
genética de seus criadores (COLI, 2005: 31).
A pintura histórica serviu para a construção de mitos e heróis, bem como para retratar
momentos considerados importantes, sobretudo, os inaugurais, da história nacional. Nesse
sentido, a obra de Victor Meirelles, Primeira missa no Brasil, de 1860, é exemplar, pois ela cria
uma imagem do que teria sido o ato primordial da origem da nação brasileira. Europeus, índios e
a fé católica se fundiam na tela, selando o início de um processo histórico de conquista mediado
pela fé civilizadora. Esse encontro, que ocorre em meio à natureza, serviu de modelo a muitos
artistas, principalmente para os que representaram a fundação de núcleos urbanos, tema
recorrente nas encomendas e aquisições públicas desde fins do século XIX.
Em 1881, Firmino Monteiro fez a Fundação da Cidade do Rio de Janeiro, que se encontra
no Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Em 1900, Benedito
Calixto pintou Fundação de São Vicente, obra pertencente ao Museu Paulista, e, vinte e dois
3
Segundo Chartier, as representações do mundo são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam,
por isso são importantes mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo
social. Dessa maneira, a percepção do social não se constitui de discursos neutros a as representações são
matrizes de discursos e de práticas diferenciadas que têm por objetivo a construção do mundo social e a
definição das identidades. Portanto, investigar representações permite reconhecer os mecanismos de disputa
ideológica.
322
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
anos depois, recuperou o tema com Fundação de Santos, tela central do painel da Bolsa do Café
em Santos. Theodoro Braga, em 1908, fez Fundação da cidade de Belém, que hoje pertence ao
Museu de Arte de Belém. Em 1909, Parreiras pintou a Fundação de Niterói, e quinze anos
depois, um tríptico sobre a História do Rio de Janeiro, no qual se encontra a tela Fundação da
cidade do Rio de Janeiro.
A mobilização simbólica foi particularmente importante no Brasil em momentos de
transformação política. Dessa maneira, segmentos das elites dirigentes paulista já no período
republicano brasileiro pretenderam reformular a história pátria, distinguindo-a do que havia sido
postulado durante a monarquia, período em que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) era responsável pela história oficial, enquanto a Academia Imperial de Belas Artes
(AIBA) criava o arsenal simbólico. Com a mudança no jogo de poder e nos protagonistas
políticos, agora centrados em São Paulo, pretendeu-se acabar com o monopólio simbólico
exercido até então pelo Rio de Janeiro e estabelecer uma versão paulista da história.
Havia, portanto, um esforço para conceber o que seria o caráter específico dos paulistas
diante dos brasileiros. Fato nítido nos escritos históricos, nas telas adquiridas e encomendadas
pelo governo, bem como nos monumentos erigidos na cidade. Buscava-se, assim, traçar uma
identidade característica a São Paulo cuja população (e sobretudo suas elites) seria protagonista
da história brasileira, que estava em processo de elaboração nos meios intelectuais e artísticos do
estado desde o final do século XIX, tendo como grande articulador e difusor o Instituto Histórico
e Geográfico de São Paulo (IHGSP) 4 e o Museu Paulista5.
Assim, o tema da origem da cidade de São Paulo também ganhou destaque. Oscar Pereira
da Silva dedicou-se ao menos duas vezes a ele: primeiro, com Fundação de São Paulo, e, em
1926, com A catequese do Brasil pelos jesuítas6, obra pertencente à Igreja da Consolação.
Antônio Parreiras também possui duas telas com esse tema: Fundação de São Paulo e
Instituição da Câmara Municipal da São Paulo, ambas encomendadas pelo prefeito da cidade,
Raymundo Duprat, em 1913.
4
O instituto foi fundado em 1894 e pretendia criar uma especificidade paulista, que fosse imposta à nação. Sobre o
IHGSP ver FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870 –
1940). São Paulo: Editora Unesp, 2002.
5
O Museu ganhou um caráter eminentemente histórico a partir da gestão do diretor Afonso E. Taunay, em 1917,
que reformula a expografia do museu, transformando-o em um verdadeiro livro ilustrado que conta a história do
país. Sobre o Museu Paulista ver BREFE, Ana Claudia Fonseca. Museu Paulista, Affonso de Taunay e a
memória nacional (1917 – 1945). São Paulo: Editora Unesp: Museu Paulista, 2005.
6
Essa tela aparece com títulos distintos nas documentações consultadas. Em TARASANTCHI, Ruth Sprung. Oscar
Pereira da Silva. São Paulo: Empresa das artes, 2006, p. 84 a obra aparece com o título de Fundação de São
Paulo. Contudo, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo o nome atribuído é o A catequese
do Brasil pelos jesuítas IN Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, volume XXXVII, 1939, p.
595. Optei por utilizar o título atribuído pela revista, contudo, considerando-a como um quadro que retrata o
início de São Paulo.
323
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Esses dois artistas que retrataram a origem do que viria a ser a cidade de São Paulo eram
fluminenses e haviam estudado na AIBA. Oscar Pereira da Silva7 completou seus estudos nessa
instituição tendo, em seguida, recebido o último prêmio de viagem do imperador D. Pedro II, que
financiou seu aperfeiçoamento em Paris. Ao voltar para o Brasil, estabeleceu-se em São Paulo,
onde desenvolveu uma profícua carreira, marcada, sobretudo, por encomendas públicas que,
ainda hoje, estão expostas em locais importantes da cidade, como igreja da Consolação, igreja
Santa Cecília, Vila Penteado (atual FAU Maranhão), Teatro Municipal, antigo Palácio do
Governo e Museu Paulista.
Antônio Parreiras8 interrompeu seus estudos na AIBA para compor o “Grupo Grimm”, que
se dedicava à pintura de paisagem, gênero privilegiado pelo pintor na maior parte de sua carreira.
O sucesso financeiro como pintor paisagista se deu justamente em São Paulo, com as
encomendas que recebia de personalidades importantes, como Júlio de Mesquita e Veridiana
Prado. Parreiras tornou-se inclusive crítico de arte do jornal O Estado de São Paulo, sob o
pseudônimo de La Vigne (LEVY, 1981: 32). Passou também a executar quadros históricos
encomendados pelos governos estaduais, com grande ênfase ao tema das fundações
(SALGUEIRO, 2002: 9).
É possível, portanto, notar o papel marcante da capital paulista para esses artistas
fluminenses. Além disso, as telas Fundação de São Paulo foram obras de grande destaque em
suas trajetórias, e constituíram marcos simbólicos fundamentais para o estabelecimento da
origem da Paulicéia. Os dirigentes paulistas estavam cientes da necessidade política de destacar
o papel da cidade nos destinos nacionais. O viés de encadeamento histórico, de sentido
glorificador e capaz de evidenciar a predestinação de São Paulo à condução do país, vinha sendo
enfatizada pelo IHGSP (MARINS, 2003: 11; FERREIRA, 2002: 97). Dessa maneira, tornou-se
premente estabelecer um marco visual sobre origem do que viria a ser a cidade de São Paulo.
A análise dessas obras, portanto, não deve se desvencilhar da conjuntura em que elas
foram produzidas, sendo necessário recuar diante das identidades ilusórias que sua temática e sua
apropriação social criou, para compreender a arte desse período. É importante questionar os
mecanismos interpretativos que essas obras de arte contribuíram para montar, procurando
entender as teias tecidas por este imaginário. (COLI, 2005: 22)
7
8
Sobre a vida e obra de Oscar Pereira da Silva, ver TARASANTCHI, Ruth Sprung. Oscar Pereira da Silva. São
Paulo: Empresa das artes, 2006.
Sobre a vida e obra de Antonio Parreiras, ver LEVY, Carlos Roberto Maciel. Antonio Parreiras (1860-1937):
pintor de paisagem, gênero e história. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1981 e SALGUEIRO, Valéria. Antonio
Parreiras: notas e críticas, discursos e contos: coletânea de textos de um pintor paisagista. Niterói: EdUFF,
2000.
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As formas da origem
A leitura formal dessas telas parte do método proposto por Meneses que, ao analisar a
Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto, indicou três aspectos fundamentais. Em primeiro
lugar, a extensão que ocupa a tela, o seu enquadramento e a disposição geral dos componentes
representados. Em seguida, como está estruturada a paisagem, o papel que exerce na composição
e quais são os elementos distintivos do local. Por fim, a distribuição das figuras, a hierarquia
proposta e os suportes de atividade humana. Este último aspecto constitui o foco primordial de
análise e comparação das obras neste trabalho.
As duas telas representam a fundação por meio da cerimônia religiosa ocorrida a 25 de
janeiro de 1554. Na obra de Oscar Pereira da Silva [fig.1], o espaço é muito amplo, o que se
verifica pela grande quantidade de figuras representadas, distribuídas de maneira proporcional
pelo quadro. O espaço propõe uma hierarquização, já que coloca a cena do benzimento em
posição topograficamente elevada e ao centro da tela. Já na obra de Parreiras [fig.2] não há uma
centralização na distribuição dos elementos, o lado direito é mais repleto de figuras e detalhes.
A paisagem não exerce uma função demarcatória em ambos os quadros, o único elemento
natural que sugere alguma identificação do local é o rio Tamanduateí que, na obra de Pereira da
Silva, encontra-se no canto esquerdo, ao fundo da tela, enquanto na de Parreiras, apesar de
ocupar uma posição central, não está em destaque. A natureza não oferece perigo, ao contrário,
ela serve de cenário. Na obra de Parreiras, as árvores estão concentradas ao lado direito e
envolvem o altar, substituindo a igreja que seria posteriormente construída ali. Em Pereira da
Silva, as árvores estão distribuídas pela tela, uma delas envolve a cruz feita de madeira, como
uma moldura natural. Enquanto a cruz central e dourada está envolvida por nuvens, que lhe
atribuem um caráter celestial. É possível notar, ao lado direito, uma estrutura feita de madeiras e
folhagens, que sugere o início da construção da vila.
As telas utilizam três tipos sociais: os índios, os brancos colonizadores e os jesuítas, que
representam tanto a Igreja Católica quanto a coroa portuguesa. As figuras, em Pereira da Silva,
são em maior número e há uma clara hierarquização no espaço que ocupam na tela. Os índios
encontram-se nas partes periféricas e menos iluminadas, envolvendo a cena principal, enquanto
os europeus estão ao centro, destacados tanto por estarem em nível elevado quanto pela
incidência de luz. Na tela de Parreiras, no entanto, não há uma distinção hierárquica da posição
das figuras tão evidente. Há um destaque para a figura de Manuel de Paiva, padre que reza a
missa, pois ele está no altar, um pouco acima das demais figuras e destacado pela luz. Não há, no
entanto, uma diferenciação entre o europeu e o índio, já que estão lado a lado, em primeiro
plano, embora o colonizador esteja ajoelhado.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Nas duas telas há uma distinção na atuação das personagens, pois a atividade está
concentrada nas mãos dos jesuítas, que celebram a cerimônia. Enquanto os índios são marcados
por uma atitude de passividade [fig. 3 e 4] que, no entanto, é bem mais evidente na obra de
Pereira da Silva. Nesta, os índios não demonstram nenhuma resistência à cultura estrangeira, eles
a aceitam pacificamente, como se a reconhecessem instintivamente. Nota-se essa submissão,
sobretudo, pela posição de seus corpos, que se curvam à medida que se aproximam da cruz.
Enquanto os europeus, eretos ou ajoelhados, encontram-se em posição altiva. Esta diferenciação
não está presente na obra de Parreiras, pois o índio está também em pose elevada e imponente,
sobretudo pelos braços cruzados que marcam sua presença sem, no entanto, demonstrar oposição
ou resistência, pois seus olhos estão fechados em sinal de compreensão [fig.5].
É importante notar que, nos dois quadros, alguns índios são atraídos pela cerimônia, por
isso, sobem pela trilha, como em Pereira da Silva [fig.6], ou precisam transpor a barreira imposta
pela colina onde se situaria o colégio, como em Parreiras [fig.7]. Há, portanto, um movimento de
elevação para que alcancem a religião, a transcendência, é o sentido da catequização. A subida
representa também o movimento para que possam constituir o povo que estava se originando ali.
Nesta última tela, os nativos que percorrem esse caminho são muito distintos daquele que ocupa
o primeiro plano, sobretudo, porque se encontram nus, com os corpos curvados e disformes, sem
estarem bem delineados.
As duas versões
Ao analisar as duas telas denominadas Fundação de São Paulo foi possível perceber
semelhanças nos três níveis de análise, que são fundamentais para determinar o conceito de
cidade que possibilitam inferir. Este não reside em alguma propriedade espacial, pois não há
circunscrição de território, nem estrutura insígnia. Até mesmo o rio Tamanduateí, tomado no seu
valor funcional, é muito discreto. Percebe-se, portanto, que a origem do que viria a ser a cidade
aparece no nível simbólico, como apropriação social do território, por meio da união do branco
com índio, tendo a religião como elemento unificador. As telas criavam, assim, uma imagem da
origem de São Paulo que era, por extensão, de toda a nação. Contudo, há distinções
fundamentais e evidentes entre as duas telas, no que diz respeito à composição geral e,
sobretudo, à disposição das figuras, que merecem ser ressaltadas.
A obra de Oscar Pereira da Silva é nitidamente tributária da Primeira Missa no Brasil
[Fig.8], tela de Victor Meirelles, principalmente pela disposição formal dos elementos na tela.
Em primeiro lugar, pela extensão que ocupa a tela, que agrega uma grande quantidade de figuras
e dispõe o ato religioso ao centro, com desnível topográfico e com grande destaque da cruz.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Além disso, há muitas semelhanças na paisagem. Nas duas, há uma pequena árvore isolada à
esquerda, seguida de uma massa arbórea mais ao centro, há também ramos na parte inferior da
tela e uma grande árvore à direita, único elemento que Oscar Pereira da Silva modifica ao
substituir por uma estrutura de madeira e folhagens. Isso tudo difere sobremaneira da obra de
Parreira que, apesar de incluir todos esses elementos, apresenta uma composição muito distinta.
Reduz significativamente o número de figuras, principalmente de índios, concentrando a cena. A
cerimônia religiosa, a cruz e as árvores estão em destaque, contudo, não ocupam o centro da tela
e estão apartados do restante das figuras.
Na obra de Meirelles e Pereira da Silva a ordenação do quadro é estabelecida por uma
força centrípeta, que dispõe todos os elementos em torno da cena central. As figuras são
compostas por homens, mulheres e crianças, que integram a cerimônia, porém sem exercerem
um papel ativo. Apenas seguem o que lhes é imposto, sem qualquer sinal de resistência na ação,
na disposição dos corpos e na função que desempenham ao povo que está se constituindo. A obra
de Parreiras apresenta as figuras de maneira radicalmente diferente, já que fica evidente a
importância do índio, que ganha destaque no primeiro plano. Sua presença não é marcada pela
mera aceitação e submissão, como nas telas anteriores, mas como protagonista dessa história. Ele
e o europeu – possivelmente Tibiriçá e João Ramalho9 – são os progenitores do povo paulista,
por isso se encontram lado a lado, o que indica uma simbiose de valores e não uma imposição. A
distinção na pose e no tratamento pictórico entre o índio do primeiro plano e os que chegam ao
longe é muito significativa, já que demonstra a clivagem entre o patriarca da elite paulista e o
restante da população. Interessante observar que a origem da vila e do povo não possui uma
conotação demográfica, mas simbólica, que acentua a presença masculina, visto que não há
mulheres.
As distinções formais entre as telas que representam a origem de São Paulo podem ser
explicadas por suas trajetórias. Oscar Pereira da Silva despendeu recursos próprios para a feitura
do quadro, objetivando vende-lo ao Estado. Utilizou-se, para tanto, um modelo conhecido que já
compunha o imaginário social sobre como teria se dado o ato primordial da nação brasileira.
Dessa maneira, a obra de Pereira da Silva pretendia ser a versão paulista para a aurora da nação,
reinaugurando um marco estabelecido décadas antes por Meirelles, porém destacando o
protagonismo de São Paulo na história nacional. O início da nação teria, assim, se dado em solo
paulista, imagem que está de acordo com os ditames do IHGSP, que afirmara, em sua publicação
9
Os documentos e a bibliografia consultados não estabelecem um consenso sobre quem seriam essas duas
personagens. Comparando com a outra tela de Parreiras, Instituição da Câmara Municipal de São Paulo, parece
indicar que o europeu seria João Ramalho. Com relação ao índio, em alguns momentos aparece o nome de
Caiuby e em outros Tibiriçá.
327
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
inaugural, que “a história de São Paulo é a própria história do Brasil” 10. A tela, quando foi
adquirida pelo governo estadual, passou a desempenhar o papel para a qual que foi concebida.
No entanto, paralelamente ao enaltecimento geográfico do estado que acolhera as
primeiras vilas brasileiras na costa e no sertão, São Vicente e São Paulo, surgiram as propostas
de ressaltar o papel desempenhado pelas elites locais e regionais nos destinos paulistas e do
próprio país. Há um esforço, portanto, de enaltecimento da raça, síntese entre gentio e
colonizador. Sem, no entanto, ser um índio qualquer, sem nome, sem expressão e sem atuação.
Há uma tentativa de nomear o nativo e indicar sua contribuição na constituição do povo paulista.
O IHGSP e o Museu Paulista foram justamente os órgãos que promoveram a recuperação
documental idealizada das elites ancestrais de São Paulo.
O esforço de historiadores e genealogistas era transformar os paulistas sertanejos nos
míticos bandeirantes. Por isso, era fundamental estabelecer uma coesão das camadas dirigentes,
que as distinguissem dos demais brasileiros. Luiz Gonzaga da Silva Leme, em Genealogia
paulistana, obra monumental de nove volumes publicados na primeira década do século XX,
enfatizou justamente a ascendência indígena – tupi e também tapuia – de grande parte das
famílias paulistas mais proeminentes dos tempos das bandeiras e também da cafeicultura
(MARINS, 2003: 12). Por isso, além de estabelecer o marco e origem da nação brasileira em
solo paulista, proposto por Pereira da Silva, era fundamental indicar a gênese da parentela da
elite de São Paulo. Isso corrobora a encomenda de um novo quadro com a temática da fundação
de São Paulo, que ressalta justamente os patriarcas paulistas, em primeiro plano.
Dessa maneira, pode-se dizer que as duas versões da origem da Paulicéia se coadunam e
se complementam. A análise permitiu destacar semelhanças e diferenças de duas telas centrais na
produção da pintura histórica no estado de São Paulo, permitindo, a partir de suas formas,
compreender o papel diferenciado e complementar que desempenharam no âmbito social. Foram,
como quer Meneses (2003: 15), agenciadoras, uma vez que provocaram efeitos, produziram e
sustentaram formas de organização social, tornando materiais as dimensões de organização e
atuação do poder.
Bibliografia
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10
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328
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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_________, Roger. A história cultural: entre práticas e representações, Lisboa: DIFEL, 1990.
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Imagens
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2011
Imagem 1
Oscar Pereira da Silva, Fundação de São Paulo, 1907. Óleo sobre tela, 185 x 340 cm
Acervo Museu Paulista, São Paulo (desde 1929 - transf. Pinacoteca do Estado)
Foto de José Rosael e Helio Nobre
Imagem 2
Antonio Parreiras, Fundação de São Paulo, 1913. Óleo sobre tela, 200 x 300 cm. Prefeitura de
São Paulo.
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Imagem 3
Imagem 4
Oscar Pereira da Silva, Fundação de São
Paulo, 1907. Óleo sobre tela, 185 x 340
cm Acervo Museu Paulista, São Paulo.
(detalhe) Foto de José Rosael e Helio
Nobre
Oscar Pereira da Silva, Fundação de São
Paulo, 1907. Óleo sobre tela, 185 x 340
cm Acervo Museu Paulista, São Paulo.
(detalhe) Foto de José Rosael e Helio
Nobre
2011
Imagem 5
Antonio Parreiras, Fundação de São
Paulo, 1913. Óleo sobre tela, 200 x 300
cm. Prefeitura de São Paulo (detalhe)
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Imagem 6
Oscar Pereira da Silva, “Fundação de São
Paulo”, 190 Oscar Pereira da Silva,
Fundação de São Paulo, 1907. Óleo sobre
tela, 185 x 340 cm Acervo Museu Paulista,
São Paulo. (detalhe) Foto de José Rosael e
Helio Nobre
Imagem 7
Antonio Parreiras, Fundação de São Paulo, 1913. Óleo sobre tela,
200 x 300 cm. Prefeitura de São Paulo (detalhe)
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Imagem 8
Victor Meirelles, Primeira missa no Brasil, 1860. Óleo sobre tela, 268 x 356. Museu Nacional
de Belas Artes, Rio de Janeiro.
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2011
A STORIA DELLA MUSICA NEL BRASILE DE VINCENZO CERNICCHIARO (1926)
Mónica Vermes
Este trabalho é parte de um projeto mais amplo que tem como assunto a cena musical do
Rio de Janeiro entre 1890 e 1920. “Cena musical” é entendida como o conjunto das práticas,
pessoas, repertórios, espaços e instituições envolvidos em atividades musicais, incluindo tanto a
música erudita quanto a música popular, realizada de forma profissional ou amadora, em âmbito
público ou privado. A extensão e complexidade desse assunto exigem recortes precisos para
torná-lo abordável, o que vimos fazendo em vários trabalhos. Esses diferentes recortes têm
procurado lançar um olhar sobre a atividade musical no Rio de Janeiro no período em questão
que evite dicotomias tradicionais como erudito vs. popular, de elite vs. relacionado às camadas
mais baixas da sociedade, procurando elucidar as características peculiares desse ambiente
musical. Neste texto propomos a análise da representação desse meio musical empreendida por
uma personagem que participou muito ativamente dessas atividades.
A Storia della Musica nel Brasile: dai tempi coloniali sino ai nostri giorni [ou História
da Música no Brasil: dos tempos coloniais até nossos dias] de Vincenzo Cernicchiaro (18581928) é uma obra alentada (617 páginas) publicada em Milão em 1926. Cernicchiaro, italiano de
nascimento, transferira-se para o Brasil ainda criança e, depois de um retorno à Itália para
concluir seus estudos musicais, instalou-se definitivamente no Rio de Janeiro, onde viveu até sua
morte. No Rio, Cernicchiaro participou de algumas das mais importantes iniciativas musicais,
como o Club Mozart e o Club Beethoven, nos quais atuou como violinista e regente, o Instituto
Benjamin Constant e Instituto Nacional de Música, onde atuou como docente. Seu intenso
envolvimento com o meio musical carioca e com seus atores torna os capítulos de sua Storia
dedicados à música brasileira desde o final do segundo império até a data de sua publicação um
documento precioso pelo registro de uma grande quantidade de pessoas ligadas ao meio musical,
escolas e associações que não ficaram registrados em nenhuma outra obra do gênero. O livro está
organizado pela superposição de cortes cronológicos (1549-1763, 1844-1889, por exemplo) e
cortes por especialidade musical (cantores, pianistas, violinistas, compositores de música lírica,
sinfônica e de câmara, por exemplo). O livro de Cernicchiaro está crivado de imprecisões: datas

Programa de Pós-Graduação em Artes, Programa de Pós-Graduação em Letras e Departamento de Teoria da Arte e
Música da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora no Núcleo de Estudos Musicológicos
– UFES.
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erradas, lugares confundidos, nomes redigidos de forma criativa, mas seu interesse encontra-se
para além dessas limitações, seu esforço em organizar a vastidão da atividade musical de seu
tempo (deixaremos de lado aqui o relato de períodos anteriores) nos permite observar seu
testemunho de um cenário musical em transformação. Neste trabalho nos concentraremos em
alguns aspectos da obra de Cernicchiaro: a música popular e os gêneros de teatro ligeiro, a
atividade musical (profissional e amadora) das mulheres, e a relação entre músicos solistas
virtuoses e músicos de orquestra.
O olhar que Cernicchiaro lança sobre a cena musical carioca registra nomes, relações,
eventos que não foram registrados em outras fontes. Cernicchiaro nos revela, assim, um elenco e
uma coreografia que povoam uma cena que, em obras posteriores da mesma natureza, vai
ficando rarefeita, ocupada por uma dezena de notáveis. Mas é importante também estar atento ao
que Cernicchiaro não diz sobre a cena musical carioca: categorias de músicos e gêneros
musicais, por exemplo, que sequer são citados, e é importante também estar atento ao que
Cernicchiaro diz e que pode passar despercebido por estar naturalizado, cristalizado numa forma
de ver e entender o fazer musical: uma verticalização entre gêneros e práticas musicais ancorada
num entendimento particular do que seja a música.
A opinião de Cernicchiaro a respeito dos gêneros de teatro ligeiro manifesta-se de duas
formas: a condescendência com relação a uma categoria musical considerada inferior,
despretensiosa e que não demandava uma sólida formação de seus praticantes e o profundo
desprezo pelo complexo constituído pelos teatros que se dedicavam especialmente a esse tipo de
música, o apelo sensual das cantoras/atrizes, o público que o frequentava. As opiniões do
primeiro tipo aparecem em comentários como os que dirige aos compositores Henrique Alves de
Mesquita (1830-1906) e Abdon Milanez (1858-1927). De Henrique Alves de Mesquita diz que,
quando jovem, escrevia “sem os conselhos judiciosos de mestres competentes, belas e graciosas
composições” ... “graciosas peças dançantes, romanças para canto, fantasias e temas variados
para corneta a pistom ..., produções inferiores”, que compara com algumas obras “sérias” saídas
de sua pena. Conclui a avaliação do compositor dizendo que “apesar [do] sucesso, de seu belo
talento para compor com facilidade, do bom gosto da frase, do valor, enfim, de suas melodias
espontâneas, não soube jamais imprimir durante o longo curso de sua vida, uma forma diversa à
sua carreira de compositor: passou sem energia e sem tenacidade, ao ostracismo...”, (p. 309-311).
Ao falar de Abdon Milanez, trata-o como compositor de trabalhos de “modesta expressão”, e de
quem “[a] crítica complacente dedicou-se a louvar [uma] partitura em um ato, falta de recursos
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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elementares da arte, e adorno apenas de melodias gentis e espontâneas”, (p. 272-273). As
opiniões do segundo tipo, ou seja, dedicadas ao complexo espaço/repertório/pessoas ligadas ao
teatro ligeiro, aparecem explicitadas no capítulo XVI, dedicado à opereta, no qual a descrição do
Teatro Alcazar merece uma citação mais longa:
Aquelas mulheres, cuja idealidade tinha em mira o comércio vulgar da luxúria, haviam
transformado o Alcazar em habitação artística de constelações mundanas. / Tudo ali era
falso – dizia um crítico da época – da porta de entrada até os camarins, onde as artistas
sedutoras do áureo firmamento esperavam ansiosas pelo momento no qual pudessem pôr
em evidência diante do público suas malhas cor da pele e a graça pornográfica de seus
próprios movimentos lascivos. (CERNICCHIARO, 1926, p. 294)
Cernicchiaro delimita o capítulo dedicado à opereta aos anos entre 1858 e 1889,
desprezando as atividades do teatro musical ligeiro, ou apenas citando algumas obras ao falar dos
compositores, durante o período republicano. Essa delimitação poderia sugerir um esgotamento
do gênero, que teria levado a seu desaparecimento. O que ocorre, no entanto, é o oposto. Os
gêneros do teatro ligeiro – opereta, mágica, burleta, revista, vaudeville – ganham um ímpeto
cada vez maior e uma presença cada vez mais expressiva como forma de lazer das massas
urbanas.
Henrique Alves de Mesquita, um dos compositores que tomamos como exemplo do tom
condescendente adotado com relação à qualidade da música do teatro ligeiro, reaparece em
vários capítulos do livro, em cada ocasião sendo tratado da perspectiva de uma competência
diferente (no capítulo XIII, dedicado à Ópera Nacional; no capítulo XIV, dedicado à Arte Lírica
Italiana; no capítulo XVI, dedicado à Opereta; no capítulo XVII, dedicado aos Compositores
Brasileiros na arte Lírica, Sinfônica e de Câmara e no capítulo XVIII, dedicado aos
Compositores Diletantes na Música Pianística, Melodramática e Popular). Esse “fatiamento” da
atividade do compositor isola cada uma das instâncias de sua produção, sugerindo uma
independência/autonomia de cada uma delas. Enfatiza-se assim uma verticalização de gêneros
musicais que, como veremos adiante, reproduz-se também com relação a atividades musicais.
Cernicchiaro, comparado com outras sínteses da história da música brasileira escritas ao
longo do século XX, é aquele que mais documenta a atividade musical feminina. Longas listas
de cantoras (estrangeiras de passagem pelo Brasil e brasileiras), pianistas, organistas, violinistas,
flautistas e violoncelistas; ocasionais menções a composições musicais de mulheres e abundante
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2011
registro de atividades docentes, como tutoras privadas, como professoras de escolas oficiais,
como o Instituto Nacional de Música, e como donas e administradoras de escolas de música,
como a Escola de Música Figueiredo-Roxo, fundada em 1914 pelas irmãs Suzana, Helena e
Sílvia de Figueiredo e Celina Roxo, todas pianistas.
Parte dos registros feitos por Cernicchiaro reflete um destino bastante típico, na época,
para mulheres que estudavam música: a cantora Clotilde Maragliano, que fez uma brilhante
carreira na Europa, encerrada quando, depois de passar longa temporada no Rio, “torna-se
esposa afetuosa de um homem digno dela” (p. 266); Carmita Campos, “a violinista mais
glorificada pelo público e pela crítica de seu tempo”..., “a gentil jovem, logo roubada da arte para
se dedicar aos cuidados domésticos” (p. 479-480) e a também violinista Noêmia de Oliveira,
“também este talento emergente, poucos anos depois de seu triunfo, tomou marido, e, toda
dedicada aos cuidados domésticos e ao afeto do consorte, retirou-se da arte” (p. 480).
Cernicchiaro não evidencia nenhuma estranheza na dedicação profissional de mulheres à
música e relata com a mesma neutralidade as carreiras de pianistas da música erudita como
Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro e de uma multi-profissional na área da música teatral
ligeira e popular como Chiquinha Gonzaga, a quem se refere em várias ocasiões ao longo do
livro e que descreve como “popularíssima compositora, ..., cuja produção de peças dançantes
atingiu um número considerável, [e que] escreveu peças belíssimas com seu engenho fácil e
pronto...” (p. 343). Se observamos o tom tipicamente condescendente dedicado às peças mais
despretensiosas, não podemos dizer o mesmo se dê pelo fato de ser uma mulher, os compositores
homens dedicados a esses gêneros musicais são tratados da mesma forma.
Cabe notar, no entanto, a observação feita por Cernicchiaro à proporção entre alunos e
alunas no Instituto Nacional de Música revelada pelas estatísticas relativas ao ano de 1920:
segundo ele, certamente com algum exagero nos números, havia 900 alunas mulheres e 20
alunos homens (p. 595). A referência a essa desproporção faz eco às constatações e queixas
publicadas por Leopoldo Miguez em seu Relatório sobre os Conservatórios de Música Europeus
de 1897, quando era diretor do Instituto de Música. Nesse relatório Miguez identifica a grande
desproporção entre o número de alunas e alunos (com uma presença muitíssimo mais numerosa
das primeiras) como um dos problemas do Instituto, uma vez que as mulheres não seriam
candidatas naturais à profissão de músico de orquestra.
Os músicos de orquestra são, de forma geral, uma categoria ausente no livro de
Cernicchiaro. Nos capítulos dedicados aos instrumentos típicos da orquestra há um destaque ao
solistas (quase exclusividade). Os capítulos XIV e XV tratam, respectivamente, dos “violinistas
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2011
virtuoses nacionais e estrangeiros” e dos “violinistas célebres ouvidos no Rio de Janeiro no
último período”. Nos capítulos seguintes, dedicados aos outros instrumentos de cordas da
orquestra, aos instrumentos de sopro e à harpa e aos harpistas o foco central é a atividade solista,
a participação em orquestras ou bandas aparece – ocasionalmente – como atividade secundária.
Dos cerca de quinhentos músicos em atividade no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o
século XX citados por Cernicchiaro, menos de quarenta aparecem associados a atividades em
orquestras ou bandas. O autor chega a queixar-se dos músicos de orquestra dizendo que
“Virtuoses eméritos de piano, de violino, etc., depois de um triunfo juvenil regular, são
condenados ao exercício da música inferior, executada, sem convenções, em lugares públicos,
para suprir as necessidades naturais da vida” (p.612). Evidenciando as limitações desse meio
para o exercício profissional da música, o que levava a constituir-se uma sub-categoria
profissional.
Seguido por outras sínteses históricas que dentro da mesma tradição, às quais serviu
como base em alguma medida, e que apresentam um crescente cuidado com a precisão factual,
Cernicchiaro foi sendo deixado de lado como obsoleto na ilusão de que empreitadas posteriores
possuíam a objetividade que lhe faltava. Hoje podemos perceber com clareza quanto outras obras
que se lhe seguiram estão marcadas – como não poderia deixar de ser – por sua temporalidade e
peculiar anacronismo. Parece-nos momento oportuno para retomar essa fonte e explorar o que
nos ensina sobre a vida musical carioca de seu tempo nesses dois planos: o que registra em suas
páginas e o que revela em sua estrutura e no que omite.
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2011
FONTES PARA UMA HISTÓRIA DA PINTURA PAULISTA DO SÉCULO XVII AO
XIX: OS PINTORES, AS OBRAS E OS RESTAUROS.
Myriam Salomão
A pintura paulista produzida entre o final do século XVII e metade do XIX carece de
estudos gerais quanto à autoria, cronologia, iconografia, inventário das obras e nos modelos que
circularam e influenciaram essa produção.
A pesquisa em andamento é um inventário das pinturas existentes em São Paulo, Santos,
São Roque, Embu, Itu e Mogi das Cruzes em coleções, nos acervos de museus, instituições
diversas e nas igrejas instaladas nessas cidades a partir dos séculos XVII e XVIII.
Consequentemente, enfoca os trabalhos atribuídos a Jesuíno do Monte Carmelo e José Patrício
da Silva Manso, nomes que aparecem com frequência atuando nestas cidades juntamente com o
ituano Miguel Dutra, profundo admirador de Jesuíno do Monte Carmelo outros quase
desconhecidos, de quem nos chegaram informações imprecisas ou pouco estudados, mas que
deixaram suas marcas na produção do período como José Jorge Pinto Vedras que criou e atuou
na primeira escola de pintura em São Paulo entre os anos de 1846 e 1864.
Conforme já apontado em texto anterior (SALOMÃO; TIRAPELI, 2001, p.90-117), há
poucos estudos sistematizados no caso da produção pictórica de São Paulo, principalmente sobre
sua origem, relações de produção, aprendizado, mercado da arte, além dos problemas citados
acima. Ou seja, também enfrenta problemas já observados há muitas décadas por Hannah Levy
(1997, p.177) em relação à pintura colonial fluminense, e que se repetem para as pinturas
baianas, nordestinas e mineiras, apesar das pesquisas realizadas por Carlos Ott (1982), por
Clarival do Prado Valladares (1981 e 1998), por Carlos del Negro (1978) e por Myriam Andrade
Ribeiro de Oliveira (1982 e 2003).
Há poucos estudos sistematizados no caso da produção pictórica de São Paulo,
principalmente sobre sua origem, relações de produção, aprendizado e mercado da arte. Foram
estudadas em separado algumas personalidades de artistas que atuaram com mais destaque nas
principais vilas e cidade do estado São Paulo nesse período. É o caso da monografia realizada
por Mário de Andrade (1945) sobre o padre Jesuíno do Monte Carmelo, recentemente ampliada e
comentada por Elza Ajzenberg (2003) e atualizada por Eduardo T. Murayama na sua dissertação
de mestrado no que diz respeito às pinturas da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo

Doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, Mestre em Artes
Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP e licenciada em Artes Plásticas e Música pela mesma
instituição.
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(2010). Novos estudos de Maria Lucília Viveiros Araújo (1997) e Maria Lúcia B. Fioravanti
(2006) têm revelado a obra de José Patrício da Silva Manso e de pintores que atuaram para os
franciscanos da cidade de São Paulo, revendo e atualizando as informações do frei Adalberto
Ortmann (1951) e de Dom Clemente Maria da Silva-Nigra (1954 e 1958). Contribuíram de
forma relevante para o conhecimento do tema, o trabalho de Pietro Maria Bardi (1981) sobre
Miguel Dutra e de Percival Tirapeli (2003, p.62-69) focando as pinturas decorativas do Embu e
da capela de São Roque.
O período colonial paulista caracteriza-se por uma distinção em relação às demais regiões
brasileiras, determinada por diversos fatores, entre os quais podemos destacar o relativo
isolamento geográfico da região até o início do século XIX, gerando uma sociedade com poucos
recursos econômicos, em sua maioria, e que nem sempre teve como arcar com as despesas da
manutenção de uma atividade artística constante na capitania. Com isso, temos a sensação de que
em São Paulo pouco existiu das consagradas expressões artísticas do período colonial –
arquitetura, imaginária, música, talha e pintura – já que muitas dessas igrejas ruíram ou foram
substituídas por outras no final do século XIX e início do século XX, época do desenvolvimento
urbano e industrial da cidade de São Paulo. A formação de uma burguesia rica e ávida em
mostrar uma cidade renovada e moderna segue e contrapõe-se à decadência de regiões até então
participantes da economia agrícola do Estado, como Itu.
Se já encontramos grandes dificuldades em discorrer sobre a atenção dada à preservação
das construções religiosas da região, quanto à pintura essas dificuldades são ainda redobradas e
somam-se àquelas já citadas no início, sobretudo no que se refere às fontes.
Se no ano de 1937, Mário de Andrade nos lembra de que “no período que deixou no
Brasil as nossas mais belas grandezas coloniais, os séculos XVII e XIX até fins do Primeiro
Império, São Paulo estava abatido, ou ainda desensarado dos reveses que sofrera” (1984, p.73),
atentando para o fato de que, no caso de São Paulo, o critério de julgamento tem de ser outro.
Etzel fala de verdadeiras “jóias de família” (1974, p.132) que, por suas particularidades tão
próprias, devem ser entendidas e analisadas em seu contexto, pois constituem “um núcleo
característico, do Brasil-colônia: fechado, independente, agressivo e cioso de sua liberdade total”
(ETZEL, 1974, p.133). Cabe verificar esses conceitos a luz de novos dados levantados a partir de
uma documentação primária.
Também não há sobre esse período em São Paulo, um consenso entre os historiadores
quanto à atividade do pintor ou ao seu estatuto; o fato que mais interessa é que existiram. Talvez
ainda se mantivessem em São Paulo as mesmas relações corporativas de outros ofícios, com o
aprendizado nas oficinas e o trabalho em grupo. Na documentação existente essa questão não é
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esclarecida, reforçando a dúvida quanto aos nomes de diversos pintores, relacionados como
ativos entre 1770-1800 nos livros das igrejas, se seriam de mestres-pintores ou de pintores de
paredes. A determinação da compra do material como pigmento, poderia indicar o ofício.
Outras duas fontes são importantes para estabelecer uma cronologia fundamentada da
pintura paulista: os inventários e os antigos livros das irmandades e das ordens e os inventários,
legados e testamentos de particulares.
Há também uma terceira fonte relevante, a saber, o estudo dos restauros, pois apesar de
não ser uma fonte direta, conforme aponta Hannah Levy (1997, p.183), constituem fontes
documentais semintencionais, sendo raras as obras que chegaram inalteradas aos nossos dias.
Exemplo dessa nova visualidade que se revela são os casos da Igreja da Ordem Terceira de
Nossa Senhora do Carmo, da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e da Capela de São Miguel
Arcanjo.
A Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, ao que tudo indica, começou a
ser construída em 1697, mas, seu aspecto atual é resultado de diversas reformas, sendo a última
de 1922 e concluída em 1927. As pinturas do forro da nave, do coro e da capela-mor foram
executadas entre 1796 e 1797, pelo padre Jesuíno do Monte Carmelo e, de acordo com Mário de
Andrade (1945), Jesuíno primeiro pintou a nave, depois a capela-mor e, por último, o coro. Na
nave, a pintura sobre o forro tem figuras apoiadas diretamente sobre a cimalha das duas laterais:
três grupos de cada lado composto por quatro figuras de corpo inteiro em cada grupo
representando santos e santas carmelitas (Fig.1). No centro há uma pintura de Nossa Senhora da
Conceição que até o ano de 2010 estava escondida por outra executada por Pedro Alexandrino
no final do século XIX, e só agora, após restauro em andamento, voltamos a visualizá-la (Fig.2).
Apesar de ser uma irmandade fundada em 1728, a Nossa Senhora da Boa Morte a
princípio ficou estabelecida na Igreja do Carmo e não se sabe ao certo quando iniciou a
construção de seu templo, apenas que a inauguração foi em 1810. Durante o trabalho de restauro
iniciado em 2006 foi descoberta uma pintura com a cena da Coroação da Virgem no forro da
capela-mor (Fig.3), escondida debaixo de grossas camadas de tinta, com partes perdidas, que só
foi revelada quando os restauradores começaram o trabalho de prospecção (MAGALDI et al,
2009,
p.73). As partes incompletas foram preenchidas com nova pintura a pedido dos
integrantes da irmandade e, como não foi encontrado até o momento nenhum tipo de registro
anterior dessa imagem, o preenchimento foi realizado após pesquisa iconográfica sobre o tema
(Fig.4). Provavelmente datada do início do século XIX, despertou interesse nos restauradores
devido a suas qualidades pictóricas, mas ainda exige pesquisa.
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A Capela de São Miguel Arcanjo foi fundada em 1560 quando um grupo de índios
Guaianazes ali se estabeleceu junto com padres jesuítas vindos do colégio de São Paulo. A atual
capela foi construída em 1622, pois a antiga foi demolida devido ao seu estado de degradação.
Sendo assim, ela é considerada a mais antiga do estado de São Paulo e marcou a chegada dos
jesuítas na região. Nas prospecções realizadas para orientar os trabalhos de restauro da capela,
foram descobertas pinturas nas paredes atrás dos retábulos laterais da nave (Fig. 5 e 6) e que
trouxeram para os estudos do tema, a discussão de como tornar visível essa pintura.
Assim, a análise dos restauros realizados ou em andamento, permitirão um novo
entendimento da pintura paulista, posto que ao se realizar tal empreitada, questões diversas são
colocadas, desde o entendimento técnico da feitura daquela pintura, tudo que o tempo colocou ou
retirou na obra, até o que se espera ver ou mostrar para o apreciador atual, ou seja, é uma nova
pintura que se revela.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 1: Pintura da nave da Ig. de N. Sra. do Carmo, com conjuntos de santos e santas
carmelitas e ao centro, pintura de N. Sra. da Conceição. Fotografia realizada antes do restauro
iniciado em 2010.
Figura 2: Pintura da nave após início do restauro já com a imagem da N. Sra. da Conceição
pintada por Jesuíno do Monte Carmelo visível.
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Figura 3: pintura encontrada no forro da capela-mor da Igreja de N. Sra. da Boa Morte.
Figura 4: pintura da capela-mor após o restauro. Algumas intervenções foram realizadas para
completar a imagem a pedido da própria irmandade.
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Figura 5: pinturas encontradas atrás do retábulo na Capela de São Miguel Arcanjo.
Figura 6: Detalhe da pintura anterior com colunas e sol.
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UMA OUTRA HISTÓRIA DOS MUSEUS DE SÃO PAULO: A PINACOTECAS
MUNICIPAIS DO INTERIOR PAULISTA
Patrícia Bueno Godoy
A partir da década de 1940 coleções de arte começaram a ser fundadas no interior
paulista, as pinacotecas municipais. Esse fluxo lento, que se estendeu até a década de 1970, foi
iniciado pela ação de artistas pintores que desempenhavam suas atividades profissionais na
cidade de São Paulo. Residentes ou não da grande metrópole, eram freqüentadores assíduos do
Salão Paulista de Belas Artes, evento consagrado à arte figurativa e estabelecido a partir de 1934.
Da intensa atividade artística desses pintores surge a idéia de levar a arte àqueles que
habitavam distante da capital. As pinacotecas municipais nascem com um perfil inicial similar,
formadas a por acervos estabelecidos pela doação efetuada pelos pintores figurativos e,
eventualmente, pela sensível colaboração de colecionadores de arte e artistas regionais. Portanto,
são coleções públicas que devem sua existência não apenas pela vontade do poder público
municipal, mas, sobretudo pelo esforço de artistas pintores, atuantes na cidade de São Paulo,
geralmente ligados a associações e sindicatos de arte. Trata-se de um movimento paralelo à
fundação dos grandes museus de arte em São Paulo – como: MASP (1947), MAM (1948) e
MAC (1963) – um percurso ainda pouco contemplado por estudos e essencial para garantir a
preservação dessa parcela do patrimônio artístico brasileiro.
Um breve panorama histórico e artístico será aqui esboçado, e para isso, três pinacotecas
municipais do interior do estado de São Paulo serão investigadas, as de Rio Claro, Piracicaba e
Amparo. Fundadas entre 1966 e 1974, como outras instituições da mesma natureza, estes acervos
foram criados principalmente por artistas figurativos voltados à prática da pintura de paisagem,
pintura de gênero, natureza-morta e figura humana. Nas paisagens rurais ou urbanas, da
metrópole ou das pequenas cidades, utilizavam pinceladas largas, evitando o contorno. Seguiram
os ensinamentos dos pintores paisagistas do início do século XX, dos quais mantinham profunda
admiração. Praticavam uma arte de leitura fácil que agradava e supria as “necessidades dos
compradores da época” no adorno dos ambientes íntimos de suas residências (TARASANTCHI,
2002: p. 24). Dos três acervos, apenas a pinacoteca municipal de Rio Claro foi contemplada com
um estudo sistematizado pela dissertação de mestrado defendida pela autora (GODOY, 1999),

Professora Doutora da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.
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2011
que estudou, fotografou e catalogou as obras adquiridas pela instituição até o ano de 1998.
Atualmente, as três instituições permanecem reclusas em suas respectivas reservas técnicas.
Antes de proceder à investigação sobre a criação das pinacotecas torna-se necessário
compreender aspectos sobre a concepção artística e a atuação dos seus fundadores. Esta tarefa
encontra um problema fundamental, a falta de estudos sobre a obra dos pintores figurativos
paulistas, em sua maioria nascidos entre os últimos anos do século XIX e a segunda década do
século XX. Essa ausência deriva especialmente da omissão ou do combate a essa orientação
artística que, executada após Semana de Arte Moderna de 1922, passou a ser significativamente
desvalorizada. Adjetivos pejorativos foram a ela associados e hoje predomina o termo inexato de
“acadêmica”, classificação que restringe a apreciação de uma produção plural, dificultando-se
não apenas sua compreensão, mas, também, aspectos relacionados à contribuição histórica e
cultural que seus protagonistas legaram ao estado de São Paulo. Por esse motivo, aqui
utilizaremos o termo “figurativo” para designá-la.
Os desdobramentos dos movimentos de vanguarda foram acompanhados pelos artistas
figurativos que se diziam conscientes das novas pesquisas estéticas, entretanto, a maior parte
optou por continuar a praticar os gêneros consagrados pelos pintores da geração anterior. Essa
produção foi especialmente preservada e divulgada pelo museu artístico mais antigo da capital, a
Pinacoteca do Estado de São Paulo, instituição que serviu de modelo para as pinacotecas
interioranas.
A Pinacoteca do Estado de São Paulo foi instalada junto ao Liceu de Artes e Ofícios e
inaugurada em 1905. Alguns anos mais tarde, em 21 de novembro de 1911, o estatuto público da
coleção foi regulamentado, adquirindo assim uma estrutura mínima para seu funcionamento
(LOURENÇO, 1994: p. 20). Esse espaço que se dedicou à preservação e à divulgação dos
grandes nomes da pintura brasileira passou por períodos de transição e reestruturação e, em
1947, foi reinaugurado no edifício construído por Ramos de Azevedo na Praça da Luz (LEITE,
1988: p. 407). Naquela década, o pintor Guelfo Oscar Campiglia (1907-1968) iniciou a fundação
de pinacotecas no interior do estado sob os moldes da instituição paulistana, ação seguida por
outros artistas nos anos seguintes. Foi um ciclo lento empreendido por uma classe de artistas que
provou da glória em meio às dificuldades de ordem prática e política. Algumas instituições
tiveram a sorte de nascer plenamente com sede própria, outras, inversamente, até hoje padecem
por não tê-la. Membro da Associação Paulista de Belas Artes, em 1947, Oscar Campiglia já
havia realizado a fundação das pinacotecas de “Itapetininga, Pinhal e Jundiaí”. Esta última foi
fundada em fevereiro de 1946 e instalada junto ao Gabinete de Leitura da cidade. Integrantes da
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2011
Associação Paulista de Belas Artes estiveram presentes no evento que contou ainda com uma
exposição de Oscar Campiglia (BAPBA, 1946: nº17, p. 140).
É preciso lembrar que outro importante fluxo de criação de museus ocorreu a partir da
década de 1950, a implantação da rede de Museus Históricos e Pedagógicos. Entre 1956 e 1973
essa rede de museus se espalhou por diversas cidades do interior do Estado de São Paulo.
Naquele momento, organizados pelo Serviço de Museus Históricos, órgão pertencente à
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, mais tarde, em 1968, foram transferidos à
Secretaria de Estado da Cultura. Em 1998, iniciou-se o processo de municipalização, coordenado
pelo Departamento de Museus e Arquivos. Em 1973, ao final da implantação da rede de museus,
que se tornou a maior do país, contabilizavam-se setenta e nove unidades (ANAIS DO MUSEU
PAULISTA, 1993: p. 176-177).
As cidades de Amparo, Piracicaba e Rio Claro também se beneficiaram com a
implantação dos Museus Históricos e Pedagógicos, cada qual contando com um acervo de
caráter regional, especialmente adquirido por meio de doações. Melhor estruturados mantiveramse mais acessíveis ao público, se comparados com as pinacotecas municipais que, em vários
momentos, ficaram restritas apenas ao espaço da reserva técnica.
Da idealização das pinacotecas municipais à sua efetivação necessitou-se de certa
organização por parte da classe artística. Esta advém da experiência obtida em meio às
associações e sindicatos fundados por artistas a partir da década de 1920. A Associação Paulista
de Belas Artes e a Sociedade dos Amigos da Arte de São Paulo (SOCIARTE) contribuíram cada
qual com o apoio e divulgação do propósito das novas pinacotecas. O Boletim publicado pela
Associação Paulista de Belas Artes traz informações relevantes a esse respeito. Foram
consultados para este estudo aqueles publicados entre 1943 a 1952. Membros da SOCIARTE
ajudaram na ampliação dos acervos com doações de obras de grande qualidade, especialmente
Américo Ribeiro dos Santos e Noedyr Moraes Corrêa. Outra publicação relevante é a revista
Resenha Artística, idealizada pelo escultor Laszlo Zinner (1908-1977) e conduzida por vários
artistas. Na primeira edição o diretor Valentim Amaral enfatizou que a finalidade principal
daquela publicação era a de “estabelecer maior contato entre os artistas plásticos figurativistas
em nosso país” (RESENHA ARTÍSTICA: 1960, nº 1). Nas publicações entre 1960 a 1969,
também traz informações sobre a organização e a fundação das novas pinacotecas.
A Associação Paulista de Belas Artes foi fundada em 20 de março de 1942. No ano
seguinte, seus organizadores iniciaram a impressão de um boletim próprio, de tiragem bimestral,
para propagar informações de interesse dos seus associados. Os temas essenciais eram a
divulgação de dados biográficos, atividades internas diversas, especialmente as informações
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2011
sobre exposições individuais e coletivas. Notícias sobre o Salão Paulista de Belas Artes e dos
seus congêneres do interior apareciam com regularidade. Os salões eram locais de grande
visibilidade para a arte figurativa, onde os artistas poderiam ainda se beneficiar com os prêmios
aquisitivos ou outras condecorações. Faz-se notar que ainda hoje a biografia desses artistas é
constituída basicamente pela descrição de prêmios acumulados nesses eventos.
Uma importante ação foi empreendida pelo governo do Estado de São Paulo na década de
1940. Após criar as primeiras pinacotecas Oscar Campiglia foi nomeado em 1947 para o cargo
de técnico de expansão cultural do Departamento Estadual de Informações, encarregado de
organizar a primeira exposição circulante para o interior do Estado (BAPBA, 1947: p. 163). Em
abril daquele ano realizou-se em Taubaté a primeira Exposição Circulante de Belas Artes, cuja
finalidade era a de levar ao interior, obras de mestres paulistas da pintura e da escultura
(BAPBA, 1947: p. 165). No discurso da inauguração da mostra, o governador Adhemar de
Barros enfatizou a importância dessa iniciativa como sendo “a maneira mais objetiva de atingir o
ideal da democratização da cultura, que não pode nem deve permanecer como propriedade
exclusiva das metrópoles ou do círculo restrito de certas elites ociosas”. O contributo essencial
seria o de estimular a cultura e a “espiritualidade criadora” dando “ao povo uma noção clara do
grau de pureza artística a que já atingiram as artes plásticas paulistas tanto da escola clássica
quanto das correntes modernas” (BAPBA, 1947: p. 165-167). Em junho do mesmo ano Adhemar
de Barros inaugurou em Ribeirão Preto mais uma exposição circulante que propunha novamente
“de forma objetiva e imediata, a socialização da cultura” (BAPBA, 1947: p. 174).
Os pintores fundadores das pinacotecas municipais compartilhavam das mesmas idéias de
Adhemar de Barros. Tinham por intenção democratizar a cultura. Exaltavam o poder de
comunicação da arte e do seu potencial de transformação cultural. Anos mais tarde surgem novas
pinacotecas em Franca, São Carlos, Jaboticabal, Rio Claro, Piracicaba e Amparo. Em 1946, o
Boletim da Associação Paulista de Belas Artes informava que as pinacotecas estavam sendo
criadas junto aos Gabinetes de Leitura das cidades (BAPBA: 1946, nº18, p. 145). Este espaço
físico tornou-se inadequado quando as coleções começaram a se expandir. Surgiram problemas
diversos, como a procura por uma nova sede – quase sempre provisória – que afetaram a
divulgação e a conservação das obras. Este foi o problema enfrentado pela pinacoteca de Rio
Claro, desde sua fundação em 1966 a coleção ainda não conquistou sua sede própria. E assim
nasceram acervos sem museus.
Criada em 1966, pelo pintor Nicola Petti (1904-1983), a Pinacoteca Municipal Pimentel
Júnior foi fundada em Rio Claro, cidade natal do pintor, junto ao Gabinete de Leitura local. A
maior parte das sessenta e sete obras do acervo inicial deveu-se ao empenho de Nicola Petti que
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2011
recebeu doações de pintores do seu círculo de amizade na capital paulista onde residia.
(GODOY: 1999, p. 29). Atualmente, fechada ao público a pinacoteca se encontra armazenada
em reserva técnica junto ao Casarão da Cultura, onde esporadicamente parte do acervo é
exposto. Dentre as mais de quatrocentas obras, destacam-se os desenhos de Pedro Weingärtner
(1853-1929), Henrique Bernardelli (1858-1936), Aldemir Martins (1922-2006) e João Fahrion
(1898-1970) e pinturas de Ettore Federighi (1909-1979), João Dutra (1893-1983), Leopoldo
Gotuzzo (1887-1983), Innocencio Cabral Borghese (1897-1985), Bigio Luigi Gerardenghi
(1876-1957), Chen Kong Fang, Mário Zanini (1907-1971) e Arnaldo Ferrari (1906-1974).
Em 1967 iniciou-se a construção da sede da Pinacoteca Municipal Miguel Archanjo
Benício d’Assunção Dutra na cidade de Piracicaba. Os arquitetos responsáveis pela obra
apresentaram o projeto a Archimedes Dutra (1909-1983), pintor que intermediou a doação do
primeiro núcleo de obras do acervo. Após o parecer favorável do artista, foi construída a sede da
pinacoteca e o acervo pode ser instalado em edifício próprio em 1969 (PINACOTECA
MUNICIPAL DE PIRACICABA: 2008). Encontram-se ali reunidas centenas de pinturas, como
as de Paulo do Valle Júnior (1889-1958), Tulio Mugnaini (1895-1975), Alípio Dutra (18921964), Antônio de Pádua Dutra (1905-1939) e Arcangelo Ianeli (1922-2009). Há também um
pequeno conjunto de gravuras, entre outras, de Marcelo Grassmann, Alex Flemming, Fayga
Ostrower (1920-2001) e Renina Katz.
Em 1974 foi oficialmente instalada a Pinacoteca Municipal Dr. Constâncio Cintra na
cidade de Amparo com acervo inicial organizado pelo músico e pintor Francisco Cimino (19061990). O primeiro núcleo de obras surgiu a partir de doações dos artistas pintores do círculo de
amizade de Cimino. Naquele ano ele foi responsável também pela instituição do primeiro Salão
de Belas Artes de Amparo, evento que passou a contribuir para o crescimento do acervo
(GODOY, 1999: p. 107, 108). Atualmente, a pinacoteca encontra-se armazenada em uma reserva
técnica em um edifício tombado pelo CONDEPHAAT, anteriormente utilizado como residência
do chefe da estação ferroviária, na Praça Pádua Salles. Entre outras, há obras de Gino Bruno
(1899-1977), Oswaldo Teixeira (1904-1974) e Durval Pereira (1917-1984).
Além dos salões de arte e das sociedades artísticas, a parceria entre artistas figurativos e
colecionadores de arte foi fundamental para fortalecer os ideais da classe. Essa relação foi
profícua revertendo-se na organização de publicações sobre arte e na doação de importantes
obras para as pinacotecas no interior paulista.
Em 1968 foi lançado o volume Pintores contemporâneos de São Paulo, uma publicação
que reuniu informações sobre quarenta pintores figurativos, cada qual representado com pequena
biografia e ilustração de uma obra. A comissão organizadora foi composta pelos colecionadores
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Américo Ribeiro dos Santos e Noedyr Moraes Corrêa, o escritor Cypriano Marques Filho e o
pintor Nicola Petti. Na apresentação redigida pela comissão enfatizou-se a opção de um grupo de
artistas a manter-se no caminho da arte figurativa, refutada por artistas e críticos de arte
vinculados a outras orientações artísticas. Acusados de persistirem na realização de uma arte
“passadista” e “acadêmica”, saíram em defesa da sua autonomia e direito de empreender
livremente sua obra. A publicação tinha por objetivo “divulgar as obras de artistas que se
projetaram no cenário artístico do país e do estrangeiro, através as suas representações no
tradicional Salão Paulista de Belas Artes”. A “liberdade de expressão”, portanto, a opção pela
arte figurativa, segundo os autores, se opunha à “ditadura artística” que atingia “culminâncias
descriminatórias” (SANTOS, 1968). Após a publicação de Pintores Contemporâneos de São
Paulo, parte da comissão organizadora funda a SOCIARTE, entidade que buscou fortalecer a
pintura figurativa, organizando exposições e publicando catálogos.
A SOCIARTE, Sociedade dos Amigos da Arte de São Paulo, foi fundada em 25 de
janeiro de 1969 “por um grupo de colecionadores de objetos de arte, especialmente quadros, que,
além de reuni-los” objetivava “a divulgação da arte e dos artistas, promovendo exposições,
palestras, reuniões e outras atividades correlatas” (VELLOSO, 1987). Dentre seus fundadores
destacam-se os nomes de Américo Ribeiro dos Santos, Noedyr Moraes Corrêa e Cypriano
Marques Filho, membros da comissão organizadora de Pintores Contemporâneos de São Paulo.
Desses, os dois primeiros colaboraram com importantes doações às pinacotecas de Rio Claro,
Piracicaba e Amparo.
Américo Ribeiro dos Santos, presidente da SOCIARTE entre 1969 e 1972, doou obras
significativas para as pinacotecas de Amparo, Rio Claro e Piracicaba. São pinturas de Eugênio
Latour (1874-1942), Eliseu Visconti (1866-1944) e Helios Seelinger (1878-1965). Obras de
Eugênio Latour podem ser encontradas nas três cidades, todas são figuras femininas. Em
Piracicaba encontra-se o estudo para a pintura intitulada Desilusão, obra pertencente à
Pinacoteca do Estado de São Paulo e que integra a série composta por outras três, Mistério,
Ansiedade e Realidade, todas de 1928. Eliseu Visconti se faz presente em Rio Claro com um
pequeno óleo sobre tela. Trata-se de um estudo para a obra Fatigada, realizada pelo artista por
volta de 1898. Esta pequena cabeça feminina participou da Exposição Retrospectiva de Visconti
organizada no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1949 (GODOY, 1999: 409411). Da coleção de Ribeiro dos Santos foram para Rio Claro ainda duas obras de Helios
Seelinger, Netuno (1923) e Folia (1937). Em ambas é evidente a aproximação com o universo
Simbolista do final do século XIX e com a obra de Franz Von Stuck (1863-1928), pintor com o
qual Seelinger estudara durante sua permanência em Munique (GODOY, 1999: p.364-367).
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Esse breve texto procurou dar visibilidade a três coleções públicas que, infelizmente,
como museus de arte não estão cumprindo plenamente suas finalidades principais: a curadoria, a
exposição e o ensino (CONSERVAÇÃO: CONCEITOS E PRÁTICAS, 2001: p.19-20).
Entendemos que a história da arte é um agente indispensável na discussão sobre as questões
relativas à conservação e à valorização do patrimônio artístico já que estão intimamente
relacionadas. Há muito que fazer quanto à catalogação e o estudo dos acervos públicos paulistas.
Essa tarefa nem sempre é fácil e de visibilidade imediata. Em alguns casos se encontrará uma
coleção que ainda não foi corretamente catalogada, em outros momentos se deparará com a falta
de profissionais designados exclusivamente para seu gerenciamento. Espaço físico adequado e
recursos materiais também são aspectos importantes, nem sempre atendidos. A valorização e a
conservação – geralmente aplicadas aos empreendimentos produzidos pela elite – devem se
estender às coleções desfavorecidas e o historiador da arte é um agente importante nesse
processo.
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1955, Arcangelo Ianelli, Interior, óleo sobre tela, 73x60cm. Pinacoteca Municipal Miguel
Archanjo Benício d’Assunção Dutra, Piracicaba - SP
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2011
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Municipal Dr. Constâncio Cintra, Amparo - SP
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Benício d’Assunção Dutra, Piracicaba - SP
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s.d., Eliseu D’Angelo Visconti, Estudo para Fatigada, óleo sobre tela (colada sobre painel de
madeira,) 26x27,5cm. Pinacoteca Municipal Pimentel Júnior, Rio Claro – SP
1937, Helios Seelinger, Folia, óleo sobre tela, 72x72 cm. Pinacoteca Municipal Pimentel Júnior,
Rio Claro - SP
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TRÊS TEXTOS NO INÍCIO DE UM DEBATE: NEOCONCRETISMO E MINIMALISMO
Patricia Leal Azevedo Corrêa
Este texto apresenta resultados parciais de uma pesquisa em andamento sobre as
possibilidades e os limites de uma história comparada do neoconcretismo brasileiro e do
minimalismo norte-americano, fundamentada na análise de obras artísticas e teóricas ligadas à
gênese e ao desenvolvimento dos dois movimentos, bem como na produção historiográfica que
vem buscando, nos últimos anos, articular algumas de suas aproximações. Como toda proposta
comparativista, esta também investe no valor de uma iluminação recíproca, ou seja, pressupõe o
interesse daquilo que o estudo de um objeto pode provocar sobre o estudo de outro, o que
implica admitirmos analogias, semelhanças e diferenças entre ambos.
Algumas dessas semelhanças são bem evidentes, como o período em que surgem e se
desenvolvem as duas produções, entre o final da década de 1950 e a década seguinte; o emprego
de vocabulário geométrico; o envolvimento, por vias práticas e teóricas, com a dissolução de
fronteiras entre pintura, escultura, objeto e ambiente; a ênfase nas relações entre corpo, tempo e
experiência na arte. Mas suas diferenças são igualmente marcantes, como os distintos contextos
artísticos e culturais, suas relações entre tradições locais e matrizes européias, distintos
modernismos e modernidades como solos para suas rupturas, distintos diálogos e aportes teóricofilosóficos que, de saída, já impõem a relativização das semelhanças antes indicadas. Assim, por
exemplo, os próprios conceitos de experiência, tempo, ambiente, objeto, pintura e geometria
implicados nessas produções são passíveis de estudos comparativos.
São recentes e ainda rarefeitas as iniciativas de reflexão sobre a aproximação entre
minimalismo e neoconcretismo, talvez por causa da tradicional predominância de interesses nos
vínculos entre as Américas e a Europa, em detrimento dos vínculos entre os diferentes países das
Américas. De todo modo, seja pela própria dinamização e crescimento desses campos, seja pela
força centrípeta das instituições norte-americanas sobre o resto do continente, tornou-se evidente,
nos últimos anos, um crescente interesse de grandes instituições e agentes internacionais por
exposições e aquisições de arte brasileira, especialmente a contemporânea, interesse que vem
acompanhado por produções críticas e historiográficas que, de uma maneira ou outra, buscam
compreender e confrontar a especificidade dessa arte com relação ao panorama artístico das
culturas hegemônicas. No bojo desses interesses, o neoconcretismo e suas figuras estelares,

Professora Adjunta da Escola de Belas Artes da UFRJ, Doutora em História.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Lygia Clark e Hélio Oiticica, têm concentrado muita atenção, inclusive como possibilidades de
referências históricas para a produção das três últimas décadas no Brasil, que ganharam muita
relevância no mercado global da arte. Tudo indica que estamos no meio de um processo de
inclusão do neoconcretismo em discursos mais abrangentes da história da arte, que tendem a
situá-lo no contexto das tendências construtivas e do experimentalismo na América Latina, em
posições que problematizam mas muitas vezes ainda dependem do duradouro esquema centroperiferia, onde os Estados Unidos têm papel crucial.
O texto visa contribuir para a análise e compreensão dessas conexões críticas e
históricas, que tocam diretamente a formação do campo da história da arte brasileira e seus
embates com os novos cânones multiculturalistas. Com esse intuito, tomamos como ponto de
partida a reflexão de autores que lançaram bases para a discussão das relações entre
neoconcretismo e minimalismo, através de três textos que surgiram na primeira década deste
século, a saber: Divergent Parallels: Toward a Comparative Study of Neoconcretism and
Minimalism, publicado em 2001, do crítico e curador brasileiro Paulo Herkenhoff;
Neonconcretism and Minimalism: Cosmopolitanism at a Local Level and a Canonical
Provincialism, publicado em 2005, do crítico e historiador da arte anglo-brasileiro Michael
Asbury; e Minimalism and Neoconcretism, palestra proferida em 2006 pela crítica e curadora
britânica Anna Dezeuze, cuja transcrição está disponível online. Na medida em que Herkenhoff é
o mais ambicioso em termos de abrangência, o primeiro a indicar de modo consistente as
possibilidades e problemas dessa comparação, depois retomados pelos dois outros autores, nos
concentraremos aqui em Herkenhoff.
Este apresenta, de certa maneira, as discussões em seguida promovidas por Asbury e
Dezeuze em torno das proximidades e tensões entre dois textos teóricos fundamentais para o
neoconcretismo, Teoria do não-objeto e Manifesto Neoconcreto, escritos por Ferreira Gullar em
1959, e textos teóricos fundamentais para o minimalismo, como Specific Objects de Donald
Judd, de 1965, e as Notes on Sculpture, de Robert Morris, escritas entre 1966 e 1969, além de
também abordar o provincianismo de críticos e historiadores como os norte-americanos Hal
Foster e Gregory Battcock, em contraste com a amplitude do pensamento de Mario Pedrosa,
Gullar, Lygia Clark e Oiticica. Asbury apoia seu estudo comparativo justamente nas
especificidades do neoconcretismo frente à ignorância da história da arte ocidental (seu
“provincianismo canônico”) com relação a uma arte dita periférica. Dezeuze, por sua vez, foca
mais especificamente a produção conceitual sobre esse novo tipo de objeto, entre a pintura e a
escultura, teorizado mais ou menos na mesma época por Gullar, Judd e depois Morris.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Uma análise mais pontual do texto de Herkenhoff servirá como mapeamento desses
argumentos. A partir da indicação de diferenças entre os contextos sociais e ideológicos dos dois
grupos e da constatação de seu desconhecimento mútuo no começo dos anos 60, o autor
desenvolve uma ampla abordagem dos contrastes epistemológicos na produção teórica e artística
de minimalistas e neoconcretos, sem deixar de sugerir a necessidade de um “acerto de contas”
histórico a favor dos brasileiros: “o movimento antecipou e explorou mais profundamente muitas
das questões que foram consideradas inovações do minimalismo, do estatuto do objeto à
fenomenologia da percepção” (HERKENHOFF, 2001: 107). Sob seu ponto de vista, os dois
movimentos coincidem em tratar certas questões, mesmo que muitas vezes tomem diferentes
direções. Tratemos, pois, de indicar a seguir os principais aspectos de sua proposta comparativa,
pautando-nos na identificação de pontos convergentes e divergentes entre os dois movimentos.
Haveria, de saída, uma diferença na relação entre subjetividade e objetividade nas duas
concepções artísticas: sob esse aspecto, o minimalismo estaria mais próximo do concretismo
porque também era antagônico com relação à manifestação da subjetividade do pintor e buscava
superfícies livres de acabamento artesanal, manual ou que sugerisse uma “ansiedade de
expressão”. Assim, o minimalismo teria restaurado a objetividade no meio artístico norteamericano, dominado pelo subjetivismo dos artistas ligados ao expressionismo abstrato. O
neoconcretismo, ao contrário, teria restaurado “a presença do subjetivo na arte, tanto na
subjetividade do artista quanto na do espectador” (Ibid., 119), fazendo frente ao dogmatismo
objetivista do concretismo. Como exemplo dessas abordagens diferenciadas, podemos considerar
o trabalho com a linha orgânica de Lygia Clark, que jogava com a ambiguidade perceptiva e
experiencial desse elemento, em contrapartida à repetição serial das linhas de Frank Stella, que
visava eliminar a gestualidade expressionista, como nos mostram, respectivamente, Composição
5: Quebra da moldura, de Clark, e a série de Black Paintings de Stella, artista cuja obra estaria
nas origens do minimalismo.
Porém, essa distinção entre as obras de Clark e Stella também revela um traço
semelhante: os dois artistas desenvolvem abordagens holísticas da tela pintada, a partir de
descobertas das funções dessas linhas em suas pinturas: “tanto o neoconcretismo quanto o
minimalismo trabalharam com a organização holística da superfície, em oposição ao uso de
figuras geométricas sobre um campo. Ambos tiveram que lidar com a noção de estrutura” (Ibid.,
120) como contraponto ao jogo composicional entre figura e fundo, pois nos dois casos a linha
surge como desdobramento visual do suporte, seja o formato da tela ou seu contato com a
moldura.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Esse raciocínio que problematiza e rompe o campo tradicional da pintura também pode
ser estendido, para Herkenhoff, ao campo tradicional da escultura, no que podemos identificar
como outra semelhança: a abolição do pedestal. Artistas brasileiros ligados ao neoconcretismo,
como Amílcar de Castro e Franz Weissmann, tratam de estabelecer contatos diretos da escultura
com o chão, negando, assim, sua separação da experiência do mundo. Algo próximo a isso foi
indicado por Hall Foster em sua afirmação de que os trabalhos minimalistas já não se distinguem
como “arte pura”, mas obrigam o espectador a reposicionar-se no aqui e agora do lugar instalado
por esse novo tipo de objeto. Por exemplo, trabalhos do norte-americano Tony Smith, como The
Keys to Given, se articulam na espacialidade comum do espectador, mobilizam um vocabulário
formal que não está longe do arquitetônico e do urbano, tal como a instalação de uma peça de
Amílcar de Castro lida, de certo modo, com a materialidade de nossas cidades.
Porém, trata-se logo de observar que esse posicionamento direto no chão, acima
referido, toma sentidos diferentes nos dois casos porque acontecem em contextos muito diversos.
No neoconcretismo, essa operação se direciona a uma fenomenologia do espaço e a uma
fenomenologia dos sentidos, que logo convergem num espaço de alteridade. A obra neoconcreta
se mistura ao mundo corrente para articular experiências do mundo social e fazê-lo surgir na
própria experiência da arte. Isso é o que podemos perceber em um trabalho como Tenda
Parangolé P03, de Hélio Oiticica, feito com materiais e um tipo de estrutura francamente abertos
a referências à intensidade e à precariedade da vida nos morros cariocas. No minimalismo, por
outro lado, o que está em jogo é o estatuto do objeto de arte enquanto mercadoria, logo misturálo ao mundo é uma estratégia crítica que visa o espaço institucional da galeria. Um trabalho
como Lever, do minimalista Carl Andre, se abre ao engajamento crítico de valores institucionais,
instalando também, a seu modo, um vetor de precariedade nesse espaço. Enquanto nos Estados
Unidos fazia sentido questionar as forças institucionais do meio de arte, no Brasil de finais dos
50 e início dos 60 o “espaço da galeria” e o mercado, enfim, não se constituíam como forças a
serem questionadas. O que surge na obra de Oiticica é, antes, uma espécie de tensionamento do
espaço do museu pelo espaço social.
Outro aspecto relevante das possibilidades comparativas indicadas por Herkenhoff diz
respeito à identificação de mais uma semelhança entre trabalhos dos dois grupos: uma mesma
ênfase no jogo perceptivo entre a unidade da gestalt e a variação de sua experiência empírica na
fruição artística. Ou seja, compreensões similares do processo perceptivo da arte como um jogo
contínuo entre formas constantes e conhecidas, por exemplo o quadrado e o círculo, e a sucessão
de suas diferentes apreensões ao longo do tempo. Tanto no minimalismo quanto no
neoconcretismo, “a existência da arte agora depende da experiência, a qual já não existe
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puramente no objeto. Ela desloca e anula a contemplação em favor do ato, o que implica
múltiplos jogos de percepção e participação” (Ibid., 122). Essa é uma questão diretamente
abordada nos Bichos de Lygia Clark, onde uma geometria planar básica ganha complexidade
espacial, virtualmente ilimitada, no processo de sua manipulação. E também é a questão crucial,
propulsora, dos L-Beams do minimalista Robert Morris, três poliedros simples e iguais, porém
instalados em diferentes posições. A observação dinâmica desses poliedros resulta na própria
evidência da determinação das condições variáveis sobre a forma percebida, como se a gestalt do
poliedro também fosse continuamente modificada, “manipulada”, pelo movimento corporal.
Mas tão logo notamos essa semelhança, fica igualmente evidente outra diferença, que
diz respeito às concepções de tempo vigentes no minimalismo e no neoconcretismo. Para
Herkenhoff, no minimalismo prevalece uma concepção mecânica de tempo, marcada pela
repetição homogênea ou modular de suas séries de elementos, enquanto no neoconcretismo
prevalece uma concepção vivencial do tempo, marcada pelos conceitos de duração e ato, que
ligam existencialmente o espectador à obra. Os exemplos aqui poderiam ser as caixas de
alumínio e acrílico de Donald Judd e o Livro da Criação de Lygia Pape; enquanto as caixas de
Judd obedecem a uma estrutura serial pré-definida, ligada à ordem da serialidade industrial,
anônima, o trabalho de Pape só ganha espaço na medida em que é acionado e, assim como os
Bichos, enfatiza o desdobramento da descoberta e da criação de formas submetidas a
temporalidades particulares, até mesmo íntimas.
Finalmente, cabe indicar ainda uma diferença, agora ligada ao caráter redutivo da
concisão geométrica que, a princípio, parece ser uma semelhança entre os arranjos formais
neoconcretos e minimalistas. Nas obras neoconcretas, o redutivo se caracterizaria pelo recurso a
objetos de medidas reduzidas, na busca por espaços concisos que não precisassem de intervalos
muito grandes entre um primeiro olhar e a plena apreensão de relações plásticas em uma obra, o
que Herkenhoff identifica como a prevalência de um olhar sintético. Já no minimalismo, o
caráter redutivo apareceria muitas vezes ligado às grandes dimensões, que demandariam um
olhar analítico, capaz de apreender o desenvolvimento espacial da obra. Ou seja, enquanto a obra
neoconcreta tenderia a uma concentração formal, a minimalista tenderia a uma “virtual expansão
da forma” (Ibid., 124), pondo em tensão seus limites físicos. A “economia neoconcreta” pode ser
demonstrada nas Unidades de Lygia Clark, cada qual medindo 30 x 30 cm, onde concentra-se o
jogo estrutural em cada superfície. A “economia minimalista”, por sua vez, estaria manifesta na
proliferação quase vertiginosa de cubos abertos e fechados do Serial Project de Sol LeWitt, que
se estende por uma superfície de 576 x 576 cm e cuja lógica se apresenta como desafio
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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qualitativo e também, digamos, quantitativo, no campo visual. A partir desses contrastes e
coincidências, temos um convite ao debate.
Referências bibliográficas:
ASBURY, Michael. “Neonconcretism and Minimalism: Cosmopolitanism at a Local Level and a
Canonical Provincialism” In: MERCER, Kobena (org.). Cosmopolitan Modernisms. Cambridge:
Institute of International Visual Arts/MIT Press, 2005.
DEZEUZE, Anna. Minimalism and Neoconcretism. Palestra proferida em 26/03/2006.
Disponível: http://www.henry-moore.org/docs/anna_dezeuze_minimalism_neoconcretism_0.pdf
HERKENHOFF, Paulo. “Divergent Parallels: Toward a Comparative Study of Neo-concretism
and Minimalism” In: BOIS, Yve-Alain (org.). Geometric Abstraction: Latin American Art from
the Patricia Phelps de Cisneros Collection. Cambridge, Mass.: Fogg Art Museum/Harvard
University Art Museums, 2001.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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O GRUPO SANTA HELENA E O UNIVERSO INDUSTRIAL PAULISTA (1930-1970)
Patrícia Martins Santos Freitas
O Grupo Santa Helena teve em sua formação os artistas: Aldo Bonadei (1906-1974),
Francisco Rebolo Gonsales (1903-1980), Mário Zanini (1907-1971), Manoel Martins (19111979), Humberto Rosa (1908-1948), Alfredo Rullo Rizzotti (1909-1972), Clóvis Graciano
(1907-1988), Alfredo Volpi (1896-1988) e Fulvio Pennacchi (1905-1992). Bonadei, Rebolo,
Zanini e Manoel Martins são paulistanos, mas sua família tem origem estrangeira, como no caso
de Rebolo, descendente de espanhóis e Manoel Martins, que tinha pais portugueses. Clóvis
Graciano, Humberto Rosa, e Rizzotti nasceram no interior de São Paulo. Volpi nasceu em Lucca,
na Itália, mas veio ao Brasil ainda quando criança. Pennacchi também nasceu na Itália, em
Garfagnana, na região da Toscana, mas ao contrário de Volpi, chegou ao Brasil já adulto, em
1929 (ZANINI, 1991).
Alguns deles têm uma formação artística mais próxima das Academias de Arte, como no
caso de Bonadei, que freqüentou a Academia de Arte de Florença e Pennacchi, que estudou na
Academia de Arte de Lucca e de Florença, mas a maioria deles tomou contato muito cedo com
as atividades artesanais, dentro de escolas como o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo ou a
Escola Masculina do Brás, e acabou se aproximando das artes plásticas já com idade adulta, por
meio de aulas particulares, ou por cursos oferecidos dentro de instituições como a Sociedade
Paulista de Belas Artes. O que permeia a trajetória destes pintores é sua atividade como pintores
decoradores, que os acompanha mesmo depois que eles ganham certa fama no cenário das artes
em São Paulo. Os ofícios variam entre as ocupações mais próximas às artes como o trabalho de
letrista empreendido por Mario Zanini entre 1922 e 1924, quando trabalhou para a Companhia
Antártica Paulista, ou mesmo os trabalhos com ourivesaria feitos por Manoel Martins em 1924,
mas também ocupações distantes como a sociedade que Pennacchi assumiu com o irmão, logo
quando chegou ao Brasil, no começo dos anos de 1930. De uma forma geral, todos, mesmo que
por caminhos sinuosos, conseguiram estabelecer um contato permanente com as artes plásticas.
O Grupo se formou em meados da década de 1930 e permaneceu em convívio até
aproximadamente 1945, quando os artistas continuaram suas carreiras individualmente. Contudo,
torna-se interessante para o presente estudo acompanhar estes artistas até 1970, década em que
ainda se tem o registro de algumas paisagens industriais nas suas obras. A formação do Grupo

Formada em História pela Universidade Estadual de Campinas e Mestre em História, na linha de Patrimônio,
Memória e Cidades, pela Universidade Estadual de Campinas.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Santa Helena está intrinsecamente ligada à formação profissional de cada artista que constituiu o
Grupo. É possível desta forma, compreender esta reunião em decorrência de suas amizades e
aproximações profissionais, ligadas ao metiê em que os santelenistas estavam inseridos anos
antes de se reunirem em um mesmo ateliê para conjugarem experiências, demandas profissionais
e informações artísticas.
Durante o período em que desenvolvi a dissertação que inspira este artigo, meu objetivo
principal foi compreender então as aproximações que este Grupo teve do universo industrial
paulista dentre as décadas de 1930 e 1970. Em um primeiro momento, objetivou-se apreender
quais seriam os trajetos destes artistas dentro da cidade e qual seria o contato visual que os
artistas tinham com São Paulo. Para isso eu tive como fonte as próprias paisagens que os
santelenistas produziam tanto do centro como dos arrabaldes da cidade, em que estava
representado o universo industrial. Compreendo por universo industrial os gasômetros, as usinas,
as estações de trem, fábricas, figura do trabalhador, ou mesmo os seus elementos isolados, como
a própria chaminé. Analisando as obras do Grupo, foi possível estabelecer um perímetro de
circulação dentro da cidade, como demonstrado pelo mapa (fig. 01).
O subúrbio foi um dos temas mais explorado pelas paisagens do Grupo Santa Helena.
Nestas paisagens podemos encontrar a representação de diversos bairros de São Paulo que
estavam se espraiando ao redor da parte central da cidade. O estudo das paisagens suburbanas
pintadas pelo Grupo revela a escolha pelo recorte do ambiente ainda rural, mas que já
apresentava signos modernos como, por exemplo, as fábricas, mas também os automóveis e os
postes elétricos. Os bairros periféricos eram os novos abrigos para a incipiente industrialização.
Contudo, ainda mantinham reminiscências de um mundo fortemente ligado às tradições rurais.
A prática da pintura ao ar livre levava os pintores e seus instrumentos aos arrabaldes de
São Paulo, em jornadas em grupos ou individuais. Para este deslocamento, contribuiu
efetivamente a acessibilidades que os subúrbios tinham através de transportes baratos como os
trens. Como grandes observadores do cotidiano da cidade, os membros do Grupo retratavam a
industrialização de São Paulo, o crescimento dos bairros e também o lazer de final de semana. A
conversa no portão, as pessoas caminhando e as figuras comuns têm ao fundo, eventualmente, a
paisagem urbana, a fábrica, ou a silhueta de uma chaminé. São crianças, ciclistas, pais e filhos
que caminham de mãos dadas, em um passeio na periferia de São Paulo. A artista Alice Brill, a
qual conviveu e fotografou tanto o Grupo Santa Helena, como a cidade de São Paulo durante as
décadas de 1930 e 1940, assim descreveu a prática dos artistas: “Aos domingos, os amigos iam
para a periferia da cidade, como o Canindé, ao longo do rio Tietê com suas pontes e lavadeiras,
ou ainda para o interior ou litoral próximos, para pintar ao ar livre” (BRILL, 1986).
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Para os santelenistas, a fábrica não é tema central e, a despeito de aparecer com
freqüência em suas paisagens dos arredores da capital paulista, o que se pode observar a partir de
um olhar geral nas obras do Grupo é um tratamento lírico que valoriza a presença fabril como
parte integrante do cenário suburbano. Um exemplo desta abordagem da paisagem dos
arrabaldes é a obra Sem título (Canindé), de Mário Zanini, feita em 1942 (fig. 02). O singelo
pescador, com seu chapéu e sua vara, chama atenção no primeiro plano do quadro. À sua
esquerda, duas pessoas carregam sacos na cabeça. Com um lenço branco enrolado na cabeça, se
aproxima uma mulher, a caminhar pela margem do rio. Estas figuras, dispostas nos planos mais
próximos do espectador, emolduram as três casas que aparecem ao fundo. São três casebres e
uma pequena fábrica, dotada de uma chaminé fumegante, além de três altos postes exibindo seus
fios pelo céu predominantemente cinza, com pinceladas de azul – muito semelhantemente ao
modo como Rebolo representou o céu em obra homônima, feita em 1937 (fig.03).
O retrato de Zanini alude à tranqüilidade de um bairro, onde se podia brincar na rua,
comer doces, pescar e andar de bicicleta. Mesmo a fumaça negra que sai da chaminé no centro
do quadro aparentemente não aborrece esta dinâmica. E a cena parece prosseguir alheia à
presença do pintor. A fábrica na obra de Zanini funciona como um elemento de estruturação da
cena, indicando a convivência entre os elementos que caracterizam o universo do trabalho e do
descanso. Embora Zanini se preocupe em legitimar sua cena com a presença da indústria, esta
aparece ao fundo, em terceiro plano, precedida em segundo plano pela casa suburbana,
característica nas obras dos santelenistas, e em primeiro plano pelas figuras humanas. A chaminé
fumegante não está isolada e partilha com os postes de eletricidade representados a função de
trazer verticalidade para a paisagem pintada, além de personificar os signos da modernidade no
ambiente rural.
Enquanto os anos de 1930 e 1940 foram repletos de paisagens do subúrbio, nas quais
freqüentemente a fábrica apareceu em plano secundário, a partir de meados da década de 1940,
para muitos pintores que expuseram com o Grupo Santa Helena, como Raphael Galvez e
Joaquim Figueira, e da década de 1950, para alguns dos santelenistas, as paisagens em que a
indústria é objeto central passaram a aparecer com maior freqüência. Esta recorrência do tema
coincidiu com a entrada das tendências abstracionistas no Brasil. Os santelenistas, como tantos
outros artistas do período, foram, de algum modo, impactados pelo ideal abstracionista e pela
modernidade radical encontrada nas formas puras e geometrizadas. Os reflexos disso podem ser
observados em algumas pinturas do Grupo Santa Helena, nas quais, sem abrir mão da figuração,
estes artistas pintaram paisagens industriais geometrizadas. Dentre os pintores que mais se
aproximaram desta nova linguagem, estão Volpi, Zanini, Rebolo e Bonadei.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Casario, pintada por Bonadei em 1972 (fig.04) representa uma paisagem repleta de casas em que
se destaca verticalmente a imagem de uma chaminé. Diferentemente dos trabalhos de Bonadei
anteriores ao final da década de 1940, com Paisagem de Itanhaém (fig.05), nesta pintura a linha
ganha mais consistência e retém melhor as cores dentro do desenho, enfatizando os volumes.
Enquanto em Paisagem de Itanhaém, o artista aparentemente está mais preocupado com a
descrição que faz da paisagem, do assunto registrado – embora já notemos a atenção dedicada às
formas lineares das janelas e portas das casas – em Casario, o esquema geométrico é que se
apodera das formas, assumindo o papel norteador da paisagem. É possível intuir que no registro
de 1943, o pintor cuidou para que a paisagem parecesse habitada, retratando a fumaça que denota
a atividade fabril e traz verossimilhança à cena. Em 1972, esta questão estava subjugada ao gosto
pela abstração das formas.
A fábrica – representada, neste caso, por metonímia pela chaminé – funciona como
elemento pictórico importante para a estrutura do quadro, pois adquire força vertical, em
oposição às casas, as quais estabelecem níveis horizontais em diferentes pontos da paisagem.
Pintada deste modo, as casas produzem um efeito de profundidade na obra, acentuado pela rua
que corta a paisagem diagonalmente no centro do quadro. Bonadei aplica o mesmo efeito
pictórico que usou para pintar a chaminé na representação de uma árvore. A copa desta árvore
acompanha artificialmente a linha que contorna o edifício situado logo à sua esquerda. Assim,
chaminé, edifício e árvore formam um grupo no centro do quadro fundamental por dar coerência
à maneira como Bonadei escolheu representar aquela determinada paisagem.
Arcângelo Ianelli (1922-2009) optou por soluções pictóricas semelhantes às utilizadas
por Bonadei, 15 anos antes de Casario. Em 1957, época em que Bonadei já explorava as formas
geométricas em algumas de suas obras, Ianelli pintou a obra Antiga Cervejaria Brahma (fig.06).
No quadro de Ianelli podemos notar que o pintor, assim como Bonadei, delimitou seus objetos
em linhas bem definidas, as quais ordenam as cores dentro da composição. Janelas, telhados e,
novamente a chaminé são descritos como figuras geométricas, como o quadrado, o retângulo e o
triângulo. As cores de Bonadei e Ianelli também são próximas, e se distanciam da sombra
acinzentada que predominava na paleta de Bonadei à época das paisagens suburbanas. À
semelhança do pintor santelenista de Casario, Ianelli consegue os efeitos de profundidade, com
os telhados das casas, em níveis diferentes de altura, com os postes de eletricidade e as chaminés,
seqüenciados em planos do quadro que se diferenciam também pelo tratamento de luz e sombra
dado ao quadro pelo pintor. Em Antiga Cervejaria Brahma, a rua diagonal também sustenta a
impressão de profundidade enunciada pela arquitetura.
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Os santelenistas registraram não somente a paisagem industrial entendida como cenário
em que se insere a fábrica, mas também o entorno desta paisagem, o ambiente do trem, que
carregava as pessoas até o local de trabalho, e até mesmo as próprias pessoas, com suas feições
esgotadas. A tradição da representação do operário desesperançoso e anônimo – representado em
composição monocromática e em posição entregue – se remete a quadros como os do artista
Honoré-Victorien Daumier (1808-1879). As pinturas de Daumier, menos numerosas que suas
caricaturas, possuem uma paleta econômica semelhante a que os santelenistas usaram,
simplificada em tons ocres e terra, como vemos em O vagão da terceira classe, obra de
Daumier, de 1863 (fig.07).
As imagens do operário foram menos exploradas pelos membros do Grupo Santa Helena.
O que se pôde observar foi a discreta presença do operário nas obras do Grupo. O artista que deu
lugar à figura do trabalhador urbano com mais ênfase no conjunto de obras investigado foi
Rebolo Gonsales. Em sua obra é possível notar o diálogo com obras de artistas modernistas do
mesmo período, como vemos no quadro Operários, pintado na década de 1940, por Rebolo
(fig.08). Na década de 1930, Lívio Abramo registrou a figura do operário na gravura homônima
à obra de Rebolo (fig.09). A figura central do quadro de Rebolo, a saber, seu próprio retrato, está
disposta na mesma posição que o operário de Abramo. Ambos estão representados lateralmente,
modo como habitualmente se pintavam os retratos encomendados por grande parte das classes
mais abastadas na Europa do século XV e XVI. É fato que o operário de ambos os pintores está
representado com a mesma importância retórica que os personagens da retratística clássica.
Contudo, ao contrário do que ocorria séculos antes, o retrato do trabalhador não tem a função de
perpetuar a imagem de um indivíduo isolado, mas sim de ser o registro de um anônimo, que, por
metonímia, é a sua classe.
Em 1943 é a vez de Eugênio de Proença Sigaud (1899-1979) pintar uma obra com título
Operário (fig.10). Assim como o faz Abramo no rosto de seu operário, Sigaud dota seu
personagem de uma força de trabalho imponente, expressa pelos grandes braços do trabalhador,
desproporcionais ao resto de seu corpo. O operário firma a barra de ferro, que parece muito fina
diante de suas enormes mãos. No cenário em que se insere o trabalhador, novamente vemos
apenas signos que remontam ao universo do trabalho: vigas de ferro, um balde de concreto,
guindastes, pedaços de madeira, fios de aço. Tudo que envolve a imagem deste operário estrutura
o retrato de sua condição. Contudo, são três obras que mostram diferentes formas de se ver o
trabalhador. Para Abramo, está clara a preocupação em delinear os traços de um trabalho árduo
no rosto deste trabalhador, enquanto que na obra de Rebolo, e mesmo na de Sigaud outras
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questões estão pontuadas, como a força do trabalhador – algo como uma visão mais positiva do
trabalho – e a coletividade de uma cena de saída de fábrica, por exemplo.
A aproximação dos santelenistas com o tema urbano e industrial foi de diversas formas
interpretado pela crítica da época, encabeçada por Mário de Andrade, Sérgio Milliet e Luís
Martins. De certa forma, seus recortes foram justificados nos dizeres destes intelectuais, pela
suposta proximidade que os artistas tiveram do universo industrial no começo de suas carreiras.
Dentro desta lógica, muitas vezes o argumento foi extrapolado até mesmo pela historiografia que
sucedeu os modernistas, e termos como “artistas-artesãos” e “pintores-proletários” se tornaram
conceitos definidores da identidade do Grupo. De fato, o Grupo Santa Helena não existiria sem
que houvesse uma afinidade profissional entre aqueles artistas. Foi a necessidade de ter um
espaço para receber encomendas que levou Rebolo até o Palacete Santa Helena, por volta de
1935. Dali em diante não é possível aferir em que situações os santelenistas foram artistas e em
quais foram artesãos. A diferenciação entre artistas e artesãos – e ouso até afirmar que o uso da
palavra “artesão” em referência aos santelenistas – teve um uso específico e passível de
localização histórica. O Grupo Santa Helena foi uma reunião de experiências em conjunto, a
partir de um ateliê compartilhado por artistas durante um determinado período. Posso também
afirmar que, partindo da análise das paisagens santelenistas em que a indústria está presente, é
mais coerente pensar os santelenistas como cronistas de um cenário que lhes era próximo
fisicamente e não ideologicamente.
Qual é então o universo industrial paulista compreendido pelo Grupo Santa Helena? Que
lugares ocupam as fábricas, as usinas, os gasômetros, as estações de trem e os trabalhadores
urbanos na apreensão dos santelenistas? O universo industrial que nos é apresentado pelos
santelenistas é um mundo de apreensão visual, que se pretende muitas vezes verossímil e
destituído de figuras alegóricas. No caminho de bonde entre suas casas e o Palacete Santa
Helena, na vista dos ateliês no centro de São Paulo, no passeio até os arredores da cidade, nas
redondezas dos bairros onde moravam, ou ainda no trajeto que percorriam a pé entre um Café e
uma exposição de arte. Lá estavam as paisagens industriais com as quais se ocuparam os pintores
do Grupo Santa Helena. O tema estava no recorte que o olhar fazia do cotidiano, nos caminhos
entre a cidade e o subúrbio, na convivência diária que os artistas mantinham com a cidade.
Contudo, diferentemente dos impressionistas, que saíam a observar a cidade e expressá-la em
estudos de luz e atmosfera, as pinturas santelenistas revelam um apreço pelo desenho e pela
estrutura, além de um uso diversificado da paleta, explorando desde as cores fauvistas até cores
mais sóbrias e econômicas.
371
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
O tema do crescimento industrial e urbano de São Paulo aparecia na literatura, nas
fotografias, nos escritos de especialistas como engenheiros, sanitaristas e médicos. Nos artistas
do Grupo Santa Helena, a indústria parece ter ganhado cada vez mais a atenção dos artistas ao
longo dos anos. O primeiro contato se deu nos arrabaldes da cidade, aparecendo ao fundo de um
cenário ainda ruralizado, na fronteira entre o campo e a cidade. Aos poucos, o retrato da
paisagem ganhou um desenho geometrizado, o que de certo modo levou alguns pintores a
focalizar mais a arquitetura fabril em detrimento de outros objetos. O retrato das indústrias de
São Paulo feito pelos santelenistas não tinha o objetivo de ser o registro histórico destas
paisagens, mas acabou por fazê-lo. Algumas paisagens pintadas pelo Grupo Santa Helena
mostram lugares ermos que foram rapidamente engolidos pelo crescimento urbano. Algumas das
fábricas retratadas pelos santelenistas hoje estão abandonadas ou mesmo deixaram de existir
assim como o próprio Palacete Santa Helena, que encontrou seu fim na dinâmica destrói/constrói
que sempre marcou a história da capital paulista. O Grupo Santa Helena e suas paisagens
suburbanas, urbanas e industriais não são apenas o registro de uma cidade do passado, mas a
memória de vivências na cidade para as quais não temos mais acesso.
Referências Bibliográficas:
AJZENBERG, Elza (org.). Operários na Paulista. São Paulo: MAC/USP, 2002.
ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976.
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre Clóvis Graciano. Julho a dezembro de 1944, transcrito em
MOTTA, Flávio L.. “A Família Artística Paulista”. Revista Comunicações, publicada pelo
Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, SP, 1971, nº 10, pp. 137 a 175.
________________. Esta Paulista Família. O Estado de São Paulo, 02 de julho de 1939.
BELUZZO, Ana Maria. Artesanato, arte e indústria. Tese de doutoramento. Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, FAU/USP, São Paulo, 1988.
BRILL, Alice Czapsky. Aspectos da obra de Mário Zanini: do Grupo Santa Helena às Bienais.
São Paulo: USP, 1982 (Dissertação de Mestrado em Filosofia).
FOOT, Francisco e LEONARDI, Victor. História da indústria e do trabalho no Brasil (das
origens aos anos vinte). São Paulo: Global, 1982.
372
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
MARTINS, Ana (org.). Luís Martins: um cronista de arte em São Paulo nos anos 1940. São
Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2009.
MILLIET, Sérgio. A propósito de uma exposição. O Estado de São Paulo, 22/05/1941, São
Paulo/SP.
ZANINI, Walter. A arte no Brasil nas décadas de 1930-40: O Grupo Santa Helena. São Paulo:
Nobel, 1991.
Figura 01: Mapeamento dos roteiros do Grupo Santa Helena em São Paulo apreendido pela análise de suas obras.
373
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
Figura 02: 1942, Mário Zanini, Sem título (Canindé). Óleo
sobre tela, 35,3 x 40 cm. Coleção Orandi Momesso.
2011
Figura 03: 1937, Francisco Rebolo Gonsales.
Canindé. Óleo sobre papelão, 39,7 x 28,8cm.
Coleção Tamagni, MAM –SP.
Figura 04: 1972, Aldo Bonadei, Casario. Óleo sobre tela, 50 x 61 cm. Encontrado à venda
no site: http://www.escritoriodearte.com/leilao. Acesso em janeiro de 2011.
374
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2011
Figura 05: 1943, Aldo Bonadei, Paisagem de Itanhaém. Óleo sobre
tela, 46 x 56,5 cm. Coleção Carlo Tamagni, no acervo do Museu de
Arte Moderna, São Paulo, SP
Figura 06: 1947, Arcângelo Ianelli, Antiga Cervejaria Brahma.
Coleção não informada.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 07: 1937, Francisco Rebolo Gonsales, Esperando o trem. Óleo sobre madeira, 44 x 36 cm.
Coleção Particular; 1938, Mário Zanini, Sem título (marginais). Óleo sobre papel, 32,8 x 48,8
cm. Museu de Arte Contemporânea; 1863-65, Honoré-Victorien Daumier, Vagão da terceira
classe. Óleo sobre tela, 65.4 x 90.2 cm. Coleção do Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.
Figura 08: c.1940, Francisco Rebolo Gonsales,
Operário. Fotografia do acervo, sem registro das
dimensões de suporte. Retirado de: “Rebolo 100
anos”. Coordenação editorial Antonio Gonçalves.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2002.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Figura 09: 1935, Lívio Abramo, Operário.
Xilogravura, 35,5 x 42 cm. Acervo do Museu de
Arte Moderna de São Paulo, MAM-SP.
Figura 10: 1943, Eugênio de Proença Sigaud, Operários.
Óleo sobre tela, 100 x 80cm. Coleção Particular.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
O DESAFIO DE LEVAR A HISTORIA DA ARTE À COMUNIDADE: A CATEDRAL
METROPOLITANA DE CAMPINAS
Paula Elizabeth de Maria Barrantes
Palavras chave: Talha, Catedral Campinas, Vitoriano dos Anjos,Ramos de Azevedo
Giorgio Vasari, iniciando os estudos sobre história da arte, acreditava que uma obra de
arte não poderia ser analisada isoladamente, sem seu contexto e sem entender os artistas, os
métodos e mesmo a sociedade na qual e para a qual a obra teria sido criada. Vemos que,
passados quase quinhentos anos de seus estudos, apesar das diferentes vertentes que tomam a
história da arte, ainda se faz necessário para uma maior compreensão da obra, principalmente se
tratando de uma edificação histórica, buscar as origens da obra no passado. Qual escola ou
princípio teve o artista, qual método usou, em quem se inspirou, quem encomendou e com que
finalidade. Enfim para que tipo de pessoas esta obra irá servir.
Certamente o artista, muitas vezes, não pensará em um futuro distante, nas mudanças ou
rumos tomados por sua edificação, mas com certeza ele gostaria que a obra servisse a
posteridade e se prolongasse pelo tempos, assim como seu nome.
Sem procurarmos no passado distante as origens de muitas obras de arte e arquitetura
podemos perder coisas essenciais à história. A renascença se valeu de um passado clássico para
elaborar seus ideais de simetria, equilíbrios e beleza. O barroco obteve da renascença o estudo
dos claros-escuros e da profundidade para criar posteriormente os exageros, a dramaticidade, a
luz e a movimentação na sua arte.
O período maneirista, com suas mesclas e complexidades e logo após o neoclassicismo
mostram, igualmente, que foi necessário um estudo do passado, para a elaboração de novas
formas de arte, novas interpretações do clássico mas de maneira mas simples. Retratar de
maneira nova o passado conceituado e mesmo copiar os grandes mestres eram questões de
reconhecimento e valorização, significando nisso, que o passado merecia o respeito, estudo e
consideração do artista que se intitulasse artista.
A arte de um período demonstra a realidade do período, a sociedade, cultura e meio em
que vive o artista e a ela se atribui sempre uma fonte, ou seja, o contexto, novamente, se faz
muito necessário para entender o todo.

Mestranda em História da Arte na Unicamp. Orientação prof..Dr Jorge Coli jr- e-mail: [email protected] Capes
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Apesar de algumas academias hoje talvez discutirem a relevância do estudo do passado
para se conhecer a obra no presente, perder a ligação com o passado histórico pode representar
perder algo essencial sobre a obra, patrimônio ou o artista. Este artista viveu um período
econômico e político determinado sob certas condições, sua obra foi paga por alguém com
alguma finalidade especifica. A questão do “status” ou reconhecimento que o artista de cada
período teve pode variar mas, com certeza, não será variável para o momento em que a obra foi
criada.
Hoje podemos tentar estudar e entender o passado como historiadores, mas devemos
tomar o cuidado de não reinterpretarmos este passado segundo nossas convicções e crenças, esta
seria uma modificação no contexto do passado feita pelo presente.
Trazendo todas as questões dos historiadores de arte do passado para nosso presente,
podemos dizer que os desafios não se alteraram tanto, continuamos a nos digladiar com a falta de
registros do passado, com a falta de apoios de poderes públicos e falta de verbas e dificuldades
de infraestrutura diversas.
Analisando a situação, em particular dos patrimônios tombados no Brasil, podemos dizer
hoje que são poucos os que sobrevivem com alguma ajuda pública ou mesmo de entidades
privadas, poucos possuem engajamento real da sociedade a qual pertençam por não entenderem
que além de um bem de uso diário, muitas vezes, aquela edificação representa um patrimônio
tombado, por isso mesmo, passível da necessidade constante de manutenção, proteção e
preservação de seu passado histórico.
Deve-se levar em consideração aqui apontamentos de Zélia Silva (1999) que nos diz que,
atualmente, muitos patrimônios tombados no Brasil padecem sob falta de cuidados e
engajamento de entidades preservacionistas, governos, entidades particulares e mesmo a
comunidade usuária. O bem estará mesmo fadado a ruína e a deterioração, caso a sociedade que
o circunde não entenda seu fundamental valor na preservação, proteção e estudo do passado
deste bem. Vemos casos latentes de casas históricas derrubadas sem critério, edificações
tombadas com modificações sem estudo, edificações que perdem seu contexto e seu passado pela
falta do estudo especializado. Chegamos a uma situação quase em que se torna necessário o
discurso da “retórica da perda” proposto por José Reginaldo Gonçalves (1996).
Vemos que as edificações e obras de arte, esculturas e monumentos públicos chegam ao
fim extremo, muitas vezes, de se usar a “retórica da perda” de José Reginaldo Gonçalves (1996),
justamente, por não terem agregado ao seu cotidiano a comunidade, que vê dia a dia o
patrimônio se degradar sem entender a real importância daquela perda. Embora, muitas vezes,
faça uso do patrimônio tombado, como o caso em questão da Catedral Metropolitana de
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Campinas, a comunidade não enxerga na edificação valor artístico e histórico, somente seu valor
de uso. Neste contexto acabam por não se movimentarem para preservar e exigir a manutenção
que o patrimônio histórico merece. Podemos ver, inclusive, que a comunidade ainda não
entendeu que a perda do bem não representa a perda do passado da mesma, mas a perda também
do presente e do futuro deste bem em sua sociedade. Caso comum em inúmeras igrejas, matrizes
ou catedrais do Brasil, a comunidade alienada do processo preservacionista não se apercebe do
valor como recurso econômico da edificação, que poderia se tornar também um ponto turístico
preservado a ser explorado e que reverteria para a conservação e obras sociais das próprias
edificações.
Discutindo desafios pode-se afirmar que o historiador não será mais somente o agente
restaurador do passado, mas também o agente que levará de alguma forma a informação à
comunidade. Seu trabalho deve servir para, posteriormente, com outras ações, agregar a
comunidade ao patrimônio. Os caminhos deverão ser encurtados da pesquisa acadêmica até o
usuário final, para que a comunidade perceba o importante trabalho feito pelo historiador e sua
real utilidade para a vida das obras, patrimônio e dela própria.
Tão importante e reconhecido pela igreja já se encontra este trabalho do historiador de
arte que a Carta Magna da igreja católica já especifica a inventariação e catalogação de todo seu
acervo artístico como atividade a ser feita por historiador de arte, com capacidade de análise
visual e material, afim de que a catalogação seja feita da melhor maneira possível. Deve-se
procurar proteger o patrimônio artístico da igreja como forma de manter os registros do passado
da religião e da arte, pois, esta arte sempre estará ligada às motivações da história da igreja
católica (CATÓLICA, 1999).
Entrando na questão da preservação do patrimônio histórico e artístico a responsabilidade
pela mão de obra especializada fica mesmo a cargo das universidades e centros de pesquisas.
Hoje, é mesmo a universidade que vai procurar resgatar e devolver à comunidade a história de
seu patrimônio, de maneira sistematizada e organizada, dando subsídios para que a informação
seja usada da melhor forma possível no futuro (CAMARGO, 1999).
Não apenas se preocupando com o resgate da história do patrimônio ou obra de arte,
vemos também que são hoje os centros de pesquisas das universidades que se preocupam com a
manutenção dos registros e documentos de forma a proteger a história destes registros de
manuseio excessivo. A digitalização ou microfilmagem tem-se mostrado meios organizados e de
fácil acesso aos historiadores e pesquisadores. Pensar nas pesquisas futuras é pensar em preparar
o presente a fim de facilitar os acessos. Não só permitindo que estes pesquisadores tenham
acesso ao acervo como também a comunidade em geral (ANDRADE, 1999).
380
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Exemplo muito bom de facilidade no acesso a documentos antigos, jornais e revistas de
Campinas, e na maneira como são tratadas estas informações encontramos hoje, na biblioteca
Edgard Leuenroth do Ifch da Unicamp. Pessoas treinadas, documentos digitalizados e
comunidade integrada são os resultados deste importante trabalho de acessibilidade, documentos
ainda não digitalizados tem possibilidade de serem fotografados, um esforço de grandes
proporções da universidade em facilitar o acesso seguro aos acervos.
Cita-se também o projeto da professora Beatriz Coelho da UFMG 1 (2005), através do
CEIB2, onde estão sendo catalogados trabalhos e artistas de todo o estado de Minas Gerais,
estendendo-se agora esta catalogação a trabalhos de imaginária de todo o Brasil.
Estudar o passado, preservar o presente e preparar o futuro continuarão a ser desafios
constantes aos historiadores de arte.
A Catedral Metropolitana N. Sra. da Conceição de Campinas
Estudar a Catedral Metropolitana de Campinas é como resgatar a história da cidade de
Campinas, seus 76 anos de construção contam, passo a passo, o desenvolvimento da cidade ao
longo deste período.
Em 1807 os desbravadores estabelecidos na cidade, planejam a construção de uma igreja.
A construção desta igreja não possuía somente um caráter religioso, mas também de autonomia
econômica, para que uma freguesia se tornasse vila e, posteriormente, cidade era necessário aval
da igreja católica, religião dominante, e do poder imperial investido no governador da província.
A finalidade desta autonomia residia na falta dos rituais católicos a que os fiéis estavam
acostumados e também na autonomia econômica pleiteada pelos novos desbravadores e
agricultores.
Em 1797 a freguesia de Mato Grosso respondia política, econômica e religiosamente à
província de Jundiaí. Para estabelecer-se oficialmente, começam-se movimentações, coletas de
esmolas e pedidos insistentes a “bons homens”3 da cidade em favor da construção de uma igreja.
Possuir uma igreja construída era no período privilégio de poucos e as dificuldades na
autorização vindas da província e da igreja eram inúmeras. A primeira igreja construída foi a
chamada igreja da freguesia, no largo de Santa Cruz, hoje demolida e cuja paróquia passou para
a atual Basílica Nossa Senhora do Carmo de Campinas, chamada no período de Matriz Velha.
1
UFMG- Universidade Federal de Minas Gerais.
Centro de Estudos da Imaginária Brasileira - site: http://www.ceib.org.br
3
“Bons homens”, homens estabelecidos na freguesia que podiam contribuir com dinheiro e poder político, eram
no início das principais cidades os responsáveis por garantir à igreja o poder de se autossustentar das cidades
recém-fundadas.
2
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Mas em 1807 “bons homens” da freguesia determinam a construção de uma igreja para
estabelecer a cidade, porém, não seria apenas uma igreja, mas uma igreja de grandes proporções
que mostrasse aos visitantes e ao império, a importância da freguesia. Esta igreja seria, não
obstante sua importância religiosa, um símbolo do status e poder econômico que a recémimplantada agricultura cafeeira e canavieira estava representando para a cidade (PUPO, 1969).
Iniciados os trabalhos de taipa em 1820 da chamada Matriz Nova, e que seria, no futuro,
a freguesia do sul Nossa Senhora da Conceição, sua conclusão ocorreu somente em 1850. As
guerras e doenças, como a febre amarela, atrasaram em muito as obras. Em 1850 o corpo da
igreja fica pronto mas sem infraestrutura como portas, janelas e fachadas. Em 1853, novamente,
em um questão de honra religiosa e status econômico, o rico comerciantes português
estabelecido na cidade Antônio Francisco Lisboa, apelidado “Baía”, se oferece para trazer a
Campinas um entalhador baiano da qual conhecia o trabalho realizado em Salvador, de nome
Vitoriano dos Anjos Figueroa.
Vitoriano dos Anjos, nascido estima-se em 1765, no estado da Bahia, havia aprendido sua
arte com os mestres portugueses desembarcados naquele Estado, importante porto recebedor de
artistas europeus. Sua vida artística foi desenvolvida e documentada pelo doutor em historia da
arte Luiz Alberto Freire (2006), da UFBA 4. Neste trabalho meticuloso e de importância extrema
para o conhecimento dos trabalhos de talha na Bahia, Luiz Freire (2006) comprova a passagem e
os trabalhos de Vitoriano dos Anjos nos altares laterais da igreja Nosso Senhor do Bonfim de
Salvador e no trabalho completo de talha da igreja de São Salvador de Valença.
Conforme atesta o professor Luiz Freire, as igrejas baianas permaneceram desfavorecidas
e sem estudo por muito tempo, devido ao favoritismo da imagem do barroco mineiro brasileiro.
A talha neoclássica foi considerada arte de menor valor, ignorando os órgãos de preservação
inclusive as edificações com arquiteturas tidas como “neoclássicas”. Neste esteriótipo de Brasil,
foi alienado então, por vários anos, os importantes trabalhos artísticos em igrejas com talha
neoclássica baianas e a Catedral Metropolitana de Campinas (FREIRE, 2006).
Vitoriano antecipou nas igrejas de Salvador e Valença a monumentalidade que dedicaria
a Campinas, mas mesmo o professor Freire nos diz que “O exemplar de Campinas é, sem dúvida,
obra excepcional no contexto desta tradição” (2006)
Também Germain Bazin em seus estudos pelas igrejas barrocas mineiras não deixou de
tecer elogios ao trabalho de talha neoclássica da Bahia, fundamentando a importância do estilo
no Brasil: “O décor neoclássico é tão importante na Bahia, tão numerosos são os altares desse
4
UFBA- Universidade Federal da Bahia
382
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
estilo na ‘Roma Negra’, que terminam por deixar ao visitante surpreso a lembrança paradoxal de
uma cidade onde o neoclassicismo dominava a decoração da igreja!” (1983).
Apesar do importante trabalho de talha no altar mor de Campinas, demonstrando as
origens neoclássicas baianas de sua formação, indisposições com Antônio Carlos de Sampaio
Peixoto, diretoria de obras da Matriz Nova, o afastam de suas atividades em 1862. Os estudos até
o momento não demonstram ou contestam sua participação em outras obras dentro da Catedral.
Algumas informações sobre o altar mor também foram estudadas pelo professor Luiz Freire em
sua tese de doutorado, onde características mais detalhadas foram comparadas aos altares
baianos (2008).
Em 1862, assume os trabalhos de talha da Catedral o entalhador ituano e que vivia no Rio
de Janeiro, Bernardino de Sena Reis e Almeida, vindo de uma outra escola de entalhadores,
Bernardino, porém, recebe a incumbência de produzir os altares laterais, colaterais e,
possivelmente, o para-vento na mesmo estilo usado por Vitoriano dos Anjos. A não existência de
policromia e douramento nos trabalhos de talha é desafio a ser desvendado, procura-se
determinar se a obra sem o acabamento, tão comum no período, seria um pedido expresso de
quem o encomendou. Bernardino e seu grupo de ajudantes terminam a encomenda em 1865.
Novos atrasos e falta de recursos atrasam novamente os trabalhos na Matriz Nova em
1873, devido a grande problema estrutural encontrado no trabalho dos alicerces que abalaram a
fachada de maneira irreversível, o responsável pelas obras de engenharia da prefeitura determina
ser necessário demolir a fachada em construção, o que acarretou demissão do mestre de obras. A
fachada, inicialmente escolhida, possuía estilo gótico, sendo impossível construir a mesma
devido ao peso da estrutura necessária em um terreno de alicerces tão fracos.
A prefeitura de Campinas contrata então os serviços do escritório de engenharia de
Cristóvan Bonini, engenheiro italiano estabelecido no Brasil. Bonini verifica, com o tempo e
novas faltas de verbas, que seria impossível terminar a fachada com duas torres (seu projeto
inicial) devido novamente à falta de estrutura dos alicerces. Apesar de manter as características
arquitetônicas que o templo possui hoje, ou seja, a fachada projetada por ele, a mesma foi
construída com apenas uma torre. A idade avançada e novas problemas surgidos afastam dos
trabalhos Cristóvan Bonini, que abandona o projeto em 1878.
Em 1879 em novo processo de contratação de obras para a Matriz Nova, a prefeitura de
Campinas opta pelo recém-chegado e formado arquiteto na Europa, Francisco de Paula Ramos
de Azevedo. Apesar de ainda muito jovem Ramos de Azevedo, conduz de maneira tranquila as
obras finais da Matriz Nova de 1879 à 1883. O memorial descritivo feito por Ramos de Azevedo
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
no início de seus trabalhos atesta a falta de portas, janelas, escadas, iluminação, campanário e a
necessidade da troca do telhado que se encontrava em condições muito ruins.
No começo de 1883 Ramos de Azevedo solicita à prefeitura de Campinas entrega do
mobiliário, luminárias, decorações condizentes com a edificação, pois, seu trabalho estava
terminado e gostaria de entregar à cidade de Campinas sua Matriz Nova, pronta para as
comemorações do dia da padroeira da cidade.
Ramos de Azevedo não somente terminou a fachada frontal da Catedral como projetou a
fachada no fundo do edifício. Colocou portas e janelas que não existiam, instalou a novidade da
iluminação a gás na Catedral. Projetou e construiu as escadas que ligam os diversos pavimentos
internos do edifício e sem os quais não seria possível acessar a todos os pavimentos. Sua grande
importância para Campinas, dentre outras obras, reside na entrega oficial, após tantos anos, da
futura Catedral Metropolitana de Campinas, sede do arcebispado de Campinas. Interessante
observar que o dia da inauguração da Catedral, 8 de dezembro de 1883, não é somente o da
padroeira Nossa Senhora da Conceição mas também o aniversário de Ramos de Azevedo.
Resta agora o outro grande desafio do projeto desta pesquisadora, encontrar os
componentes que faziam parte desta edificação em sua inauguração, imagens que faziam parte
de seu acervo, mobiliário, detalhes arquitetônico e possíveis pinturas.
Volta-se aqui agora ao modelo proposto de Giorgio Vasari, de que para entendermos a
edificação histórica tombada, precisamos retomar a todos estes artistas e personagens
importantes que a construíram. As motivações econômicas que levaram à sua encomenda e
idealização, ao contexto em que ela foi construída, aos problemas e divergências surgidas e que
levaram a modificações substanciais em seu projeto inicial. Jorge Coli (2005) nos diz que
devemos olhar atentamente para a arte produzida com este efeito, não somente de arte, de
religião mas também de símbolo de história e autenticação de um passado, necessário se faz aqui
também olhar para o contexto, o tempo e os ideais, os materiais e artistas escolhidos, suas
origens e as relações da obra com todos os contextos possíveis. A história real da arquitetura se
fará com o estudo de todo seu conjunto, seus móveis, pinturas, esculturas e os detalhes
arquitetônicos desejados para ele.
O projeto de catalogação do acervo da Catedral se estende de 1850, final das taipas, até o
ano de 1923, última grande reforma estrutural e colocação de adereços que hoje compõe sua
fachada.
A história da Catedral de Campinas se confunde com a história de tantas outras que
deram início a cidades e vilas, representa não apenas um templo de fé e devoção, mas uma obra
de arte a ser preservada e que conta uma história.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Este artigo encerra-se com a mais simples e bela citação do historiador campineiro Celso
Maria de Mello Pupo (1969), primeiro historiador a entrar em contato com o acervo artístico da
Catedral Metropolitana em 1965, definindo porque este templo merece estudo de seu passado:
“A aristocracia cafeeira demandava novos símbolos de seu poderio. A Matriz Nova, depois
Catedral Metropolitana, com seu impressionante acervo artístico e arquitetônico era um deles.”
Referência
Bibliográfica:
ANDRADE, A. C. N. “Microfilmagem ou Digitalização? O problema da escolha certa.”
Arquivos, Patrimônio e Memória. Unesp, 1999.
BAZIN, G.; BARATA, M. A arquitetura religiosa barroca no Brasil: Estudo histórico e
morfológico. Repertório monumental, documentação fotográfica, índice general. Editora
Record, 1983.
CAMARGO, C. “Os Centros de Documentação das Universidades: tendências e perspectivas”.
Arquivo, Patrimônio e Memória. Unesp, 1999.
CATÓLICA, I. A CARTA MAGNA SOBRE O INVENTÁRIO/CATÁLOGO DOS BENS
CULTURAIS DA IGREJA. Vaticano, 1999. (Recuperado julho 12, 2011)
COELHO, B. Devoção e arte: imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, 2005.
COLI, J. Como estudar a arte brasileira do século XIX?. São Paulo: Editora Senac, 2005.
FREIRE, L. A. R. A talha neoclássica na Bahia. Versal, 2006.
FREIRE, L. A. R. Vitoriano dos Anjos Figueiroa, o Altar-mor da Sé de Campinas e a tradição
retabilística baiana. Salvador, Bahia, 2008. Tese (Doutorado) - Universidade Federal da Bahia.
GONÇALVES, J. R. S. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
PUPO, C. M. Campinas, Seu berço e Juventude. Academia Campinense de Letras, 1969.
(Recuperado agosto 8, 2010)
SILVA, Z. L. DA. Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. UNESP, 1999.
385
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Figura 1: 1853-1862,Vitoriano dos Anjos Figueroa, Altar-Mor, madeira sem policromia ou
douramento, Catedral Metropolitana de Campinas. madeira sem policromia. Vitoriano dos
Anjos,1853-1862.
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Figura 2: c.1900, autor desconhecido, abóboda com entalhes em madeira,
Catedral Metropolitana de Campinas.
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Figura
3:
São
Paulo,
origem
desconhecida, madeira policromada e
dourada,
carnação.
Museu
Arquidiocesano de Campinas.
Figura 4: 1908, Marino Del Fávero, anjo
tocheiro, madeira policromada e dourada.
Museu Arquidiocesano de Campinas.
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Figura 5: 1862-1865, Bernardino de Sena Reis e Almeida, altares laterais e colaterais, madeira sem
policromia e douramento. Catedral Metropolitana de Campinas.
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A AMBIGUIDADE DO SER: PAIXÃO E MELANCOLIA NAS REPRESENTAÇÕES DO
FAUNO NO SÉCULO XIX
Paulo André Gomes Soares
Solitário, um fauno está a dançar estaticamente isolado no jardim da antiga residência do
colecionador Raymundo Castro Maya em Santa Teresa, atual Museu da Chácara do Céu. O
fauno dançando, assim denominada a obra, teve esse seu momento de pura efemeridade
eternizado, retido nessa reprodução datada da segunda metade do século XIX. Originariamente
de Pompeia, onde nomeou a Casa do Fauno, a estátua sobreviveu a séculos soterrada em meio às
cinzas do vulcão Vesúvio para então ser descoberta no século XVIII e se destacar no século
seguinte, quando começaram a ser produzidas suas primeiras cópias.
Apesar do fauno já ter sido protagonista de várias obras ao longo da história da arte,
chama minha atenção o caráter que esta criatura mítica irá tomar ao longo do século XIX,
proliferando não apenas nas artes plásticas, mas principalmente na literatura, em que haverá uma
onda de poesia faunesca que culmina na grande écloga de Stéphane Mallarmé, “A tarde de um
fauno”, marco do simbolismo francês. Nele, um fauno solitário, após despertar de sua sesta,
recorda nostálgico os acontecimentos que lhe acometeram naquela manhã. Como ser dotado de
alta libido e desejos sexuais latentes, é comum associar os faunos às perseguições de ninfas, ora
representadas como bacantes. Com o fauno mallarmaico não é diferente. O que destaca-se na
obra é a narração dos acontecimentos que não se dá no momento presente, mas no campo da
memória ou até mesmo da imaginação. Ao iniciar o poema aludindo à sua vontade de “perpetuar
estas ninfas”, cria-se um mistério acerca da proveniência dessas ninfas, mas que faz-se especular
que elas seriam uma reminiscência, em sua consciência, de um contato real ou imaginário; e um
segundo mistério que faz-nos questionar de que modo ele eternizaria essas criaturas, que já não
mais existem em sua realidade. Resta-lhe a memória, a poesia e a música, campos tão
transitórios que é difícil falar em permanência. Nosso fauno tem plena consciência disso e isso
parece refletir em sua atitude contemplativa de algo que não está lá. O poema tem, então, essa
característica de trazer para o plano do não-lugar, tendendo para a idealização, os fatos narrados
pelo protagonista.
Ao analisarmos um dos desenhos feitos por Manet especialmente para ilustrar a obra de
Mallarmé, vemos o fauno sentado em meio silvestre a contemplar algo distante, mas que exerce
um fascínio irresistível sobre ele. Esse objeto de fascínio, dista-se dele não apenas no plano

Universidade do Estado do Rio de Janeiro/CNPQ
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físico mas também no metafísico, uma vez que ele parece estar fadado a nunca alcançar seu tão
almejado objeto de desejo, seja na realidade ou em seus sonhos, estando sempre preso em um
estado de solidão constante. Nessa dualidade de espaços, rende-se à embriaguez do vinho que faz
com que seus delírios amorosos busquem horizontes ainda mais distantes e inalcançáveis como a
própria deusa do amor, Vênus. O fauno então refugia-se na poesia e lirismo de sua flauta, pois
apenas através da música e da arte que seus anseios eróticos e sua libido serão verdadeiramente
saciados. Como bem explica Roberta Kelly Paiva em sua dissertação sobre o fauno mallarmaico:
“É por meio dela, aliás, que nosso fauno expressará seus nobres e louváveis dons.
Com efeito, é a música que lhe permite aceder à poesia, instância que, já para os
gregos antigos, possui algo de transcendente e sobrenatural, pois é capaz de tocar
o espaço do Ideal, como se estivesse em direta comunicação com o mundo divino.
Assim, quanto mais ele purifica seus instintos carnais convertendo-os em
expressão artística, tanto mais ele consegue desprender-se da atmosfera terrestre e
de seus sórdidos impulsos e atingir um patamar superior.” (PAIVA, Roberta
Kelly, 2010.)
E é na música que o poema vai se desdobrar em 1894, musicado por Claude Debussy,
numa composição orquestrada intitulada “Prelúdio à tarde de um fauno”. Sua introdução em solo
de flauta, marcada pelo intervalo trítono1 numa escala descendente que logo em seguida ascende
novamente, é inspirada na flauta pastoral proveniente do mito de Pã e Siringe 2. É uma peça
intensa, apesar da suavidade também característica, pois não há cortes bruscos, tudo flui
dinamicamente alternando entre as paixões e frustrações do fauno. Sua irregularidade métrica e o
uso de acordes semidiminutos criam uma atmosfera ambígua em termos tonais que, como
analisado anteriormente no poema de Mallarmé, é um dos pontos chaves para se entender a
figura do fauno proposta neste artigo.
Temos ainda, retornando ao campo literário, o poema “Ode a uma urna grega” do inglês
John Keats, em que o eu lírico está frente a uma urna grega e, dotado de uma melancolia
proveniente de uma nostalgia daquilo que não vivera, ele analisa as imagens nela contida
1
Intervalo entre três tons, um dos mais peculiares intervalos da música ocidental, uma vez que sua qualidade tonal
esteja relacionada com sentimentos de tensão , dissonância e um certo dinamismo tão característicos que seu uso
era evitado durante a idade média recebendo a alcunha: “o diabo na música”.
2
O mito trata da perseguição do deus Pã à ninfa Siringe que ao buscar auxílio às ninfas dos rios, suas irmãs, é
transformada em caniços de junco no momento em que Pã iria abraçá-la. Descontente, Pã suspira em frustração e o
ar que passa pelos caules ocos, que antes eram sua desejada ninfa, emitem um suave som de flauta que encanta o
deus fauno. Assim, Pã corta os tubos em sete tamanhos diferentes e os prende uns aos outros formando a famosa
flauta de pã, batizada por ele de Siringe.
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imaginando um tempo suspenso. No poema, apesar de não aparecer explicitamente a figura de
um fauno, o poeta descreve uma situação de perseguição, envolvendo membros muito facilmente
associados a faunos e ninfas. Nessa situação introduzida no término da primeira estrofe do
poema e que se prolonga durante toda a segunda estrofe há a uma indicação musical que precede
a insistência de um amante em relação a sua amada. Ao que indica o poema, este amante está
envolvido entre sua silenciosa música, indicada pela sua flauta, e sua amante que evita seus
beijos. Como podemos ver no trecho a seguir:
“A música seduz. Mas ainda é mais cara/Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso
tom/ Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,/ O supremo saber da música
sem som/ Jovem cantor, não há como parar a dança,/ A flor não murcha, a árvore
não se desnuda/ Amante afoito, se o teu beijo não alcança/ A amada meta, não sou
eu quem te lamente/ Se não chegas ao fim, ela também não muda,/ É sempre
jovem e a amarás eternamente.”(KEATS, John. “Ode on an Grecian Urn”
,tradução de Augusto de Campos)
O poeta prima pelo momento que foi condicionado à urna: “a música sem som”; “não há
como parar a dança”; “a flor não murcha”; “a árvore não se desnuda”; “teu beijo não alcança”; “é
sempre jovem e a amarás eternamente”. Todos esses elementos, efêmeros em sua natureza,
foram eternizados e permanecerão intactos na frieza do mármore da urna, assim como nunca
terão seus ciclos finalizados. A relação de tempo e espaço entre o narrador e a urna se confunde
com a do leitor e o do poema. Real e imaginação, paixão e permanência confundem-se nas
diferentes camadas de ficção geradas pela urna e pelo próprio poema, criando, assim, um jogo
ambíguo da mesma natureza dos faunos até então estudados.
Na pintura, o húngaro Pál Szinyei Merse irá recorrer a temática do fauno com ninfa em
algumas de suas obras. Em 1867, ele pinta o quadro “Um Fauno”(também conhecido como
“Fauno e Ninfa”), onde os clássicos elementos aqui estudados aparecem: um fauno solitário em
atitude contemplativa, a flauta de pã, ambiente silvestre e uma ninfa distante. A estética
impressionista confere uma atmosfera quase onírica à situação em que o fauno está tão entretido
ao tocar sua flauta que nem repara na ninfa que o observa; possivelmente atraída pela melodia,
assim como no poema de Keats onde a silenciosa melodia precede o encontro dos amantes. Um
ano mais tarde, Szinyei refaz o quadro sob um estilo mais academicista, deixando-o mais sóbrio.
Os elementos da composição permanecem basicamente no mesmo lugar, porém o fauno não
mais toca a sua flauta e parece agora notar a presença da ninfa escondida atrás dos arbustos que,
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apesar de olhar em sua direção, talvez não tenha ciência de seu observador. A face risonha
reflete a natureza das possíveis fantasias que tomam espaço na mente do fauno, mas seu corpo
preguiçoso ainda encontra-se relaxado e confortavelmente acomodado à grama. A ação encontrase ainda no campo das ideias. Até que um terceiro quadro de Szinyei, mudará o panorama do
fauno. De data desconhecida, mas por volta do mesmo período dos outros dois anteriores, entre
1867 e 1869. Com o mesmo titulo dos anteriores, acredita-se que este tenha sido o desfecho do
artista para a história de seu fauno.
Ele finalmente obtém sua ninfa sem nenhum pudor, numa representação que oscila entre
o erótico e o pornográfico. A dicotomia de alto/sublime e baixo/grotesco se apresenta em muitos
aspectos aqui. Se antes seus devaneios e fantasias poderiam alcançar a esfera do sublime através
da arte e da música, no momento em que elas se concretizam, tomam a forma do grotesco. Até a
ninfa, como ser dotado de uma suavidade e harmonia naturais, é contaminada pela
monstruosidade do fauno ao se deixar cair em seu braços. O contraste da alvura e delicadeza
feminina dessa ninfa com os pelos escuros e os cascos brutos e viris do fauno compõe o principal
fator para essa desarmonia, ou talvez, harmonia grotesca.
Dessa forma, assim como nos faunos analisados até então, o nosso fauno dançarino da
Coleção Castro Maya se mantém em certa ambiguidade, além daquela já inerente a todos os
faunos tais como as que dizem respeito aos seus aspectos humano/animal, mundano/divino,
mortal/imortal. Nela, o tempo também lhe é ambíguo por ser concebida primariamente na
antiguidade, mas sendo esse exemplar gerado pelas mãos de um artesão moderno, logo, com uma
diferente mentalidade de um romano antigo. Seu lugar de exposição, não poderia ser mais
apropriado. Sendo uma criatura pastoral, o fauno parece ganhar vida no jardim e o seu
isolamento em relação às outras peças apenas reforça sua natureza solitária. Sua dança nunca
terminará, assim como a silenciosa música na urna de Keats, sua embriaguez será constante pois
eternizá-la em uma estátua foi a única maneira de prolongar algo que após seu êxtase estaria
fadado a sucumbir em uma forma de vanitas. E como o fauno mallarmaico, apenas na expressão
artística ele descobre a verdade capaz de saciar seus insaciáveis anseios e ascender ao sublime.
Referência Bibliográfica:
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1999.
GRIMAL, Pierre. DICIONÁRIO DA MITOLOGIA GREGA E ROMANA. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1993.
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KURY, Mario da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Jorge Zahar Editora, 1994.
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Modernidade em L'Après-midi d'un faune, via Mallarmé, Manet e Nijinsky / Roberta Kelly
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Figura 1: 2ª. metade do século XIX, Fauno dançando, Local de Proveniência: Itália,
Localização: Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro.
394
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Figura 2: 1876, Edouard Manet, Frontispício a L'Après-midi d'un faune
Figura 3: 1867, Pál Szinyei Merse, Fauno e Ninfa (estudo),Proveniência: Hungria, Óleo sobre
madeira, 33 x 22 cm, Galeria Nacional Húngara, Budapeste, Hungria.
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Figura 4: 1868, Pál Szinyei Merse, Fauno e Ninfa, Óleo sobre tela, 46 x 61cm, Proveniência:
Hungria, Localização: Galeria Nacional Húngara, Budapeste, Hungria.
Figura 6: c.1867-9 , Pál Szinyei Merse, Fauno e Ninfa, Óleo sobre tela,Proveniência: Hungria
Localização: Coleção privada.
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UM BIÓGRAFO NO DIVÃ: AUTO-IMAGEM, TRAJETÓRIA, MODÉSTIA E
ENGRANDECIMENTO NAS VITE DE GIORGIO VASARI.
Pedro Henrique de Moraes Alvez*
Vasari escreveu suas biografias com o objetivo de deixar exemplos positivos e negativos,
para que seus leitores refletissem sobre as trajetórias individuais representadas e delas pudessem
fazer uso em suas próprias vidas. Em outras palavras, a história era para o autor a “Mestra da
Vida”, e as narrativas vasarianas apresentam um cunho moralizante. Um exemplo disso é a Vita
de Paollo Ucello, que teria sido um grande artista, se ao invés de estudar obstinadamente a
perspectiva, tivesse dedicado algum tempo de sua vida ao estudo das figuras. Ao dedicar-se com
tamanha obstinação ao estudo da perspectiva, Ucello desperdiçou seu talento, e acabou morrendo
pobre e sozinho. A imparcialidade certamente não fazia parte do programa historiográfico de
Vasari. O que temos aqui não é uma simples trajetória narrada por um observador pretensamente
afastado de seu objeto, mas um julgamento deliberado da vida da personagem, que constitui um
contra-exemplo.
Por trás de toda a narrativa moralizante de Vasari, subjaz o mais oculto de seus
propósitos: a manipulação subconsciente de suas anedotas e comentários, para que eles sirvam
aos objetivos pessoais de seu autor. Eles servem à sua auto-imagem, justificam sua posição
privilegiada no meio artístico italiano, ao mesmo tempo em que reforçam suas já consolidadas
relações com importantes figuras da época. Não menos importante, as Vite assumem o papel de
uma confissão na qual Vasari expõe sua trajetória engrandecendo-se através da falsa modéstia e
pedindo aprovação de seus leitores, buscando alimentar suas inseguranças. Dito de outra forma:
as biografias de Giorgio Vasari são também, em seu conjunto, uma autobiografia. Vasari
moldava suas personagens para que se adequassem ao seu propósito de fortificar sua autoestima, como o faz, por exemplo, na vita de Girolamo Carpi, onde o pintor é condenado por
desperdiçar seus talentos ao casar antes do tempo, o que atrapalhou seu desenvolvimento como
artista completo, evidenciando uma experiência do próprio Vasari, casado aos 39 anos, em 1550.
Uma autobiografia não é uma história contada em todos os seus detalhes, ao escrever
uma autobiografia, o indivíduo dá sentido à sua própria existência - com o duplo significado de
direção e de finalidade, e ele o faz selecionando fatos e enquadrando-os de acordo com a imagem
que o indivíduo tem de si mesmo. Neste trabalho, pretendo buscar a forma como Vasari dava
*
Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPQ
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significação à sua trajetória e a forma como ele construiu sua auto-imagem, que corresponde em
grande parte à imagem do homem ideal que ele pretendia traçar através de seus exemplos.
Escrever uma obra carregada de pretensões didáticas como as Vite requer uma atitude um
tanto pretensiosa que requer alguma atenção. Na conclusão da edição de 1550 Vasari se dirige
aos “virtuosos artistas” e também aos seus “outros nobilíssimos leitores”. Ele escrevera a obra
para dois públicos diferentes, com diferentes objetivos: introduzir os leigos às artes e orientar os
artistas nas suas trajetórias. No prefácio geral da obra, ele escreveu: “Me parece necessário, antes
que venha a história, fazer brevemente uma introdução àquelas três artes [...] para que um
espírito gentil entenda primeiramente as coisas mais notáveis” (VASARI, 2005: 37). Além de
pretender que sua obra fosse lida como um guia de conduta pelos artistas, Vasari desejava que
sua obra fosse um manual técnico confiável das artes, cujas teorias poderiam servir de base para
compreender e julgar verdadeiramente e com segurança as obras de arte, além de tornar possível
aos iniciantes o domínio de técnicas fundamentais, e era ele quem, de acordo com seus próprios
conceitos, tinha capacidade para fazer esse intermédio, pois unia as qualidades de um cortesão e,
senão o talento artístico, o juízo de um conhecedor das artes.
Apesar de toda a modéstia que Vasari tenta demonstrar ao longo da obra, reconhecendo
suas limitações, é necessário afirmar que ele julgava-se apto para tal tarefa As ressalvas que o
autor faz ao longo da obra de suas limitações são, na realidade, um lugar comum da literatura
cortesã da época, que pregava o comedimento, a contenção das paixões e a manipulação das
aparências. A modéstia consistia numa das fórmulas da arte da conversação, e era na verdade
uma forma de elogiar a si mesmo sem fazer isso de maneira explícita, sabendo a hora e a forma
correta de manifestar-se mantendo a “discrição”, qualitativo cortesão que indicava o domínio das
formas e momentos de se manifestar, e que se opunha a “vulgaridade”.
Vasari demonstra o domínio dessas fórmulas e protocolos na famosa passagem em que
ele narra o diálogo à mesa do Cardeal Alessandro Farnese e que teria dado o impulso inicial para
a criação das Vite. Contava Vasari que ia muitas vezes à noite
Ao fim da jornada, ver cear ilustríssimo Cardeal Farnese, onde estavam sempre
presentes a entreter, com belíssimas e honradas conversas, Molza, Anibal Caro,
Messer Gandolfo, Messer Claudio Tolomei, Messer Romolo Amasseo, monsignor
Giovio, e outros tantos literatos e cavalheiros, dos quais é sempre cheia a corte
desse senhor, veio-se a conversar sobre o museu de Giovio, e dos retratos dos
homens ilustres que ele colocou em ordem com belíssimas inscrições; e passando
de uma coisa a outra, como se faz em conversações, monsignore Giovio disse que
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ele sempre teve, e continuava a ter, um enorme desejo de adicionar ao seu museu
e ao seu livro de Elogii um tratado que seria sobre aqueles que foram ilustres na
arte do desenho do tempo de Cimabue até o nosso. Alargando-se no assunto, ele
certamente demonstrou grande conhecimento e julgamento em assuntos artísticos,
mas é igualmente verdade que, uma vez que era suficiente para ele fazer uma
grande volta, ele não se debruçou detalhadamente, e falando sobre esses artistas
ele frequentemente confundia seus nomes e sobrenomes, sua pátria, seus trabalhos
e não falava sobre as coisas com precisão, mas aproximadamente. Terminado o
discurso de Giovio, o Cardeal voltou-se a mim e disse “Que nos diz você Giorgio,
não será essa uma bela obra e fadiga?”. “Bela”, respondi eu, “meu senhor
ilustríssimo, se Giovio fosse ajudado por alguém da arte a por as coisas em seus
lugares, e a dizer como estão verdadeiramente. Falo assim, porque, se bem esteve
em seu discurso maravilhoso, trocou e disse muitas coisas uma pela outra.”
(VASARI, 2005: 1372)
Vasari prossegue o relato, contando como o cardeal pediu então a todos que
sumarizassem os artistas e suas obras segundo seu tempo. Foi aí que Vasari, mesmo sabendo que
tal tarefa estava acima de suas forças, prometeu consultar suas anotações, que havia recolhido
desde sua juventude, como um “certo passatempo e pela afeição que tinha pela memória dos
artistas.” (IDEM). Giovio, então, delega a tarefa totalmente a Giorgio, pois ele seria incapaz de
escrever um tratado que diferisse muito do de Plínio, uma vez que ele não conhecia “as
maneiras, nem sabendo muitos particulares” que saberia nosso autor.
Como demonstram Germain Bazin e Patricia Lee Rubin, esse diálogo na corte jamais
aconteceu, pelo menos não no ano nem na forma como Vasari o narrou. Na data de 1546 Molza
já estava morto e nem todos esses homens estavam em Roma. Além disso, quatro anos seria
pouco tempo para que Vasari conseguisse escrever uma obra do tamanho das Vite, lançada pela
primeira vez em 1550. Já Boase prefere não desconsiderar a validade do episódio, datando-o em
1543.
Ficção ou não, o episódio, na maneira como foi narrado, servia a inúmeros propósitos do
mestre aretino. Vasari demonstrava através dele todo seu trato cortesão e sua qualificação para
escrever o dito tratado, praticamente sem dizer nenhuma palavra em seu favor. Ele refere-se a
todos os homens no diálogo com adjetivos laudatórios e pronomes de tratamento adequados,
além de elogiar a corte do cardeal pelas suas “belíssimas e honradas conversas” bem como pelo
seu seleto grupo, no qual ele mesmo se inclui ao dizer que costumava frequentá-lo. Note-se que
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não é ele quem inicia a discussão sobre arte, levando a conversa a um domínio no qual ele
detinha a maior autoridade entre os presentes, mas ela caminha para ela naturalmente “de uma
coisa a outra, como se faz em conversações”. Também não é Vasari quem toma a iniciativa de
opinar sobre a empreitada ou o discurso de Giovio, ele apenas participa do diálogo quando
solicitado pelo cardeal, que era quem devia tomar as rédeas da conversa, uma vez que era em sua
corte que se dava a conversa.
Vasari sabia, sem dúvida, seu lugar, e não se manifestou até ser solicitado, demonstrando,
no entanto, oportunismo e habilidade para que fosse concedida a ele a honraria sem que ele
precisasse pedir explicitamente. Ele demonstra todo seu tato ao elogiar o “maravilhoso discurso”
de Giovio, antes de criticá-lo, e sua habilidade ao levar a conversa para um ponto onde lhe fosse
favorável, e está de acordo com a fórmula do Cortesão de Catiglione ao conseguir elogiar a si
mesmo ao mesmo tempo em que finge não estar fazendo-o. Ele sugere ao cardeal que Giovio
fosse ajudado por “alguém da arte”, sem oferecer seus serviços para tal tarefa, mas sabendo ser o
mais apto na ocasião, de maneira que a tarefa seria delegada a ele de uma forma ou de outra.
Vasari aceita o encargo, ao qual ele é impelido por Giovio, uma vez que ele sequer pretendia
realizá-lo sozinho, mas apenas ajudar o amigo aparentemente.
Por fim, Vasari consegue, através dos elogios de Giovio – e não seus -, firmar sua
autoridade como conoisseur das artes, uma vez que é seu conhecimento que tornaria sua obra
melhor que a de Giovio e diferente da de Plínio, pois teria uma parte dedicada à técnica. Giovio
dominava a cortesania e as artes da escrita, mas não era artista e, portanto, não teria o
conhecimento necessário para tornar a obra satisfatória, o que o faz delegar a obra a alguém mais
capaz.
O diálogo ambienta-se num espaço cortesão par excelence, no qual não existem
conversas casuais, mas “discursos”, como chama o próprio autor, que são na verdade
performances pessoais, sujeitas a avaliações dos outros presentes. Como ilustra Rubin, a mesa de
refeições era uma convenção que remontava a Platão e havia sido usada por Filarete e Giovio da
mesma maneira para legitimar seus tratados. Ao fazer isso, o autor dava legitimidade a sua obra
ligando sua origem à presença de homens ilustres e distintos, ao mesmo tempo em que ligava a
sua própria pessoa a esse mesmo grupo. As Vite eram destinadas também a uma elite não
artística, que devia aprimorar seus conhecimentos artísticos para poder utilizá-los futuramente
em conversações semelhantes a essa narrativa.
A história também disfarça qualquer pretensão pessoal do autor ao escrever a obra, que
pode vir à mente a qualquer um que lembrar o quanto a carreira de Vasari deve a esse verdadeiro
monumento de papel. De fato, hoje, lembramos mais de Vasari como escritor e pai da história da
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arte do que como pintor, mesmo que ele tenha sido um bem sucedido artista em seu tempo. Na
conversa, Vasari é impelido pelo grupo a escrever o livro, não é uma iniciativa sua entrar nessa
empreitada. Também é importante notar que os seus registros pessoais foram recolhidos como
um passatempo e por uma paixão juvenil e não com objetivos práticos, e que a obra foi escrita
pela glória das artes e eternização dos artistas, e não de seu próprio autor, como ele mesmo refere
no prefácio geral da obra.
Sua modéstia mostrava ao leitor o comportamento distinto, sua polidez, necessária ao
bom julgamento das atitudes dos biografados além de firmar sua posição privilegiada junto ao
grupo seleto da elite toscana. Ela era uma espécie de selo de qualidade do autor, uma credencial
de nobreza que o tornava um homem distinto e conferia maior qualidade ao seu produto: as Vite.
A modéstia vasariana também estabelece uma espécie de cumplicidade entre autor e leitor, na
qual este último expõe suas inseguranças na esperança da aprovação do leitor.
Lembremos que o artista ideal das Vidas era tanto um possuidor de talento natural (que
hoje chamaríamos de dom), quanto um sujeito de boas maneiras, discernimento, dedicação e
uma série de virtudes morais, como Rafael e suas refinadas maneiras principescas. O dom era
para Vasari uma dádiva divina, dada, por exemplo, a Michelangelo, ou concedida pela natureza,
como é o caso de Giotto e, portanto, não podia ser adquirido. Já as boas maneiras podiam ser
aprendidas por meio da educação e da dedicação. O talento natural é uma insegurança de Vasari,
uma vez que está mais sujeito à avaliação alheia do que seu caráter, que ele mesmo podia avaliar
positivamente com base em sua auto-imagem, construída sobre os pilares da dedicação, do
estudo, e de uma entrega que corresponde quase a um martírio, levados adiante voluntariamente,
pelo amor às artes, pela busca da glória e pelo bem estar de sua família. Em suas palavras:
Algumas vezes dizia a mim mesmo ‘Por que não posso, com constante trabalho e
estudo, alcançar a glória e as honras que obtiveram outros?’ Eles também eram de
carne e osso como eu! Instigado por tantos e tão fortes estímulos e pela
necessidade que minha família tinha de minha ajuda, decidi não me perdoar
fadigas, incômodos, vigílias nem penúrias para lograr meu propósito. Guiado por
esse fim desenhei quanto de notável havia em Roma, em Florença e em todos os
lugares onde residi (op. cit.: 1359)
As questões do trabalho, do esforço, do estudo e das necessidades da família permeiam
toda a autobiografia de Vasari como, por exemplo, quando ele conta que na companhia de
Francesco Salviati copiava as obras de Rafael, Pulidoro e Baldassare de Siena, para que
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pudessem estudar depois, trabalhando tanto que chegavam a almoçar de pé. Ou então na
passagem em que ele relata como durante os preparativos para a recepção do imperador Carlos V
ele perdeu seus ajudantes, vítima das intrigas de seus inimigos, seguindo, no entanto, seu
trabalho, trabalhando incessantemente e com ajuda de pintores estrangeiros. Ao final da tarefa,
os que haviam se preocupado mais dele do que de sua tarefa, entregaram suas obras imperfeitas,
enquanto ele garantiu a satisfação do Duque dos outros, garantindo o pagamento de quatrocentos
escudos mais um prêmio de trezentos escudos retirados dos que não haviam entregado os
trabalhos da forma combinada, com os quais ele teria casado uma de suas irmãs e feito a outra
monja do convento das Murate de Arezzo.
O trabalho, a dedicação e o martírio pela família são os maiores valores enaltecidos pelo
autor, e constituem suas maiores certezas da solidez de seu caráter, as quais ele espera, se
necessário, compensem sua falta de talento artístico. Como ele mesmo afirma, referindo-se às
suas próprias obras: “Certo é que elas não possuem a perfeição que eu desejaria, sem dúvida
quem as contemple com ânimo sereno, verá que foram executadas com estudo, cuidado e carinho
e se não são dignas de loas pelo menos merecem benevolência.” (op. cit.: 1357)
Adiante, Vasari enaltece a nobreza de seu espírito na esperança de que o leitor valorize
sua arte
quero confessar a verdade assinalando os defeitos que reconheço pois se, como já
disse, carecem de excelência e perfeição, refletem um ardente desejo de obrar
bem, um infatigável desejo e o enorme amor que sinto pelas artes. Por isso espero,
conforme é direito, minha própria confissão de culpas contribua a seu perdão. (op.
cit.)
Essa forma de pacto está mais presente na autobiografia do autor, ao final da obra, no
entanto, podemos encontrar tentativas de estabelecer cumplicidade, ou no mínimo de
convencimento, em outras partes das vidas. Por exemplo, na Vita de Brunelleschi é apresentado
no preâmbulo um grande consolo aos homens de baixa estatura, revelando uma insegurança do
próprio autor quanto à sua altura.
Apesar da pouca confiança em seu próprio talento, Vasari tenta, mais adiante, sugerir que
ele talvez possua essa inclinação natural para as artes, ao lembrar que “Antonio, meu pai, me
guiou pelo caminho da virtude e me dirigiu ao estudo do desenho, ao qual me via tão inclinado.”
(IDEM) Mais uma vez, ele demonstra suas habilidades de indução, inserindo outro personagem
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em sua história, que realiza a tarefa de elogiá-lo por ele. É seu pai quem via nele as qualidades
artísticas e não ele próprio, e a tarefa de concordar ou não, é deixada para o leitor.
A história das relações entre pai e filho acima remete a o que podemos chamar de um
motivo Vasariano, que ele usa ao longo da obra para narrar as vidas de seus personagens. Se
olharmos atentamente para a importância que seu pai ocupa em sua vida, segundo sua própria
versão dela, veremos que o mesmo papel é cumprido pelo pai de Giotto, modelo exemplar que
Vasari criou com base em sua própria experiência, e que opôs ao pai de Michelangelo. Na vita de
Giotto, o jovem artista desenhava ovelhas em uma pedra, até que foi encontrado por acaso por
Cimabue, que passava pelo local. Este, percebendo o talento do garoto, quis levá-lo consigo para
Florença. A história remonta, na verdade aos comentários de Ghiberti, mas, como afirma Paul
Barolsky, Vasari lhe dá novos contornos: ele adiciona à anedota a figura do pai. Giotto responde
a Cimabue que ele iria desde que seu pai estivesse de acordo, e este, reconhecendo o talento
natural do filho permite que ele parta para Florença. Como em outras partes das Vidas, o
exemplo positivo de Giotto é contrastado com um negativo, que nesse caso corresponde ao de
Michelangelo, cujo pai considerava as artes pouco dignas de consideração. Nessa passagem
pode-se observar mais uma vez como Vasari utilizava-se de suas narrativas para criar um modelo
ideal baseado em sua própria trajetória ou, se preferirmos, na forma como ele próprio concebia
sua trajetória.
Já se disse anteriormente com bastante acerto que as Vite são um produto de sua época, e
que Vasari não pretendia que a obra fosse lida por uma série de acadêmicos das artes e um
conjunto de críticos capazes de refutar suas afirmações com base em documentos. Eu pretendia,
e espero ter tido sucesso, demonstrar como a escrita e a publicação das vidas foram guiadas
propósitos pessoais de seu autor e que as biografias que ele escreveu guardam inúmeras
semelhanças – fabricadas ou não – com a sua própria trajetória.
Ao sentar em seu gabinete com uma pena na mão para escrever sobre a vida dos outros e
sobre a sua própria, Vasari refletiu sobre os anos que passaram e os que ainda estavam por vir,
inserindo-se, conscientemente ou não, em suas páginas. Ao fazer isso ele formulou para si uma
personalidade e uma trajetória, e as Vite foram sua pedra bruta na qual ele, talvez mais
divinamente que Michelangelo, lapidou uma escultura de si mesmo. Vasari, mais do que
ninguém foi capaz de interpretar a famosa passagem de Pico della Mirandola, na qual Deus
dirige-se a Adão dizendo: “Não te criei terrestre, nem celeste, nem mortal, nem imortal, a fim de
que, enquanto criador livre e soberano, possas criar-te com a forma que tiveres escolhido.”
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Referências Bibiográficas:
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Grandi Tascabili Economici Newton. Roma, 2005.
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O MISSAL DA REGIA OFFICINA TYPOGRAPHICA E SEU LEGADO NA PINTURA
ROCOCÓ MINEIRA: UMA REFUTAÇÃO À INFLUÊNCIA DE BARTOLOZZI
Pedro Queiroz Leite*
I – Introdução
No curso de nossas pesquisas com vistas a estabelecer um inventário preliminar de
modelos para a pintura rococó mineira, pudemos encontrar seis estampas que efetivamente foram
copiadas em forros e painéis de diferentes igrejas de Minas Gerais. Provêm todas elas de uma
mesma obra, um Missal Romano publicado a partir de 1781 pela Régia Oficina Tipográfica.
Já no pioneiro artigo neste gênero aplicado ao patrimônio mineiro, de 1939, alegou seu
autor (JARDIM, 1978: 188-199) ter identificado uma Adoração dos Pastores, pertencente a um
missal da Architypographia Plantiniana de 17441, da qual seria “uma cópia exata” um dos
retábulos da Igreja do Bom Jesus de Matozinhos, no Serro, MG. Outro estudo, por sua vez,
valendo-se de uma autoridade portuguesa no tema (SOARES, 1930: p.64) não só retificou as
informações anteriores, informando corretamente o artista que gravou aquela estampa da
Adoração (Fig.1) – era de “G.F. Machado” e datada de 1777 na margem – como a restituiu ao
seu correto local; “um missal português de 1782” (LÈVY, 1944: 55-56 e n. 13). Ao mesmo
tempo, observou que a mesma serviu também de modelo para uma pintura de Manoel Antônio
da Fonseca, de 1787, localizada no forro da nave da Igreja de São José de Itapanhoacanga. E
ainda acrescentou, acertadamente, que a estampa “foi executada segundo o painel original
[(Fig.2)] de Sebastiano Conca” (1680-1764). Esta mesma estampa seria ainda copiada num
painel que se encontra na ermida da Fazenda Boa Esperança (Fig.3), em Belo Vale, atribuído
(MARTINS, 2007: 43) a João Nepomuceno Correia e Castro (17--?- 1797).
Acerca do forro desta mesma ermida, pintado, segundo alguns (MARTINS; 2007: 40; e
BOHRER, 2005: 302), por Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), representando a Ascensão do
Senhor, demonstrou-se que a imagem do Cristo remete, diretamente, a uma estampa que se
encontra no missal já referido, sobre a rubrica Silva f. E retornando à matriz de Itapanhoacanga,
também já foi demonstrado que uma pintura de seus forro, atribuída a Manoel Antônio da
Fonseca, presumivelmente realizada à mesma época da anterior, seria uma cópia da Anunciação
do referido missal (BOHRER, 2005: 306).
*
Mestre em História Social (UEL) e Especialista em Cultura e Arte Barroca (IFAC/UFOP).
No curso de nossas pesquisas identificamos seis missais da referida casa editora, no Arquivo Eclesiástico da
Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, publicados em 1703, 1716, 1724, 1728, 1744, 1751 e 1765. Em
nenhum deles a estampa se assemelha àquela reproduzida por JARDIM (1978:192).
1
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Da mesma obra, aliás, foi utilizada uma Ressurreição do Senhor (Fig.4) como modelo
para quatro pinturas: uma que se encontra na Capela de Santana, em Santana dos Montes 2, MG, e
outra na capela dos Passos da Catedral de Taubaté, SP – extrapolando nosso recorte geográfico,
como veem – ambas de artistas desconhecidos (LÉVY, 1944:63), ou no caso da primeira, de
autoria de Francisco Xavier Carneiro (OLIVEIRA,2003:284); um painel da capela de Santo
Amaro, em Brumal, MG, além do forro (Fig.5) da Matriz de São José da Lagoa, em Nova Era,
MG, também estes de artistas cujos nomes se ignoram (SANTIAGO, 2005: 393-397). Daquela
estampa foi possível identificar o modelo (JATTA, 1996: 54): trata-se, indiscutivelmente, de
uma pintura (Fig.6) sobre o mesmo tema, de autoria do francês Carle Van Loo (1705-1765).
Como, também, da folha de rosto do missal português referido provém uma pequena
estampa – uma alegoria da Fé e da Igreja – sobre a rubrica Silva f. – que seria o modelo da
pintura do forro do nártex da matriz de Santo Antônio de Itaverava, de data e autoria
desconhecidas, mas que julgamos se dever a algum antigo discípulo de Ataíde, visto que naquela
igreja trabalhara o mestre em 1811 (LEITE, 2008b: 462-467).
E, por fim, existe uma Santa Ceia (Fig.7), do mesmo missal, identificada como o
modelo de um painel (Fig.8) da capela mor da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto
(BOHRER, 2005: 301), estampa aquela cuja autoria, como já demonstramos noutros trabalhos,
coube a Joaquim Carneiro da Silva, assim como todas as demais estampas sobre a rubrica Silva
(LEITE, 2008a: 698; LEITE, 2009: 244, n. 6) encontradas nos missais.
Entretanto, a questão imediatamente levantada por tal estampa da Ceia é que ela tem
servido há mais de três décadas para justificar a influência do artista florentino Francesco
Bartolozzi (1728-1815) na pintura mineira do Rococó, graças a uma sua estampa (Fig.9) quase
idêntica àquela do Missal de 1781. O início desta confusão parece se originar numa leitura
apressada do já mencionado artigo de Hannah LÉVY (op. cit., p.55), bem como nas
considerações feitas a este respeito numa obra de grande circulação: Arte no Brasil, publicada
em fascículos pela Editora Abril (MANUEL, 1979: 438-440). A partir daí, a relação entre o
artista italiano e as artes mineiras pareceu definitivamente vinculada, passando a ser aceita por
vários autores (MARCONDES, 1996: 48; dentre outros). E a tal ponto ela se cristalizou, que os
próprios organizadores do Festival de Inverno de Ouro Preto, realizado em julho de 2010, e
dedicado a Ataíde (“Mestre Ataíde: traços e cores do nosso tempo”), afirmaram, logo na página
inicial do evento que,
“Transcendendo as marcas temporais, Athayde [sic] buscou nas gravuras dos
modelos das Bíblias e catecismos europeus de Jean-Louis Demarne e
2
À época do artigo, pertencente ainda ao Município de Conselheiro Lafaiete.
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Francesco Bartolozzi suas referências para a representação do firmamento”
(Disponível
em:
http://www.festivaldeinverno.ufop.br/2010/home.php.
Acesso em: 17/07/2010).
Mesmo em Portugal, e por motivos que ignoramos, foi de tal modo supervalorizado seu
papel que até hoje o consideram como o primeiro mestre (NEVES & AARÂO, 2004: 7) de um
artista (Gregório Francisco de Queirós, de quem adiante trataremos) que, sabidamente, era já
um gravador maduro, aluno de Carneiro da Silva.
O objetivo da presente comunicação é, justamente, refutar qualquer influência de
Bartolozzi nas referidas obras de arte do período e ambiente de que tratamos, e esclarecer a
importância de Joaquim Carneiro da Silva, mestre de desenho e gravura da Imprensa Régia,
casa de onde saiu o Missal que serviu de modelo a todas as pinturas aqui relacionadas. Longe
de nós negarmos a importância artística de Bartolozzi. Foi ele considerado um dos mais hábeis
gravadores de sua época, senhor de uma reputação quase universal que perduraria até,
seguramente, o século XX. Mas, devemos frisar, à parte seus inequívocos méritos, que o artista
florentino foi um gravador “de tradução”, talvez um dos maiores, e, ainda assim, pertencendo
àquele gênero de artistas que se dedicaram a interpretar a produção alheia (JATTA, 1996:11).
Joaquim Carneiro da Silva, por sua vez, como sua obra demonstra, foi um gravador “de
invenção”, e suficientemente apto, por diversos motivos, de inscrever suas estampas enquanto
modelos para a pintura mineira do rococó.
II – A Regia Officina Typographica e Joaquim Carneiro da Silva
Por alvará régio de 24 de dezembro de 1768, foi criada, em Lisboa, a Régia Oficina
Tipográfica, também conhecida como Impressão Régia, ou ainda Imprensa Régia, a qual, nas
obras publicadas em Latim, terá seu nome estampado como Typographia Regia. Atribui-se a
iniciativa de sua criação ao então Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal, Sebastião José de
Carvalho e Melo (1699-1782). Sua intenção, com tal ato, seria suprir o reino, e as colônias, de
livros de interesse geral dentro de um processo iluminista, conquanto relativo – no mesmo ano
foi criada, aliás, a Real Mesa Censória, com as mesmas prerrogativas do Santo Ofício, porém
controlada diretamente pelo Estado (CANAVARRO, 1975: 40-48).
No referido documento, em seu § 11º, foi instituída, também, uma Aula de Gravura,
justificada nos seguintes termos:
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“Sendo presentemente necessário que no corpo de uma Impressão Régia
não falte qualquer circunstância que a faça defeituosa; e sendo um dos
ornatos da Impressão, as estampas, ou para demonstrações, ou para outros
muitos utilíssimos fins, terá a mesma Impressão um abridor de estampas,
conhecidamente perito, o qual terá a obrigação de abrir todas as que forem
necessárias para a impressão, e se lhes pagarão pelo seu justo valor”
(SOARES, 1930: 11).
E para professor da mencionada Aula foi nomeado Joaquim Carneiro da Silva (1727-1818).
São poucos os estudos acerca deste artista (RACZYNSKI, 1847 e SOARES, 1971), mas eles
concordam por situar seu nascimento no Porto, e sua morte, em Lisboa. Também dão notícia de
que, entre 1757 e 1760, estudou em Roma com o pintor Louis Sterni (RACZYNSKI, 1847: 40) –
que acreditamos se tratar do alemão Ludwig Stern (1709-1778), que então lá residia, com nome
italianizado. E que, a partir de 1760, transferiu-se para Florença, onde continuou seus estudos,
com mestres até agora ignorados. Mas sabemos que, dentre estes, não se incluía Bartolozzi, que
vivia em Veneza desde 1758 e que em 1764 passaria a morar em Londres, onde permaneceria até
1802 (JATTA, 1996: 23-25).
Uma informação acerca de Joaquim Carneiro da Silva que não cansamos de recordar e
ressaltar (LEITE, 2008ª: 701-702) é o fato de que, com a idade de doze anos (1739), ele deixou
Portugal com destino ao Rio de Janeiro, onde aprendeu desenho com “Jean Gomes, natif de
Lisbonne et graveur de l’ hôtel de la Monnaie”, passando no país dezessete anos (RACZYNSKI,
1847: 39; 115-116). Ora, o único João Gomes, natural de Lisboa e gravador da Casa da Moeda,
e, ainda por cima, residente no Brasil, não foi outro senão João Gomes Batista que, mais tarde,
vivendo em Vila Rica, seria o professor de desenho do Aleijadinho, como supõe, ainda em 1858,
seu primeiro biógrafo (BRETAS, 2002: 35), e que também poderia ser um dos possíveis mestres
de Ataíde – pois João Gomes Batista falece em 1788 (MENEZES, 1973: 127-128), quando
Ataíde já contava vinte e seis anos de idade. De forma que, dando crédito a tais informações, não
deixa ainda de nos surpreender uma possível vinculação entre tão diversos artistas convergindo
nas Minas Gerais: João Gomes Batista ensinando Joaquim Carneiro da Silva e Ataíde, e Ataíde
seguindo os modelos de Joaquim Carneiro da Silva, este também aluno de seu mestre.
III – O Missal
Dentre os fundos pesquisados, encontramos exemplares do Missale Romanum da
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Typographia Regia impressos em 1781, 1782, 1784, 1793, 1797, 1801 e 18183. Todos eles com
o mesmo número de estampas, oito, de 240 x 155 mm de mancha, inseridas no texto, além
daquela que adorna a folha de rosto, e que julgamos por bem intitular Alegoria da Fé e da Igreja,
de Joaquim Carneiro da Silva (Silva f.). Esta última, aliás, seria reproduzida numa edição de
1860 da Tipographia Nacional (sucessora da Imprensa Régia), por Tomás Antônio de Lima,
como já demonstramos noutra ocasião (LEITE b, 2008: 464-466).
São elas, com as seguintes rubricas dos gravadores: uma Anunciação (N.J. Cordeiro
sculp. 1781); uma Natividade/Adoração dos pastores (G.F. Machado Sculp. Olisip. in Typ. Reg.
A MDCCLXXVII); um Senhor da Agonia (J. C. Silva f.); uma Ressurreição do Senhor (Silva f.) ;
uma Ascensão do Senhor (Silva sc.); um Pentecostes (sem rubrica); uma Santa Ceia (Silva f.); e
uma Assunção da Virgem Maria (Silva f). E quanto às referidas rubricas é possível identificar a
autoria de Joaquim Carneiro da Silva, enquanto desenhista e gravador, nas estampas da folha de
rosto, do Senhor da Agonia, da Ressurreição do Senhor, da Ascensão do Senhor, da Santa Ceia e
Assunção da Virgem Maria; a de Nicolau José Batista Cordeiro na Anunciação; a de Gaspar
Fróes (ou Fróis) de Machado para a Natividade (Fig.1); e a de Gregório Francisco Queirós para a
Ascensão (nesta somente como gravador, e a partir da edição de 1795). Pentecostes não traz
qualquer rubrica em nenhuma das edições consultadas. Mas quem são estes artistas e quais suas
possíveis relações com Bartolozzi, se é que elas existem?
De Joaquim Carneiro da Silva já tratamos anteriormente. Não julgamos demais reafirmar
que acreditamos dever-se a ele a responsabilidade pelas estampas que constam no missal, tanto
por ter desenhado e gravado muitas delas, quanto por ser ele o mestre de gravura que selecionava
as obras de seus discípulos. Acreditamos também que, em termos cronológicos, a influência de
Bartolozzi sobre o artista português seria impossível. Ambos contavam quase a mesma idade (o
primeiro antecedeu um ano ao nascimento do florentino, e sobreviveu à morte deste por mais
três), logo, uma relação mestre-discípulo, hipoteticamente possível entre eles, daria primazia,
caso houvesse, ao mais velho, Joaquim Carneiro da Silva. E, finalmente, os anos em que
poderiam ter convivido e, quiçá, estabelecido relações, são poucos: 1757, em que ambos
residiram em Roma; e a partir de 1802, quando o português já havia deixado a Aula de Gravura e
quando o Missale Romanum já contava vinte e um anos de sua primeira edição.
Em seguida, deparamo-nos com Nicolau José Batista Cordeiro, de quem sabemos ter sido
aluno de Joaquim Carneiro da Silva (RACZYNSKI, 1847: 54), certamente na Aula de Gravura
3
Arquivo Eclesiástico da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, Ouro Preto, MG (o missal de
1782); Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto, MG (os missais de 1781, 1784, 1793, 1818 e
1860); Igreja Matriz de Santa Ifigênia e Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Alto da Cruz, Ouro
Preto, MG (o exemplar de 1797); Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos (Padre Faria), Ouro
Preto, MG (outro, também de 1797). O de 1801 pertence a nosso acervo pessoal.
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da Impressão Régia e que teria morrido jovem, por volta de 1803, visto que no livro de registro
da I.R., relativo a 1803, já não se encontra incluído entre os gravadores (SOARES, 1971: 185186) – um ano depois, portanto, da chegada de Bartolozzi a Lisboa.
Em terceiro lugar, temos Gaspar Fróis (ou Fróes) Machado. Teria estudado com o
escultor Alessandro Giusti (1715-1799), em Mafra, durante quatro anos, ao cabo dos quais
tornou-se aluno de Joaquim Carneiro da Silva. Em 1780 (quatro anos depois da assinatura em
sua estampa da Natividade), parte para Roma onde permanece alguns anos. Retorna a Portugal,
onde grava diversas obras e, somente em 1796, decide-se por estudar com Bartolozzi, que vivia
em Londres desde 1764. O que, todavia, jamais conseguirá: Gaspar Fróis Machado pereceu num
naufrágio exatamente rumo a Inglaterra, com não mais de trinta e sete anos (RACZYNSKI,
1847: 185-186).
Por fim, Gregório Francisco Queirós teria falecido em 1843, com a idade de setenta e sete
anos, tendo, portanto, cerca de vinte e nove anos à época da publicação do Missal onde consta
sua rubrica sob a estampa da Ascensão do Senhor. Somente no ano seguinte à sua participação
naquela obra, seria enviado a Londres pela corte portuguesa, recebendo uma pensão anual de
600:000 réis, onde passaria três anos como aluno de Bartolozzi e mais três estudando por conta
própria (RACZYNSKI, 1847: 237;267). Tinha, portanto, trinta anos quando travou relações com
seu suposto mestre – com quem, é fato, desenvolveu-se no manejo da gravura em ponteado
(Joaquim Carneiro da Silva, em geral praticava o buril) – e quando retorna como ajudante (e
ocasional substituo) de Bartolozzi receberá os mesmos rendimentos anuais que o florentino: a
idêntica quantia que lhe fora concedida quando aluno em Londres (SOARES, 1930: 12; 14). O
que parece, no mínimo, um estranho arranjo este, o de um discípulo receber vencimentos
idênticos aos de seu mestre.
IV – Conclusão e refutação à influência de Bartolozzi
Acreditamos, para além dos outros fatores que antes mencionamos, que a vinculação
entre Francesco Bartolozzi e o Missal Romano se deu – inclusive a ponto de confundir muitos
estudiosos – porque ele efetivamente realizou alguns estudos e gravuras para uma nova edição
daquela obra, impressa em 1820, da qual não encontramos, pessoalmente, nenhum exemplar nos
fundos pesquisados.
Mas obtivemos, por outro lado, diversas informações sobre o missal de 1820. A primeira
é a de que foi publicado depois da morte de Bartolozzi. A segunda, de acordo com uma
autoridade na questão, é de que não há exemplar algum onde entrem todas as estampas gravadas
pelo florentino (SOARES, 1930: 32). Sabemos, também, que em 1811 o Administrador da
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Impressão Régia, em ofício dirigido ao Ministro do Reino, queixa-se dos custos gerados por
Bartolozzi, Queirós e os discípulos para a realização de tais obras:
Apenas a gravura de nove chapas para o Breviário e dez para o Missal pagas
estas pelo excessivo preço de 24 moedas cada uma e aquelas pelo de 12,
quando as primeiras desenhadas e gravadas pelo hábil e honrado Joaquim
Carneiro da Silva e seus discípulos custaram onze mil e duzentos e dezenove
mil e duzentos. (SOARES, 1930: 32).
E, finalmente, de acordo com alguns desenhos (Fig.10) seus (JATTA, 1996:53-54) e
estampas (SOARES, 1930: p. 32) que foram conservados, verifica-se que o artista florentino
manteve algumas das ilustrações originais (Adoração dos Pastores, Santa Ceia, Ressurreição de
Cristo, Pentecostes e Assunção); redesenhou outras (Anunciação e Agonia do Senhor),
suprimindo-lhes pormenores, e inclui mais duas novas (Epifania ou Adoração dos Magos,
tomando como modelo uma pintura de Carlo Maratta, e uma Santíssima Trindade ou Eterna
Bem-Aventurança ou Comunhão dos Santos, a partir de um desenho ou estampa de Joaquim
Carneiro da Silva, que desconhecemos). Em suma: com exceção da Epifania, Bartolozzi
resumiu-se a reproduzir estampas de Carneiro da Silva, sem nalguns casos, sequer lhe prestar os
devidos créditos, como na Assunção da Virgem Maria, na qual consta apenas um F. Bartolozzi
sculp. Lisboa 1811 (NEVES & AARÂO, 2004: 18).
Por maior que possa ter sido a importância de Francesco Bartolozzi enquanto gravador
em seu tempo, uma simples atenção à cronologia acima referida, como vimos, demonstra a
impropriedade de se alegar qualquer influência sua nas estampas do missal de 1781 ou junto aos
artistas a este relacionados. E o que dizer, então, de sua suposta influência na pintura rococó
mineira?
Para ficarmos somente em alguns exemplos, temos que, em primeiro lugar, a cópia
realizada por Manoel Antônio da Fonseca, a partir de 1787, em Itapanhoacanga, deu-se quinze
anos antes da chegada de Bartolozzi em Lisboa. Já aquela da Fazenda Boa Esperança, em Belo
Vale, de João Nepomuceno Correia e Castro, foi pintada, evidentemente, antes de 1797, ano de
sua morte, ou seja, cinco anos antes do florentino sequer estabelecer-se em Portugal. Se, então,
relacionarmos estas datas à primeira edição do Missal, em 1781, fica evidente a impossibilidade
cronológica de qualquer influência de Bartolozzi naquelas obras.
Em segundo lugar, ainda que as pinturas de Ataíde, ou de seus discípulos, ou dos artistas
desconhecidos que reproduziram as estampas do missal, possam ter sido realizadas
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contemporaneamente a estada de Bartolozzi em Portugal, ou mesmo posteriormente à edição de
1820 do Missale Romanum, sob o crivo daquele, a simples existência, no ambiente mineiro, de
tantos missais ainda produzidos por Joaquim Carneiro da Silva, e o fato mesmo de que os painéis
e forros são cópias de suas estampas – mesmo que refeitas por Bartolozzi – demonstram, sem
margem de dúvida, a real influência do primeiro sobre a pintura nas Minas do período e o
completo alheamento do segundo enquanto referencial artístico passível de ser seguido então.
Assim, acreditamos não restarem dúvidas de que os modelos de tantas obras pictóricas de
Minas Gerais provêm dos desenhos e estampas de Joaquim Carneiro da Silva, reproduzidos,
todos eles, em seu missal. E que a suposta influência de Bartolozzi, vagamente plausível, e
apenas de forma tardia, como sugerida alhures, manifesta-se impossível, como procuramos, aqui,
definitivamente, elucidar.
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Natividade.
Buril, 24 x 15,5 cm.
Missal de 1781.
Fig.2. 1720.
Sebastiano Conca.
Adoração dos pastores.
Ó.s.t., 243,84 cm x 264,26cm.
J. Paul Getty Museum,
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Fig.3. Antes de 1795.
João Nepomuceno Correia e Castro.
Adoração dos pastores.
Ó.s.m., dimens. n. inf.
Fazenda Boa Esperança,
Belo Vale, MG.
414
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
Fig.4. 1781.
J. C. da Silva.
Ressurreição do
Senhor.
Buril, 24 x 15,5 cm..
Missal de 1781.
Fig.7. 1781. Joaquim
Carneiro da Silva.
Ceia dos Apóstolos.
Buril, 24 x 15,5 cm.
Missal de 1781.
Fig.5. Séc. XVIII.
Artista desconhecido. Ressurreição do Senhor.
Téc. desc., dimens. n. inf. Matriz de São José da
Lagoa, Nova Era, MG.
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Fig.8. C.1801-1812.
Manuel da Costa Ataíde.
Ceia dos Apóstolos.
Ó.t.s.m., 250 x 300 cm.
Igreja de S. Francisco de Assis, Ouro Preto,
MG.
2011
Fig.6. 1734.
Carle Van Loo.
A Ressurreição.
Ó.s.t., 76,2 x 44,4 cm.
Haggerty Museum of Art,
Milwaukee, WI, EUA.
Fig.9. C. 1819.
Bartolozzi.
Ceia dos Apóstolos. Buril e águaforte, 24,3 x 16,7 cm.
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Fig.10. 1811. Bartolozzi.
Ressurreição do Senhor.
Nanquim s. papel, 26,4 x 19,6 cm.
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
In: (JATTA, 1996:53).
415
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
PAULO HARRO-HARRING E A REVOLUÇÃO: CORRELAÇÕES POSSÍVEIS
Rafael Gonzaga de Macedo*
As reflexões a seguir são frutos de uma pesquisa de Iniciação Cientifica intitulada “Paul
Harro-Harring: Usos e Funções da Imagem”, que contou com o apoio da FAPESP e orientação
da Prof. Dra. Valéria Alves Esteves Lima.
Paul Harro-Harring foi um artista de múltiplas habilidades. Formado nas conceituadas
academias de arte de Dresden e Copenhague por volta de 1820. Obteve, como muitos pintores
alemães contemporâneos, uma formação intelectual e artística bastante ampla. Não restringindo
sua produção somente à pintura, mas também produzindo como romancista, dramaturgo e poeta.
Atividades compartilhadas com uma atuação no campo político daquele momento histórico,
marcado por revoltas populares e sociais, que agregam à sua apresentação também o termo
“revolucionário”.
Sua atuação nesse campo foi tão intensa, que suas concepções políticas e filosóficas o
levaram a ser expulso de inúmeros países europeus, suas paixões e escolhas políticas
influenciariam diretamente a sua sensibilidade frente ao mundo, deixando marcas em sua
percepção e valores, definindo a sua “bagagem cognitiva” a partir do qual ele interpretaria o
mundo por meio das imagens.
Harro-Harring esteve no Brasil em 1840, por apenas três meses, período em que realizou
a série de 24 aquarelas que integrariam o álbum conhecido como Esboços Tropicais do Brasil.
Com a incumbência de investigar as condições de vida dos escravos no país, ele deveria publicar
os seus relatos e imagens no semanário abolicionista inglês The African Colonizer, que o
contratara para esse trabalho.
No entanto, por razões ainda desconhecidas, o trabalho não foi publicado na íntegra, com
exceção de apenas um relato e de uma imagem, que fora publicada em 16 de janeiro de 1841.
Trata-se da imagem chamada A negra acusada de roubo (fig. 1), que nos revela a condenação
irrestrita de Harro-Harring em relação à escravidão.
Nesta imagem, Harro-Harring expressa uma cena em que uma negra livre compra a
liberdade de uma jovem escrava, filha de uma velha conhecida. O relato de Harro-Harring iniciase num momento anterior a cena representada por ele. Assim, ele começa o relato descrevendo a
mulher mais velha que compra a liberdade da mais jovem: “Alta e esguia, vestida à moda africana, tinha
um belo manto colorido lançado à volta do pescoço, que lhe caía até abaixo da cintura.” (Harro-Harring, 1996: 11)
*
Graduado em História pela Universidade Metodista de Piracicaba, trabalha derivado dE pesquisa de Iniciação
Científica financiado pela FAPESP, nº processo 2010/00678-9.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Sobre a jovem mulher negra recém liberta:
“A negra mais jovem estava descalça, sinalizando sua condição servil. No mais,
mostrava-se bem vestida. Vale dizer que roupas boas e limpas, bem como asseio
pessoal são características dos negros no Brasil. (...) O peito ofegante da negra
jovem traía sua funda emoção. Como alguém tomado de espanto, com os braços
caídos ao lado do corpo, ela não tirava os olhos dos outros negros. Próximo à
porta, um carregador negro, portando um cesto, estava prestes a apanhar do chão
um pequeno baú sobre o qual havia um belo chapéu de palha.” (Harro-Harring,
1996: 11)
O momento da libertação:
“A negra mais jovem empertigou-se novamente e ficou observando indiferente os
objetos ao seu redor. Os documentos estavam nas mãos da negra mais velha, que
os leu e assinou, assim como o fez o brasileiro, que recebeu o dinheiro. Ela então,
pela primeira vez olhou para a jovem com uma expressão de satisfação e prazer,
misturada entretanto com tristeza e ansiedade. A jovem apertou suas mãos e
levantou os olhos para ela em silêncio. Até então, durante todo aquele tempo, nem
uma palavra havia sido pronunciada. Enfim, um dos brasileiros resmungou num
tom grosseiro para a jovem ‘você está livre, pode ir”. (Harro-Harring, 1996: 1112)
No entanto, a liberdade não foi “alcançada” de forma pacifica. Logo após receber o
pagamento, o homem branco parece perceber que algo lhe falta – talvez o próprio domínio sobre
a jovem - e corre atrás das mulheres acusando a jovem de roubo. A cena que Harro-Harring
expressa é justamente o momento em que a jovem abre o seu baú e mostra todos os seus
pertences ao irascível senhor branco que empunha um ameaçador chicote, símbolo de poder e
violência para a iconografia abolicionista. Eis o relato de Harro-Harring sobre o momento:
“A acusada, entretanto, mostrou-se muito diferente da pessoa subjugada e quase
inerte que até então aparentara ser. Seus olhos estavam inflamados, os lábios
lívidos e as faces mostravam a palidez peculiar dos negros quando profundamente
provocados. (...) Ela se dirigiu a seu antigo senhor em tom indignado, ‘Eu já o
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2011
roubei antes? O senhor alguma vez me pegou num mínimo roubo?’ Rápidas, as
perguntas foram acompanhadas de um olhar que eu jamais presenciei, mesmo nas
mais violentas manifestações das paixões humanas. Foi um brilho curto, como um
relâmpago, e o miserável dono da pobre jovem permaneceu momentaneamente
desconcertado sob sua força.” (Harro-Harring, 1996: 12)
E continua:
“O habitual espírito de mando, no entanto, não o abandonou e, recuperando o
autocontrole, ordenou-lhe rispidamente que abrisse o baú para ser examinado.
‘Faça isto imediatamente, minha filha’, disse a negra mais velha, demonstrando
total confiança na descendente da amiga de sua juventude, que retirou a chave do
seio e ajoelhando-se, abriu o baú. (...) Orgulho e desprezo absoluto marcavam
suas feições. (...) Uns poucos livros e algumas roupas compunham o conteúdo do
baú e balançando cada peça separadamente, ela as deitou suavemente ao chão.”
(Harro-Harring, 1996: 14)
Agora, é importante voltarmos a imagem, mais especificamente para os pertences da
jovem liberta.
No detalhe da imagem A negra acusada de roubo (Fig. 2), a jovem ajoelha-se e dispõe
seus pertences cuidadosamente no chão, entre os pertences estão um par de sapatos, que
demarcaria sua nova posição social e um livro. Vale lembrar que o livro tornara-se um dos
instrumentos associados a liberdade no dicionário Iconologie par Figures de Gravelot e Cochin
de 1791, ambos tentavam atualizar os símbolos do clássico Iconologia de Cesare Rippa
transpondo os símbolos, que servira muito bem ao Antigo Regime para o novo regime advindo
da Revolução Francesa. No Iconologie par Figures o símbolo do livro associado à imagem da
liberdade deveria expressar que sob a liberdade as ciências e as artes floresceriam.
Além disso, como nos relata o próprio Harro-Harring a jovem recém liberta ajoelha-se
para então retirar os pertences do baú, sua última humilhação frente ao desumanizado senhor
branco.
A jovem recém liberta ajoelha-se diante de seu ex-senhor, podemos, portanto,
recorrermos ao medalhão com a gravura Am I not man and a brother? (fig. 3) de Josiah
Wedgwood datada de 1787 contendo a representação de um negro escravizado ajoelhado e preso
com algemas, abaixo dele os dizeres: “Não sou eu um homem e um irmão?”. Tal imagem foi
418
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
largamente usada pelos abolicionistas – principalmente na luta contra o comércio de escravos tanto da Europa quanto nos Estados Unidos. Na França em 1788 tornara-se o selo da Societé dês
Amis des Noirs com o título Ne suis-je pas ton frère? (fig. 4), o selo fora estampado em
medalhões, laços de cabelo e braceletes transformando-se em um acessório de moda entre muitas
senhoras inglesas que a utilizavam para apoiar a causa abolicionista.
No entanto, o que parece ser uma interrogação: “Sou um homem e um irmão?” É, na
verdade, uma afirmação: “Sou um homem e um irmão!” Como demonstrou a historiadora
Grigsby em seu estudo sobre a pintura pós-revolucionária na França. A gravura de Wedgwood
tornou-se emblemática para a causa abolicionista em diversos países – principalmente na
Inglaterra e nos Estados Unidos - e deu origem a dois tipos de “resposta” iconográfica à questão.
A primeira respondia a gravura de Wedgwood da seguinte maneira: “Sim, você é homem e um
irmão, por isso tem direito à liberdade”. Tal resposta pode ser vista na gravura de Charles Boily
chamada Soyez libres et citoyens (fig. 5) que fora publicada no frontispício do livro La cause des
esclaves nègres de Frossard em 1789.
A outra maneira de responder à gravura de Wedgwood era: “Não, você não é um homem
e nem meu irmão por isso vou puni-lo.”. Entretanto, o que não muda nas duas maneiras de
dialogar com a famosa gravura de Wedgwood é a dependência do negro em relação ao senhor
branco.
Na representação de Harro-Harring, existe também tal dependência já que a liberdade só
se concretiza com o aval do senhor branco mediante uma troca monetária. No entanto, tal
liberdade, em espíritos contaminados pela escravidão estaria constantemente em perigo, pois o
homem branco e europeu estaria constantemente tentado à tirania ao desrespeitar contratos e
juramentos e ao exercício fortuito da violência e da brutalidade.
***
Outro ponto interessante é que nas imagens que retratam as relações humanas
atravessadas pela escravidão – o que fica mais evidente nas imagens que carecem de relatos - as
cenas pintadas por Harro-Harring se compõem como cenas teatrais. O que nos remete ao pintor
inglês William Hogarth. Como Hogarth, Harro-Harring compõem suas cenas de modo que um
contemporâneo poderia compreender seus quadros de forma edificante e pedagógica com o
objetivo de expressar a brutalidade e o despotismo inerente ao regime escravista. Em suas
imagens cada personagem assume um papel com tarefas determinadas e esclarecem o seu
significado através de gestos e do uso de atributos cênicos.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Na imagem Inspeção de negras recentemente desembarcadas da África (fig. 6) o aspecto
“dramatúrgico” de Harro-Harring torna-se bastante claro. Primeiramente, somos levados a
perceber que o local em que as cativas são mantidas é extremamente sujo, lúgubre e escuro.
No centro desta imagem, estão três negras cativas e escravizadas amarradas como
animais, vestidas com velhos trapos imundos e turbantes nas cabeças, e apesar de estarem em um
estado lastimável, seus corpos robustos demonstram grande força e beleza, além de estarem
rodeados por uma estranha aura azul. No entanto, elas se contorcem como podem na vã tentativa
de se esquivar, sob um horror visível, dos toques frios e malévolos dos senhores brancos, que ora
apalpam seus seios de forma erótica, ora as cutucam com a ponta de um guarda-chuva. O terror
das escravas contrasta com a frieza com que os compradores parecem negociar com o vendedor.
Na cena, as atitudes cênicas das personagens nos levam a pensar que um jovem branco parece
estar apresentando as qualidades de uma de suas mercadorias enquanto a mulher branca que
porta o guarda-chuva parece perguntar – enquanto cutuca uma das cativas - “e essa?”, “não é
melhor?”, “quanto custa?” –, do outro lado, um homem aparentemente mais velho apalpa
abusivamente outra cativa horrorizada.
A insinuação de abuso sexual do senhor branco nos permite abrir uma correlação com a
célebre obra de Delacroix O massacre de Quios (fig. 7 e 8).
Nesta obra, assim como na de Harro-Harring, também existe uma menção ao estupro e a
brutalidade relacionada a escravidão. Embora as figuras na imagem de Delacroix não sejam
negras, o subtítulo “Esperando a escravidão ou a morte” não deixa dúvida da relação entre a
causa grega e a causa abolicionista. Tal relação não passara despercebida por um crítico
conservador da época que escreveu para o Gazette de France sobre o assunto:
Os liberais não desdenham qualquer meio ou qualquer manobra, e o indivíduo
mais obscuro que os serve, mesmo sem querer, é no espaço de 24 horas abraçado,
idolatrado, litografado e pago... Em seguida, esquecido. É a ordem [das coisas],
que o cerca. Ontem eram os negros; hoje não se fala, escreve ou publica exceto
para o povo grego; negrófilos se metamorfosearam em filohelenicos. Todos esses
salvadores da humanidade contemplam o mundo ávido por desastres, mas se
esquecem das nossas próprias cidades queimando, eles continuam surdos aos
gritos de seus compatriotas infelizes. (apud Grigsby, 2002: 281)
Tal correlação se torna ainda mais plausível se lembrarmos que Harro-Harring, ele
próprio, servira como voluntário e lutara na Grécia ao lado de homens como Byron – que
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
falecera em Quios dois anos antes do massacre representado na imagem de Delacroix. A revolta
grega contra o domínio do Império Turco-Otomano é comumente considerada como a primeira
revolução nacionalista da Europa – recebendo, como vimos, grande apoio de artistas e
intelectuais da época -, a ideia de um povo escravizado por um regime opressor era bastante
recorrente nos textos de Herder, por exemplo, um dos principais teóricos do nascente
nacionalismo europeu.
Assim, é bastante plausível que a iconografia e as ideias ligada ao nacionalismo
romântico do começo do século XIX tenha alimentado as referências de Harro-Harring quanto a
sua própria concepção do negro escravizado no Brasil. O fato de ele nomear todos os brancos de
brasileiros e os negros de simplesmente negros, sem diferenciá-los etnicamente poderia ser um
indício de que Harro-Harring via o negro como parte de um corpo cultural homogêneo à parte do
brasileiro e da sua cultura “branca”, que deveria por isso mesmo ter o direito de lutar pela
liberdade e também pela soberania.
Na imagem Inspeção de negras recentemente desembarcadas da África, podemos
perceber a intenção de Harro-Harring de apresentar cada uma das figuras em cenas como
intérpretes de papéis sociais que expressariam as tensões intrínsecas nas relações entre senhores
e escravos. Se partirmos do ponto de vista de alguém que lutava pelos direitos dos povos contra a
opressão causada pelo antigo regime e pela escravidão, podemos deduzir que o objetivo é levar
aquele que observasse tal imagem a constatar a violência da escravidão e seu efeito
desumanizante no senhor, mas principalmente sobre o escravo.
Vale notar, que o interior do mercado de escravos destoa do espaço cuidadosamente
geometrizado das pinturas neoclássicas, representada exemplarmente pelo Juramento dos
Horácios de David pintado em 1784. O mercado de escravos se apresenta de forma confusa e
sufocante, as colunas e os arcos constituem-se em diferentes alturas exprimindo algo para além
da ordenação racional típica do neoclassicismo, que preferia representar espaços interiores
justamente pela possibilidade de demonstrar a clareza e a racionalidade nos espaços tectônicos.
No espaço dedicado à inspeção de negros recém desembarcados, ocorre o contrário, o ambiente
se apresenta como um lugar obscuro, árido e claustrofóbico. Até mesmo hoje essa imagem ainda
não perdeu todo o seu poder, pois ela ainda consegue inspirar em quem a observa um pouco da
sensação que as cativas pareciam estar sentindo em meio tamanha crueldade e violência.
Por ter freqüentado a Academia de Arte de Dresden no mesmo período em que Caspar
David Friedrich lecionou (por volta de 1820) é bastante provável que Harro-Harring tenha sido
aluno do mestre do romantismo alemão.
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2011
Portanto, com isso em mente, não devemos ficar surpreendidos, ao observamos a imagem
Planalto de São João (fig. 9), em que os morros cariocas representados por Harro-Harring se
assemelhem mais aos fiordes nórdicos exalando uma espectral aura azul do que aquilo que
estamos acostumados a ver nas representações de outros artistas que passaram pelo Rio de
Janeiro no mesmo período. É provável que no século XIX, entre o público europeu, tal visão
despertasse uma sublime sensação de melancolia, o que o afastaria do padrão pitoresco e exótico
que observamos nas representações artísticas de viajantes que estiveram no Brasil naquele
período, como Rugendas e Debret.
É muito provável que tanto Friedrich quanto Harro-Harring tiveram contato com a obra
Doutrina das Cores de Goethe. Nesta obra, quando Goethe descreve os efeitos sensíveis e
morais da cor, assim define o azul:
778 Assim como o amarelo sempre implica uma luz, pode-se dizer que o azul
sempre implica algo escuro.
779 Essa cor produz um efeito especial quase indescritível. Como cor, é uma
energia, mas está do lado negativo e, na sua mais alta pureza, é por assim dizer
um nada estimulante. Ela pode ser vista como uma contradição entre estímulo e
repouso.
780 Do mesmo modo que o céu, as montanhas distantes parecem azuis, uma
superfície azul também parece recuar diante de nós.
782 O Azul nos dá uma sensação de frio, assim como nos faz lembrar a sombra.
Já se sabe como é deduzido do preto.
783 Quartos revestidos com papel azul puro parecem, de certo modo, amplos,
embora vazios e frios. (Goethe, 1993:132)
O apreço pela cor azul é comum a toda Europa do final do século XVIII ao XIX,
principalmente por parte do romantismo alemão, que presta uma atenção particular ao
simbolismo das cores. Um exemplo notável está em outra obra de Goethe, o romance O
Sofrimento do Jovem Werther, publicado em 1774. Para Werther, o azul tinha um significado
especial, pois lhe inspirava o sentimento melancólico da lembrança de Carlota:
Foi com grande pesar que tive de pôr de lado, como imprestável, o fraque azul
que eu envergava quando dancei pela primeira vez com Carlota. Mandei, porém,
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
fazer outro exatamente igual, mesma gola, mesmo forro, colete e culote amarelos
(Goethe, 1971).
O grande sucesso do romance e a moda “wertheriana” lançaram em toda a Europa a moda
dos fraques azuis e culotes amarelos. Chegou-se até mesmo a criar o vestido “a La Carlota”.
Em todas as partes, o azul passou a representar o amor, o sonho e a melancolia, coisa que
ele já havia representado na Idade Média onde havia um jogo de palavras entre as palavras
“ancolia” (uma flor de cor azul) e a palavra “melancolia”.
O azul, nesse sentido, poderia refletir o estado de espírito do próprio artista mergulhado
numa sociedade pautada pela brutalidade e pala ausência da liberdade que ele tanto defendera na
Europa. Assim, a exemplo de Goethe, para quem as superfícies revestidas de azul dão a
impressão de serem amplas, embora frias e vazias. O Brasil sob o peso da escravidão seria para
Harro-Harring um lugar mergulhado permanentemente numa tristeza vaga e persistente.
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1865. Nova Iorque: Routledge, 2000.
424
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
1. (1840), Paul Harro-Harring, A negra acusada de roubo, aquarela, Instituto Moreira
Salles (IMS), Rio de Janeiro, Brasil.
2. (1840), Paul Harro-Harring, A negra acusada de roubo, aquarela, IMS, Rio de
Janeiro, Brasil (detalhe).
425
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
3. (1787) Josiah Wedgwood, Am I not a man and a brother? – Medalhão oficial da
Sociedade abolicionista inglesa, gravura.
4. (1788), anônimo, “Ne suis-je pas ton frère?” - Selo da Societé des Amis des Noirs,
gravura. Bibliothèque Nationale, Paris, França.
426
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
(1789), Charles Boily, “Soyez libres et citoyens”, gravura, Bibliothèque Nationale , Paris,
França.
5. (1840), Paul Harro-Harring, Inspeção de negras recentemente desembarcadas da
África, aquarela, IMS, Rio de Janeiro, Brasil.
427
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
6. (1824) Eugène Delacroix, O massacre de Quios, Óleo sobre tela, 419 x 354 cm,
Museu do Louvre, Paris, França.
7. (1824) Eugène Delacroix, O massacre de Quios, Óleo sobre tela, 419 x 354 cm,
Museu do Louvre, Paris, França, (detalhe)
428
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
8. (1840), Paul Harro-Harring, O planalto de São João, aquarela, IMS, Rio de Janeiro,
Brasil.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
LODOVICO DOLCE E GIORGIO VASARI: CONEXÕES
Rejane Bernal Ventura*
Resumo:
Esta comunicação tem por objetivo discorrer sobre alguns aspectos que ligam o tratado Dialogo
della Pittura intitolato L´Aretino (1557), do humanista veneziano Lodovico Dolce à obra do
historiador florentino, Giorgio Vasari, Le Vite de´più eccellenti architetti, pittori et scultori
italiani, da Cimabue, insino a´tempi nostri, publicada em 1550. Dolce tinha como propósito
primeiro sustentar a relevância da produção artística vêneta, alçando-a ao mesmo patamar da
arte Tosco-romana, a qual fora exaltada de modo proeminente por Vasari em sua obra, em
detrimento da arte de outras regiões italianas. Ao mesmo tempo, Dolce buscava refutar a
divindade criada pelo autor das Vite em torno da figura de Michelangelo, salientando a maestria
de Rafael e a primazia de Ticiano no cenário artístico italiano. Para tanto, travou um diálogo
com Vasari, adotando várias premissas teóricas desenvolvidas pelo florentino no sentido de
reafirmar os argumentos de seu próprio escrito.
Palavras-chave: Renascimento; Pintura veneziana; Crítica de arte; Lodovico Dolce; Giorgio
Vasari.
Esta comunicação tem por objetivo discorrer sobre alguns aspectos que ligam o tratado Dialogo
della Pittura intitolato L´Aretino (1557), do humanista veneziano Lodovico Dolce à obra do
historiador florentino, Giorgio Vasari, Le Vite de´più eccellenti architetti, pittori, et scultori
italiani, da Cimabue, insino a´tempi nostri, publicada em 1550. Em seu escrito, Dolce utiliza-se
de dois interlocutores -- o escritor e poeta Pietro Aretino e o gramático florentino Giovan
Francesco Fabrini – que têm, com seus argumentos o fim primeiro de estabelecer um diálogo
com Giorgio Vasari. Dolce tinha como propósito primeiro sustentar a relevância da produção
artística vêneta, colocando-a no mesmo patamar que a arte da Itália central, que fora exaltada de
modo proeminente por Vasari em sua obra, em detrimento da arte de outras regiões italianas. Ao
mesmo tempo, Dolce buscava refutar a divindade criada pelo autor das Vite em torno da figura
de Michelangelo, salientando a maestria de Rafael e a primazia de Ticiano no cenário artístico
italiano.
*
Rejane Bernal Ventura possui Mestrado e Doutorado em Filosofia, ambos pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
Lodovico Dolce (1508-1568) foi um humanista polígrafo. Escreveu tratados sobre temas
ecléticos: um deles versando sobre a conduta das mulheres, outro sobre a conservação da
memória, um sobre pedras preciosas, outro sobre cores e outro ainda acerca da língua vulgar. O
tratado sobre a pintura denominado Aretino “resta como o seu melhor escrito e o mais rico de
implicações”. (ROMEI, 3). Realizou igualmente um infinito número de traduções de textos
antigos, escreveu tragédias e comédias, e foi curador de diversas publicações de autores do
século XIV como Dante (1265-1321), Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), e
contemporâneos, como Lodovico Ariosto (1474-1533), Pietro Bembo (1470-1547) e Baldassare
Castiglione (1478-1529). Possuía um conhecimento erudito na área das belas letras e no campo
lingüístico, argüindo com maior pertinência no que se referia às discussões em torno da
consolidação da língua italiana.
Com o propósito de desenvolver um tratado sobre pintura, e destituído de um
conhecimento aprofundado do tema, a despeito de toda sua erudição, tomou por base um amplo
número de fontes (e especificamente sobre teoria pictórica): a correspondência de Pietro Aretino
e outros escritos sobre pintura, editados em anos anteriores: o Da Pintura, de Leon Battista
Alberti (numa tradução vêneta de 1547); O Dialogo di Pittura, de Paolo Pino (1548); o Della
Nobilissima Pittura, de Michelangelo Biondo (1549); o Disegno, de Anton Francesco Doni, e
fundamentalmente as Vite, de Giorgio Vasari, que representou uma importante fonte teóricoartística da qual Dolce absorveu grande quantidade de temas e argumentos, a fim de fazê-los
girar num mesmo eixo e servir aos seus propósitos, além de excertos das biografias de alguns
artífices citados no diálogo, principalmente de Rafael, Michelangelo e Ticiano.
Segundo Mark Roskill, a essência do diálogo de Dolce reside em três partes distintas.
Primeiro, a discussão sobre a nobreza da pintura e todos os elementos necessários para o pintor
atingir sua perfeição. Segundo, a citação de exemplos provindos de autores antigos e modernos.
E, por fim, a maestria de Ticiano e as obras por ele criadas. (ROSKILL, 2000: 8).
Em termos de conteúdo e estrutura, é possível depreender igualmente três partes
componentes, um tanto quanto sobrepostas que compõem o conteúdo do diálogo. Primeiro, há
teoria da arte, no mais puro sentido do termo, através da qual os princípios e propriedades da
boa pintura são apresentados e elucidados. Em paralelo há algumas passagens que tratam de
teoria literária e também ensaiam o prenúncio de um sistema filosófico, disperso, de maneira
intermitente, por meio dos argumentos. Num segundo momento, há uma comparação entre
Rafael e Michelangelo, que é resolvida segundo os princípios estabelecidos na primeira seção.
Ligada a esta parte há uma apreciação secundária de determinados artífices que representariam
os oito homens capitais na pintura do século XVI, a começar por Giorgione e terminando com a
431
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
supremacia de Ticiano. E por fim, a terceira parte que traz o encômio a Ticiano, como o grande
representante da pintura veneziana (em detrimento dos Romanos) e o esboço de sua carreira
(ROSKILL, 2000: 8). Se, por um lado, Dolce expôs uma teoria da arte que na superfície
demonstrou-se ser coesa, ele, todavia, não deixou de mencionar alguns dos autores, através dos
quais fundamentou sua argumentação. De fato, ele recomenda ao seu leitor, as Vite, de Vasari,
fazendo com este manifesto, um aceno de agradecimento ao historiador florentino, pela
dependência teórica que manteve em relação à sua obra.
Essa influência teórica para com Vasari pode ser decomposta em três principais
momentos. Primeiro, os procedimentos de trabalho e a habilidade discursiva com que o
historiador florentino havia erigido os critérios de avaliação em sua exposição da Arte
Renascentista da Itália Central, reaparecem no escrito de Dolce, não num primeiro plano de seus
argumentos, mas de modo bastante significativo ao longo de todo o diálogo (ROSKILL, 2000:
14). O que talvez se explique pelo domínio de um repertório da Arte Retórica, cabedal de
conhecimento que todo humanista erudito do Renascimento deveria possuir.
Nesse sentido, ao discorrer sobre a definição de pintura, Dolce expõe o mesmo preceito
compositivo traçado por Vasari, o que implica dizer, que o pintor deveria congregar na cena
pictórica, certo número de figuras convenientemente dispostas segundo a história que deveria
ser narrada (regra defendida também por Alberti). Para tanto, o artífice deveria trabalhar em
conformidade com a sua inventio, elaborando primeiramente uma série de esboços preliminares,
antes de passar à execução da obra. Ao construir cada figura, deveria seguir a prática dos
pintores Romanos, que primeiro revestiam os ossos com carnes e, em seguida as carnes com
drapejamentos (demonstrando, assim, um domínio pleno de anatomia). E para Vasari, refletido
em Dolce a proficiência do ofício do pintor, com o fim único de atingir a perfeição da pintura,
residiria na força de uma constante prática, na adesão aos paradigmas de excelência obtidos
pelos pintores da Antiguidade e no estudo de grandes mestres contemporâneos.
Segundo, Dolce faz eco de alguns traços estruturais que são característicos às Vite. Por
exemplo, ao discorrer sobre Bellini, ele adota a divisão da pintura em três idades proposta por
Vasari, no Proêmio da Segunda Parte da obra:
“Vasari via o Renascimento como uma era de progresso, constituído por uma
evolução que, segundo ele, se desenrolava em três fases, ou três épocas,
correspondentes aos estágios da vida humana. A primeira fase, comparável à
infância, teria sido introduzida por Cimabue e Giotto na pintura, por Arnolfo di
Cambio na arquitetura e Pisani na escultura. A segunda fase, identificando-se à
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
adolescência, teria recebido a marca de Masaccio, na pintura, Brunelleschi, na
arquitetura e Donatello na escultura. A terceira, equivalendo à maturidade teria
começado com Leonardo e culminando no modelo do uomo universale,
representado por Michelangelo” (PANOFSKY, 1960: 56-57).
Dolce, por sua vez, propõe as três fases da pintura veneziana. A primeira corresponderia
a Giovanni Bellini, a segunda caberia a Giorgione e a terceira que representaria o ápice da arte
pictórica vêneta, seria personificada por Ticiano.
Outro traço absorvido de Vasari encontra-se no elenco daqueles que seriam os oito
pintores mais proemimentes do século XVI (Michelangelo, Rafael, Correggio, Parmigianino,
Ticiano, Andrea del Sarto, Perino del Vaga e Pordenone) cujo paradigma de avaliação e
argumentos utilizados por Dolce para tratar de cada um, espelha a opinião do florentino.
O terceiro e último momento diz respeito a muitas passagens nas quais a argumentação
de Dolce assemelha-se de modo veemente às palavras de Vasari, ocorrendo tal particularidade
nos trechos que envolvem certos conceitos ou explicação de princípios teóricos. Por exemplo,
em alguns aspectos da doutrina do ut pictura poesis; na acolhida do desenho como elemento
fundamental na pintura (a despeito de defender veemente a cor como parte de suma importância
na descrição da propriedade das coisas); a doutrina do decoro; a questão do juízo do olho, a
narrativa da história na pintura como inventio; a facilidade/dificuldade da pintura; a importância
do escorço e da perspectiva.
Vasari foi para Dolce não apenas fonte de argumentos teóricos, mas o alvo da crítica que
estabeleceu através de seu diálogo, ao refutar a divindade que o historiador florentino havia
concedido a Michelangelo, ressaltando a maestria de Rafael e fazendo veemente defesa da
pintura veneziana, por meio da figura de Ticiano.
Segundo Paola Barocchi, o crescente mito de Michelangelo sancionado com entusiasmo
nas Vite, devia parecer um argumento um tanto ameaçador às aspirações de um ambiente
artístico como o vêneto. A terribilità característica do florentino que parecia monopolizar a
expressão artística, não podia deixar de suscitar uma polêmica que fez de Rafael (já falecido) o
protetor do ideal clássico na metade do século XVI, e um aval para uma defesa da pintura de
Ticiano (BAROCCHI, 1960: 316). E também de acordo com Mary Pittaluga,
“Rafael pelo caráter de sua arte, devia sem dúvida apresentar-se como mais
agradável e compreensível àqueles letrados, que buscavam com paixão em um
afresco o deleite do canto de um poema, que não supunham contemplar a arte em
433
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
contato com qualquer estranha circunstância de naturalismo, conveniência ou de
ilustração de moral” (BAROCCHI, 1960: 316, nota 25).
Conforme Ortolani, numa carta a Gasparo Ballini, de 1544, Dolce manifestara já certa
predileção pela obra de Rafael, pois o desenho de Michelangelo parecia-lhe monótono,
unilateral e até, sob certo aspecto licencioso, enquanto que as várias qualidades do primeiro lhe
permitiam exprimir a “bela maneira das esculturas antigas” e “contender plenamente com a
natureza”. Havia já nessa carta o esboço de um plano programático que seria desenvolvido no
diálogo (BAROCCHI, 1960: 316, nota 26).
A carta difamatória sobre o “Juízo Final” de 1545, enviada por Aretino a Michelangelo,
tecendo ferozes críticas à obra, fundamentada em preceitos da doutrina do decoro nos termos da
Contra-Reforma, confere oportunidade para que Dolce elabore os argumentos de uma crítica
indiretamente dirigida a Vasari.
O diálogo Aretino é todo construído como uma recusa de aceitar a divindade de
Michelangelo e sua superioridade ante a outros pintores. Propõe-se a exaltar a maestria de
Rafael, e eleger a supremacia de Ticiano em relação aos outros dois e, por conseguinte a pintura
veneziana frente àquela da região Tosco-romana.
Dolce admite a primazia de Michelangelo somente no que concerne ao desenho, sendo
ele insuperável nesse aspecto. Contudo é incapaz de compreender e aceitar sua maniera, a
representação anatômica vigorosa e plena de virtuosismo de suas figuras. Rafael, em sua
opinião, personifica o cânone clássico da pintura, pela graciosidade, delicadeza e suavidade de
sua figuração, e Bembo, Castiglione e Ariosto, conferem-lhe respaldo por sua eleição. Ticiano
ergue-se como o ápice dessa pirâmide, o qual, pela excelência de seu colorido atinge toda a
perfeição da pintura, na opinião de Dolce, sobressaindo-se, assim, sobre os dois outros.
Se Vasari havia erigido uma reputação quase incontestável de Michelangelo sobre os
outros artífices na primeira edição das Vite, uma exaltação das virtudes de Rafael e sua
equiparação ao florentino tomara já lugar nas Prose della Volgar Lingua (1525), de Pietro
Bembo (1470-1547), por quem Dolce muito se influenciara para compor seus argumentos no
diálogo. Em sua obra Bembo enaltece o pintor de Urbino e nivela-o a Michelangelo, salientando
a excelência de ambos enquanto mestres da pintura e da arquitetura. E nos anos seguintes à
publicação das Vite, a fortuna crítica em louvor de Rafael aumenta, enquanto a Michelangelo
vem a diminuir.
O embate artístico Michelangelo-Rafael (num cotejo com o ambiente das letras)
absorveu elementos teóricos de uma circunstância que vinha ocorrendo naquela primeira metade
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
do século XVI, a querela sobre as questões filológicas de uma normatização da língua italiana.
Discorria-se no período se a formação do idioma deveria basear-se na imitação de um único
modelo, ou de vários. De um lado, a célebre figura do erudito Bembo propunha o
entrelaçamento de paradigmas, um clássico e outro moderno. Cícero personificaria o padrão
clássico a ser imitado, Boccaccio e Petrarca os modelos modernos. O primeiro, no tocante à
prosa, o segundo à poesia. Por outro lado, Giovanfrancesco Pico della Mirandola (1469-1533),
outro humanista douto, defendia um pluralismo de modelos a serem seguidos, pois, para ele, a
ideia de uma correta linguagem devia estar espalhada em inúmeras obras e não em uma única, e
tais premissas tomaram lugar na relevante troca de correspondência entre ambos os teóricos em
latim.
Assim, numa transposição desses pressupostos para a teoria artística, de um lado
encontramos Vasari que incorpora em Michelangelo o modelo único de perfeição da arte, por
congregar em si a maestria sem par na pintura, escultura e a arquitetura (equiparando-se ao
paradigma Cícero de Bembo). Por outro vemos Dolce e outros teóricos contemplando Rafael
como o modelo multifacetado de virtudes, convergindo em si todas as qualidades e habilidades
inerentes à pintura que sempre estiveram presentes na arte clássica dos antigos.1
Nesse debate insere-se o diálogo de Dolce que, além de expor a problemática acima
exposta, propõe uma nova solução, introduzindo na trama cênica um novo personagem, Ticiano,
o qual em seu ponto de vista, não só representa o pintor múltiplo por todas suas virtudes
pictóricas, como também o único. E aquele a quem acima de Michelangelo e Rafael, personifica
toda a excelência do cromatismo veneziano e italiano.
Os argumentos de Dolce ratificados em motivos de vários outros autores, Aretino, Pino,
Varchi, Bembo e o próprio Vasari, não poderiam deixar de suscitar neste último uma frutuosa
reflexão sobre os pressupostos expostos nas Vite. E de tal modo que, na edição de 1568, não só
Vasari acrescenta uma biografia de Ticiano, com base nas informações de Dolce, como também
tece uma contra-argumentação de suas críticas. Ele demonstra, de fato, que a pretensa linguagem
unilateral de Michelangelo (considerada por Dolce) não implicava uma incapacidade, porém,
uma escolha e um empenho criativo absoluto, servindo para corrigir a cisão entre bravura
técnica e capacidade expressiva, que Aretino e Dolce haviam mal interpretado em nome dos
padrões de Rafael. O Juízo Final não representava somente “dificuldade” e “copiosidade” de
ações das figuras, mas tinha por significado uma inconfundível gama estilística perfeitamente
1
É preciso salientar que os simplórios pressupostos aqui colocados, foram idealizados pelo Prof. Luiz Marques em
sua notável palestra “Giorgio Vasari e a ‘Escola de Florença’, por ocasião do Colóquio Internacional Giorgio
Vasari no Quinto Centenário do Nascimento.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
afinada aos tormentos do Mestre Toscano, reafirmando, assim Vasari, a preponderância de
Michelangelo no cenário artístico italiano.
É preciso observar que o tratado de Dolce, com toda a gama de influências e fontes de
que se serviu para o compor, não deixou de ser um documento historiográfico fundamental da
pintura veneziana, justamente por defender a primazia da cor frente ao desenho, edificando com
isso, não só as bases para uma teoria artística vêneta, como também para a elaboração de
pressupostos para uma “emancipação do colorido”, o que teria lugar somente com os teóricos da
Academia Francesa no século seguinte, para os quais, o Aretino foi de extrema relevância.
Há que se considerar ainda sua fortuna crítica, pois foi publicado em várias edições.
Houve uma segunda impressão italiana em 1735, curada pelo diretor da Academia Francesa de
Roma. Um edição holandesa surgiu em 1756, outra alemã (1757), uma inglesa (1770) outra
ainda em Viena (1871), e numerosas outras edições italianas. Mais recentemente uma francesa
(1996), uma americana (1968) e uma espanhola (2010).
Referências Bibliográficas:
DOLCE, Lodovico. “Dialogo Della Pittura intitolato L´Aretino”. In: BAROCCHI, Paola (Org.)
Trattati D’Arte del Cinquecento - Fra Manierismo e Controriforma. Vol. I, Bari, Gius. Laterza e
Figli, 1960.
DOLCE, Lodovico. Dialogue de la peinture intitule L’Aretin. Apresentação e notas, Lauriane
Fallay d’Este. Tradução Nathalie Bauer. Paris, Klincksieck, 1996.
DOLCE, Lodovico. Diálogo de la Pintura, titulado Aretino, y otros escritos de Arte. Edición de
Santiago Arroyo Esteban. Madrid: Ediciones Akal, 2010.
ORTOLANI, S. Le origini della critica d´arte a Venezia. L´Arte, XXVI, 1923, p. 16. In:
BAROCCHI, Paola (Org.) Trattati D’Arte del Cinquecento - Fra Manierismo e Controriforma.
Vol. I, Bari, Gius. Laterza e Figli, 1960.
PANOFSKY, Erwin. Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental. Lisboa: Editorial
Presença, 1960.
PITTALUGA, Mary. E. Fromentin e le origini della moderna crítica d´arte. L´Arte, XX, 1917,
pp. 242. In: BAROCCHI, Paola (Org.) Trattati D’Arte del Cinquecento - Fra Manierismo e
Controriforma. Vol. I, Bari, Gius. Laterza e Figli, 1960.
ROMEI,
G.
Dizionario
Biografico
degli
Italiani.
Disponível
em:
http://www.treccani.it/enciclopedia/lodovico-dolce_(Dizionario-Biografico)/.
436
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
ROSKILL, Mark W. Roskill. Dolce’s Aretino and Venetian Art Theory of the Cinquecento.
Toronto, University of Toronto Press, 2000.
VASARI, Giorgio. Le Vite de´più eccellenti architetti, pittori, et scultori italiani, da Cimabue,
insino a´tempi nostri. 2 Volumes. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1986.
VASARI, Giorgio. Le vite dei più eccellenti pittori, scultori et architetti. Roma, Grandi
Tascabili Economici Newton, Newton & Compton Editori, 1991.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
AS OBRAS DE GINO SEVERINI NA COLEÇÃO DO MUSEU DE ARTE
CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Renata Dias Ferraretto Moura Rocco*
GINO SEVERINI E O ANTIGO MAMSP
Esta pesquisa de mestrado se insere no campo de estudo da historiografia da arte
brasileira e italiana, e tem como questão principal a investigação sobre as pinturas do artista
italiano Gino Severini (Cortona, 1883 – Paris, 1966), presentes no acervo do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Neste texto serão apresentados os
primeiros resultados e reflexões da pesquisa em andamento.
Primeiramente, é importante comentar que ao entrar em contato com publicações do
campo da historiografia da arte a respeito de Severini, é bastante freqüente vermos a expressão
“Severini Futurista”, em referência a ele. Entretanto, sua produção ligada ao movimento italiano
‘marinettiano’1 durou pouco tempo (entre os anos 1910 e 1915), ao passo que sua trajetória
artística foi de mais de 50 anos. Isso para dizer que ele não pode ter sua produção artística
inteiramente batizada dessa forma, pois suas criações seguiram em diversas direções.
Severini nasceu na Itália e mudou-se para Paris em 1906. Dividiu sua vida entre os dois
países, o que fez com que participasse de diferentes movimentos artísticos além do futurismo,
como o divisionismo (1905-1910), o cubismo (1916-1919), de mostras do Novecento Italiano, do
fenômeno do “retorno à ordem” e da Escola de Paris no período entreguerras, entre outros, no
pós Segunda Guerra Mundial.
O fato do artista ter tido a vivência nessas duas pátrias refletiu fortemente na sua
produção artística como um todo. Sobre os dois países, disse (SEVERINI, 1965: 09): “As
cidades que sou mais profundamente ligado são Cortona e Paris: na primeira nasci fisicamente,
na segunda, intelectual e espiritualmente”2.
É possível ter contato com seu legado no Brasil por meio do acervo do MAC USP que
possui quatro de suas obras: Natura Morta con Piccioni [Natureza Morta com Pombas], 1939/40
(Figura 01), Figura con Pagina de Musica [Figura com Página de Música], 1938 (Figura 02),
Fiori e Libri [Flores e Livros], 1946 (Figura 03) e La Femme et L’arlequin [A Mulher e o
Arlequim], 1946 (Figura 04).
*
Universidade de São Paulo – USP. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo
1
Felippo Marinetti fundou o Movimento Futurista por meio do seu manifesto“ Fundação e manifesto do futurismo”,
publicado originalmente em Paris no Le Figaro , 20 de fevereiro de 1909.
2
Tradução nossa
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
A compra dessas pinturas, que ocorreu entre 1946 e 1947, remonta à formação do acervo
do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAMSP), pois fez parte de um programa
maior de aquisições pensado inicialmente para compor o núcleo inicial de obras do acervo do
museu. A orientação para essas compras ficou a cargo da crítica de arte italiana Margherita
Sarfatti, a pedido de Francisco Matarazzo Sobrinho. Ela delineou um perfil balizador para a
aquisição das obras que teria como base, não o gosto pessoal do mecenas mas sim, a linguagem
plástica do programa do Novecento que ela organizou em Milão em 1922 (MAGALHÃES,
2010: 46-53). As pinturas de Severini junto com todo o acervo do antigo MAMSP foram doadas
à Universidade de São Paulo em 1963, que criou o MAC USP para abrigá-las.
Embora esse seja o contexto, as obras de Severini não podem ser analisadas como um
conjunto criativo coeso, pois têm uma linguagem plástica que se modifica bastante ao longo dos
anos que as separam.
OBRAS
“Natureza Morta com Pombas”
O que se vê em Natureza Morta com Pombas (Figura 01) é uma cena com uvas, vasos e
pássaros sobre uma mesa, com um fundo “infinito”. Devemos analisá-la dentro de uma produção
maior de naturezas-mortas feita pelo artista nos anos 30, tendo como recorte principal as obras
que ele expôs na II Quadrienal de Roma (1935). Isso porque compartilham de uma mesma
linguagem plástica que o artista lançava mão para dar conta desse tema especificamente, ou seja,
o repertório empregado, o ângulo de visão sugerido ao espectador, a pouca variação de luz e as
pinceladas generosas de uma paleta reduzida.
Essa economia de cores, aliás, era algo recorrente nas suas telas dos anos 30. Ao fazer
isso ele estava em linha com a gramática da arte clássica italiana, e com as teorias que ele havia
formulado, dentre as quais acreditava que a cor obrigatoriamente deveria ser dominada pela
forma, pois “... a cor é um elemento destrutivo e sensorial...” 3 (SEVERINI, 1921: 91).
No que tange à composição, a maior parte dessas naturezas-mortas era caracterizada por
ter uma estrutura compositiva rígida, calculada, fundamentada em estudos de aplicações
matemáticas e geométricas, com respeito ao enquadramento na tela. Essas obras apresentam o
embasamento teórico do livro que o artista publicou em 1921, Du Cubisme au Classicisme:
esthétique du compas et du nombre [Do Cubismo ao Classicismo: Estética do Compasso e do
Número], no qual foi enfático ao afirmar que a composição do quadro precisava ter a geometria
3
Tradução nossa
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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como base, e que um artista só poderia inovar ao longo dos séculos se trabalhasse a partir das leis
numéricas.
Ao observar Natureza Morta com Pombas percebe-se que sua composição foi
fundamentada nas formas geométricas do triângulo (na disposição dos elementos) e do trapézio
(no formato da mesa), sendo que o primeiro direciona o olhar do espectador para a parte superior
da tela bem no vaso sobre o cubo. Esse caminho percorrido pelo olhar faz com que o restante dos
elementos fique emoldurado dentro desse triângulo imaginário sugerido pelo artista. Na cena da
tela do MAC USP o artista evocou quietude, jogando com a atemporalidade e a concretude
características do Novecento Italiano de Sarfatti, muito embora esse programa já tivesse sido
desfeito na época em que a pintura foi feita.
Outro aspecto importante são os dois pássaros que aparecem na obra, pois Severini
incluiu-os freqüentemente em outras naturezas-mortas, ainda que em soluções artísticas bem
diferentes, durante toda sua vida. Sobre as aves, vale apontar que ele exibiu a obra As Sete
Virtudes (1934, Itália, Galeria Comunale D´Arte, Cagliari) na II Quadrienal de Roma, na qual
apresentou sete pássaros pintados em têmpera, externando, assim o significado simbólico que o
animal tinha naquele momento para ele, ou seja, a virtude. Esse sentido não devia ser algo
aleatório. Severini era ateu e se converteu ao catolicismo nos anos 20, então, é bastante provável
que seu entendimento da pomba estivesse relacionado a um aspecto religioso, já que sua figura
está associada a do Espírito Santo.
Nesse contexto, é preciso apontar a relação que se desenvolveu entre Severini e o filósofo
francês, Jacques Maritain (1882-1973) a partir de 1923. Maritain marcou profundamente o artista
no que diz respeito à sua religiosidade, e se tornou um guia espiritual para ele nas décadas
seguintes, ajudando-o a transmitir em sua arte de forma combinada, as crenças religiosas cristãs
e as teorias do próprio artista publicadas no ensaio de 1921 (HEYNICKX, R.; MAEYER, J.,
2010: 122-125).
“Figura com Página de Música”
A pintura Figura com Página de Música (Figura 02) traz uma cena composta por uma
mulher sentada, com o rosto apoiado entre as duas mãos sobre uma partitura musical de um livro
e um violão recostado na parede próxima a ela.
No que diz respeito à sua composição, percebe-se a austeridade com que foi construída,
na qual tudo foi calculado. Embora haja elementos por toda a superfície da tela, a cena principal
ocorre em seu centro e é “emoldurada” por um triângulo. Novamente, Severini dá como chave
essa figura geométrica para as bases de sua obra, que faz imediatamente correr o olho do
espectador para o rosto da figura.
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A representação possui um aspecto monumental, sóbrio e reflexivo, muito apropriados ao
gosto da arte italiana da época em que foi feita. É importante ressaltar que essa tela foi pintada
três anos após a II Quadrienal de Roma, na qual o artista recebeu o prêmio máximo da mostra4 e,
em função dele, retornou a Roma (PONTIGGIA, E.; CARLI, C., 2006: 34).
Entretanto, deve ser observado que existem elementos novos na sua elaboração, que
fogem às características essenciais dessa arte italiana. De fato, Severini apreciava trabalhar com
a gramática da tradição clássica da arte italiana, mas não simplesmente copiando-a, e sim,
revigorando-a. Assim, nesta tela ele buscou aplicar recursos que conferiam o novo, mas não
somente “à maneira italiana”, mas também, “à maneira francesa”.
Nesse sentido, a execução da parede é relevante, pois utilizou a mesma solução
decorativa com arabescos que havia visto anteriormente em telas do pintor francês, Henri
Matisse (1869-1954). Essa proposta imprimiu uma noção de espaço e profundidade à cena,
evidenciada pelo corte em diagonal na tela (dentro do esquema proposto pelo triângulo), através
da inclusão de uma cortina na cena. Essa interferência foi conquistada com um olhar sobre a arte
italiana dos séculos anteriores, pois como se sabe, a cortina foi muito usada para dar conta de
demarcação de ambientes, sobretudo na pintura renascentista veneziana.
A paleta de Figura com Página de Música é econômica, na qual predominam tons ocres e
castanhos para a figura principal (rosto e vestido), enquanto as cores frias foram usadas em
outras partes da composição (cortina, paredes).
É preciso lembrar que entre os anos 20 e 30 Severini era visto no meio artístico italiano
como um artista que fazia parte do grupo dos “Italianos de Paris”5, e isso refletia nele próprio,
em sua produção e possivelmente na elaboração de Figura com Página de Música. Essa
hipótese, contudo, está sendo desenvolvida na pesquisa em andamento.
“Flores e Livros”
Flores e Livros (Figura 03) é uma natureza-morta composta por um vaso com flores sobre a
mesa, junto com livros, frutas e pães no cesto.
No âmbito da produção de Severini que vimos até então, essa obra se apresenta como
uma ruptura na forma artística em que o artista operava, pois se percebe que a solução plástica é
muito diferente da que usou em sua outra natureza-morta pertencente ao acervo do museu.
4
5
Severini recebeu o Prêmio de 1º lugar de Pintura na II Quadrienal de Roma, ganhando cem mil Liras. Com essa
ajuda financeira, ele que morava na França, decidiu voltar para a Itália com sua família.
Esse grupo era formado por artistas italianos que moravam em Paris entre os anos 20 e 30, e que participavam de
exposições nos dois países. Eles compartilhavam do interesse de uma linguagem relacionada ao contexto do
“retorno à ordem”, e alguns de seus expoentes, além de Severini, eram: Giorgio de Chirico, Massimo Campigli,
Mario Tozzi (Fonte: MUSEO DI ARTE MODERNA E CONTEMPORANEA DI TRENTO E ROVERETO).
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Inicialmente, fica evidente a diferença entre as estruturas compositivas das duas
naturezas-mortas da coleção MAC USP, pois há um abandono da figura geométrica do triângulo
na constituição da obra de 1946.
A rigidez foi posta de lado, e Severini trabalhou mais
livremente ao estruturar do espaço.
Essa mesma liberdade foi usada por meio da pincelada, que ele deixou mais solta, assim
como no uso mais vibrante e não econômico das cores e mesmo o preto, que foi empregado
como cor no vaso, e não apenas como sombra.
Há uma referência à solução plástica fauvista em Flores e Livros. Existe interdependência
entre os elementos presentes na obra e há uma mistura dos galhos que saem do vaso com a
parede, quase como uma decoração, um papel de parede, onde fica difícil delimitar o começo e o
fim de cada coisa.
Para dar uma noção de espacialidade Severini trabalhou o fundo desta tela com uma
divisão nas cores azul e marrom, e tendo em vista a posição da mesa, que está no ambiente
marrom, tudo indica que o espaço azul seja um plano atrás da cena principal. Essa mesa,
inclusive, merece um olhar mais cuidadoso, pois possui apenas um de seus dois lados aparentes;
a partir do vaso ela é descontinuada, o que se coloca como um enigma, assim como o desnível
que ele propôs na mesinha de Natureza Morta com Pombas. De certa forma, isso pode ser
considerado como uma ‘marca’ do artista, que o colocou em várias de suas telas em décadas
diferentes.
Outro aspecto curioso é que em torno de alguns elementos da obra – vaso, cesta de pães Severini lançou mão do que parecem ser halos de luz para dar conta dos contrastes de luz e
sombra. Esse recurso pode ter tido origem pelo contato do artista com os cubistas. Ao observar
muitas telas de Severini feitas no início da década de 40, nota-se que o emprego dessa sombra
plástica cubista já havia se tornado freqüente, como comprova sua Natureza Morta com Flores
exibida na IV Quadrienal de Roma (1943).
Outro ponto importante de Flores e Livros é que algumas áreas pequenas parecem
inacabadas, onde as pinceladas bem leves deixam aparecer o fundo da tela, exibindo o gesto do
artista. Diferentemente dos vasos pintados nas obras da década de 30, Severini aqui dá leveza e
transparência ao objeto, ao invés de solidez. Nessa chave, ele sugere um efeito com pinceladas
rápidas, onde se pode ver a água e os caules das flores. Esses acabamentos dados, por exemplo,
pelos artistas impressionistas não “combinam” com a formalidade e o rigor de outros momentos
artísticos de Severini, tão defendidos nas décadas anteriores. Ele, inclusive, se colocou de forma
diversa com relação ao movimento impressionista ao longo das décadas, pois em sua publicação
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de 1921, punha esse movimento na raia dos modernos sem qualidade, enquanto em 1946, na sua
biografia, faz justamente o oposto.
Tendo em vista o contexto histórico em que esta obra foi feita, faz sentido que o artista
tenha mudado de opinião. No Pós Segunda Guerra Mundial, ele voltou para Paris e se
reaproximou das vanguardas artísticas francesas, justamente em um momento em que acontecia
o resgate das vanguardas históricas, sobretudo, do movimento impressionista.
“A Mulher e o Arlequim”
A Mulher e o Arlequim (Figura 04) é uma obra que traz o personagem da Commedia
Dell’Arte tocando para uma figura feminina nua, sem rosto que descansa. Se anteriormente
falamos que dentro da produção de Severini do acervo MAC USP a obra Flores e Livros
representava uma ruptura, A Mulher e o Arlequim, o é ainda mais, na medida em que passa a
operar quase que exclusivamente na chave fauvista de referência à obra de Matisse.
Inicialmente, ao refletirmos sobre o tema desta tela, lembramos que pierrôs e outros
personagens do teatro de improviso foram muito explorados em obras das vanguardas, como as
de Juan Gris (1887-1927) e Pablo Picasso (1881-1973), e mesmo pelos artistas ligados ao
fenômeno do “retorno à ordem” como Andre Derain (1880-1954) e o próprio Severini, que
voltou a esse tema em diferentes fases dando um tratamento exclusivo a cada uma delas. Isso se
percebe ao observar a obra do MAC USP, e outras que produziu como o Arlequim com Guitarra
(1917, França, Centre Pompidou) feita de acordo com os preceitos cubistas, e A Família do
Pobre Polichinelo (1923, coleção privada), em consonância com o contexto do “retorno à
ordem”.
Já a posição repousada da figura feminina remonta às banhistas representadas à exaustão
por artistas de diversas épocas, bem como as odaliscas (a partir do fenômeno do Orientalismo),
igualmente caras a artistas como Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) em sua tela
Odalisca com Escrava (1839/40, Estados Unidos, Harvard Art Museums/ Fogg Museum).
Ingres, assim como Jacques-Louis David (1748-1825) e Nicolas Poussin (1594-1665), foi
“revisitado” por artistas que tinham participado na França do fenômeno do “retorno à ordem”
(ENCICLOPÉDIA ARTES VISUAIS, 2008), ao mesmo tempo em que foi referência para
artistas no início do século XX, como atesta a tela cubista Moças de Avignon de Picasso (1907,
Estados Unidos, The Museum of Modern Art).
É curioso notar que Severini fez um uso diferente da cor em A Mulher e o Arlequim, haja
vista suas criações anteriores. Primeiramente, fez um uso não comedido delas: a tela é, portanto,
mais colorida e vibrante. Outro dado é que empregou no corpo da mulher uma sombra
esverdeada que foi muito criticada quando usada pelos impressionistas no final do século XIX, e
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igualmente pelo próprio artista, em seu livro de 1921. Mas, de volta à França em 1946, ele já
havia se “redimido” com relação ao movimento, e se permitiu emprestar essa solução plástica.
Outro aspecto interessante é como ele trabalhou a noção de sombra e luz na cena, pois, tal qual
em Flores e Livros, ele usou uma sombra “plástica” herdeira do cubismo.
Todos os elementos presentes em A Mulher e o Arlequim – tecidos, almofadas coloridas são vivos e o próprio papel de parede é alegremente incorporado à cena, onde praticamente não
há respiro. Existe um emprego de formas decorativas, do uso do arabesco, de contornos grossos
e do preto como cor.
De fato, Severini abriu precedentes na elaboração desta obra, que também não conta com
aplicações matemáticas na composição e não pressupõe elementos da gramática italiana. Pelo
contrário, trata-se de uma solução plástica que dialoga diretamente com criações ‘matissianas’.
Essa influência sobre Severini é evidente, como se nota, por exemplo, na pintura Odalisca em
Calças Vermelhas feita por Matisse (1924/25, França, Musée de l'Orangerie).
Matisse e Severini se conheceram em Paris no estúdio de André Lhote (1885-1962) e
estreitaram amizade ao longo dos anos. Na sua publicação Ragionamenti Sulle Arti Figurative
[Reflexões sobre as Artes Plásticas] de 1936, Severini reforçou o valor de Matisse dizendo que:
“poucos artistas [....] souberam conservar como Matisse uma unidade de direção da juventude à
maturidade” (SEVERINI, 1936: 213) 6.
Tendo em vista os primeiros resultados da pesquisa em andamento, é possível afirmar
que no MAC USP há uma significativa amostra da trajetória criativa de Severini entre os anos
1930 e 1940, ainda que em apenas quatro pinturas. Há pelo menos dois aspectos importantes
que estão sendo estudados e que devem ser comentados – o primeiro deles é a relação de
Severini com a Itália nos anos 30, seu engajamento em provar a supremacia italiana no contexto
de produção da arte moderna; e o outro, é sua reaproximação com as vanguardas artísticas
francesas a partir dos anos 40. Tendo em vista o primeiro aspecto, o que a investigação já
apontou é a vinculação das soluções plásticas empregadas nas pinturas Natureza Morta com
Pombas e Flores e Livros com as que ele apresentou na II e a IV Quadrienais de Roma,
respectivamente. Inclusive, vale ressaltar que ao pesquisar os arquivos do artista surgiu a
informação de que a primeira obra teve como procedência a coleção privada veneziana,
Cardazzo, que foi premiada pelo governo fascista em 19417. Essas são, portanto, as primeiras
reflexões que a pesquisa de mestrado em desenvolvimento trouxe até o momento.
6
7
Tradução nossa
A Documentação que comprova procedência da Coleção Cardazzo está em processo de análise.
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Referências Bibliográficas:
1.1.
Publicações de Gino Severini:
SEVERINI, Gino. Du Cubisme au Classicisme: Esthétique du compas et du nombre. Paris:
L´Imp. Union, 1921.
_______________. La vita di un pittore. Milão: Edizioni di Comunita, 1965.
_______________. Ragionamenti sulle arti figurative. Milão: Ulrico Hoepli, 1936.
1.2.
Fontes:
HEYNICKX, Rajesh; MAEYER, Jan De eds. The Maritain Factor: taking religion into Interwar
Modernism. Belgium: Leuven University Press, 2010.
MAGALHÃES, Ana. “As Coleções Matarazzo no Acervo do MAC USP e a Pintura Moderna no
Brasil". In: VI ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE DO INSTITUTO DE FILOSOFIA E
CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, 2010,
Campinas, SP. Atas... Campinas: UNICAMP, 2010. pp. 45 – 53.
PONTIGGIA, Elena; CARLI, Carlo. La Grande Quadriennale 1935: La Nuova Arte Italiana.
Milano: Mondadori Electa SpA, 2006.
1.3.
Endereços Eletônicos:
ENCICLOPÉDIA
ARTES
VISUAIS.
Retorno
à
ordem.
Disponível
em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto
&cd_verbete=887. Acesso em 30/04/2011.
MUSEO DI ARTE MODERNA E CONTEMPORANEA DI TRENTO E ROVERETO. Fondo
Gino
Severini.
Disponível
em:
http://cim.mart.tn.it/cim/ricercaAutority.do?method=soggettoSesamo&codice=ff8080812acc710
e012acc7167542711&fondo=ff8080812acc710e012acc7167542710. Acesso em 30/05/2011.
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Figura 01 – 1939/40, Gino Severini, Natureza Morta com Pombas, Óleo sobre papelão, 29,4 x
40,5 cm, Itália, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Figura 02 – 1938, Gino Severini, Figura com Página de Música, Óleo sobre tela, 65,1 x 49,9 cm,
Itália, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
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Figura 03 – 1946, Gino Severini, Flores e Livros, Óleo sobre tela, 61 x 45,8 cm, Itália, Museu de
Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Figura 04 – 1946, Gino
Severini, A Mulher e o
Arlequim, Óleo sobre
tela, 61 x 50,2 cm, Itália,
Museu de Arte
Contemporânea da
Universidade de São
Paulo, São Paulo, Brasil.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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“CRISTO EM CAFARNAUM”, AMOEDO EM PARIS
Richard Santiago Costa
Em maio de 1976, o estudo intitulado Jesus Cristo em Cafarnaum (Figura 1), do pintor
baiano Rodolfo Amoedo, pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo, fora escolhido para
ser o destaque do acervo daquele mês. O boletim nº 14 da Secretaria da Cultura, Ciência e
Tecnologia escrevera, em pouco mais de duas páginas datilografadas, uma espécie de descrição
sumária da tela, contendo dados básicos como dimensões, técnica e data de feitura, bem como
um curto texto explicativo sobre ela. Naquela época, a então diretora da Pinacoteca do Estado,
Aracy Amaral, empreendera uma prática de expor com destaque, a cada mês, alguma obra de
relevo do acervo do museu paulistano, e provavelmente tenha sido por suas mãos que tal
apreciação tenha chegado aos meios de comunicação. Com efeito, a exposição da tela fora
noticiada em alguns jornais do estado, e verifica-se que o corpo de ideias dos textos de tais
jornais segue um esquema básico de informações e enfoques claramente devedores das palavras
de Amaral. Dada a época, alguns juízos de valor pouco refletiam a justiça que os fatos,
descobertos à luz do tempo, mostrariam posteriormente sobre a referida obra.
A começar pela datação curiosa de tal estudo. Em sessão de 13 setembro de 1884, Victor
Meirelles e José Maria de Medeiros, então membros do conselho da Academia Imperial de Belas
Artes, referem-se a um esbocetto intitulado Jesus Christo em Capharnahum, enviado
anteriormente ao Rio de Janeiro por Amoedo para apreciação do conselho, intentando com ele a
prorrogação de sua estadia na Europa por mais dois anos, durante os quais executaria essa grande
obra. Presume-se, em um primeiro momento, que o esboço poderia ser datado, no máximo, até
meados de 1884, considerando o tempo de viagem de navio do mesmo da França até o Brasil. No
entanto, a data assinada por Amoedo no canto inferior esquerdo da tela é de 1885, portanto,
posterior ao parecer do conselho. Recentemente, tal estudo foi restaurado, e a data constante ao
lado do nome do artista não deixa dúvidas a esse respeito, lendo-se claramente “1885”. A menos
que tal estudo tenha retornado para as mãos de Amoedo em Paris, fato este que não encontra
respaldo em nenhum documento, pode-se supor que o mesmo tenha sido datado após sua volta
ao Brasil, em 1887. Chama atenção o fato de que, ao contrário de outros estudos dos demais
pensionistas da Academia na Europa, este não pertencia ao acervo da instituição, entrando para o

Mestrando em História da Arte pelo Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp. Bacharel e Licenciado em Artes Visuais pela mesma instituição. Pesquisa financiada pela
Fapesp.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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acervo do museu paulistano somente no ano de 1950, adquirido pelo governo do estado, através
da Secretaria de Educação, das mãos do colecionador Octalles Marcondes Ferreira.
Fato é que através de tal estudo, Amoedo fora contemplado com a prorrogação de sua
estadia em Paris por mais dois anos para executar “a grande machina”, hoje pertencente ao
acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e, infelizmente, furtada aos olhos do
público, permanecendo guardada na reserva técnica do museu. Como último trabalho executado
por Amoedo em Paris, percebe-se, principalmente através de suas correspondências com a
Academia do Rio de Janeiro, o esmero com que empreendera a cena cristã. Era sua intenção
expô-la no Salão de Paris de 1887, e para isso, tomara todas as precauções para que sua tela
causasse as apreciações mais positivas possíveis. Em uma de suas cartas ao então diretor da
Academia, Antonio Nicolao Tolentino, Amoedo especificara os gastos que teria com a execução
da obra: despesas com modelos e vestuários: 2.000 francos; aluguel do ateliê por dois anos:
3.000 francos; moldura com largura de 30cm: 1.325 francos; tela e grade de 3,5m por 4,5m:
198,50 francos; totalizando 6.523,50 francos. Nota-se que Amoedo queria não só obter um
possível prêmio no Salão parisiense como impressionar o meio artístico brasileiro em sua volta
ao país, sendo Jesus Cristo em Cafarnaum (Figura 2) uma espécie de trabalho de conclusão de
sua estadia na Europa.
Que há diferenças substanciais entre o estudo e a tela definitiva, não há dúvida. Quer pelo
tamanho e pela composição final, fatalmente o esboço de 1885 pertenceria a um tipo de fatura
bastante diverso da tela oficial de 1887. Apenas para efeito de comparação, utilizarei aqui a
única imagem disponível da tela definitiva, em preto e branco, para confrontarmos com o estudo.
Meu enfoque, nesta comunicação, recai sobre o esboço de 1885, visto que, por sua maior
liberdade de execução, Amoedo alcança efeitos bem mais oníricos do que em sua versão
definitiva. Não pretendo aqui, obviamente, fazer um juízo de valor entre o estudo e a tela oficial,
ao escolher aquele, visto que ambos possuem qualidades muito significativas no âmbito da
produção do pintor. Não seria exagero dizer que Jesus Cristo em Cafarnaum figure entre as
principais obras da carreira bem sucedida de Amoedo, revelando o estilo de um artista que,
apesar de jovem quando empunhara seus pincéis para executar tais obras, já valorizava o efeito
compositivo acima de qualquer exigência estrutural da obra. Com isso, quero dizer que a
propalada fama de “exímio desenhista” de Amoedo, facilmente comprovável e inegável, não
ofuscava sua busca por um lirismo condizente com suas verdades artísticas. Passemos então à
análise da obra propriamente dita.
A pequena tela de 63 x 78 cm, executada com a liberdade própria das ideias que
germinam em profusão e buscam sua materialização nas tintas que se agarram às tramas da tela
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do artista, parece bastante própria ao tema que se presta a retratar. No evangelho de Marcos,
temos a narração de um dos episódios mais místicos e enigmáticos da vida de Cristo. Cabe aqui
ouvirmos o pequeno excerto que descreve um dos milagres do messias:
1 Alguns dias depois, Jesus passou novamente por Cafarnaum, e espalhou-se a
notícia de que ele estava em casa. 2 Ajuntou-se tanta gente que já não havia mais
lugar, nem mesmo à porta. E Jesus dirigia-lhes a palavra. 3 Trouxeram-lhe um
paralítico, carregado por quatro homens. 4 Como não conseguiam apresentá-lo a
ele, por causa da multidão, abriram o teto, bem em acima do lugar onde ele estava
e, pelo buraco, desceram a maca em que o paralítico estava deitado. 5 Vendo a fé
que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: “Filho, os teus pecados são perdoados”.
6 Estavam ali sentados alguns escribas, que no seu coração pensavam: 7 “Como
pode ele falar deste modo? Está blasfemando. Só Deus pode perdoar pecados”! 8
Pelo seu espírito, Jesus logo percebeu que eles assim pensavam e disse-lhes: “Por
que pensais essas coisas no vosso coração? 9 Que é mais fácil dizer ao paralítico:
‘Os teus pecados são perdoados’, ou: ‘Levanta-te, pega a tua maca e anda?’ 10
Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar
pecados – disse ao paralítico – 11 eu te digo: levanta-te, pega a tua maca e vai
para casa!” 12 O paralítico se levantou e, à vista de todos, saiu carregando a maca.
Todos ficaram admirados e louvavam a Deus dizendo: “Nunca vimos coisa igual”
(Marcos, 2. 1-12)
Como podemos perceber, o milagre engendrado por Cristo ao recuperar o paralítico de
Cafarnaum está envolto por uma atmosfera de incredulidade inicial, logo transformada em fé
diante do imponderável milagre de Cristo. Como Marcos transparece em sua narração enérgica
da cena, Cristo traz a esfera do inimaginável (o milagre) para a esfera secular dos escribas
incrédulos e da população de Cafarnaum, dividida entre a materialização do poder sobrenatural
do Cristo e as acusações de blasfêmia que pairavam sobre ele. Não há dúvidas de que também
Amoedo precisara se deixar envolver pelo espetáculo miraculoso da narrativa de Marcos para
que pudesse também ele materializar algo que se encontrava nas esferas superiores do
pensamento.
De início, percebemos que Amoedo liberara-se de retratar a cena com a máxima
fidelidade aos escritos do evangelho. Marcos refere-se a um paralítico trazido em uma maca
através do teto, sendo que na composição do artista, o paralítico encontra-se já diante de Cristo,
recostado nos joelhos de um de seus parentes. Amoedo retrata o momento em que Cristo, envolto
por um halo de luz faiscante, adentra o recinto em que jaz o corpo sem mobilidade do paralítico,
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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e a seus pés, suplica uma mulher, provavelmente a mãe ou a irmã do enfermo. Atrás do Cristo,
sob a arcada, encontra-se uma massa semi-disforme de incrédulos e crentes, sendo que as seis
figuras mais identificáveis atrás dele podem ser de alguns de seus discípulos ou de alguns
escribas. A imagem do messias não ocupa o centro da composição, mas a maneira como é
construída atrai para si, como que magneticamente, a atenção do espectador. É sobre essa figura
emblemática, protagonista da composição, que deter-nos-emos a seguir.
Tornou-se lugar comum representar Cristo como um homem de estatura mediana, longas
barbas e cabelos adornando um rosto de aspecto magro, de maxilares bem pronunciados e
semblante grave. A vestimenta, quando não fosse uma cena de flagelação, crucificação ou
deposição do corpo do Cristo morto, compunha-se invariavelmente por uma clâmide de tecido
cru, majoritariamente branca, podendo adquirir tonalidades mais variadas de acordo com a
escola do artista ou a imperativos compositivos que por ventura a cena exigisse. O Cristo que
adentra as ruas secas e poeirentas de Cafarnaum veste-se de alguns desses lugares comuns
citados anteriormente. Seu corpo consubstancia-se dentro da clâmide branca, e bem poderíamos
vê-lo levitar se não nos ativéssemos ao seu pé direito que se desnuda por debaixo do tecido e
toca o chão com gravidade. Não há dúvidas de que o profeta que estende sua mão direita aos
suplícios de uma mulher desesperada olha com segurança para o corpo inerte do paralítico. Seu
rosto é, definitivamente, uma abstração. Amoedo limita-se a indicar as áreas sombreadas que se
moldam sobre o terreno facial fugidio do Cristo próprio às entidades dotadas de poder
sobrenatural. A ele não fora revelada a face do profeta. Talvez, seus olhos tenham sido ofuscados
pela luz santificadora que resplandece por detrás da cabeça de Cristo. Aqui, Amoedo utiliza-se
de um recurso bastante comum e esperado nas cenas religiosas: o halo luminoso que sacraliza o
indivíduo faz parte do código visual religioso desde tempos remotos.
Com efeito, Rodolfo Amoedo formara-se em uma Paris dividida entre os preceitos
acadêmicos e a efervescência das correntes dissidentes. Um de seus mestres franceses fora o
aclamado Pierre Puvis de Chavannes, comumente classificado como simbolista. Mesmo
simbolista, alcunha que ele rejeitara a vida toda com veemência, Chavannes não ficara de fora do
rol dos artistas bem sucedidos da segunda metade do século XIX, recebendo algumas
encomendas oficiais que corroboravam sua ampla aceitação entre as altas esferas de poder,
talvez o pintor oficial da Terceira República, além de ter formado toda uma geração de artistas
que passaram por sua tutela. Sua Decapitação de São João Batista [Figura 3], de 1869, traz algo
das cores fugidias que Amoedo empregara com tanta maestria em seu estudo. A atmosfera
terrosa, aquecida por tonalidades variadas de vermelho, transmite, a ambas as cenas, a atmosfera
seca daquela região da Galileia. Em ambas as cenas se abrem espaços na extremidade superior
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esquerda para um horizonte ao fundo que pretende aumentar a profundidade do espaço. Por trás
de um arco, Chavannes nos apresenta sombras, não sabemos se são massas de folhagens ou se
são espectadores da cena sanguinária que se seguiria; Amoedo dá passagem aos edifícios que se
erguem dando continuidade à cidade, ao mesmo tempo em que não deixa dúvidas de que o
milagre de Cristo é visto por uma multidão. Ao mesmo tempo, o rosto do carrasco de São João
Batista divide com o rosto do Cristo de Amoedo o aspecto indicativo, onde o relevo onírico da
ação parece diluir os contornos dos corpos e tornar amorfas as formas que antes eram concretas.
Mesmo na versão definitiva de 1887, o rosto de Cristo parece apenas ter se tornado mais grave, o
que não lhe favorece em termos de maior concretude.
Seguindo os caminhos do código visual simbolista, talvez o representante maior desse
estilo na França, Gustave Moreau, nos indique um norte a seguir diante das escolhas de Amoedo
para esse estudo. Como havia dito anteriormente, o halo de luz que se forma sobre a cabeça de
Cristo contribui para que sua face nos escape, aumentando o caráter místico e miraculoso da
cena. Moreau utilizara diversas vezes esse mesmo expediente: em Aparição de 1876 (Figura 4),
em Salomé carregando a cabeça de João Batista em uma bandeja de 1876 (Figura 5) e em
Cristo no Jardim das Oliveiras de 1880. Em todos eles, podemos observar o fascínio que o tema
religioso tivera sobre ele. No centro de sua arte está a paixão pela revelação do divino. Moreau
fora um incompreendido pelos círculos oficiais de arte de sua época, e talvez sua reclusão
voluntária desse ambiente tenha dado impulso a um aprofundamento cada vez maior de sua fé,
não só religiosa, como também artística. Amoedo também quer revelar o divino. A luz
santificadora de Moreau espraiasse sobre a temática religiosa do final do século, e seria difícil a
qualquer artista fugir do magnetismo dos seres sobrenaturais deste artista. A cabeça decapitada
de João Batista é familiar à cabeça do Cristo de Amoedo: os aspectos estruturais são
praticamente os mesmos, e por um momento, a matéria sagrada de ambos os mártires é
compartilhada. Não há dúvidas de que as semelhanças param aqui. Amoedo, pelo menos em
Jesus Cristo em Cafarnaum, não se deixara seduzir pela opulência e pela lascívia do universo
moreauriano.
Interessante observarmos que existe uma espécie de inconsciente coletivo que orienta o
fazer dos mais diversos artistas em um determinado período da história. Mais do que um
pretenso espírito da época, para citar um dos pilares da teoria de Wölfflin sobre a evolução dos
estilos artísticos, existe um diálogo silencioso entre mentes e obras. O Cristo de Ecce homo
(Figura 6) de Honoré Daumier não poderia ser atribuido às fileiras simbolistas. Não faz parte da
mentalidade aguda de Daumier resvalar para os caprichos e seduções dos temas religiosos
suntuosos dos artistas do símbolo. No entanto, seu Cristo “sujo”, literalmente, mostra-nos os
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contornos dúbios aos quais a religião estava sujeita na metade final do século XIX. Poderíamos
falar de um pretenso cientificismo da época, regado do mais puro racionalismo normatizador, ou
então de um surto industrial que obrigaria contingentes populacionais inteiros, até então
intocados, a mudar seu estilo de vida medieval, e por isso mesmo assentado sobre uma fé em
vias de ruir. O fato é que o Cristo de Daumier, acusado por uma turba de indivíduos rotos e sem
identidade, é o reflexo de uma crise de fé. Seu rosto borrado coloca-o no mesmo patamar dos
homens que o acusam. Talvez o Cristo de Amoedo, em meio à sua peregrinação mística para
provar aos homens sua filiação a Deus, coloque-se tão comum quanto os crentes e incrédulos que
presenciam seus milagres.
O boletim nº 14 da Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia citado anteriormente,
coloca o estudo para Jesus Cristo em Cafarnaum como parente próximo de uma obra muito
conhecida na Paris da segunda metade do século XIX: Cristo diante de Pilatos, de 1881, do
pintor húngaro Mihály Munkácsy (Figura 7). No começo da década de 1880, Munkácsy, que já
lograra certa fama no ambiente salonar parisiense, tendo obtido a medalha de ouro no Salão de
1870, empreendera uma trilogia sobre a paixão de Cristo, começando pelo momento que este é
apresentado a Pilatos. Diante do romano, Cristo coloca-se em uma posição de segurança, e nem é
preciso repetir que os aspectos físicos de sua face são muito similares ao que Amoedo faria
posteriormente. No entanto, mais do que nos mostra a tela definitiva de 1881, é num estudo para
a figura de Cristo de 1880 [Figura 8], pertencente atualmente a um museu de Budapeste, que
percebemos a circularidade das representações de sua figura: a rapidez das pinceladas de
Munkácsy constroem o rosto de um Cristo severo, de traços duros, mas fundamentalmente,
parecido com o Cristo de Amoedo. Se pudéssemos ver a face deste com clareza, certamente
veríamos nele os traços daquele. As longas barba e cabelos, de um castanho pronunciado
tendendo ao cobre, atestam que estamos falando do mesmo Cristo.
Sua figura é tão enigmática em sua composição que nos leva a um exercício quase
arqueológico de busca por suas raízes artísticas. Sua clâmide pertence, assim como seus aspectos
físicos descritos anteriormente, ao conjunto de códigos visuais que o identificam em qualquer
parte do mundo cristão. Ela é a mesma nas obras de Moreau, Daumier, Munkácsy e Amoedo.
Para citar um exemplo brasileiro, não poderíamos deixar de notar que o Cristo do conjunto
Cristo e a mulher adúltera de Rodolfo Bernardelli [Figura 9], é praticamente a versão
tridimensional do Cristo de Amoedo. A forma pronunciada com que este caminha para dentro da
cena de Cafarnaum evoca o momento em que aquele levanta sua mão direita e pede clemência a
uma pecadora. O caimento da roupa, o corte da gola, a amplitude das mangas sugere que
Amoedo pudesse conhecer a escultura de Bernardelli, visto que esta data entre 1881 e 1884. Da
453
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mesma forma, as obras de Munkácsy também sugerem isso: a mesma gola em V, o mesmo
tecido abundante.
Saindo das questões relativas à figura de Cristo, mostra-se fascinante estudar as demais
personagens que compõem a cena. Muitas mudaram drasticamente do estudo para a versão final.
A mulher que se ajoelha diante dele e implora pela saúde do paralítico não se modificara tanto
em sua posição, mas basicamente em sua vestimenta. A mulher que se situa em pé, atrás do
conjunto formado pelo enfermo e uma mulher, também mudara sua postura: no estudo, aparecia
cobrindo o rosto, talvez em pranto, talvez assustada com a aparição do messias, ao passo que na
versão de 1887, sua expressão é mais amena, e as mãos erguidas parecem pedir piedade. A
mulher que ampara o paralítico teve mudanças mais drásticas em sua fisionomia: os desenhos
preparatórios e o estudo mostram uma mulher mais idosa, nariz pontiagudo, enquanto que na
versão oficial seu rosto transparece serenidade e suas feições são suavizadas. Os dois senhores
que se postam no canto direito da composição foram modificados mais em suas vestimentas do
que em seus posicionamentos.
Contudo, a figura do paralítico suscita diversas associações. O tema do corpo lânguido,
sem energia, enfermo ou morto, não era novidade no conjunto da obra pictórica de Amoedo. Em
1883, seu Aimberê de O Último Tamoio era a personificação de um estudo atento e
pormenorizado da anatomia humana. Somente um estudo meticuloso do modelo poderia
produzir tamanho efeito. Na época, críticos como Gonzaga-Duque reconheceram a maestria dos
conhecimentos anatômicos de Amoedo. É sabido que as representações do corpo morto de Cristo
serviam de modelo para as representações de corpos inertes de alguns artistas. No caso de
Amoedo, parece bastante plausível que seu referencial advenha de uma longa tradição de
deposições e pietàs. No caso do paralítico de Cafarnaum, a mulher que apóia seu corpo reporta
às tradicionais pietàs da história da arte. Mas é o corpo doente que não se furta a comparações
com o corpo morto de Cristo. Tomemos como exemplo o de Lamentação sobre o Cristo morto
de Rubens: o corpo de contornos moles, as articulações que parecem ganhar uma nova
capacidade de dobrar-se conferem ao corpo de Rubens um realismo agonizante. O braço que
pende, as pernas estendidas que quase se escorçam são algumas das semelhanças entre a tela de
Amoedo e a do flamengo. As feições do paralítico do estudo são radicalmente diversas das
feições da tela definitiva. Há também uma espécie de compensação de liberdades compositivas
em ambas as telas: no estudo, o pescoço do paralítico é menos exigido, ao passo que seu braço
esquerdo só poderia estar naquela posição se seu ombro estivesse deslocado; já na tela definitiva,
Amoedo corrige a anatomia do ombro e do braço, mas coloca o pescoço em um ponto de tensão
irreal. Neste aspecto, lembra as liberdades anatômicas de Ingres.
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Todas as personagens que observamos acima encontram-se em um cenário de padrões
claramente orientais. Durante a estadia de Amoedo em Paris, o orientalismo estava em voga com
força absoluta, e até mesmo as cenas urbanas de Paris contavam com elementos exóticos e
exuberantes. Aracy Amaral chamou atenção em sua resenha sobre a tela para o parentesco
compositivo da tela de Amoedo com o Cristo diante de Pilatos de Munkáscy. De fato há alguma
semelhança, principalmente no tema do arco. É também verdade que este mesmo arco pode ser
encontrado na obra supracitada de Chavannes sobre a decapitação de João Batista. Mas Luciano
Migliaccio chama atenção para a influência do italiano Mariano Fortuny sobre o gosto
orientalizado de Amoedo: ao observarmos uma cena como O café das Andorinhas, de 1868
(Figura 10), perceberemos a forte presença dos arcos próprios à arquitetura oriental, ao passo que
a liberdade do traço de Fortuny dialoga frutiferamente com o despojamento de Amoedo.
Quero encerrar minha comunicação, problematizando uma questão posta por Gonzaga
Duque sobre essa obra. Em sua seu Contemporâneos, Gonzaga Duque afirma que Jesus Cristo
em Cafarnaum, apesar de ser uma grande tela, era uma praxe acadêmica imposta aos
pensionistas que terminavam seu pensionato em Paris, e que o “assunto, como se compreende,
estava deslocado do tempo e em contradição com a natureza do artista” (DUQUE, 1929:17). Há
de se tomar cuidado com essa afirmação e procurar entender sua real relevância. Amoedo não
era um artista demasiadamente apegado aos temas tradicionais da academia carioca: não pintara
nenhuma cena de batalha ao longo de sua carreira, e suas obras de temática próxima ao
indianismo resumiam-se a três telas. Basicamente, fora um artista das cenas cotidianas, dos nus,
dos retratos e, porque não, dos temas religiosos. Sua obra estaria em maior concordância com o
que viria a ser a Escola Nacional de Belas Artes, já sob a República e da qual Amoedo seria
diretor. A tela que possibilitara sua ida à França era de temática religiosa, e juntamente com mais
três telas desta mesma temática, aqui inclusa Jesus Cristo em Cafarnaum, Amoedo adquirira
respaldo junto ao meio artístico nacional. Como entender, senão sob a luz do oposicionismo de
Gonzaga Duque à Academia, a afirmação de que o tema estava deslocado no tempo? Como
vimos, a produção de temática religiosa ainda tinha grande espaço na Europa e, num país
majoritariamente católico como o Brasil daquele período, não há nada de deslocado ou estranho
em se produzir uma grande tela sobre a vida de Cristo na segunda metade do século XIX.
Gonzaga Duque vai mais longe em seus argumentos, sugerindo que a figura de Jesus seria uma
“aparição corporificada pela crença dos leprosos e paralíticos, cérebros suficientemente dosados
para os fenômenos fantasiosos da visão” (DUQUE, 1929: 17). Ora, fica evidente que, mais do
que algo verificável, Gonzaga Duque atribui a Amoedo grande parte de suas próprias convicções
artísticas. A propriedade com que o pintor concebera sua cena em Cafarnaum, e outras tantas
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sobre temas bíblicos, abre o precedente, ao menos, de questionarmos se de fato essa temática era
estranha a ele. Podemos ver o caráter controverso da recepção de tal obra na época ao
observarmos as palavras do pintor José Maria de Medeiros: “O Sr. Amoedo, escolhendo esse
ponto da Bíblia, conseguiu por em relevo o seu brilhante talento, mostrando-se um pintor
histórico de fina têmpera, tendo alma e individualidade para nos impressionar, e sabendo, pela
execução, fazer respeitar no assunto o seu modo de ver (sic) e sentir”. O distanciamento histórico
de mais de um século mostraria que a mística na qual estava envolta a obra de Amoedo
persistiria até hoje quando nos colocamos diante dela. Assim como ele, deixamos nos levar pelos
“fenômenos fantasiosos da visão”, parafraseando Gonzaga Duque, agora não mais nos
questionando sobre a validade dos milagres, mas embevecidos com a sutileza e a maestria que só
os grandes artistas podem legar a suas obras.
Referências bibliográficas:
30 Mestres da Pintura no Brasil/ Exposição e catálogo por Luiz Marques. São Paulo: MASP,
2001.
CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos-Editorial, 1999.
COLI, Jorge. O corpo da liberdade: reflexões sobre a pintura do século XIX. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.
GIBSON, Michael. Simbolismo. Koln: Taschen, 1999.
GONZAGA, Duque. A Arte Brasileira / Luiz Gonzaga Duque Estrada; introdução e notas de
Tadeu Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras, 1995.
_______________. Contemporaneos: (pintores e esculptores). Rio de Janeiro: Typ. B. de Souza,
1929.
LUCIE-SMITH, Edward. Symbolist Art. Londres: Thames and Hudson Ltd, 1972.
MIGLIACCIO, Luciano. “Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar” In: 19&20 – A
revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume II, n.º 2, abril de 2007.
PRICE, Aimée Brown. Pierre Puvis de Chavannes. New York: Rizzoli, 1994.
REED, John R. Decadent style. Athens: Ohio State Univ. Press, 1985.
Documentos:
Atas da Congregação da Academia Imperial de Belas Artes – Sessão de 3 de setembro de 1884.
Museu D. João VI, Notação 3838.
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Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia/Pinacoteca do Estado (1976). Boletim nº 14 Destaque do mês de maio de 1976. São Paulo: Biblioteca da Pinacoteca do Estado, pasta do
artista.
Artigos de jornal:
KARMAN, E. Obra de Rodolfo Amoedo em destaque na Pinacoteca. Folha da Tarde, São
Paulo, s/p, 28 mai. 1976.
KLEIN, P. Jesus em Cafarnaum: um destaque na Pinacoteca. Diário do Grande ABC, Santo
André, s/p, 05 mai. 1976.
Figura 1: (1885) Rodolfo Amoedo, Jesus Cristo em Cafarnaum (estudo), óleo sobre tela, 63 x 79
cm. São Paulo, Pinacoteca do Estado.
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Figura 2: (1887) Rodolfo Amoedo, Jesus Cristo em Cafarnaum, óleo sobre tela, 250 x 309 cm.
Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes.
Figura 3: (1869) Pierre Puvis de Chavannes, Decapitação de São João Batista, óleo sobre tela.
National Gallery, Londres.
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Figura 4: Gustave Moreau, Aparição, aquarela, 72 x 105 cm. Museu do Louvre, Paris.
Figura 5: Gustave Moreau, Salomé carregando a cabeça de S. João Batista em uma bandeja,
óleo sobre madeira. Coleção privada.
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Figura 6: (1849) Honoré Daumier, Ecce homo, óleo sobre tela. Museum Folkwang, Alemanha.
Figura 7: (1881) Mihály Munkácsy, Cristo diante de Pilatos, óleo sobre tela, 417 x 636 cm.
Canadá. Art Gallery of Hamilton, Ontario, Canadá.
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Figura 8: (1880) Mihály Munkácsy, Estudo para Cristo diante de Pilatos, óleo sobre tela.
Hungarian National Gallery, Budapeste.
Figura 9: (1881-84) Rodolfo Bernardelli, Cristo e a mulher adúltera, mármore esculpido, 202 x
116 x 149 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
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Figura 10: (1868) Mariano Fortuny, O café das Andorinhas, aquarela sobre papel, 49,4 x 39,5
cm. Coleção particular.
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O ESPAÇO REPRESENTATIVO DE UMA INSTITUIÇÃO: A EXPOSIÇÃO DE 1882
NO LICEU DE ARTES E OFÍCIOS.
Rosangela de Jesus Silva*
Resumo:
A formação de uma nação pautada por modelos e princípios “civilizados” de países
europeus foi uma preocupação que marcou a intelectualidade brasileira no século XIX. Na
segunda metade daquele século a imprensa assumiria um papel decisivo na divulgação e
promoção desses princípios. O fim da escravidão, a industrialização e a necessidade de uma
população preparada foram questões amplamente debatidas. O surgimento e aprimoramento de
instituições que de alguma maneira favorecessem o alcance do progresso e “civilização” do
Brasil foram logo reconhecidas. É nesse ambiente que uma instituição como o Liceu de Artes e
Ofícios do Rio de Janeiro alcança credibilidade e recebe apoio de intelectuais, artistas,
professores e da imprensa em geral. As atividades realizadas no espaço dessa instituição ganham
uma dimensão que merecem ser problematizadas.
A função educativa e de formação exercida pelo Liceu parece se aproximar de outras
iniciativas, que mesmo sem se apresentar explicitamente como uma escola, parecem também ter
apresentado ideais pedagógicos. É o caso da imprensa ilustrada, e particularmente do trabalho do
artista e jornalista Angelo Agostini, o qual parece ter construído em torno de si a imagem de um
homem empenhado em edificar um país melhor, mais civilizado, amparado pelos princípios
emancipadores da cultura. Agostini usou suas publicações para informar, divulgar e criticar, com
textos e imagens, eventos de natureza política, social, econômica e cultural. Também deixaria
claro, em vários momentos, o reconhecimento da importância, das possibilidades de
comunicação e valor da imprensa ilustrada, ou seja, utilizou conscientemente e com objetivos e
interesses suas revistas.
Esse artigo pretende analisar a atuação de Agostini enquanto crítico de arte, mas com
uma atenção especial para um conjunto específico de críticas produzidas em 1882, acerca da
exposição de arte realizada no Liceu de Artes e Ofícios. A ideia é mostrar como uma instituição
como o Liceu, que representaria um esforço de ações para modernização do país através da
educação e profissionalização, recebeu por parte do jornalista uma espécie de chancela de
aprovação. Esse reconhecimento iria além das atividades cotidianas da instituição, sendo
*
Faculdade União das Américas. Doutora em História da Arte pela UNICAMP com bolsa FAPESP.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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evidenciada quando da realização de uma exposição de arte. É como se Agostini chamasse
atenção para a importância dos eventos artísticos ocorridos fora da instituição oficial – a AIBA,
como se fora dali a expressão pudesse ser mais livre, ou pelo menos, ser analisada mais sob
aspectos estéticos e menos sob aspectos políticos. Evidencia-se no corpo de críticas produzidas
nos periódicos de Angelo Agostini a diferenciação no tratamento e cobertura às Exposições
Gerais da Academia e essa ocorrida no Liceu. É um discurso que parece se estabelecer no âmbito
simbólico de um espaço e do significado atribuído a este.
Criado em 1856 pela Sociedade Propagadora de Belas Artes, o Liceu de Artes e Ofícios
do Rio de Janeiro surgiria com propósito bastante prático: ensinar princípios das belas artes úteis
para preparar mão de obra para o desenvolvimento da indústria nacional. A escola funcionaria
em período noturno e com objetivos de profissionalizar uma parcela desfavorecida da população.
A iniciativa do arquiteto e professor da Academia Nacional de Belas Artes Bethencout da Silva
(1831-1911) contou com apoio da sociedade de várias maneiras: obteve doações e contou com a
participação voluntária de professores. De acordo com Alba Bienliski “Na década de 1880 o
Liceu de Artes e Ofícios já havia se tornado e era considerado o mais importante estabelecimento
de ensino técnico-profissional do país, sem rival, também, na América Latina.” (BIENLISKI,
2009)
Tal instituição foi inúmeras vezes elogiada na imprensa carioca da época e atraiu a
simpatia de vários jornalistas. Entre estes é possível destacar o nome de Angelo Agostini
(1842/3-1910), que inclusive foi professor dessa instituição no curso feminino inaugurado em
1881. Em seu trabalho Agostini criou a imagem de um homem preocupado com o
desenvolvimento e progresso do Brasil, defendia ideias liberais, entre as quais a de acabar com o
trabalho escravo no país. Foi também um homem bastante atuante no ambiente cultural da corte,
promovendo e criticando eventos artísticos em geral. Teve uma atenção especial para as
exposições de Belas Artes, sobre as quais produziu considerável material nas páginas de seus
periódicos.
O Liceu de Artes e Ofícios parece ter ocupado um lugar especial nas páginas da Revista
Illustrada, dirigida por Agostini, tendo figurado por diversas vezes em notas e artigos que lhe
atribuíam um papel relevante no desenvolvimento do país. Essa importância se daria tanto por
sua preocupação com a educação da população menos abastada, a qual poderia desempenhar um
papel decisivo na indústria nacional, ainda bastante incipiente naqueles anos, como pela sua
iniciativa de criar cursos de educação feminina:
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2011
Uma festa explendida a do Lyceu de artes e officios para inaugurar as aulas
destinadas ao sexo feminino! O Rio de Janeiro estava todo lá.
Eu não podia faltar a esta festa que iniciava com tanto brilho a educação da
mulher; o assumpto era por demais interessante, e o programa feito para attrahir a
todos1. (Revista Illustrada, RJ, n. 269, 1881, p. 2.)
Uma instituição com caráter educativo e, mais do que isso, preocupada com a
educação de uma parcela da sociedade que, até aquele momento, quase não teria recebido
atenção, embora fosse considerado um passo importante para colocar o país no caminho da
“civilização”, certamente receberia a atenção e o apoio de Angelo Agostini. Com a exposição
realizada por este estabelecimento, em 1882, não foi diferente. Ao anunciar a abertura desta,
logo avisou ao leitor: “Sem abrir aqui portanto um curso de pintura, o chronista avisa todavia os
seus leitores de que na exposição do Lycêo algumas telas são dignas de serem vistas e apreciadas
(...)”(Revista Illustrada, RJ, n. 291, 1882, p. 2.).Em seguida, começou a enumerar alguns dos
nomes dos artistas e suas obras.
Em comparação com as críticas realizadas por Agostini às exposições da AIBA é possível
notar uma sensível diferença na maneira de apresentar a exposição. Quando o crítico teceu
apreciações acerca da exposição de 1879 realizada pela AIBA, a visão geral apresentada era
extremamente negativa. Não é possível negar que tenha havido considerações positivas acerca de
alguns artistas e obras, no entanto, o crítico não admitiu o fato de haver “boas obras” nos
comentários de abertura ou na avaliação geral da exposição de 1879, realizada depois da
premiação da mesma.
A exposição do liceu foi comentada em quatro longos artigos, sob a denominação
“Exposição de bellas-artes”. Logo no primeiro texto, o crítico notou o sucesso que a exposição
teria alcançado na imprensa pela quantidade de comentários; porém advertia para certa
indulgência, a qual não teria agradado nem mesmo os expositores. Por isso, propunha-se a fazer
algo sério, pautado nos conhecimentos que alegava possuir.
Toda a imprensa já fallou sobre a exposição de bellas-artes no Lycêu. Todos
manifestaram sua opinião mais ou menos sincera, mais ou menos entendida, e
apezar da norma adoptada ter sido a indulgencia, nem por isso os expositores se
acham satisfeitos com a analyse dos seus trabalhos. Elles não deixam de ter razão
1
CHRONICAS Fluminenses. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n. 269, p. 2, out. 1881.
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até certo ponto, pois que quando se acha tudo bom é o mesmo de que dizer que
tudo é ruim.
[...]
Vê-se que a imprensa em geral procurou ser agradavel á quasi totalidade dos
expositores e estes devem ser gratos ao menos pela boa intenção.
Por minha parte, não querendo de todo destoar dos outros, bem que tenho a
convicção de entender alguma cousa da materia limitar-me-hei a julgar com toda a
imparcialidade os trabalhos e o merito dos expositores que revelam talento e
estudo. (Revista Illustrada, RJ, n. 292, 1882, p. 3.)
É importante lembrar que Agostini participou da exposição com duas telas, de maneira
que, quando o artigo afirmava “entender alguma cousa”, poderia dizer isso justamente porque era
um artista e participava da exposição. Fez ainda outra afirmação, que parece relevante, acerca de
quem seria julgado: “trabalhos de mérito dos expositores que revelam talento”. O crítico
reconhecia que havia bons artistas naquela exposição; assim, iniciou sua empreitada de maneira
positiva, avaliando arte e artistas que apresentariam qualidade.
Esse primeiro artigo concentrou-se em rápidas apreciações acerca das obras de dez
artistas, dos quais destacou pelo menos uma qualidade. Quando algum problema era apontado,
como alguma incorreção de desenho ou no emprego da cor, ou mesmo algum problema na
composição, estes eram amenizados pelo conjunto do trabalho do artista ou da obra em si:
A Atala do Sr. Augusto Duarte é um bello quadro. Se a posição do indio fosse
menos angulosa, as pernas mais finas e a côr d’ellas em harmonia com a do torso,
essa figura seria magnifica. A cabeça sem ser bonita, é todavia muito notavel pela
expressão.
Ha uma pequena incorrecção de desenho no rosto da mulher e os seus cabellos são
por demais pretos e brilhantes para pertencerem á um cadaver. Em compensação
as mãos são admiraveis assim como a côr cadaverica do corpo, apezar d’este ser
um pouco forte.
Se o nariz do frade tivesse mais um dedo de comprimento seria uma bella cabeça,
mas como ha narizes de todos os tamanhos, cada um escolhe aquelle que mais lhe
agrada.
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Esse quadro que pecca um pouco pela composição e tem alguma incorrecção no
desenho, é incontestavelmente um dos melhores que se tem apresentado ao
publico. (Revista Illustrada, RJ, n. 292, 1882, p. 3.)
Nesse grupo de artistas, Georg Grimm foi bastante elogiado:
Segue-se o Sr. Grimm, com a sua immensa collecção de paysagens, feitas nos
proprios lugares por onde viajou. Ahi, o visitante tem occasião de apreciar e
comparar a differença da natureza de varios paizes, como sejam, a Italia, Grecia,
Allemanha, Turquia, Egypto, Brazil, etc., etc.
O Sr. Grimm, que é dotado de um grande talento para paysagens, não deixa
todavia de ser bom figurinista como se vê pelo seu bello quadro intitulado a
Guitarrista e uma grande collecção de aquarellas admiravelmente executadas.
(Revista Illustrada, RJ, n. 292, 1882, p. 3.)
Um diferencial notável nesse conjunto de críticas é que os comentários eram direcionados
quase que exclusivamente para as obras, quando em críticas anteriores ou mesmo posteriores, é
possível perceber comentários negativos à instituição oficial de ensino na corte. Mesmo que os
artistas fossem identificados com uma instituição como a AIBA, a preocupação do crítico não
estava em utilizar o artista para atacar o órgão de ensino, mas para analisar a obra em si. É o
caso, por exemplo, de José Maria de Medeiros (1849-1825); embora sua filiação tenha sido
notada, a crítica se concentrou na tela:
O Sr. Medeiros, apezar de professor da Academia de Bellas-Artes, ou talvez por
causa d’isso mesmo, não foi feliz com o seu quadro intitulado Lindoia.
A composição do quadro não é má; direi mesmo que é soffrivel, mas o desenho é
muito incorrecto e o colorido pessimo; tem um não sei que de antipathico, e de
podre. As formas e a côr da india são repugnantes; parece que morreu ha dias! E
aquelles verdes em volta d’ella? e aquella luz côr de rosa na arvore?! e...?
Não, decididamente prefiro o seu quadro de genero representando uma moça
sentada n’uma cadeira, tendo ao seu lado uma criança a dormir.
É um quadro mais modesto e que está nas forças do Sr. Medeiros; elle agrada logo
á primeira vista e vê-se que o effeito de luz foi melhor comprehendido e copiado
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do natural. Outro tanto direi da cabeça da moça que é muito bem pintada,
resentindo-se todavia o corpo de alguma imperfeição no desenho.
Estou convencido que, n’este genero de pintura, o Sr. Medeiros a quem não falta
nem talento, nem os precisos conhecimentos, acabará mais tarde por apresentarnos quadros muito apreciaveis. (Revista Illustrada, RJ, n. 293, 1882, p. 6)
Quando se retomam alguns trechos das críticas publicadas em 1879 acerca dos
expositores que tinham uma relação direta com a AIBA, como era o caso do discípulo de
Victor Meirelles, Pedro Peres, nota-se que o crítico logo sugeria para que este se afastasse
daquele estabelecimento, sem antes fazer qualquer consideração sobre a obra do artista e os
problemas em que incorreria. Talvez o problema do crítico estivesse mesmo relacionado a
Victor Meirelles um dos pintores oficiais do Império, que também participou dessa exposição.
Sobre seus quadros, observou: “Do Sr. Victor Meirelles ha apenas dois ou tres retratos. São
do Sr. Victor, por conseguinte não preciso dizer mais nada” ( Revista Illustrada, RJ, n. 293,
1882, p. 6,).
Quando se voltava para a análise das esculturas, mais uma vez era o nome de
Bernardelli que figurava em destaque, mesmo quando o escultor não apresentava nenhuma
obra, afinal esse era o artista considerado por Agostini o grande exemplo e modelo da arte e
do talento no Brasil:
Na parte da esculptura a exposição é muito pobre. Senti realmente que o publico
não tivesse occasião de admirar os trabalhos do primeiro artista da nossa
Academia de Bellas Artes, o Sr. Rodolpho Bernardelli. Espero porém que,
rendendo homenagem ao grande talento desse artista que se acha actualmente em
Roma, o digno director da Academia fará o mais breve que puder uma exposição
especial de tudo quanto o Bernardelli enviou, a fim de que o publico admire os
trabalhos do alumno que mais tem honrado a nossa Academia na Europa. (Revista
Illustrada, RJ, n. 294, 1882 p. 6,).
Na análise que se segue, chegou a afirmar que a única coisa a qual o escultor Chaves
Pinheiro teria para se orgulhar seria o fato de ter sido o primeiro professor de Bernardelli:
“sua melhor estátua é o seu discípulo que elle começou aqui e que a verdadeira arte concluirá
em Roma” (Revista Illustrada, RJ, n. 294, 1882 p. 6,). Os outros escultores citados, Almeida
Reis e Leopoldino de Faria, não tiveram melhores apreciações, sendo que a análise de um
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estudo desse último, uma Alegoria da lei 28 de setembro, foi classificada como um “disparate
pyramidal”.
Além das análises acerca da pintura e escultura, o crítico também comentou os projetos
de arquitetura, como a Fachada do Palacio da Justiça juntamente com sua planta, realizada pelo
arquiteto J. L. Correia. O crítico chamou a atenção do arquiteto para a necessidade de adequar o
prédio ao clima do país onde seria construído o edifício:
O grandioso não consiste no disproporcional e na falta de elegancia, assim como a
imitação do antigo não deve ser tão rigorosa que exclua a luz e o ar. Os edificios,
mesmo com caracter de monumentos, devem ser compostos segundo o clima dos
paizes onde tem de ser edificados. Os que servem para o Rio de Janeiro, não
podem servir para S. Petersburgo. (Revista Illustrada, RJ, n. 295, 1882, p. 3 e 6.)
No último artigo, o crítico iniciou suas apreciações pelas composições das amadoras,
com um destaque especial para Abigail de Andrade, a qual, anos mais tarde, teve um
envolvimento com o crítico, do qual nasceram dois filhos:
A arte do desenho é tão difficil, exige tanto estudo, paciencia e dedicação, que
nem todos tem a coragem de abraçal-a, e raro é ver-se trabalhos importantes nesse
gênero expostos por amadores.
Tornou-se pois notavel, sobretudo entre os entendidos a exposição feita pela
Exma. Sra. Abigail de Andrade, que apresenta seis especimens da arte do desenho
no seu mais alto gráo.
(...)
Duas Academias das mais difficeis do curso de desenho de Julien, completam os
seis trabalhos expostos por essa inteligente amadora, que mostrou em tres generos
de desenhos o quanto se póde alcançar com o estudo serio e apurado. (Revista
Illustrada, RJ, n. 295, 1882, p. 3 e 6.)
Foi somente no último artigo que o crítico dedicou um parágrafo para criticar o governo
pela falta de investimento no ensino do desenho, atividade que foi, várias vezes, defendida como
a base para o desenvolvimento da arte:
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Conhecendo a pouca importancia que até hoje se tem dado ao ensino do desenho,
cabendo ao governo maior culpa pelo descuido com que tem tratado esse
importante ramo de instrucção, não posso sem ser injusto, criticar os trabalhos que
foram expostos. Louvo-os todos pois, sem todavia deixar de reconhecer que entre
elles ha soffriveis e mediocres, por que vejo nessa exposição dos collegios uma
louvavel tenção da parte dos seus directores em incutir á seus discipulos o gosto
por esse ramo das bellas artes que tem sido tão deprezado até hoje. (Revista
Illustrada, RJ, N.295, 1882, p.3 e 6.)
Com esse comentário, o crítico, de alguma forma, redimiria os artistas criticados pelas
imperfeições dos desenhos apresentados, sem deixar de notá-las.
Para comentar as obras de Agostini expostas, o crítico empregou de grande modéstia,
fato que poderia conferir alguma credibilidade à hipótese de que teria sido ele mesmo o
responsável pelas críticas:
Esses tres quadros executados de memoria, sob a impressão do facto presenciado,
e feitos sem pretenção em quanto o diabo esfrega um olho e a preguiça esfrega os
dous, tem um só merito na opinião do seu autor: é terem contribuido á fazer
numero ao lado dos mais modestos na exposição. (Revista Illustrada, RJ, N.295,
1882, p. 6)
Na conclusão do artigo, manteve certo otimismo, esboçado na apresentação da exposição
com relação ao presente e ao futuro das artes no Brasil:
Concluindo esta analyse da exposição, não posso deixar de louvar a todos os
artistas e amadores que á ella concorreram.
Todos, dando uma prova do seu maior ou menor adiantamento, mostram que não
ficaram surdos ao appello da Sociedade Propagadora das Bellas Artes que póde
reunir em redor de si alguns trabalhos, e provar assim que a arte não morreu de
todo entre nós.
Se esta critica foi um pouco severa com alguns, é unicamente para que della tirem
proveito. Ninguem poderá accusal-a de ter sido injusta.
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Os mais censurados, tiveram palavras de animação, pois que o fim da nossa critica
é animar á todos e não desanimar ninguem. (Revista Illustrada, RJ, N.295, 1882,
p. 6)
No conjunto de críticas publicadas nos periódicos de Angelo Agostini, estes textos que
cuidariam da exposição no liceu foram, certamente, os que mais se detiveram sobre os aspectos
estéticos das obras, assumindo um tom, em geral, até mesmo educativo, no sentido de indicar aos
artistas incorreções que poderiam ser corrigidas para melhorar, assim, o resultado dos trabalhos.
Talvez por ter adotado um tom mais sério, menos irônico e provocativo, as críticas não foram
acompanhadas de salões caricaturais, nem mesmo de imagens que promovessem alguma obra de
um artista em particular que estivesse participando da exposição.
Esse grupo de críticas apresentou características particulares no conjunto da obra de
Angelo Agostini, de forma que pareciam conter menor agressividade e provocações nas
apreciações, além de uma maior atenção aos aspectos formais. Apresentá-las entre dois
importantes momentos, que foram as exposições de 1879 e 1884, ajuda a mostrar como houve
um peso político nas críticas realizadas quando a AIBA estava envolvida diretamente no evento
artístico. Mesmo sendo a AIBA a instituição oficial de ensino artístico, nos comentários da
exposição de 1882, sua responsabilidade na formação dos artistas não foi elencada com a mesma
constância que se observava nas críticas de 1879 e 1884. Talvez os fatos levantados
anteriormente, que envolvem a participação de Agostini na exposição, bem como o respeito que
este demonstrava pelo liceu enquanto uma instituição de ensino poderiam ter contribuído
bastante para sua postura. Assim, esse grupo de artigos também poderia se apresentar como um
exercício maduro de Agostini enquanto artista e crítico, na sua ambição de ter um papel de
destaque no desenvolvimento do país e na promoção da arte.
Referências Bibliográficas:
BIELINSKI, Alba Carneiro. O Liceu de Artes e Ofícios - sua história de 1856 a 1906. 19&20,
Rio
de
Janeiro,
v.
IV,
n.1,
jan.
2009.
Disponível
em:
<http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/liceu_alba.htm>. Acesso em: agosto. 2011.
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. A Arte Brasileira; introdução e notas de Tadeu Chiarelli.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.
GAMBONI, Dario. Propositions pour l’étude de la critique d’art Du XIXe siècle. Artigo baseada
na comunicação apresentada no 78e congrès annuel du College Art Association (New York, 1417 février 1990).
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2011
LEVY, Carlos Roberto Maciel. A Exposição Geral de 1879 e a Crítica de Angelo Agostini
(1843-1910). In: Revista Crítica de Arte, Nº4, dezembro de 1981.
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2011
ANOS 60: TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO ARTÍSTICO E NA ARTE NA
ARGENTINA
Simone Rocha de Abreu*
A presente comunicação pretende apresentar um olhar sobre um período da arte Argentina,
compreendido pela década de sessenta do século vinte, muito embora saibamos que o limite
temporal nunca foi o critério ideal para o estudo de fenômenos culturais, fizemos este recorte por
perceber questões na produção e no campo artístico que tornaram este período rico, plural e
talvez, um momento de exercício da liberdade para os intelectuais, apesar dos limites do regime
político vigente na época. No tocante ao campo artístico partimos das novas possibilidades
surgidas com o início de atividades no Instituto Torcuato Di Tella até o esgotamento deste
modelo de instituição, portanto, enfoca-se Buenos Aires, mas também foi necessário abordar
acontecimentos em Rosário e na cidade de La Plata.
No tocante à produção artística enfocamos questões como: fusão arte e vida, vanguardismo
estético, experimentalismo, o entendimento da obra como crítica à sociedade do espetáculo e/ou
crítica à sociedade midiática, o aumento dos coletivos de artistas, a fusão da vanguarda estética e
política e o questionamento dos artistas sobre o valor das instituições no acolhimento da arte.
Cultura dos anos 60: período rico, plural e/ ou um exercício de liberdade.
Acompanha grande parte da produção artística dos anos sessenta na Argentina as novas
possibilidades oferecidas pelo Instituto Torcuato Di Tella, em particular pela atuação do seu
Centro de Artes Visuales (CAV) dirigido por Jorge Romero Brest1 (1905 – 1989), este centro
funcionou a partir de 1963 até o fim desta década, atuando como fomentador e incentivador da
modernização e internacionalização cultural argentina. Este instituto se tratou de mecenato
privado, na forma do patrocínio da Fundación Di Tella, criada em 1958, com financiamento das
indústrias Siam-Di Tella, tomando como modelo as fundações norte-americanas de
financiamento corporativo. O objetivo da fundação era o desenvolvimento das atividades
científicas e artísticas do instituto, com o objetivo final de transformar Buenos Aires em uma das
capitais de arte do mundo.
Entre os centros do Instituto Torcuato Di Tella estavam o Centro de Artes Visuales (CAV),
o Centro de Experimentación Audiovisual (CEA) e o Centro Latinoamericano de Altos Estudios
*
1
Doutoranda e Mestre pelo Programa em Integração dos Países da América Latina Prolam/USP.
Jorge Romero Brest (1905 – 1989) foi professor de Estética y de Historia del arte nas Universidades de Buenos
Aires e de La Plata. Fundou a revista Ver y Estimar (1948 – 1955). Dirigiu o Museo Nacional de Bellas Artes
entre 1955 e 1963, a partir desta data, e até o seu fechamento em 1970, foi diretor do Centro de Artes Visuales do
Instituto Torcuato Di Tella.
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Musicales (CLAEM). O CAV contava com salas de exposição onde os artistas jovens
apresentavam as suas propostas de caráter experimental ao público. “La calle Florida”,
endereço do CAV, e seus arredores adquiriram o caráter de epicentro da modernização cultural,
lugar de intelectuais, artistas e estudantes e foi um espaço vigiado pelo poder político.
Mas mesmo antes do Centro de Artes Visuales do Di Tella, abrir as suas portas, já havia
começado em Buenos Aires o surgimento de novas instituições modernizadoras que remontam à
década de 50, tais como, o Instituto de Arte Moderno, criado por Marcelo De Ridder e que hoje é
parte importante do Museo de Arte Contemporaneo, também temos que salientar o trabalho de
Brest realizado a frente de Ver y Estimar e do Museo Nacional de Bellas Artes até a sua saída
para dirigir o CAV no Di Tella. Esta publicação, que também oferecia uma premiação, e as
instituições citadas foram criando em Buenos Aires um público mais amplo para as artes e ávido
por novidades, mas de fato, é com o Di Tella que as tendências experimentais adquirem uma
visibilidade muito maior. Outra instância legitimadora dos artistas e como tal incentivadora das
artes no país foi o Premio Braque, oferecido pela embaixada francesa, que premiou anualmente
um artista com bolsa de estudos na França.
O Instituto Torcuato Di Tella através do CAV promoveu o Premio Nacional ou as
Experiencias através de convite aos artistas, bem como Premio Internacionales e organizações
de exposições da produção argentina no exterior. Havia um esforço deliberado pela
internacionalização da arte argentina com estratégias diversas, tais como, a circulação de obras
estrangeiras no país ou mostras argentinas no exterior, bem com a vinda de críticos estrangeiros
para serem jurados nos prêmios promovidos no instituto. O Premio Nacional citado funcionou
entre 1960 e 1962 nas dependências do Museo Nacional de Bellas Artes durante a gestão de
Romero Brest, a partir de 1963 a mostra se transfere para o Di Tella, a premiação até 1965
consiste em uma bolsa de formação no exterior, em 1966 o prêmio é ofertado em dinheiro, em
1967, altera-se novamente a concepção da exposição e essas passaram a ser chamadas de
Experiencias Visuales ou somente Experiencias, esta mudança se deu a pedido dos artistas que
alegaram que os prêmios estavam fora de moda e de pronto pediram que a quantidade de
dinheiro fosse dividido entre os artistas convocados para custeio das suas obras.
Exemplificando as possibilidades de experimentação proporcionado neste espaço
salientamos a obra La menesuda de Marta Minujín e Rubén Santantonín apresentado em 1965,
com dezesseis espaços sequenciais proporcionando experiências impactantes diferentes para os
visitantes. Embora de fato o Di Tella possibilitou a exibição de diversas expressões artísticas de
vanguarda, também houve a imposição de limitações e um desses episódios ocorreu no mesmo
ano, falamos do fato do diretor do instituto Jorge Romero Brest, que, a fim de evitar situações de
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embate, sugeriu alteração em obra. O ocorrido se deu em 1965 com o artista León Ferrari
(Buenos Aires, 1920) quando convidado por Brest a participar no Di Tella do Premio 65, o
artista enviou quatro obras sobre os bombardeamentos norte-americanos no Vietnã, quando o
diretor do instituto viu uma das obras intitulada La civilización occidental y Cristiana (A
civilização ocidental e cristã, Fig.1), pediu que o artista retira-se o cristo “crucificado” sobre a
fuselagem e asas de um avião réplica daqueles que atuavam na guerra do Vietnã, alegando que
feria a sensibilidade religiosa do público2. Esta obra não foi exposta, mas uma foto da maquete
da obra compôs o catálogo da mostra.
Rosario também passou a ser um centro com importância artística, principalmente a partir
de 1965, com a formação do Grupo de Arte de Vanguardia de Rosario, do qual fizeram parte
Graciela Carvenale, Juan Pablo Renzi, Eduardo Favario, Norberto Julio Púzzolo, dentre outros.
Em 1968, Juan Pablo Renzi ganhou o Premio Ver y Estimar, e o Di Tella concedeu ao grupo
rosariano subsídio financeiro para a realização do Ciclo de Arte Experimental.
Neste Ciclo de Arte Experimental que se constituiu de uma série de projetos pelos
membros do grupo de vanguarda de Rosario e aconteceu em galerias alugadas nesta cidade entre
maio e outubro de 1968. Citamos o projeto de Norberto Púzzulo que inverteu o papel do público
de observador para observado, Graciela Carnevale fechou o público que foi até a noite de
abertura da exposição por cerca de uma hora, a artista procurava observar a reação destes, outro
projeto foi do artista Eduardo Favario que fechou a galeria na qual estava o trabalho em
exposição. Este grupo também organizou o boicote ao Premio Braque e o assalto à conferência
de Romero Brest, segundo depoimento da partícipe Graciela Carnevale, essa conferência de
Brest seria uma visão bem conservadora sobre a arte de vanguarda na Argentina, ainda segundo
seu relato: “Entramos na sala, apagamos a luz, ocupamos o lugar de Romero Brest e fizemos
uma proclamação. Dissemos que o que havia nos museus não era obra de arte, mas objetos de
decoração, e que a vida que as pessoas levavam era uma obra de arte maior” (FREIRE, 2009:
61). Portanto, o clima era crescente de insatisfação com as instâncias legitimadoras da arte e com
o papel da arte, do artista e do público.
Pesquisas recentes revelam a atuação de vanguarda na cidade argentina de La Plata, esses
estudos posicionam o artista Edgardo Antonio Vigo, que desenvolveu um “programa estético
revulsivo”, ele se definia como “o desfazedor de objetos”, essas são afirmações do artista
presentes em uma declaração de sua autoria datada de 1968-693. As pesquisas e dentre elas
2
Sobre isso ver relato do artista em LEÓN FERRARI. Retrospectiva, obras 1954-2006. Exposição na Pinacoteca do
Estado de São Paulo, de 07 de outubro a 26 de novembro de 2006. São Paulo: Cosac&Naif, Imprensa Oficial, 2006,
p. 128-129.
3
Vigo, Edgardo Antonio. S/t, 1968-69. Declaração entregue ao crítico Ángel Osvaldo Nessi em 23 de janeiro de
1969. Arquivo Centro de Arte Experimental Vigo.
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destacamos a contribuição de Fernando Davis4, mencionam a sua atuação desde meados dos
anos 50, onde atacou sistematicamente a integridade do valor “arte” e desestabilizou os papéis
tradicionais de artista e de público. Vigo se destaca por uma produção em novos formatos e pela
criação de redes alternativas para a circulação dessas produções 5, neste sentido, destacamos a
produção artística enviada pelo correio (arte postal). Também realizou, a partir de 1968, os
assinalamentos, nesta ocasião afirmou que não iria construir mais obras, mas assinalar objetos ao
nosso redor, que embora não tivesse intenção estética, poderiam ser apreciados dessa maneira, o
artista convocou o público para ir até um local específico e olhar um objeto, o convite significava
alterar a norma instituída da percepção do entorno, do cotidiano. Neste sentido Vigo convidou,
através do rádio da cidade, o público para estar em um lugar e hora específica, para contemplar
um farol, este é Señalimiento I ou Manojo de Semáforos (Fig.3).
Os Señalimientos de Vigo guardam certa aproximação com as ações Vito-dito (vivos
apontados em português, Fig.2) que o argentino Alberto Greco propôs no começo da década,
Greco destacava pessoas, objetos e situações na rua da cidade, circulava com giz e assinava,
afirmando, portanto, que a obra de arte estava ali na vida, portanto, bastava perceber, ativar a
nossa percepção neutralizada pelo cotidiano. Observamos que Greco preserva a ação do artista
que olha e destaca a cena, o artista é aquele que aponta e nos direciona o olhar. Já Vigo em seus
assinalamentos, como o já citado Manojo de semáforos, não comparecia ao encontro coletivo
que propunha, sendo assim o artista não destacava o que olhar no semáforo ou no entorno deste,
portanto a intenção parece ser tripla: uma nova proposta de artista que não é o gênio
insubstituível que cria uma obra terminada para ser contemplada, uma nova proposta de arte que
está absolutamente difundida nas banalidades da vida e uma nova proposta de público que ao
chegar ao local marcado encontraria a liberdade de olhar, perceber e criar, portanto, um público
ativo.
Retornando ao ambiente de Buenos Aires, devemos citar outro momento de limitação
imposta ao artista dentro do Di Tella, agora dado pela polícia, o fato ocorreu na exposição
Experiências 68 e particularmente a uma das obras expostas de autoria de Roberto Plate (Buenos
Aires, 1940), conhecida como El banõ, esta foi censurada pela polícia e em seguida os demais
4
5
Fernando Davis é pesquisador, curador independente e professor da Facultad de Bellas Artes de la Universidad
Nacional de La Plata e a Facultad de Arquitetura, Diseño y Urbanismo da Universidad de Buenos Aires. Mais
informações sobre o artista Edgardo Antonio Vigo podem ser obtidas em DAVIS, Fernando. Práticas
“revulsivas”: Edgardo Antonio Vigo nas margens do conceitualismo. In: Freire, C.; LONGONI, A. (orgs.).
Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: Annablume; USP-MAC; AECID, 2009, p.99-117.
A sétima Bienal do Mercosul colocou em exposição parte de uma correspondência trocada entre Paulo Bruscky e
Vigo, hoje pertence ao arquivo de Bruscky (Recife), parte da produção exposto pode ser visitada virtualmente no
site oficial do evento www.fundacaobienal.art.br/7bienalmercosul/pt-br/edgardo-antonio-vigo, acesso
30/09/2011.
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onze expositores levaram as suas obras para a rua, destruindo-as e dando término a exposição no
Instituto Di Tella.
A obra exposta por Roberto Plate (Fig. 4) nesta ocasião simulava um banheiro público
misto, com uma porta onde existia a clássica silhueta feminina e a masculina, no seu interior, não
havia o sanitário. Os visitantes escreveram e também desenharam espontaneamente na porta,
intervenções de conteúdos eróticos e políticos. Sob alegação de que as inscrições eram ofensivas
às autoridades nacionais, a polícia pretendeu fechar a exposição Experiências 68 em 22 de maio.
De fato, a polícia censurou somente a obra de Roberto Plate após a argumentação do Diretor
Geral do instituto, Enrique Oteiza, de que não se poderia fechar toda a exposição por causa de
apenas uma obra, sendo assim a obra El baño foi lacrada e um policial permaneceu ao lado da
obra para garantir que esta não fosse visitada. Em resposta a esta intervenção policial, no dia
seguinte, os artistas destruíram as suas obras expostas e atiraram na rua (Fig.5), impedindo o
trânsito e causando um escândalo que concluiu novamente em intervenção policial, o que foi
bastante noticiado pela imprensa.
Outra obra exposta em Experiencias 68 muito significativa das transformações em curso
nas proposições artísticas foi Mensaje em El Di Tella de autoria de Roberto Jacoby (Buenos
Aires, 1944), o artista propôs como parte de sua obra um manifesto do qual destacamos o
seguinte trecho:
Esta mensagem está dirigida ao reduzido grupo de criadores (...) para aqueles que
metodicamente buscam expor em Di Tella para prover o banho de cultura ao
público geral (...) Se acabou a contemplação estética, porque a estética se dissolve
na vida social. (...) O futuro da arte esta não na criação das obras, e sim na
definição de novos conceitos de vida, e o artista se converte no defensor desses
conceitos (...) Arte não tem nenhuma importância: é a vida a que interessa
(KATZENSTEIN, 2004: 288-90).
Além desta mensagem a obra de Jacoby também era composta por um cartaz com
referência a questão racial nos Estados Unidos, uma foto de um homem negro com os dizeres
Tambiem soy um hombre, um aparelho da Agencia France Press que transmitia as notícias do
dia, durante a mostra chegaram noticias dos acontecimentos estudantis franceses e também dos
trabalhadores daquele país, bem como notícias sobre a guerra do Vietnã.
Outro questionamento ao papel do público foi feito pela obra La família Obrera (Fig.6) de
autoria de Oscar Bony também presente em Experiencias 68, aonde o público se deparava com
uma família de três membros parada sob um pedestal, portanto, a contemplação dessa escultura
torna-se bastante incômoda, questionando o papel deste espectador.
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Depois do ato de censura policial em Experiencias 68 os artistas e outros intelectuais
organizam reuniões para discutir o lugar da arte e da cultura na sociedade, o primeiro encontro,
chamado de Primer Encuentro Nacional d’art d’avantguarda, foi realizado em agosto de 1968
na cidade de Rosario com artistas locais e de Buenos Aires, nesta ocasião León Ferrari participa
e apresenta o ensaio El arte de los significados (A arte dos significados), também foi neste
encontro que foi concebido o projeto Tucumán Arde, como uma ação coletiva e de denúncia da
crise que vivia a região de Tucumán, entre os artistas envolvidos estavam León Ferrari, Graciela
Carnevale, Roberto Jacoby, Martha Greiner e Norbertto Puzzolo, Maria Teresa Gramuglio,
Nicolás Rosa e Juan Pablo Renzi entre outros.
El arte de los significados6 é um texto onde Ferrari defende a produção artística com
significado, ou seja, que não se limita à experimentação formal, afirmou que a vanguarda se nega
a acrescentar mais um elo na cadeia da abstração geométrica, informalismo, neofiguração e
outras manifestações que o artista percebe como somente propostas formais. O texto transmite
claramente o seu desacordo quanto à preponderância da forma sobre o significado e descreve
como as instituições podem usar de poder para neutralizar o sentido da arte, como os prêmios,
bolsas, exposições e prestígio para o artista, Ferrari chega a afirmar que o “triunfo das obras
significou o fracasso das intenções. A denúncia foi ignorada e a arte aplaudida”.
Deteve-se bastante no que definiu como inapropriada censura das instituições e de seus
colaboradores que logo se transformaram no que chamou de tutores da arte, destaco o seguinte
trecho deste texto: “Mas logo os organizadores se transformaram em tutores da arte e em
criadores: suas obras eram as exposições coletivas que organizaram pretendendo que as diversas
peças expostas se ajustassem a suas diretrizes ”7. Segundo o artista aquelas obras que se
propuseram a transmitir ideias, críticas, política foram neutralizadas pela censura policial, pela
censura das instituições artísticas, ignoradas pelos meios de informação ou festejados como
“arte” pela elite que atacavam.
Portanto, León Ferrari defendeu que a “nova vanguarda” deva procurar outros espaços
para exposições independentes das instituições do circuito de arte, dizendo que nestes espaços os
artistas encontrarão outro público para se dirigir que não a classe burguesa que frequenta museus
e institutos culturais. Neste texto, o artista salienta a importância do público como partícipe da
obra, ele afirma que “a obra se realiza em colaboração invisível entre o artista e seu público”.
6
“El arte de los significados” pode ser lido na íntegra in LEÓN FERRARI. Retrospectiva, obras 1954-2006.
Exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo, de 07 de outubro a 26 de novembro de 2006. São Paulo:
Cosac&Naif,Imprensa Oficial,2006, p.328 - 322.
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Uma das partícipes da obra-exposição Tucumán Arde, Graciela Cavernale, relatou em
entrevista (FREIRE, 2009: 61-72) que esta obra coletiva, que começou a ser planejada neste
mesmo encontro, se desenvolveu em várias etapas: em primeiro lugar, artistas do grupo
procederam a investigação e coleta do material viajando para a região, a ideia era contrapor com
as notícias midiáticas e aquelas oficializadas em discursos governamentais. A ideia nesse
momento parece ser evidenciar a fabricação de verdades pela mídia, e neste aspecto, podemos
dizer que a produção intitulada El falso Happening (Fig.7) de autoria de Roberto Jacoby é um
antecedente de trabalho com foco na revelação do poder da mídia.
Antes de partir da província Tucumán, onde foi realizada esta primeira etapa do projeto, os
artistas cobriram as paredes das cidades de Rosario e Santa Fé com a palavra “Tucumán”, pouco
depois acrescentaram o verbo “arde” (Fig. 8).
Nesta etapa de investigação e documentação, os artistas recorreram a uma espécie de jogo
entre o oficial e o clandestino, enquanto uns estabeleciam contato com os setores oficiais da
cultura e afirmavam querer produzir material artístico-cultural sobre a província de Tucumán,
outros fotografavam, filmavam, gravavam entrevistas com trabalhadores e dirigentes sindicais a
fim de penetrar na realidade dos engenhos e dos trabalhadores.
A segunda fase do projeto consistiu em expor a informação recolhida nas viagens
investigativas a Tucumán. Durante duas semanas a partir de 03 de novembro de 1968, na sede do
“Central General de los Trabajadores de los Argentinos” (CGTA) de Rosario. Nas ruas foram
espalhados cartazes anunciando a “Primera Bienal de Arte de Vanguardia”, citando as
prestigiadas bienais que organizavam as importantes instituições, porém esta era diferente era
organizada pelos artistas em um sindicato, em tese, lugar dos trabalhadores e não dos poderosos,
com isso, o cartaz já discutia o termo bienal e o termo vanguarda, colocando a verdadeira
vanguarda ao lado dos trabalhadores.
Os materiais frutos da investigação, promovida pela etapa um do projeto, ou seja, filmes,
gravações, fotos, materiais publicitários se dispuseram na sede da CGTA em vários andares. As
duas preocupações centrais do coletivo de artistas foram: desmascarar a mídia oficial
contrapondo os dados que esta apresentava com o material coletado. Com a intenção de que os
visitantes tomassem posição frente ao problema evidenciado, utilizaram da insistência e
reiteração, os cartazes com a palavra Tucumán que haviam sido espalhados pelas ruas, agora
cobriam todas as paredes da entrada do sindicato. Mensagens como “Visite Tucumán jardin de
la miséria”, “No a la tucumanización de nuestra pátria”, “ No hay solución sin liberación”
também foram expostas com a retórica da saturação, esta escolha pela insistência, saturação e
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reiteração do discurso é alusivo `as campanhas políticas, a denúncia da falência do discurso
político oficial ser realizado com certa semelhança certamente enriquece a proposta.
Tucumán Arde apresentou na exposição uma centena de notícias publicadas em jornal
sobre Tucumán, retiradas de diferentes seções, algumas notícias supostamente positivas, mas
também, os jornais noticiavam a morte de trabalhador na mão da polícia, ou seja, unindo-se
notícias do jornal retiradas de diferentes seções já era possível ver a contradições das mesmas,
um resumo dessas notícias foi apresentado e também uma colagem de frases retiradas dos
discursos oficiais, que afirmavam frases como as seguintes: “Esta revolución la podemos hacer
em liberdad” ou “Uma de las preocupaciones de La Revolución Argentina es la Buena
Administración de la Justicia”. Portanto, muito da poética do projeto, se refere a tornar evidente
a manipulação da realidade que os meios de comunicação promovem e também demonstrar a
falência do discurso oficial.
No chão do corredor do sindicato os artistas fizeram diagramas revelando a quadro síntese
das relações entre governo e donos de engenho. Foram projetados os filmes realizados, as
fotografias e também foram recolhidos impressões dos visitantes, esses relatos passavam a fazer
parte da exposição, alimentando o circuito da informação discutido pelo trabalho. A iluminação
das salas se apagava a cada dois minutos, como símbolo do tempo médio em que a situação
denunciada fazia uma vitima em Tucumán, além de ser bombardeado de informações, era
servido café sem açúcar aos visitantes.
Ao sair do sindicato os visitantes recebiam um documento de dezoito páginas realizado por
sociólogos, no qual era explicado as causas da situação tucumana, o objetivo era de que o
visitante confirmasse que tudo o que tinha sido visto era verdade (GIUNTA, 2001: 371-372).
Após a exposição em Rosario, a mostra foi realizada em Buenos Aires na Federacion
Gráfica Boonarense, mas foi rapidamente fechada pela polícia. Era prevista uma terceira fase do
projeto como um fechamento do circuito informativo (informação da mídia, discurso oficial,
exposição, o retorno dos visitantes e a repercussão na mídia da exposição) seria uma mesa
síntese de todas as atividades, porém devido à situação política esta também foi cancelada.
Considerações finais
Ao longo da década de sessenta as transformações na arte argentina caminharam na
direção do questionamento dos papéis do artista, do seu público, da arte e do sistema artístico.
Questionando o papel do artista como o gênio de grandiosas ideias apareceram as propostas
aonde o artista se coloca como coautor juntamente com o público (Señalaminetos do artista
Vigo) ou os coletivos de produção artística, aonde a autoria se dissolveu, como é o caso da obraexposição Tucumán Arde, realizada por um coletivo com quarenta partícipes. Para questionar o
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público os artistas colocaram esses indivíduos em posições ativas, retirando-os de uma situação
contemplativa frente à produção artística. Os artistas também questionaram a ideia de obra como
objetos especiais, duradouros e merecedores de admiração, surgindo a ideia de que
os
fenômenos artísticos estão difundidos no cotidiano das nossas vidas, entre outras ideias, surge a
fusão entre arte e política, uma alternativa entendida por muitos artistas como urgente frente ao
regime ditatorial vivido. Essas ideias se tornaram incompatíveis com as instituições, com os
museus, galerias, institutos e também com o mercado de arte, o que resultou em uma crescente
negação e insubordinação dos artistas a essas instâncias legitimadoras da arte, entendeu-se que
esses não eram os lugares da nova arte, do novo público e do novo artista.
As transformações da arte na Argentina durante a década de sessenta tiveram o Instituto Di
Tella como palco principal, pois o instituto acolheu, discutiu e financiou as experimentações
artísticas, que em muitos momentos entraram em debate com a repressão cultural governamental,
até o momento em que os artistas passam a perceber a institucionalização da arte como algo não
mais possível, pois isso neutralizava o significado da arte, nas palavras de Ferrari no texto El
arte de los significados 7 já citado. Podemos dizer que em uma década de transformações na arte
o modelo do Di Tella foi ultrapassado e, de fato, este instituto fechou as suas portas ao findar a
década de sessenta.
Referências bibliográficas:
ANAYA, Jorge López. Historia Del arte argentino. Buenos Aires: Emecé, 2000.
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GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política. Arte argentino en los años sesenta,
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Avant-Garde, Nueva York: MoMA, 2004.
RIZZO, Patricia (ed.). Instituto Di Tella. Experiencias’68, Buenos Aires: Fundación Proa, 1998.
Catálogo:
7
FERRARI, León. El arte de los significados. IN: LEÓN FERRARI. Retrospectiva, obras 1954-2006. Exposição na
Pinacoteca do Estado de São Paulo, de 07 de outubro a 26 de novembro de 2006. São Paulo: Cosac&Naif,Imprensa
Oficial,2006.
481
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2011
LEÓN FERRARI. Retrospectiva, obras 1954-2006. Exposição na Pinacoteca do Estado de São
Paulo, de de 07 de outubro a 26 de novembro de 2006. São Paulo: Cosac&Naif, Imprensa
Oficial,2006.
Figura 1. León Ferrari. La civilización occidental y Cristiana. 1965. Poliéster, madeira,
papel cartão e plástico, 200X120X60 cm, coleção do artista, Buenos Aires.
Figura 3. 1968, Edgardo Antonio Vigo,
Figura 2. 1962, Alberto Greco, Vivo- Dito,
(Greco circula o artista argentino Alberto
Señalamineto I ou Manojo de semáforos.
Fotografia Arquivo Centro de Arte Experimental
482
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Heredia).
2011
Vigo.
Figura 5. Foto da “Calle Florida” com as obras
Figura 4. Foto da obra de Roberto Plate
destruídas pelos artistas expositores em
fechada, com o selo para lacramento
“Experiencias’68” no Instiuto Torcuato Di Tella.
colocado pela polícia na exposição
”Experiencias ‘68”
Figura.6. 1968, Oscar Bony. La Família Obrera. Instituto Torcuato Di Tella.
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Figura 7 Artigo em El Mundo cobrindo o alegado Happening de La participación total, 21 de
agosto de 1966.
Figura 8. 1968, Tucumán Arde, Grafite nas ruas de Rosário, 1968.
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TEORIAS, ESTRATÉGIAS E LUGARES DO DISCURSO FEMINISTA NA ARTE
BRASILEIRA DOS ANOS 60 E 70
Talita Trizoli*
Uma arte-feminista ou arte com feminismo?
Estabelecer aqui uma linha de fuga Deleuze-Guattariana1 entre o movimento feminista do
século XX, e a arte contemporânea brasileira das décadas de 60 e 70, é preencher uma lacuna
teórica de quase quatro décadas, e que apenas recentemente vem sendo sanada por iniciativas
acadêmicas de pesquisa histórica. Além do mais, é uma das diversas possibilidades de abordar
parte da produção de artistas como Regina Vater, Wanda Pimental e Anna Maria Maiolino, que
tiveram seu período de formação e fomentação artística justamente nessa época turbulenta e
confusa, não apenas na área das relações subjetivas, mas também (principalmente) política.
Com a solidificação afirmativa da chamada segunda onda do movimento feminista no
final da década de 60, produziu-se reações e contra-reações não apenas no seio da sociedade
patriarcal, no que diz respeito ao comportamento sexual ou ao mundo do trabalho, mas afetou
principalmente a distribuição de papéis sociais em diversos âmbitos das estruturas normatizantes
vigentes.
A categoria de “Estudos de Gênero”, termo desenvolvido após as discussões
estruturalistas da linguagem e das críticas às relações de poder referentes ao mundo do trabalho e
ao universo privado, abrange grosso modo a separação conceitual entre sexo e identidade,
subtendendo que, a condição física de um sujeito não é determinante para sua identidade sexual e
social, mas sim os processos de formação da subjetividade, em constante modificação. Joan
Wallach Scott, historiadora do Institute for Advanced Study em Princeton possui em seu livro
Gender and the Politics of History, uma definição bem próxima do que vem sendo aqui
explicitado:
Minha definição de gênero tem duas partes e vários subconjuntos. Eles estão
relacionados, mas devem ser analiticamente distintos. O centro da definição reside
em uma conexão integrante entre duas proposições: gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado em diferenças percebidas entre os sexos, e
gênero é um modo primário de significar relações de poder. Mudanças na
*
Mestra em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo com orientação da Profa. Dra Cristina
Freire. Bolsista CAPES. Profa. Subst. UFG-GO. http://lattes.cnpq.br/8564039932158601
1
A “linha de fuga" é um caminho de mutação precipitado mediante a realização de conexões entre os
organismos que anteriormente eram apenas implícitos (ou 'virtual') que libera novos poderes nas capacidades desses
órgãos para agir e reagir. (PARR, Adrian. The Deleuze Dictionary. Great Britain: Edinburgh University Press, 2005,
pp 145.)
485
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2011
organização das relações sociais sempre correspondem a mudanças em
representações de poder, mas a direção das mudanças não é necessariamente um
caminho único. Como um elemento constitutivo de relação social baseado em
diferenças percebidas entre os sexos, gênero envolve quatro elementos
relacionados: primeiro
culturalmente
símbolos
disponíveis
que
evocam
múltiplas... representações... mas também mitos de luz e escuridão, purificação e
poluição, inocência e corrupção.2
Gênero é um modo de entender o mundo, é uma categoria analítica que permite analisar as
intrincadas relações de poder em meios onde uma maioria masculina - geralmente branca, mas
não apenas - desenvolve um discurso universalista, misógino e essencialista, referente aos modos
de existência dos sujeitos. Já Judith Butler (autora que será também usada na construção desse
estudo), no livro Problemas de Gênero, afirma que Gênero é uma categoria identificatória do
corpo sexuado produzido pela sociedade. Em sua visão foucaultiana, diz Butler:
O gênero pode ser compreendido como um significado assumido por um corpo
(já) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado só existe
em relação a outro significado oposto... Como fenômeno inconstante e contextual,
o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência
entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes. 3
Ainda na mesma obra, a autora assegura:
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no
interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo
para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. 4
No âmbito artístico, os estudos de gênero encontram-se inseridos principalmente nos processos
de questionamento e de crítica sobre a larga presença de nomes masculinos na História da Arte, e
na rejeição de temáticas “ditas femininas”, geralmente ligadas às imagens e práticas sociais
referentes às mulheres e seu espaço social.
Acredito ser relevante ressaltar aqui que a arte de cunho feminista não é de maneira
alguma um movimento estético, mas sim um modo de interagir com o mundo e seus respectivos
2
SCOTT, Joan Wallach. Gender and the Politics of History. EUA: Columbia University, 1999, pp. 42 e 43.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Tradução de Renato Aguiar. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro: 2003,
pp. 28 e 29.
4
BUTLER, Judith. Op Cit, p.59.
3
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discursos representacionais.5 Lucy Lippard esclarece isso: “E a arte feminista não era um
movimento – ou era um movimento, e ainda é, mas não um movimento artístico, com as
inovações estéticas e exaustivas implicadas”. 6
No Brasil, tal receio das artistas mulheres acompanha também o fato de que o programa
político feminista que aportara por aqui ter sido pulverizado e distorcido em certos momentos
ora pela conturbação política em que estávamos inseridos, ora pelas interpretações superficiais e
mesmo reducionistas das poucas publicações que chegavam ao país. Simone de Beauvoir, por
exemplo, filósofa francesa que fora a grande influência de nossas autoras feministas, só teve seu
livro O Segundo Sexo publicado em 1960, com tradução de Sérgio Milliet. Foram onze anos de
hiato entre a edição francesa de 1949, o que determina uma gritante diferença no processo de
absorção e reflexão de sua crítica. Heloísa Buarque de Holanda comenta sobre essa trajetória do
movimento:
A forma particular do pensamento feminista no Brasil, embora datado do
século XIX, torna-se evidente na direção do movimento feminista do país durante
os anos 1960 e 1970, o ponto alto do feminismo em todo o mundo. Em 1964, o
Brasil passou por um golpe militar que reestruturou as relações políticas e
econômicas do país, mas foi a partir de 1968, depois de um segundo golpe de
Estado, "um golpe dentro do golpe", que os direitos civis e políticos dos
brasileiros foram completamente anulados por 20 longos 'negros' anos.
Dentro deste contexto, nossas atividades feministas adquiriram características
muito especiais. No momento da luta contra o autoritarismo, a maioria do
movimento feminista se alinhou aos partidos políticos, associações de esquerda e
organizações de base conectada com os setores progressistas da Igreja, que
foi uma das forças mais radicais contra o regime militar. 7
Aqui, interessa verificar algumas dessas autoras brasileiras que publicaram durante as décadas de
60 e 70, livros e artigos em revistas femininas de larga distribuição, justamente por ser esse o
tipo de leitura que chegou às artistas mulheres da época.
Comecemos primeiramente por Heloneida Studart, jornalista filiada ao partido comunista
e posteriormente deputada estadual do Rio de Janeiro. Em 1974, publica o pequeno livro5
“Por um lado, a representação serve como termo operacional no seio de um processo político que busca estender
visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; pó outro lado, a representação é a função normativa
de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido verdadeiro sobre a categoria das mulheres”. Op Cit. p.
18.
6
LIPPARD, Lucy. The Pink Glass Swan. U.S.A. WW Norton, 1995, p. 25.
7
HOLLANDA, Heloisa Buarque. Gender Studies: Rough Notes from a Very Local Perspective. Publicação: Journal
of Latin American Cultural Studies, Vol. 11, No. 3 Data: December 2002, p.02.
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panfleto Mulher objeto de cama e mesa, onde, em estilo entusiástico, alerta para o perigo da
alienação e atrofiamento da inteligência feminina em prol da manutenção da família patriarcal.
O livro, que fazia parte de uma coleção organizada por Lauro de Oliveira Lima, visava a
disseminação de informações essenciais à construção de uma nova sociedade. Funcionavam
como pequenas cartilhas de doutrinamento, que chegaram a ser usadas em escolas secundárias e
cursos normalistas, e estavam inseridas dentro de um projeto amplo da editora e autora Rose
Marie Muraro, que será discutida logo em seguida.
Studart no entanto, não aprofunda criticamente suas assertivas, apenas parafraseando
frases de efeito, em tom de discurso político, sempre preocupada com a alienação feminina da
classe-média, e a necessidade de ascensão da mulher proletária, figura eleita como a verdadeira
batalhadora e trabalhadora. Em certos momentos, existe até um tom pejorativo usado pela autora
ao descrever o tradicional universo feminino, considerado por ela obtuso, cerceador da
inteligência, reducionista, infantilizado, estúpido.
Heloneida Studart não é a única autora a seguir essa postura ideológica. Sua amiga e
editora chefe da Editora Vozes, Rose Marie Muraro, também se mostra partidária dessas idéias, e
chegou a influenciar profundamente Studart em parte de seus valores. Muraro, no livro A Mulher
na Construção do Mundo Futuro, afirma, com quase uma década de antecedência de sua colega
jornalista, a esperança na ascenção feminina ao poder e seu papel de salvadora da sociedade
capitalista a partir do uso de sua “sensibilidade feminina”, seu “senso de justiça maternal”
aplicado a sua liderança messiânica.
Muraro destina e aconselha a mulher brasileira, após uma árdua tomada de consciência de
sua condição desvalorizada, o papel de “Mãe da Nação”, reafirmando a todo instante a grande
capacidade do afeto feminino no advento da nova Utopia por conta de sua “natural” capacidade
de cuidar. Em trechos do livro:
Aqui, o papel da mulher é, a nosso ver, o mais importante: a mulher, mãe dos
homens, mãe da raça humana é, por definição, aquela que guarda em si tudo
aquilo que pode, biológica, psicologicamente servir para a transmissão da vida, a
preservação da pessoa e da espécie como tal. 8
A autora possui nesses momentos uma visão romântica e eloquente da mulher que circulava no
senso comum, esquecendo completamente de toda a desconstrução realizada por Beauvoir da
figura feminina, da biologia como destino. É curioso verificar que tanto Studart como Muraro
fazem uso constante do livro de Betty Friedan como referência máxima em suas publicações. A
autora americana, responsável pelo livro A Mistica feminina, que causara polêmica em seu país
8
MURARO, Rosie Marie. Op Cit, p. 70.
488
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na época da publicação, tornara-se figura heróica para essa geração, tanto pelo teor de seu
discurso, com um feminismo “mais suave”, quanto pelo constante ataque da mídia a sua figura
pessoal, que a desqualificava como “mulher” incessantemente – mas raramente conseguiam
construir argumentação contrária as suas assertivas teóricas.9 No entanto, o que nossas autoras
conterrâneas ignoram, pelo menos em seu discurso mais direto, é o fato de que o livro de Friedan
bebe diretamente no de Beauvoir, considerado por ambas um texto muito intelectualizado e
elitista, apesar de ocasionalmente citado por ambas as autoras, como fora explicitado acima.
Ambas preferem ignorar as diretrizes Beauvoirianas mais complexas e filosóficas, concentrandose na superfície de sua crítica e aplicando-a a realidade brasileira sobre a égide utópica marxista.
Apesar da larga distribuição dos dois livros aqui analisados, de Studart e Muraro, e o respectivo
destaque midiático que gozavam ambas as autoras, fora Carmen da Silva, psicanalista, jornalista
e colunista da revista feminina Claudia, que conseguira abranger um maior número de leitoras na
classe-média e instalar discussões feministas profundas, mesmo escrevendo para um veiculo de
comunicação dito conservador e mesmo em um período de turbulência política como era na
ditadura militar.
A coluna de Carmen, publicada de entre 63 e 84, sem interrupções, era uma opção ao
discurso marxista-feminista, já que a jornalista preocupava-se com o teor subjetivo de sua fala e
temas abordados, focando-se nos conflitos de valores que essas mudanças sociais implicavam no
cotidiano de suas leitoras e seu próprio. Do uso dos anticoncepcionais, até a inserção da mulher
no mercado de trabalho, passando pelo fantasma da traição e do divórcio, Carmen conseguira
introduzir um discurso emancipador feminino em uma época e em um espaço conhecido pelo
conservadorismo e temor da palavra Feminismo – sinônimo na época de mulher feia, frustrada,
ou lésbica. É dos textos de Carmen que vem a grande influência de temáticas feministas em
artista como Maiolino, Wanda Pimentel, Iole de Freitas, Maria do Carmo Secco e claro, Regina
Vater, justamente por sua grande circulação pela revista feminina mais vendida no país na
época.10
9
“Betty foi trazida ao Brasil pela editora para o lançamento da obra. Como a própria Rose Marie Muraro escreveria,
anos depois, em sua autobiografia Memórias de uma mulher impossível, não era fácil ser feminista no Brasil
daquela época. Ela própria, feminista assumida e atuante, era constantemente malhada e ridicularizada pela
imprensa. Foi chamada de lésbica e feia pelo colunista Ibrahim Sued, sofreu com a turma do Pasquim, mas acabou
se saindo bem em uma entrevista realizada ainda naquele ano pelo jornal nanico. Sem cobrar cachê, viajando apenas
com a despesas pagas, como conta Muraro, Betty veio para um lançamento duplo no país: no Museu de Arte
Moderna, no Rio de Janeiro, e na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo. Logo que chegou ao Rio,
foi levada por Rose para ser entrevistada por Millôr Fernandes e seus asseclas, sabidamente antifeministas, no
Pasquim. Provocada durante toda a entrevista, ela se irritou e “deu uma cacetada no gravador que foi parar longe”,
nas palavras da própria Rose. Finda a troca de farpas, entrevistada e entrevistadores acabaram se entendendo.”
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Betty Friedan: morre a feminista que estremeceu a América. Universidade Federal de
Santa Catarina. Revista Estudos Feministas, 2006, p. 290.
10
Inclusive, Vater a conhecera pessoalmente, como afirma brevemente em palestra oferecida a Rede de Arte
Feminista NAMI, no Rio de Janeiro em setembro de 2010. Ao fazer uma retrospectiva não linear de sua carreira,
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A crítica de arte e o feminismo.
O texto fundamental em crítica de arte, que explicitara toda uma problemática
envolvendo mulheres artista fora Why Have There Been No Great Women Artists?, de Linda
Nochlin, publicado na revista Art News em 1971, e que pontuava a ausência intencional dos
nomes de mulheres artistas nos livros de historia da arte e no acervo dos museus, apontando o
caráter androcentrista dos critérios de validação e representação em Arte. O principal argumento
de Nochlin para a ausência de grandes nomes de artistas mulheres no mesmo nível que
Michelangelo e Picasso era justamente a blindagem social de acesso à educação a que estavam
submetidas as mulheres. Em outros termos, a proibição de mulheres nas academias de arte,
ateliês e corporações, o que lhes impossibilitava o estudo e desenvolvimento dos trabalhos.
Contemporânea a Nochlin, a crítica de arte e ensaísta Lucy Lippard, responsável pela
elaboração teórica da desmaterialização do objeto artístico a partir da Arte Conceitual, fora
também uma das principais ativistas da arte feminista nos EUA, escrevendo artigos sobre artistas
mulheres que trabalhavam com a linguagem minimalista, conceitual e mesmo expressionista
abstrata, acreditando no sexismo presente em suas exclusões no mercado e arte e respectiva
desvalorização monetária nas galerias. Lippard fora uma forte ativista das campanhas de inserção
de mulheres no circuito artístico oficial, mas se abstinha de maiores reflexões sobre as políticas
de representação e demais questões de gênero levantadas pelos autores pós-modernos, deixando
clara sua postura de ativista-jornalística, e não de intelectual-acadêmica.
Apesar dos diferenciais sócio-políticos e econômicos, a situação de uma artista mulher no
Brasil dos anos 70 não era tão diferente da enfrentada pelas americanas e européias. Ainda que
historicamente em nosso país as artes sejam relacionadas às atividades femininas – leiam-se
prendas domésticas – até a década de 30 eram raras as artistas mulheres profissionais. Tarsila do
Amaral e Anita Malfatti, símbolos de nosso Modernismo, são uma exceção histórica nesse
quadro, assim como Maria Martins e Yolanda Mohalyi. São com essas assertivas que abordo
parte da produção artística de Regina Vater, Wanda Pimentel e Anna Maria Maiolino,
contemporâneas à chegada do feminismo no Brasil e, portanto, receptivas as suas problemáticas,
mesmo com todo o receio e teor pejorativo que rondava a palavra Feminista na época.
O contexto artístico da produção de Vater, Pimentel e Maiolino.
Regina Vater afirma que, a convite de alguns amigos, viajara em um final de semana para um sítio nas redondezas
do Rio, e lá encontrara Carmen da Silva, e seu namorado na época. Intimidada pela presença da jornalista, não
travou contato, mas confessa que ficara impressionada com a figura de Carmen, tanto pelos textos escritos, como
pelas demais atitudes libertárias e revolucionárias empreendidas por ela em sua vida pessoal, e que eram na época
ainda raras para a grande maioria das mulheres. Apesar de serem prática comum, dentro de certos grupos sociais da
época, relacionamentos inter-raciais, ou mesmo “livres” de compromisso oficial, como o comumente chamado
“juntar escovas”, ainda causavam muito estranhamento e conflito por serem uma quebra do protocolo de
comportamento esperado de mulheres solteiras, além das distorções feitas ao programa feminista e seus estereótipos.
490
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Havia durante os anos 60 e 70 um desejo de estetização vida, de quebra da autonomia, de
reação ao tachismo, formalismo e expressionismo abstrato que permeava os altos círculos
artísticos da época. Segundo Marília Andrés Ribeiro, no texto Arte e política no Brasil: A
atuação das neovanguardas nos anos 60:
Já na segunda metade da década, após o golpe militar de 64, configurou-se um
antagonismo radical entre as propostas questionadoras das neovanguardas
artísticas e a “política cultural” do Estado, resultando na articulação de uma
cultura artística alternativa de resistência ao autoritarismo da ditadura. Essas
novas vanguardas questionavam não somente a política autoritária do Estado
Militar, como também colocavam em xeque o projeto moderno brasileiro,
reinaugurando uma nova relação entre a arte e a política, relação esta pautada pela
desconstrução e reconstrução de novas poéticas que consideravam a importância
da cultura de massa, dos avanços tecnológico s, buscando a inserção da arte na
vida cotidiana dos grandes centros urbanos.11
Essa predominância figurativa da pintura na década de 60 tem antecedentes históricos
no Brasil com as predisposições culturais da antropofagia de Oswald de Andrade
12
. Nas
palavras de Schwartz: “Oswald transforma o bom selvagem rousseaniano num mau selvagem,
devorador do europeu, capaz de assimilar o outro para inverter a tradicional relação
colonizador/colonizado.”13. Alia-se a essas questões também a um desejo de desenvolver uma
arte de vanguarda nacional, com a persistência de figuras populares, mitos urbanos, e um
olhar subjetivo na seleção dos temas, como verifica-se nas temáticas de Lasar Segall e suas
tristes figuras de família, Portinari com os operários e emigrantes miseráveis, Di Cavalcanti e
seu universo sordidamente mundano e mesmo Tarsila do Amaral com teores marxistas e
românticos.
Com essas prerrogativas, desenvolveu-se no país toda uma vertente pictórica e figurativa nas
artes preocupada com a formação de uma identidade e expressão nacional vinculada com as
problemáticas políticas e sociais de sua época. A Nova Figuração, Nova Objetividade Brasileira
e Tropicalismo encontravam-se sobre a égide dessas proposições, e abrigaram parte das
11
RIBEIRO, Marília Andrés. “Arte e política no Brasil: A atuação das neovanguardas nos anos 60”. In: Arte &
Política. Belo Horizonte: C/ARTE, 1998, 1998, pp. 166.
12
Escritor brasileiro e autor do manifesto antropofágico onde defende o “devorar” da cultura européia para depois
“regurgitar” dentro de padrões e valores mais condizentes com a realidade brasileira. Vide SCHWARTZ, Jorge.
Vanguardas Latino Americanas: Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos. São Paulo: Edusp: Iluminuras:
FAPESP, 1995, pp. 142 a 147.
13
Op Cit, p. 140
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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produções e preocupações estéticas das três artistas mulheres aqui discutidas: Vater, Maiolino e
Pimentel.
A produção da Nova Figuração, que se situa na transição das décadas de 50 e 60, e pelo
abandono das investigações abstratas em prol de trabalhos influenciados pela POP ART, o
Nouveau Réalisme francês e demais vertentes italianas e argentinas, obteve larga receptividade
nos círculos artísticos brasileiros. Os artistas mostravam-se ansiosos por uma produção artística
mais próxima da realidade social e cotidiana, dispensada do hermetismo e dialética do
construtivismo e abstracionismo. Procuravam assim com uma maior carga expressiva e critica,
com clara influencia Dáda, surrealista e expressionista em seus trabalhos.
Já a Nova Objetividade Brasileira, que fora uma proposição estética-artística posterior a
Nova Figuração, firmou-se basicamente durante as discussões da organização da exposição
Opinião 65 no MAM do Rio de Janeiro, mas com um enorme diferencial: a instância
participativa do público na construção da arte, opondo-se à postura contemplativa tradicional
ainda presente na produção dos trabalhos anteriores, e que já vinha sendo fomentada em
discussões e práticas artísticas tanto no Brasil quanto no mundo afora.
Do mesmo modo que a tendência figurativista anterior, a Nova Objetividade Brasileira
caracterizava-se pela diversidade formal nos estilos. O aspecto aglutinante dos artistas que com
ela se identificavam ocorria por uma preocupação com as questões sociais, talvez resultado do
discurso marxista que tomava força na sociedade. Essa Neofiguração da Nova Objetividade
Brasileira procurava transcender o conceito formal de objeto artístico e seu respectivo processo
de percepção por parte do espectador, que agora tornava-se parte da obra, agente desencadeante
da fruição, ativador.
No caso das atividades da Tropicália, há uma relação nominal escancarada com o
tropicalismo musical de Caetano e Gil, além das proposições plásticas de Hélio Oiticica, que
viera a determinar inclusive os músicos já citados. Os artistas da época se interessavam por esse
movimento musical justamente por conta de seu desprendimento aos costumes sociais,
irreverência, humor e ironia quanto ao patrulhamento cultural advindo do movimento político de
esquerda. Celso Favaretto faz o seguinte comentário em seu livro Tropicália alegoria alegria:
A polêmica que havia cercado a apresentação das músicas transformaria Caetano
e Gil em astros. A imprensa se encarregou de fazer de suas declarações
desabusadas, de sua verve crítica, o prenúncio de uma posição artística, e mesmo
política, sincronizada com comportamentos da juventude de classe média,
vagamente relacionados ao movimento hippie... O Tropicalismo surgiu, assim,
como moda; dando forma a certa sensibilidade moderna, debochada, crítica e
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
aparentemente não empenhada. De um lado associava-se a moda ao psicodelismo,
mistura de comportamentos hippie e música pop, indiciada pela síntese de som e
cor; de outro, a uma revivescência de arcaísmos brasileiros, que se chamou de
“cafonismo”. 14
No entanto, havia sim um teor de posicionamento político nessas práticas. As posturas de
negação ideológica e de cânones teóricos e acadêmicos encontravam-se dentro das proposições
musicais e literárias desses jovens artistas, que procuravam efetuar um resgate da cultura popular
e sua verve dionisíaca.
Os trabalhos de Vater, Maiolino e Pimentel.
Comecemos por comentar dois trabalhos de Regina Vater da fase nomeada pela artista de
Tropicália. Após efetuar aquarelas e desenhos nas aulas de Iberê, onde apresentava
representações do corpo feminino dissecado, evidenciando uma organicidade identitária das
entranhas, a carioca hoje residente em Austin, EUA, passou a trabalhar com a representação do
corpo feminino a partir da publicidade, das canções da
MPB
e
demais
estereótipos
de
brasilidade e feminilidade que circulavam no meio cultural da época. Em mulher avião,
serigrafia feita a partir de uma estrutura compositiva de cores aturadas e contrastantes, Vater
realiza um jogo de palavra com o titulo e os símbolos existentes no trabalho. Esse corpo
feminino, aqui delimitado por grossas linhas, vazado, como uma janela para uma paisagem
paradisíaco dos trópicos, surge como objeto de desejo do imaginário masculino e cultural da
época, mas também com certa monstruosidade erótica, que ocorre tanto na pose de influência
plástica do tronco feminino, como no aspecto truncado e acéfalo de suas mulheres. O mesmo se
passa na serigrafia Ipanema, construída sobre essas mesmas premissas, e que reforça esse
vinculo reificante de uma sensualidade feminina brasileira atraente, mas postiça.
A convergência desses trabalhos de Vater com Maiolino, artista ítalo-brasileira residente
no Rio de Janeiro, ocorre não apenas pela opção de trabalhar com uma palheta de cores
saturadas, complementares e contrastantes, além da construção composição a partir de massas de
cor, mas principalmente pela temática sobre o feminino e suas particularidades, a expressão
pessoal sobre o mundo e a reificação da mulher. Em Ecce homo, Maiolino evidencia tal
preocupação tanto pela opção de apresentar um retrato de casal pelo corpo masculino dissecado,
exposto, aberto, como símbolo de uma normatização positiva da corporeidade, em contrapartida
ao corpo feminino sem entranhas à mostra, mas exposto em sua sensualidade pelos cabelos ai
vento e o biquíni vermelho, mas principalmente pela representação de uma suposta relação
14
FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. Cotia SP: Atêlie Editorial, 2000, p. 23.
493
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
afetiva pautada pelos estereótipos sociais de mulher como ser emotivo e homem como ser
racional, regente das determinações mundanas e intimas.
De certo modo, essa representação de relações afetivas a partir da perspectiva subjetiva
feminina repete-se na xilogravura Família, pois a artista, ao manifestar plasticamente sua
genealogia familiar, estabelece condições de hierarquia nas relações de parentesco, ocasionando
assim uma uniformização dos sujeitos a partir da diagramação das figuras e representação dos
vultos.
Por fim, Wanda Pimentel forma a tríade dessa análise com seus trabalhos da série
Envolvimento, onde a artista, também carioca, representa o corpo feminino também como objeto
de desejo reificado pelo olhar masculino dominante, mas agora inserido não objeto principal da
representação, mas como mero elemento compositivo em suas pinturas acrílicas, que retratam os
espaços ditos femininos, como cozinhas, quartos e salas, permeados por objetos de consumo da
época ligados às atividades de trabalho feminino e seus processo de embelezamento e
manipulação do corpo. Todas essas questões ficam ainda em maior evidência nas pinturas de
Pìmentel quando nos damos conta que a artista representa apenas as pernas e pés femininos em
seus trabalhos, onde essa fragmentação do corpo não apenas mutila a subjetividade dessas
mulheres, mas reifica e intensifica sua condição como mero objeto de desejo/decoração na
sociedade brasileira dos anos 60/70.
A relevância de discutir tal tipo de produção, e pontuar suas principais características
e influências, numa época da produção artística brasileira de bastante fomentação e formulação
de questões estéticas se dá justamente pela intencionalidade de rastrear essas atividades e nomes
que correm forte com risco de adentrar ao limbo do esquecimento do sistema de artes. É pentear
a história a contrapêlo, como diz Benjamin.
Referências bibliográficas:
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Ensaios (1980-2005), Volume 3: Bienais e artistas contemporâneos no Brasil. São Paulo: Ed. 34.
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BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Tradução de Renato Aguiar. Civilização Brasileira: Rio
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FABRIS, Annateresa. (Org.) Arte & Política; Algumas Possibilidades de Leitura. Belo
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FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. Cotia SP: Atêlie Editorial, 2000.
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desconhecidas. Acervo digital do MAC-RS e MAC-RJ, respectivamente.
(1968) Wanda Pimentel. Série Envolvimento. Acrílica sobre tela. Dimensões desconhecidas.
Local desconhecido.
496
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
IMAGEM&VER(A)CIDADE
–
OBRAS
DE
2011
ARTE
URBANA
E
SUAS
CONTRAPARTIDAS DIGITAIS
Vanessa Gonçalves de Almeida Rosa*
Resumo
A partir de obras de arte urbana atuais, sobretudo aquelas ligadas à tradição do grafite,
incitamos aqui uma reflexão sobre as relações imagem-espaço no contexto da tecnologia digital.
A pluralidade de meios e artifícios do trabalho de Banksy e as animações que misturam técnicas
de 2d com stop-motion na paisagem urbana do artista Blu servem de guias para aprofundar tal
pensamento. Tais relações e contexto são também de extrema importância para indicar
tendências recentes de produção e recepção de obras de arte que podem impulsionar caminhos
originais na narrativa contemporânea de história da arte.
Abstract
Starting from nowadays works of urban art, specially those connected with the graffiti history,
we instigate here a reflection about the image-space relations in the context of digital technology.
The plurality of mediums in the work of Banksy and the animations that combine 2d with stopmotion techniques of the artist Blu function as guides to develop such reflection. Those relations
and context are also of extreme importance to indicate recent tendencies of production and
reception of art works that can stimulate originals paths in contemporary narratives of art history.
Conta-se que num domingo de manhã, 6 de janeiro de 2008, um grupo montou um
enorme andaime frente ao muro da empresa Portobello Post, localizado na rua Portobello no
oeste de Londres, rua bastante conhecida e muitíssimo movimentada nos fins de semana devido a
seus mercados ao ar livre. Poucas pessoas parecem ter estranhado o andaime, dizem que alguns
moradores chegaram a perguntar aos supostos obreiros do que se tratava, mas depois de uma
resposta meio indefinida não teriam mais se alongado no assunto. Algumas horas depois, o grupo
da obra e o andaime tendo deixado o local, passantes surpreenderam-se ao ver um stencil em
*
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduanda em História da Arte, bolsista CNPq.
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
preto e branco sobre o muro, retratando um pintor com roupas tradicionais segurando uma
palheta, retocando as letras vermelhas de estilo típico de tags grafite. Lia-se o nome do autor do
crime: Banksy.
Conta-se que assim que soube do ocorrido o dono da companhia de edição de pósprodução Portobello Post, chamado Luti Fagbenle, mandou proteger a peça com uma folha de
acetato grosso preso com parafusos – uma prática que se tornou comum nessa cidade quando se
desconfia que um trabalho de grafite é fruto de um autor muito conhecido, afinal, se este não for
protegido poderá ser logo apagado. Poucos dias depois, após o pronunciamento de um
representante de Banksy atestando a autenticidade da obra, a pintura estava sendo leiloada no ebay, e passada uma semana já recebera mais de 70 ofertas de compradores, alcançando o preço
de 208.100 dollares1. Preço espantoso para uma obra que foi feita ilegalmente, numa cidade onde
esse tipo de intervenção urbana é considerada crime, onde muitas pinturas desse mesmo artista
foram apagadas e por vezes continuam sendo. O comprador final ainda teve de pagar o
acréscimo de 5.000 dollares para remover a obra de arte do muro.
Narro a história dizendo o que se conta, mesmo que isto se baseie em diferentes jornais,
pois se tratando desse artista urbano sempre parece possível que uma ação deste esteja dentro de
uma fraude no estilo F for Fake de Orson Welles. Se isto já se esboça nas tantas polemicas a
respeito de sua identidade e se ficou ainda mais nítido depois que ele abriu uma pet shop falsa
em Nova York, com o lançamento de seu pseudo-documentário “Exit through the gift-shop” em
2010 (que foi indicado ao Oscar daquele ano de melhor documentário, mesmo com toda
polêmica sobre a veracidade da narrativa) o público percebeu que dificilmente pode-se ter
certeza do que se sabe sobre Banksy. Escondendo-se atrás desse pseudônimo, esse artista, e
possivelmente esse coletivo de artistas, conseguiu impulsionar um fenômeno de visibilidade para
uma geração de artistas urbanos cuja maioria começou a atuar a partir dos anos 90, que agora são
muitas vezes agrupados sob o nome street art ou pós-grafite – não se tratando de um movimento
coerente, sequer sendo um fenômeno restrito a um local, esses nomes dificilmente são
unanimidades.
Mas se olharmos atentamente os grafites-stencils pelos quais Banksy ficou originalmente
conhecido, dificilmente conseguiremos ver uma originalidade formal tão veemente neles. Afinal,
não faltam precedentes para suas imagens quase preto-e-brancas, com um estilo de desenho que
lembram ilustrações publicitárias antigas, e suas sátiras políticas de rápida leitura: nos anos 80 e
90 há a influencia direta de Blek le Rat, nos predecessores do grafite, durante os anos 70, há
1
Informações oriundas do site da BBC. http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/7188387.stm. Há outras fontes
que afirmam que o preço chegou a 400.000 dollares (http://ezinearticles.com/?5-Most-Expensive-Banksy-ArtPieces&id=6065536)
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2011
Richard Hambleton, mas se olharmos mais para trás é possível encontrar muitos outros
exemplos. Contudo, se pensarmos a produção mais recente de Banksy não estaremos mais
falando apenas de pintura em muros. Se a qualidade da pintura e da critica de Banksy atinge um
nível tão intenso quanto o de Andy Warhol, com quem ele é frequentemente comparado e ele
mesmo faz referencia direta, é algo a ser pensado com cuidado, mas se ele conseguiu tanto
alvoroço sobretudo nos últimos 7 a 8 anos, não foi apenas devido a suas pinturas, e sim
sobretudo a forma como ele soube polemiza-las e difundi-las. A comparação de Banksy com
Andy Warhol parece bem articulada, não apenas pelas inúmeras referências iconográficas que o
primeiro faz ao segundo, mas pelo interesse de jogar com a lógica da sociedade de consumo
através de diferentes artifícios. Se Banksy anda conquistando respeito para sua prática em
diferentes meios, uma das razões é justamente a pluralidade de seu trabalho.
Para cada projeto seu, o artista cria um site diferente que não só divulga o que tem sido
feito, como atesta a autenticidade de trabalhos novos, faz combinações próprias entre
enquadramentos fotográficos e pequenos textos, vende suas obras como mercadoria
propositalmente vulgarizada ou incita os internautas a copiarem suas imagens (para fins nãocomerciais de preferência). Em 2009, em parceria com a Lazarides, galeria londrina que
impulsionou o suposto movimento street art junto com Banksy, o artista lançou o site Pest
Control (http://www.pestcontroloffice.com) para o qual internautas interessados em comprar ou
vender um trabalho dele podem enviar várias fotos da obra desejada com o intuito de fazê-las
serem analisadas e assim ganhar um atestado de autenticidade caso a obra seja reconhecida como
original. Outra forma de Banksy lidar com a transformação de seu trabalho em mercadoria foi
permitir a comercialização deste numa forma nada sofisticada, que se afirma mesmo enquanto
mera mercadoria. Qualquer um pode adquirir diversos produtos, de camisas estampadas a livros
e posters, através do site http://www.buybanksy.co.uk/. Desse modo, como é mesmo dito no site,
quem se interessar em ter um trabalho do homem, mas não tem dinheiro para comprar uma
gravura, pintura ou escultura sua, ou um pedaço de parede é claro, pode superar isso adquirindo
sua legítima camiseta Banksy.
Seria errôneo separar o que está acontecendo nas ruas de sua contrapartida virtual. Como
Néstor Garcia Canclini salienta a respeito dos leitores, espectadores e internautas (CANCLINI,
2008: 20) estes receptores culturais estão concentrados na mesma pessoa e as industrias culturais
estão unindo as linguagens e combinando os espaços, num processo tecnológico de convergência
digital. Um dos exemplos dados por Canclini: o grupo Time, dedicado à mídia impressa, uniu-se
ao mega-produtor visual Warner, e juntos, já sendo um dos maiores fabricantes de espetáculos e
conteúdos, em 2000 aliaram-se a um enorme produtor de internet, a AOL. E de forma
499
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
semelhante, são essas enormes companhias que irão povoar não só as mídias como também o
espaço urbano com seus inúmeros anúncios publicitários, transformando todos os cenários em
lugares de compra e venda. Como o polígono dos signos, mídia e código de Jean Baudrillard, ou
o labirinto de imagens de Michel de Certeau, a cidade vira uma paisagem de cartazes
organizando nossa realidade, mostrando o repertório de nossas felicidades próximas. Não apenas
Banksy, mas tantos outros artistas urbanos atuais, e os sites que os divulgam, atacam fortemente
a aparente onipresença da publicidade nas ruas, e colocam nisso uma das grandes motivações do
que eles consideram ser a proliferação de arte urbana atual.
O internauta seria então para Canclini um agente multimídia que lê, ouve e combina
materiais diversos, procedentes da leitura e dos espetáculos, e seguindo essa linha vê-se que é
também esse internauta-leitor-espectador o observador da arte urbana. Nesse ponto deve-se
lembrar que a forma mais eficaz de divulgação dos trabalhos recentes de arte na rua tem sido
virtual, blogs e sites como o renomado Wooster Collective. Se o graffiti, e a depois a chamada
street art, ou urban art para aqueles que criticam o outro termo, ganhou inicialmente visibilidade
devido a sua ocupação massiva na rua, artistas que trabalham nesse meio sabem muito bem hoje
a importância de fotografar e filmar sua arte. O fazem devido à efemeridade inerente a boa parte
das obras na rua, mas também por saberem que seu trabalho ganha outra força através da
repercussão digital. Nesses museus virtuais (sites ou simplesmente a pesquisa google) onde todas
as imagens parecem estar ao alcance, é possível conectar trabalhos feitos em lugares
extremamente distantes no globo, usando o enquadramento fotográfico da obra e seu contexto
como forma de criar narrativas, é possível fazer mapas das cidades a partir das obras sugeridas
de serem visitadas, ou mesmo, é possível fazer um não-lugar a partir da alteração digital nas
imagens.
Neste ponto começamos a vislumbrar outra questão muitíssimo curiosa: alguns trabalhos
de arte urbana só tem sua finalização nas mídias. Mas que imagens finais são essas? “Qu'est-ce
qu'une image? La multiplication proliférante des images dans notre monde contemporain semble
– c'est là son paradoxe – inversement proportionnelle à notre faculté de dire avec exactitude à
quoi elles correspondent”2 (ALLOA, 2010: 7). Somos bombardeados de imagens todos os dias,
elas estão por toda parte, de um modo que era impossível antes das facilidades da reprodução
técnica, um modo que acaba por mudar nossa forma de vê-las e interpreta-las.
Vilém Flusser tenta explicar a diferença daquilo que ele chama de imagens-técnicas das
imagens tradicionais, diferença que marcaria toda uma virada epistemológica que estaríamos
2
ALLOA. Emmanuel. “Penser l'image”. Paris: Le presses du réel, 2010.pag 7. “O que é uma imagem? A
multiplicação proliferada de imagens em nosso mundo contemporâneo parece – é neste ponto seu paradoxo –
inversamente proporcional à nossa faculdade de dizer com exatidão a que elas correspondem.” (tradução livre da
autora.
500
VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
passando. Para o tcheco-brasileiro as imagens tradicionais baseiam-se na percepção do homem
das 4 dimensões básicas da realidade (largura, profundidade, altura e tempo) das quais abstraem
duas (profundidade e tempo), transformando a circunstancia percebida em cena bidimensional.
Já as imagens técnicas seriam resultado de aparelhos que são fruto da aplicação de textos
científicos, cujas origens remontam a imagens “rasgadas” transformadas em linhas
(“unidimensionalidade”), logo os aparelhos são projeções da linearidade lógico-matemática dos
seus textos. As imagens técnicas portanto não são baseadas diretamente na percepção humana da
realidade, são formadas de inúmeros pontos que irão dar a ideia das dimensões da realidade, mas
como são pontos a imagem no fim está na “zerodimensionalidade”. Flusser apresenta o
desenvolver das capacidades de abstração do homem na produção de imagens e textos dentro de
um modelo que ele considera fenomenológico, um modelo que não visa validade geral, seria
apenas um gancho de apoio, pois pode ser enganosamente linear. O importante para nossa
reflexão é como ele frisa a questão de as imagens técnicas, inversamente às imagens tradicionais,
serem oriundas de um gesto que vai do abstrato rumo ao concreto.
E tal abstração cada vez mais forte na nossa forma de se apropriar e perceber o espaço
não muda nossa forma de pensá-lo? Que espaço é este a ser povoado de imagens e aparecer
refletido em inúmeras outras imagens? Se Banksy já faz uma combinação de trabalhos seus,
alguns com características de site-specifcs, apresentando uma coleção de fotografias de diversos
lugares do globo em seu próprio museu virtual, outros artistas desenvolvem projetos em que uma
relação diferenciada com o espaço através destas imagens-técnicas fica mais evidente. Mark
Jenkis por exemplo, artista americano nascido em 1970, com suas instalações urbanas
normalmente sob forma de esculturas de figuras mostra seus diversos projetos com fotos
identificadas segundo o local onde foram feitas. Sequer é necessário um nome para cada
trabalho. No seu site, o artista organiza seu portfolio sob as categorias city, nature e inside
(cidade, natureza, interior) e nas duas primeiras a única especificação embaixo de cada imagem é
a cidade onde foram feitas, de Rio de Janeiro a Seoul, Moscow, Washington, Belém, entre tantas
outras. Em alguns projetos, como o “Storker” (ver site na bibliografia), chega a colocar
esculturas idênticas ou parecidas em diferentes cidades, de modo que a interação com a paisagem
se torna o diferencial de cada imagem. Na categoria inside, com trabalhos dentro do cubobranco de espaços institucionais, nada está escrito abaixo de cada foto.
Porém, há outro artista que desdobra as possibilidades da relação entre fotografias e
pinturas urbanas de um modo bem mais surpreendente. Blu é um italiano que diz-se ter nascido
em Bologna e assim como Banksy e outros artistas do mesmo cenário hoje em dia, ele também
se esconde atrás de seu pseudônimo. Ele não transforma seu anonimato em polêmica, apenas
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
enfatiza como prefere manter sua discrição. Atuante nas ruas desde 1999, sendo outro que
aparentemente ama rodar o globo e deixar enormes murais em diferentes cidades, Blu diferenciase dos demais muralistas pela seu interesse em animação e no desenvolvimento de técnicas
novas. Começou com animações 2d em 2001, mas em torno de 2006 e 2008 desenvolveu um
estilo possivelmente inédito de pintura urbana e animação: o artista pinta uma figura num muro,
tira uma foto, em seguida faz a figura com um movimento levemente diferente ao lado da
original (ou em cima dependendo da ação realizada pela personagem) e pinta a anterior com tinta
branca, deixando um rastro das linhas dessa. Uma mistura de animação stop-motion3 com a
tradicional 2d. É como se ele fizesse sua realidade onírica viver dentro da paisagem urbana, seus
personagens interagem com portas, janelas, carros, canos, caminhos e transeuntes. Seu primeiro
curta lançado em tal estilo, “Muto”, é um fenômeno de visibilidade no youtube.com, alcançando
10 milhões de visualizações, tendo também participado de diversos festivais internacionais de
animação.
Até então o que mais se fazia de mistura entre animação e arte urbana eram desenhos em
seqüências que, se vistos rapidamente dentro de um veículo, formavam uma animação. Ou, já
houve caso de animações serem projetadas nos muros de cidades, chegando mesmo a fazer um
personagem se mover através de diversas ruas usando um projetor dentro de um veículo, como
fez recentemente, em 2011, Vjsuave em São Paulo. Mas as imagens finais das animações de Blu
são bem peculiares, a técnica de foto-pintura dá um efeito diferenciado e facilmente
reconhecível. Impressiona num primeiro momento só a noção de quantas pinturas foram feitas
para realizar uns 5 minutos de animação, a noção de que os muros de uma cidade podem parecer
folhas de papel de um animador, formando os frames de movimento. Nos vários filmes já
lançados pelo italiano, o espectador encontra-se seguindo histórias não muito claras de homens,
máquinas e monstros num processo contínuo de transformação, sendo esta várias vezes violenta
com um ser comendo ou explodindo o outro, sempre num desenho bastante linear tendendo à
caricatura, que tantas vezes dá um aspecto cômico ou absurdo a cenas de destruição.
Que presença e que imagem da cidade são buscadas por esses artistas? Nenhum dos dois
descarta obras que, como murais, têm um grande impacto na rua, ganhando até tamanhos
monumentais. Ainda assim, não podemos mais pensar seus trabalhos como baseados numa
presença aurática, eles escapam a isso, como também o fazem as imagens publicitarias que
povoam as cidades ainda mais insistentemente que grafites e pichações. Afinal, me baseando no
pensamento de Jonatham Crary sobre uma possível história da visão, ou antes, das forças e
3
“Stop Motion é a técnica de animação na qual o animador trabalha fotografando objetos, fotograma por
fotograma, ou seja, quadro a quadro. Entre um fotograma e outro, o animador muda um pouco a posição dos
objetos. Quando o filme é projetado a 24 fotogramas por segundo, temos a ilusão de que os objetos estão se
movimentando.” - http://www.eba.ufmg.br/midiaarte/quadroaquadro/stop/princip1.htm#intro
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
2011
regras plurais que compõem o campo no qual a percepção ocorre, penso no observador
multifacetado que percebe tais trabalhos, lembrando que o artista também é um observador.
Como Crary fala a respeito da câmera escura no século XVIII e do estereoscópio no XIX, o
observador e os diversos aparelhos tecnológicos ligados à visão não devem ser vistos como
entidades distintas, com identidades separadas. A percepção visual seria sempre moldada pelos
aparelhos criadores e transmissores de imagens e pelas concepções epistemológicas de uma
época, ideias estas exemplificadas por Crary ao ressaltar a impossibilidade de uma teoria da
visualidade pura no século XVIII. Estaríamos então vivendo um período de transformação dos
modos de olhar na medida em que os meios de produzir e se ver imagens estão passando por
mudanças profundas – e aqui novamente vale lembrar o conceito de zerodimensionalidade de
Flusser. Acredito que através dos trabalhos de tais artistas se possa pensar as possibilidades de
imaginar e agir na cidade hoje, pois são trabalhos que apontam uma relação muito diferenciada
da obra-espaço do que, por exemplo, um muralismo mexicano ou monumentos públicos.
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apresentada no colóquio ”Corpocidade – debates em estética urbana”, realizado em Salvador,
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CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. São Paulo: Papirus, 1995 ECO, Umberto. A obra
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CRARY, Jonathan: Techiniques of the observer.London: MIT Press, 1992.
FLUSSER, Vilem: O universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2008
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PALLAMIN, Vera. Arte urbana. São Paulo: Annablume, 2007.
Bibliografia on line:
Homepages institucionais
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VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE - UNICAMP
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Apresenta textos sobre o artista plástico Blu. Disponível em < www.blublu.org > – acessado
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BUYBANKSY. Coordenacão de Banksy (nome real desconhecido). Desenvolvido a partir de
2007. Disponível em <http://www.buybanksy.co.uk/ > - acessado em 10 junho de 2011.
PESTCONTROL. Coordenação de Banksy (nome real desconhecido). Desenvolvido a partir de
2009. Disponível em < http://www.pestcontroloffice.com> - acessado em 11 de junho de 2011.
MARK JENKINS. Coordenação de Mark Jenkins. Desenvolvido a partir de 2005. Disponível em
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WOOSTERCOLLECTIVE. Coordenação de Mark e Sarah Schiller. Desenvolvido a partir de
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Jornais on line
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BBCnews.
Disponível
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HACNEY, Mike. "5 most expensive Banksy art pieces". Jornal on-line Ezinearticles, 11 março
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2008, Banksy, spray sobre muro, 2,5mx1,80 aprox, Londres – Localização atual não divulgada.
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2005, Marc Jenkins, Storker Project, Fotorafia de esculturas de fita adesiva em espaços públicos,
2005, Marc Jenkins, Storker Project, Fotorafia de esculturas de fita adesiva em espaços públicos, Belém
(Palestina).
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2006, BLU, Muto, animação stop-motion, 7:26min, filmado em Buenos Aires e Baden.
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A INSTALAÇÃO DE VÍDEO E A MONTAGEM DE ATRAÇÕES EM ARTHUR OMAR
Wagner Jonasson da Costa Lima*
INTRODUÇÃO
O presente texto tem por objetivo analisar a relação entre cinema e arte contemporânea
abordando determinados momentos da produção artística e teórica da Arthur Omar (1948). O
início de sua trajetória artística é marcado pelo movimento de ruptura com o cinema
documentário tradicional, período em que o artista vai introduzir a noção de antidocumentário
no contexto da produção audiovisual brasileira. A partir da década de 1980, o cineasta adensa
cada vez mais sua produção usando o vídeo como suporte. Essa atuação pode ser verificada em
vídeos como O Nervo de Prata (1987), realizado em colaboração com o artista plástico Tunga.
A transposição do trabalho audiovisual de Arthur Omar rumo à instalação foi gradual.
Em 1983, apresentou Tristão e Isolda, na Galeria Sérgio Millet na FUNARTE no Rio de janeiro.
Nessa instalação via-se a simulação de um cinema pornô montado atrás de cortinas negras.
Diante das cadeiras, duas grandes telas de projeção, com 8 metros de largura cada. A velocidade
diferente dos dois projetores de slides provocava combinações sempre novas entre duas imagens
justapostas. Sua primeira instalação de vídeo, Inferno, foi realizada em 1994. Em seguida
apresenta Máquina Zero, em 1995, para o Fórum BHZ Vídeo, Muybridge/Beethoven, em 1997,
no Paço das Artes, e Atos de Diamante, em 1998, no Itaú Cultural, entre outras. Nessa trajetória
verifica-se uma proximidade cada vez maior de Arthur Omar com o ambiente expositivo da arte
contemporânea.
INFERNO E O ESPECTADOR
O vídeo de artistas começa com o Fluxus, iniciativa de alguns alunos de John Cage
(1912-1992) no começo da década de 1960. De acordo com Anne-Marie Duguet (2009), é a
partir de um duplo deslocamento das problemáticas artísticas no período que se pode
compreender o interesse suscitado pelo vídeo. De um lado, a percepção da obra e sua experiência
pelo espectador constituem a questão dominante. Os artistas da arte minimalista contribuíram
decisivamente para essa abordagem. De outro, o conceito da obra é tido como o fundamental,
tendo sido essa, em particular, a posição dos artistas ditos conceituais. A obra de arte é posta em
causa em seus fundamentos tradicionais, como objeto único, acabado e autônomo.
Desenvolvem-se, assim, modalidades de criação, como a performance e a instalação, que
dominarão também a produção de vídeo.
*
Mestrado em Artes Visuais na linha de pesquisa de Teoria e História das Artes Visuais do Programa de PósGraduação em Artes Visuais do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
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2011
A partir da década de 1980, aponta Philippe Dubois (2009), as fitas de realizadores que
trabalhavam com o vídeo deixaram de ser exibidas exclusivamente em festivais de vídeo. Esses
trabalhos ganharam cada vez mais terreno junto a espaços expositivos como museus e galerias.
Além disso, os artistas começaram a pensar plasticamente os modos de apresentação das
imagens de vídeo. Nesse período, a exibição dos trabalhos se organiza em torno e valendo-se do
objeto “monitor”: a tela de vídeo era tanto uma superfície, a imagem, quanto um volume, uma
caixa, um móvel. E essa caixa podia ser manipulada, multiplicada, alinhada, empilhada, ou seja,
tratada como material. Inventavam-se verdadeiras composições no espaço, feitas de monitores
dispostos de modos infinitamente variados.
Tanto a relação com o espectador quanto os modos de apresentação da imagem
vídeográfica, parecem permear a primeira instalação de vídeo de Arthur Omar. O trabalho foi
realizado no Matadouro Municipal da cidade de São Paulo, dentro do projeto Arte/Cidade. Na
época, o espaço criado em meados do século XIX estava vazio e deteriorado. Cerca de quinze
artistas e arquitetos criaram obras especialmente concebidas para a situação (PEIXOTO, 2002).
Segundo Agnaldo Farias (2011), co-curador da mostra, foram oferecidas a cada um dos
convidados uma lista de palavras1 que abarcavam o universo que o projeto se dispunha a tratar,
sabendo que cada artista se aproximaria mais de um ou outro termo. A reunião de vídeos,
esculturas, performances e instalações dos quinze participantes2 deu origem à mostra Cidade
Sem Janelas.
Arthur Omar realiza então uma instalação de vídeo compos