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ROLETARUSSA
Red Sparrow
JasonMatthews
Desde pequena, o sonho de
Dominika Egorova era fazer parte do
Bolshoi, o balé mais importante da
Rússia. Após ser vítima de uma
sabotagem, porém, ela vê sua
promissora carreira se encerrar de
formaabrupta.Logoemseguida,mais
um golpe: a morte inesperada do pai,
seumelhoramigo.
Desnorteada, Dominika cede à
pressão do tio, vice-diretor do serviço
secretodaRússia,oSVR,eentrapara
a organização. Pouco tempo depois, é
mandada à Escola de Pardais, um
instituto onde homens e mulheres
aprendem técnicas de sedução para
finsdeespionagem.
Em seus primeiros meses como
pardal, ela recebe uma importante
missão: conquistar o americano
Nathaniel Nash, um jovem agente da
CIA, responsável por um dos mais
in luentes informantes russos que a
agência já teve. O objetivo é fazê-lo
revelar a identidade do traidor, que
pertenceaoaltoescalãodoSVR.
Logo Dominika e Nate entram
num duelo de inteligência e táticas
operacionais,
apimentado
pela
atração irresistível que sentem um
pelooutro.
CAPÍTULO 1
APOS DOZE HORAS DE RDV
(Rota para Detecçã o de Vigilâ ncia),
Nathaniel Nash nã o sentia nada da
cintura para baixo. As pernas eram
toras de madeira que percorriam os
paralelepı́pedos de uma rua
secundá ria de Moscou. A noite já
caı́ra havia muito e ele ainda
provocava os vigilantes russos,
tentando atraı́-los para fora da toca.
Até o momento, nada — nenhuma
unidadeseesgueirandopeloscantos,
ningué m rastejando no chã o ou
surgindo
repentinamente
das
esquinasatrá sdele,nenhumareaçã o
a seus movimentos. Será que nã o
havia mesmo ningué m? De acordo
comanaturezadoJogo,nã odetectar
operaçõ es de vigilâ ncia era pior do
quesedescobrircercadoporespiões.
Era inı́cio de setembro, mas
havia nevado entre a primeira e a
terceira hora da rota, o que fora
muito ú til para acobertar a fuga de
Nate. No im daquela manhã ele
saltara do Lada Combi em
movimento conduzido por Leavitt
desdeaestaçã o.Semdizernada,seu
parceiro erguera trê s dedos para
sinalizar o tempo de que Nate
disporiaparapularassimqueaperua
dobrasse a esquina seguinte. Os
agentes do serviço federal de
segurançarusso,conhecidopelasigla
FSB, que vinham logo atrá s, nã o
notaram a fuga realizada naqueles
rá pidos trê s segundos, passando
direto por Nate — que se escondera
atrá s de um banco de neve — para
continuar seguindo o automó vel. Ele
deixara seu celular da embaixada,
parte de seu disfarce, dentro do
veı́culo — o FSB que icasse à
vontade para rastrear o aparelho
pelaspró ximastrê shoras.Durantea
manobra, ao rolar pela calçada, Nate
machucara o joelho, que enrijecera
nas primeiras horas mas agora
estava tã o dormente quanto o resto
deseucorpo.Enquantoescurecia,ele
haviapercorridometadedeMoscoua
pé,semdetectarnenhumesquemade
vigilâ ncia. Tudo indicava que ele
estavainvisível.
Nate pertencia a um pequeno
grupo de agentes da CIA treinados
especi icamente para operar sob
vigilâ ncianocampoinimigo.Quando
estava em açã o nas ruas, nã o havia
nenhum momento de dú vida ou
hesitaçã o, nenhum espaço para
apreensõ es de qualquer natureza,
muito menos para o medo do
fracasso. E naquela noite nã o estava
sendo diferente. Volta e meia ele
dizia a si mesmo:Ignore o frio que
comprime seu peito, continue dentro
de sua bolha sensorial e deixe que ela
expandajuntocomoestresse.Avisã o
estavaboacomosempre.Mantenhao
foconasmédiasdistâncias,identi ique
os pedestres e veículos recorrentes.
Observe cores e formatos. Chapéus,
casacos, carros. Sem pensar muito,
eleiaregistrandoosruı́dosdacidade
queescureciaà suavolta:ozum-zum
dos ô nibus elé tricos correndo pelos
cabossuspensos,osibilardospneus
na rua molhada, o crepitar do pó de
carvã oqueelemesmoiapisandoao
caminhar. A atmosfera recendia a
ó leo diesel e carvã o queimados; de
algum exaustor vinha o cheiro
barroso de uma sopa de beterraba
sendo preparada. Nate era um
diapasã o que reverberava no ar
geladodanoite,alertaeprontopara
reagir,masestranhamentecalmo.Ao
inaldedozehorasdeRDVnã ohavia
maisdúvida:eleestavainvisível.
No reló gio: 22h17. Faltavam
dois minutos para o agente de 27
anosseencontrarcomumalendada
contraespionagem, o homem que
paraaCIAeraajoiadacoroa,oativo
mais valioso do seu patrimô nio de
informantes. Marble estava a 300
metros dali, numa rua discreta. Com
60epoucosanos,oso isticadorusso
era major-general do SVR, o serviço
deoperaçõesexternasdeinteligência
que havia substituı́do a Primeira
DiretoriaGeraldaKGB.Marblevinha
prestando seus serviços havia
catorzeanos,umtempoconsiderá vel
levando-se em conta que à é poca da
Guerra Fria os informantes russos
nã o duravam mais que dezoito
meses. As fotos granuladas dos
agentes do passado iam passando
pelas retinas de Nate à medida que
ele esquadrinhava a rua: Penkovsky,
Motorin, Tolkachev, Polyakov... e
outros tantos, todos já mortos.Este,
não. Não no meu turno. Ele nã o
falharia.
Marble era agora chefe do
Departamento das Amé ricas do SVR,
um posto que lhe permita acesso
quase irrestrito. Formado pela
cartilha antiga da KGB, ele colhera
seuslouros(eestrelasdegeneral)ao
longodeumacarreiraqueserevelara
espetacular nã o só por conta dos
inú merossucessosoperacionaisque
obtivera no exterior, mas també m
por ter sobrevivido a todo tipo de
expurgos, reformas e disputas de
poder dentro do pró prio Kremlin.
Nã o tinha nenhuma ilusã o quanto à
naturezadosistemaaoqualservia,e
havia adquirido uma antipatia
natural pela falsidade, mas era um
pro issional dedicado e leal. Aos 40
anos, já coronel e servindo em Nova
York,receberaumarespostanegativa
ao consultar a central para saber se
podia levar a esposa a um
oncologista americano, e por conta
de mais essa demonstraçã o de
intransigê ncia sovié tica, ela morrera
numhospitalmoscovita,abandonada
nos corredores de uma enfermaria
qualquer.Depoisdisso,Marblelevou
oitoanosparasedecidireencontrar
uma abordagem segura junto aos
americanos a im de se oferecer
comoinformante.
Nasuaestreiacomoinformante
estrangeiro (ou agente, segundo a
nova terminologia da CIA), Marble
reportara-se calmamente a seus
superiores
(ou
operadores),
desculpando-se
em
tom
autodepreciativo pela escassez das
informaçõ es de que dispunha. Na
sede da CIA em Langley, o espanto
fora geral. O russo lhes presenteara
comumverdadeirotesourodedados
sobreasoperaçõ esdaKGBedoSVR,
e sobre o alcance que tinham nos
governos estrangeiros. Depois disso,
sempre que possı́vel ele aparecia
com as pé rolas mais cobiçadas: os
nomes dos americanos que
espionavam para a Rú ssia. Dessa
forma, tornara-se um informante
singulareinestimável.
No reló gio: 22h18. Nate dobrou
a esquina e foi caminhando pela
calçada esburacada da rua estreita,
pré dios residenciais em ambos os
lados, as á rvores sem folhas e
cobertas de neve. Mais à frente,
contra as luzes que vinham do
cruzamento, uma silhueta familiar
surgiu na esquina seguinte e veio a
seu encontro. O velho era um
pro issional: chegara exatamente na
hora marcada, nem um segundo a
maisouamenos.
Nate se animou ao vê -lo e até
esqueceu o cansaço. No mesmo
instante,começouavarreraruacom
os olhos em busca de algo fora do
co m um .Nenhum carro. Olhe para
cima. Nenhuma janela aberta,
nenhuma luz acesa. Olhe para trás.
Cruzamentos tranquilos. Nenhum
moradorvarrendoacalçada,nenhum
mendigo zanzando por perto. Apesar
detodasashorasqueelededicaraa
sua rota, de todas as tá ticas de
provocaçã o e toda a espera no frio,
bastaria um ú nico descuido de sua
parte para que o informante russo
fossedescobertoeaniquilado.Oque
paraeleseriamaisdoqueaperdade
umafontepreciosaeoinı́ciodeuma
crise diplomá tica: seria a morte de
um homem que ele aprendera a
admirar.Não,Natenãoiriafalhar.
Marble vinha sem nenhuma
pressa. Eles haviam se encontrado
duas vezes antes. O velho agente já
trabalhara com uma longa sé rie de
operadores
americanos
e
disciplinara cada um deles com
maioroumenorgraudesucesso.Em
alguns ele detectava uma burrice
galopante; noutros, via uma espé cie
de langueur, um desinteresse que
cedooutardepoderiaserevelarfatal.
Nate era diferente. Era interessado.
Tinha uma chama interna, um rigor,
uma capacidade de concentraçã o,
uma necessidade de acertar sempre.
Ainda era um tanto imaturo, e
bastante impulsivo també m. Marble
reconhecia isso, mas via com bons
olhosaquelefogoqueodiferenciava
dosdemais.
Ficou contente ao avistar o
jovem americano. Nate tinha altura
mediana, porte esguio e cabelos
pretos emoldurando um rosto de
nariz reto e olhos castanhos que
agorasemoviamdeumladoaoutro,
nã o nervosos, mas atentos a tudo o
quesepassavaàscostasdovelho.
— Boa noite, Nathaniel —
cumprimentouorusso.
Tinha um ligeiro sotaque
britâ nico, adquirido nos anos que
passara em Londres e atenuado
naqueles em que vivera em Nova
York. Falara em inglê s como um
capricho, uma demonstraçã o de
consideraçã o com seu operador,
apesar de Nate ser praticamente
luente na lı́ngua russa. Marble era
um homem atarracado, de olhos
escuroseprofundosladeandoonariz
gordo. As sobrancelhas brancas e
fartas combinavam à perfeiçã o com
sua juba ondulada e lhe conferiam o
aspecto tı́pico de um cosmopolita
elegante.
As normas ditavam que eles
usassem
seus
respectivos
codinomes, mas isso seria ridı́culo.
Marbletinhaacessoà sfotosdetodos
os membros da diplomacia
estrangeiraesabiamuitobemcomo
Natesechamava.
— E um prazer revê -lo. — Ele
avaliou o mais jovem por um
instante, depois disse: — Você está
bem?Parececansado.Quantashoras
durouarotadehoje?
Eram perguntas gentis, claro,
mas ainda assim ele queria saber.
Marblenuncadavanadaporcerto.
— Dobryj vecher, dyadya —
respondeuNate.Começaraatratá -lo
como “tio”, em parte para
demonstrar respeito, em parte
porque gostava mesmo do homem.
Eleconferiuoreló gio.—Dozehoras.
Asruasmeparecemlimpas.
Nate sabia que o mais velho
tinha bons motivos para se
preocuparcomorigordesuaRDV.
Marble nã o fez nenhum
comentá rio. Os dois caminharam
juntos em meio à s sombras que as
á rvores projetavam na calçada. A
noite estava gelada, ainda que nã o
ventasse. Eles tinham cerca de sete
minutosparaareunião.
Nateouviamaisdoquefalava,e
ouvia com atençã o. O mais velho
falava rá pido, mas sem precipitaçã o,
ummistodefofocaepoliticagensdo
trabalho, quem vinha ganhando
prestígionacasa,quemandavacoma
corda no pescoço. O resumo de uma
operaçã o recente, um recrutamento
realizadocomsucessopeloSVRnum
paı́s estrangeiro. Os detalhes
estavamtodosnosdiscos.Emborase
tratassedeumrelató riopro issional,
a conversa entre eles poderia muito
bem ser confundida com um papo
informalentredoisamigos.Otomde
voz de ambos, o contato visual, as
risadinhas de Marble. A ideia era
exatamenteessa.
Enquanto andavam, tanto Nate
quanto o informante refreavam o
impulsodesedarosbraçoscomopai
e ilho.Ambossabiamquenã opodia
haver nenhum contato fı́sico entre
eles.Ossosdoofı́cio:semprehaviao
risco de uma contaminaçã o com
metka, o pó que a espionagem russa
usava para marcar e seguir seus
suspeitos.Foraopró prioMarbleque
reportaraumprogramasecretopara
polinizar
agentes
da
CIA
supostamente
in iltrados
na
embaixada americana em Moscou.
Tratava-se do nitrofenil pentadienal
(NPPD), um composto quı́mico de
tom amarelado e aspecto granuloso.
Espargido em roupas, capachos e
volantes, era concebido para se
espalharfeitoopólenpegajosodeum
narcisoapartirdeumsimplesaperto
de mã o, por exemplo, e daı́ passar
paraumalapela,umafolhadepapel,
o que fosse. O pó marcava
invisivelmentetudoaquiloquefosse
tocado por um agente americano.
Portanto, um o icial russo cujas
mã os,roupasoumesaserevelassem
luorescentes com o NPPD — prova
de que ele tivera contato com o
agentepolinizado—estariaemmaus
lençó is. Marble havia deixado
Langleyempolvorosa ao relatar que
diversas variantes demetka eram
usadasempolinizadosdiferentes,de
modo que cada um pudesse ser
identificadocomprecisão.
A certa altura da caminhada,
Natetiroudo bolso uma embalagem
plá stica. Baterias novas para o
equipamento
de
comunicaçã o
secreto de Marble: trê s maços de
cigarro cinzentos e pesadı́ssimos. O
equipamento era usado para
transmitir notı́cias importantes e
mantercontatoduranteosintervalos
entre cada encontro pessoal. No
entanto, essas reuniõ es ao vivo,
apesar de breves e muito perigosas,
eram in initamente mais produtivas.
Era nelas que Marble passava seus
discos e pen drives com rios de
informaçõ es de inteligê ncia. Era
nelas també m que equipamentos e
rublos eram reabastecidos. Alé m
disso, havia o contato humano, a
oportunidade de trocar algumas
palavras e renovar aquela parceria
quasereligiosa.
Nateabriuaembalagemplá stica
diante de Marble e o russo pescou
com todo o cuidado as baterias
previamente
embaladas
num
laborató rio esterilizado na Virgı́nia.
Emseguida,depositoudoisdiscosna
mesmaembalagemedisse:
—Calculoquehajauns5metros
lineares de arquivos nestes discos.
Comosmeuscumprimentos.
Nate notou que o velho espiã o
aindausavametroslinearesnolugar
debytesparamedirosarquivosque
roubava.
— Obrigado — falou. — Incluiu
osresumos?
Osanalistasamericanoshaviam
suplicado a Nate que lembrasse
Marble de acrescentar pequenos
sumá rios a cada grupo de arquivos
demodoqueelespudessempriorizar
a traduçã o e o processamento das
informações.
— Sim, dessa vez eu lembrei.
També m acrescentei um novo
organograma no segundo disco,
algumas pequenas mudanças de
pessoal,nadademuitoassustador.E
uma agenda dos meus planos de
viagem para o ano que vem. Tenho
inventadomotivosoperacionaispara
viajar. Está tudo aı́ — concluiu,
apontandooqueixoparaosaquinho
plástico.
—Vaiser ó timo encontrar com
você fora de Moscou — comentou
Nate.
O tempo corria. Eles haviam
alcançado o im da rua e agora
voltavam devagar pela mesma
calçada.
Marble icou pensativo, depois
disse:
— Sabe... tenho re letido sobre
minha carreira, sobre a relaçã o com
meus amigos americanos, sobre o
futuroquemeespera.Eprová velque
eu ainda tenha alguns anos de
trabalho antes da aposentadoria.
Polı́tica na velhice... o pior dos
equı́vocos. Talvez ainda ique na
ativa por mais trê s ou quatro anos,
quem sabe dois. As vezes acho que
seria agradá vel me aposentar em
Nova York. O que você acha,
Nathaniel?
Nate parou e se virou
ligeiramente para ele. Ficou
preocupado. Que conversa era
aquela?Seriapossı́velqueseuagente
estivesse em algum tipo de apuro?
Marble ergueu a mã o como se fosse
apertar o braço dele, mas parou a
meiocaminho.
—Porfavor,nã osepreocupe—
falou. — Estou só pensando em voz
alta.
Nateolhoudeesguelhaparaele.
Viu que o russo parecia mesmo
tranquilo.Eranaturalqueumagente
pensasse na aposentadoria, que
sonhasse com o im dos riscos e
perigosdeumavidadupla,comodia
emquenã oprecisassemaissea ligir
cada vez que batessem à sua porta.
Essetipoderotinasemprelevavaao
cansaço,eocansaçosempreacabava
acarretandoerros.Nateseperguntou
se de fato detectara uma nota de
exaustã onavozdeMarble.Teriaque
ser cuidadoso ao descrever todas as
nuances daquela conversa no
relató rio que enviaria no dia
seguinte. O mais comum era que os
eventuais problemas de um caso
fossem imputados ao operador
designado, problemas dos quais ele
nãoprecisava.
— Tem alguma coisa errada?
Algum problema de segurança? —
perguntouNate.—Você sabequehá
uma conta bancá ria à sua espera.
Pode se aposentar onde quiser. E
contarsemprecomonossoapoio.
— Nã o, está tudo bem. Ainda
temos trabalho pela frente. Depois
poderemos descansar — retrucou
Marble.
— E uma honra trabalhar com
você — disse Nate, e foi sincero. —
Sua
contribuiçã o
tem
sido
inestimável.
O velho olhava para baixo
enquanto eles seguiam pela rua
escura.Oencontrojá seestendiapor
seisminutos.Horadepartir.
— Está precisando de alguma
coisa?—quissaberNate,efechouos
olhos para se concentrar. Baterias
entregues,
discos
recebidos,
sumá rios incluı́dos, agenda das
viagensparaoexterior.Aú nicacoisa
que faltava era marcar o pró ximo
encontro. — Acha que podemos nos
reverdaquiatrê smeses?Dezembro,
inverno brabo. De repente podemos
nos encontrar nesse local novo, o
Eagle,pertodorio.
—Sim,claro—disseMarble.—
Mando uma mensagem com uma
semana de antecedê ncia para
confirmar.
Elesseaproximavamdamesma
esquina de antes, caminhando
devagar rumo à luz mais intensa do
cruzamento. Um letreiro de neon
indicavaaentradadometrô dooutro
ladodarua.
Nate sentiu um frio sú bito
percorrer a espinha quando avistou
umcarroatravessandolentamenteo
cruzamento,umsedã Ladadecré pito
com dois homens na frente. Ele e o
russoserecostaramà fachadadeum
pré dio, sumindo por completo numa
sombra. Marble també m vira o sedã
— era tã o experiente em
esquadrinhar as ruas quanto seu
jovemoperador.Umsegundoveı́culo,
um Opel mais novo, atravessou na
direçã o oposta com dois homens
olhando para o outro lado. Ao virar
para trá s, Nate viu que um terceiro
automó vel acabara de dobrar a
esquina e vinha descendo a rua em
baixa velocidade, apenas com os
faroletesacesos.
— E uma varredura —
sussurrou Marble. — Você nã o
estacionouporaqui,estacionou?
Nate balançou a cabeça em
negativa. Nã o, porra, claro que nã o.
Seucoraçã oretumbavanopeito.Por
um rá pido instante ele olhou para
Marble e em seguida os dois agiram
em total harmonia, como se fossem
uma só pessoa. Ignorando ometka,
esquecendo de todo o resto, Nate
ajudou Marble a despir o casaco
escuro ao mesmo tempo em que o
virava pelo avesso, transformando o
trajeduplafaceemoutrototalmente
diferente, mudando o corte e
deixando-o com uma cor bem mais
clara, manchado e puı́do nas
costuras.Depoisoauxiliouavesti-lo
de novo. De um bolso interno do
pró priocasaco,Natetirouumchapé u
de pele roı́do pelas traças (parte de
seu disfarce) e o enterrou na cabeça
do informante. Em seguida, Marble
colocou os ó culos que ele mesmo
levara, um par pesado com uma das
hastes colada com ita adesiva. Por
im, Nate en iou a mã o em outro
bolso e pescou lá de dentro uma
bengalaretrá tildetrê spartes,abriuacomumsacolejoeaposicionouna
mãodorussocomtodaarapidez.
O moscovita de meia-idade nã o
estava mais lá ; fora substituı́do em
oito segundos pelo aposentado
maltrapilho que agora coxeava rua
abaixocomoauxı́liodesuabengala.
Nate conduziu o informante
gentilmenteparaaentradadometrô
do outro lado do cruzamento. Sabia
quenã oeraoprocedimentocorreto,
quecorreriaoriscodeseracuadono
subsolo de uma estaçã o, mas se
Marbleconseguisseescapardaliteria
valido a pena. O disfarce do russo
precisariabastarcontraasinú meras
câ meras de segurança ao longo da
plataforma.
— Vou tirar esse pessoal daqui
— disse Nate enquanto Marble se
preparava para atravessar o
cruzamento.
Oespiã oveteranovirou-separa
ele,sé rioporé mafá vel,esedespediu
com uma piscadela.Esse homem é
umalendaviva,pensouNate.Masnã o
havia tempo para tietagem. Sua
prioridade agora era distrair aquela
pequena frota de vigilâ ncia,
chamando-a para si e afastando-a o
má ximopossı́veldeMarble.Demodo
algum poderia ser detido, pois, se
aqueles homens encontrassem os
discos que ele levava no bolso, a
consequê ncia seria a mesma da
detençã o do pró prio Marble: o
informanteseriaeliminado.
Nãonoturnodele.
Nate sentia a cabeça e a
garganta queimarem com o ar frio
que inalava. Os mú sculos do
abdô men se contraı́am pelo mesmo
motivo. Erguendo a gola do casaco,
atravessouaruadiantedocarroque
percorrera metade do quarteirã o.
Decerto eram homens do FSB, que
operavaexclusivamentenoterritó rio
da Federaçã o Russa. Estavam
jogandoemcasa.
Omotoristaacelerouomotorde
1200cc do Lada e acendeu o farol
alto, que resplandeceu na rua
molhada. Nate correu para o
quarteirã oseguintee,aochegarlá ,se
jogounopoçodaescadaquelevavaa
um apartamento de subsolo, um
lugar imundo que fedia a mijo e
vodca.Ouviuoveı́culoseaproximar,
entã o se deu conta de que nã o
poderia icarali,queteriaqueseguir
fugindo pelos becos da vizinhança,
pelas passarelas de pedestres, pelas
escadas que levavam ao rio.Procure
barreiras,linhasferroviárias,mudede
direção assim que sumir de vista.
Engane os algozes, se esgueire para o
outro lado das barricadas. Reló gio:
quaseduashoras.
Exausto, ora ele corria, ora
caminhava,oraseagachavaentreos
carros estacionados, ouvindo os
motores se aproximarem em um
momento, se afastarem no seguinte,
depois voltarem a se aproximar,
tentando chegar perto o bastante
para ver o rosto dele, colocá -lo de
bruçosnochã ocomorostocontrao
asfalto, enterrar as mã os em seu
bolso. Ele podia ouvir a está tica dos
rá dios que eles usavam, os berros
quedavam,seudesesperocrescendo.
Seu primeiro instrutor de
vigilâ ncia durante o perı́odo de
treinamento lhe dissera:Você deve
sentirarua,Sr.Nash.Nãoimportaseé
a Wisconsin Avenue ou a Tverskaya:
você precisa sentir a rua. Era
exatamente isso que ele fazia agora,
mas os russos eram muitos, ainda
que nã o soubessem sua localizaçã o
exata.
Pneus
cantavam
nos
paralelepı́pedos molhados enquanto
os carros zanzavam de um lado a
outro. A boa notı́cia era que eles
ainda nã o tinham coordenadas
su icientesparapersegui-loapé ,ea
má notı́cia era que o tempo corria a
favor deles. Ainda bem que
continuavam na sua cola, o que
signi icava que nã o estavam focados
em Marble. Nate fez uma rá pida
oraçã o, agradecendo por ter
conseguidodespacharovelhoparao
metrô e por aquela equipe de
vigilâ ncia nã o o ter seguido desde o
inı́cio, pois isso signi icaria que um
segundotimeestariaatrá sdeMarble
naquele exato momento. Nã o,
ningué m botaria as mã os no agente,
seuagente,tampouconosdiscosque
ele havia lhe passado e que eram
nitroglicerina pura. Os pneus
sibilantes inalmente se afastaram e
o silê ncio tomou conta da rua de
novo.
Reló gio: mais de duas horas.
Com as pernas e a coluna em
frangalhos, a visã o turvada nos
cantos, Nate seguiu por uma ruela,
esgueirando-se no escuro, torcendo
para que eles tivessem ido embora,
imaginando os carros de volta na
garagem, enlameados, estalando de
tã o quentes enquanto os homens
recebiam
uma
merecida
descomposturanogabinetedochefe.
Fazia vá rios minutos que Nate nã o
via carro algum, e deduziu que já
estivesseforadoperı́metrodebusca
daequipe.Anevevoltaraacair.
Pouco depois, no entanto, um
carro parou de repente na esquina,
deu ré e entrou na ruela, os faró is
iluminandoos locosquecaı́am.Nate
se espremeu contra a fachada mais
pró xima, tentando reduzir a pró pria
silhueta e os contrastes, mas estava
certo de que o tinham visto. Assim
que os faró is o localizaram, o
motorista acelerou em sua direçã o,
aproximando-se do lado da ruela
onde ele se encontrava. Perplexo,
Natemalacreditouquandooveı́culo
continuouacelerandocomaportado
passageiroapoucoscentı́metrosdas
fachadas, os limpadores de parabrisa trabalhando a pleno vapor e,
atrá sdeles,doisrostosconcentrados.
EssesanimaisdoFSB...Seriapossı́vel
que nã o o estivessem vendo? De
sú bito,Natesedeucontadequeeles
oviammuitobemequeseuobjetivo
parecia ser esmagá -lo contra a
parede.É uma regra tácita que as
equipes de vigilância nunca, jamais,
usem de violência quando seu alvo é
um diplomata estrangeiro, os
instrutores haviam dito. Nesse caso,
bem, que diabo aquela gente estava
fazendo? Nate olhou para trá s e viu
que a entrada da ruela estava longe
demais.
Sinta a rua, Sr. Nash. Foi entã o
que elesentiu,poucoà frente,ocano
de escoamento que se prendia à
fachada de tijolos por meio de
grampos metá licos, um só lido cano
deferrofundidonoqualelesejogou
para depois escalar, usando os
gramposcomoapoio.Já estavaaltoo
bastantequandoergueuaspernaseo
carropassouporbaixodele,batendo
ruidosamente contra o cano e
achatando-o na base. O motor
morreu e Nate, sem forças para
continuar pendurado, saltou para o
teto do carro e de lá para o chã o. A
porta do motorista se abriu e um
homem grande, usando chapé u de
pele, começou a sair. Equipes de
vigilâ ncia jamais usam de violê ncia?
Nate nã o estava disposto a pagar
para ver. Sem hesitar, bateu a porta
na cabeça do homem, ouviu o berro
dele,viuseurostocontorcidodedor
e deu mais duas pancadas fortes e
rá pidas.Osujeitocaiudevoltaparao
interior do carro e o companheiro
dele,sempoderdescerporseulado,
já estava se espremendo rumo à
porta traseira. Hora de voltar a
correr,pensouNate,edisparouruela
aforaatédobraraesquina.
Uns trê s pré dios adiante ele se
viu à porta de um restaurante
minú sculo e imundo, aberto apesar
da hora, as luzes vazando para a
calçada. Ao escutar o carro rugir de
novonaruela,talveztentandosairde
ré , ele rapidamente entrou no
restaurantevazioefechouaportaà s
suas costas. Um ú nico cô modo, nã o
mais que um balcã o de serviço nos
fundos, algumas mesas decré pitas,
paredesmanchadaseumacortinade
renda encardida sobre a janela. Do
outroladodobalcã o,umavelhacom
apenas dois dentes pontudos lia seu
jornal enquanto ouvia um rá dio de
sinalmuitofraco.Aseulado,emcima
de um fogã o elé trico, duas panelas
surradas de alumı́nio quase
transbordavamcomasopaquehavia
nelas.Oambienterecendiaacebola.
Fazendoumesforçoparaqueas
mã os parassem de tremer, Nate
caminhou até o balcã o e, em russo,
pediuumpratodesopadebeterraba
à mulher de olhar vazio. Em seguida
serecostouà janelafechadaeaguçou
os ouvidos. Um carro passou na rua,
depois outro, e só . No rá dio, um
comediantecontavaumapiada:
Krushchev visitou uma fazenda
deporcosefoifotografadoporlá .Na
redaçã o do jornalzinho da cidade,
houve uma acalorada discussã o
sobre a melhor legenda para a foto.
“Camarada Krushchev entre os
Porcos”? “Camarada Krushchev e os
Porcos”? “Porcos e o Camarada
Krushchev”? Nã o, nada disso estava
bom. Por im o editor bateu o
martelo: “Camarada Krushchev, o
terceirodaesquerdaparaadireita.”
A velha riu do outro lado do
balcão.
Apó s mais de doze horas sem
comeroubebernada,Natedevorava
sua sopa grossa com uma colher
trê mula. A velha o itou por algum
tempo, depois se levantou e
contornouobalcã oparairaté aporta
da frente. Nateacompanhou o
movimento dela de esguelha. Ela
entreabriuaporta,olhouparaambos
osladosdaruaedepoisafechoude
novo. Voltou a seu lugar atrá s do
balcã o e pegou o jornal que deixara
ali. Assim que terminou de comer,
Nate se levantou e deixou alguns
copeques sobre o balcã o. A velha
encarquilhada contou as moedas,
varreu-asparadentrodeumagaveta,
ergueuoolharparaeleedisse:
—Estácerto.VácomDeus.
Nateevitouencará -laeentã ofoi
embora.
Dali a uma hora, encharcado de
suoretrê mulodecansaço,eleen im
atravessouaguaritadocomplexoda
embaixada americana. Os discos de
Marbleestavamen imemsegurança.
Aquele nã o era o modo correto de
encerrarumanoite de trabalho, mas
ohorá riomarcadoparasuacoletajá
passara havia muito tempo. Sua
entradafoidevidamenteprotocolada
eemmeiahoraoFSB(elogodepois
o SVR) foi informado de que tinha
sido o jovem Sr. Nash, do setor
econô micodaembaixadaamericana,
quempassaraboapartedanoitefora
de alcance. E eles achavam que
sabiamporquê.
SOPA DE BETERRABA DA VELHA
Derreter manteiga numa panela
grande; refogar cebolas picadas até
que fiquem transparentes; acrescentar
três beterrabas raladas, um tomate
picado, caldo de carne, vinagre, açúcar,
sal e pimenta. O caldo deve ficar
agridoce. Deixar ferver e cozinhar por
uma hora. Servir quente com uma
colherada de creme azedo e endro
picado.
CAPÍTULO 2
NAMANHASEGUINTE,OCLIMA
nã oeranadabomemdoisgabinetes
diferentes, em pontas opostas de
Moscou. Na sede do SVR, em
Yasenevo, o primeiro vice-diretor
Ivan(Vanya)DimitrevichEgorovliao
relató rio sobre as operaçõ es da
equipe de vigilâ ncia do FSB da
vé spera. Brandos raios de sol
atravessavam as grossas vidraças
que davam para a loresta de
pinheirosemtornodopré dio.Alexei
Zyuganov,odiminutochefedaLinha
KR de contrainteligê ncia, estava de
pé diante da mesa de Egorov — nã o
foraconvidadoasesentar.Osamigos
mais pró ximos (ou talvez apenas a
mã e) chamavam o peçonhento anã o
de“Lyosha”,masnãonaquelamanhã.
Aos65anos,VanyaEgoroverao
major-general mais antigo no SVR.
Tinha uma cabeça enorme com uma
coroa de cabelos grisalhos, olhos
castanhoseafastados,bocacarnuda,
ombros
largos,
uma
pança
respeitá vel e mã os grandes e fortes.
Tudo isso lhe conferia o aspecto de
um gigante de circo. Estava usando
um elegante terno escuro de tecido
pesado,feitosobmedidanoateliê de
Augusto Caraceni, em Milã o, com
uma gravata azul-marinho e sapatos
de verniz novinhos em
assinadosporEdwardGreens.
folha
Como tantos outros, Egorov
começara a carreira como o icial de
campo da KGB, mas, depois de um
sem-nú mero de missõ es nos con ins
mais tó rridos da Asia, chegara à
conclusã odequenã oeraexatamente
talhado para o trabalho em campo.
DevoltaaMoscou,souberadriblaras
virulentas disputas de poder na
organizaçã o e ocupara diversos
postos de grande visibilidade, a
princı́pio no setor de planejamento,
depois na administraçã o e, por im,
no recé m-criado posto de inspetor
geral. Exercera um importante papel
na mudança da KGB para SVR em
1991, escolhera o lado certo das
trincheirasporocasiã odofracassado
golpe
de
Kryuchkov
contra
Gorbachev,em1992,eem1999fora
notado pelo apá tico vice-primeiroministro Vladimir Vladimirovich
Putin, um escorpiã o de cabelos
louros e lâ nguidos olhos azuis. No
ano seguinte, Yeltsin estava fora, e
Putin, contrariando todas as
expectativas,assumiraocomandodo
Kremlin. Vanya Egorov icara
esperando o telefonema que sem
dúvidanãotardaria.
“Quero que você cuide das
coisas pra mim”, Putin lhe dissera
durante uma entrevista de apenas
cinco minutos no imponente
gabinete presidencial do Kremlin, a
exuberante madeira dos lambris
re letindo-se de um modo sinistro
nosolhosdonovopresidente.Ambos
sabiam que “coisas” eram aquelas, e
Vanya voltara para Yasenevo, a
princı́pio como terceiro vice-diretor,
depois como segundo, até que
passara a ocupar o gabinete do
primeirovice-diretor,bememfrente
à suı́te de salas do diretor. Fazia um
anoqueestavalá.
O clima icara tenso antes das
eleiçõ esnoú ltimomê sdemarço,os
malditosjornalistase os partidos de
oposiçã opraticamentesemcontrole,
oquenuncaaconteceraantes.OSVR
procurara
alguns
dissidentes,
operara com discriçã o nas diversas
zonas eleitorais e enviara relató rios
sobre alguns parlamentares da
oposiçã o.
Um
oligarca
colaboracionista
havia
sido
orientado a formar um novo partido
apenas com o intuito de canalizar
votosedividirocontingenteinimigo.
Vanya, por sua vez, arriscara
tudoaosugerirpessoalmenteaPutin
que os ocidentais, sobretudo os
americanos,
fossem
responsabilizados por insu lar as
inú meras manifestaçõ es populares
que haviam precedido as eleiçõ es. O
candidato adorara a sugestã o e a
aceitara
sem
pestanejar,
já
contemplandooretornodaRú ssiaao
cená rio internacional. Chegara ao
ponto de cumprimentar Vanya com
tapinhas nas costas, talvez porque
e l e stivessem trajetó rias tã o
parecidas, talvez porque ambos
houvessem realizado tã o pouco
comoo iciaisdeinteligê nciadurante
suasbrevesmissõ esforadopaı́s,ou
talvez porque um informante fosse
capaz dereconhecer outro nashnik.
Fosseoquefosse,Putingostavadele,
e Vanya Egorov sabia que seria
recompensado. Estava pró ximo das
alturas. Tinha tempo de serviço e
poder para continuar subindo. E era
issoqueelequeria.
Ocorre que o capataz de uma
fazenda de cobras inevitavelmente
será picadosenã oagircomextrema
cautela. O Kremlin atual era todo
ternos e gravatas, sorridentes
reuniõ esdecú pulaecomunicadosde
porta-vozes, mas qualquer um com
tempo su iciente de casa poderia
atestar que, na essê ncia, pouco ou
nadahaviamudadodesdeostempos
de Stalin. Amizade? Lealdade?
Proteçã o? Bastava um ú nico tropeço
operacional ou diplomá tico, ou pior,
alguma falha que colocasse o
presidenteemmauslençóis,paraque
uma tempestade desabasse na
cabeçadoinfeliz,umaburyacontraa
qualnãohaviaqualquerabrigo.
Vanya balançou a cabeça.Chert
vozmi. Merda. Aquele episó dio com
Nash era exatamente o que elenão
precisava.
— Nã o havia outra equipe de
vigilâ ncia menos incompetente? —
rugiuele.Tinhaohá bitodeexagerar
um pouco no drama quando estava
diantedesubordinados.—Nã ohá a
menordú vidade que esse merdinha
americano foi se encontrar com
alguma fonte ontem à noite. Como é
possı́vel ele ter icado fora do nosso
radarpormaisdedozehoras?Aliás,o
queessesvigilantesestavamfazendo
naquelapartedacidade?
— Parece que estavam
procurando
por
tra icantes
chechenos.Só DeussabeoqueoFSB
anda fazendo ultimamente —
explicouZyuganov.—Aquelebairro...
aquiloláéumantro.
—Maseabatidanaruela?Que
diabofoiaquilo?
— Nã o está claro. Eles
acreditavamteracuadoumchecheno
armado. E o que estã o dizendo, mas
acho difı́cil. O mais prová vel é que
tenham se deixado levar pelo
entusiasmodabusca.
— Kolkhozniki. Camponeses
teriamsesaı́domelhor.Voupedirao
diretor que converse com o
presidentenapró ximasegunda-feira.
Nã o podemos permitir que
diplomatas estrangeiros sejam
achacados na rua, mesmo que
estejam se encontrando com
traidores russos — disse Egorov, e
bufou.—OFBIvaicomeçaraatacar
nossos operadores em Georgetown
se esse tipo de coisa voltar a
acontecer.
—També mvouenquadrarmeu
pessoal,general.Osvigilantesvã ose
emendar, ique tranquilo. Sobretudo,
se me permite sugerir, se lhes
arranjarmos pequenas temporadas
dekatorga.
Egorov encarou seu chefe de
contrainteligê ncia com o rosto
impassı́vel, notando que por pouco
ele nã o salivara ao usar o termo
tsarista paragulag. Por Deus. Alexei
Zyuganoveraumcarabaixoedepele
escura, com orelhas de abano e um
rosto achatado que mais lembrava
uma frigideira. Dentes podres e um
risinho perene completavam o
arqué tipoLubyanka.Apesardetudo,
era um subordinado con iá vel e
malévoloquetinhalásuautilidade.
— Podemos até criticar o FSB,
mas uma coisa eu lhe garanto: esse
americano está se encontrando com
algué mimportante.Umpeixegraú do
que aqueles imbecis nem sequer
tiveramcapacidadedeidenti icar.—
Egorov jogou seu relató rio sobre a
mesa.—Portanto,Zyuganov,você já
pode imaginar qual será sua missã o
daquiprafrente,nã opode?—Elefez
uma pausa, e depois: — Descobrir.
Quem. Ele. E — falou, batendo o
indicador gordo no tampo da mesa
para pontuar cada palavra. — Quero
que você me traga a cabeça desse
ilho da puta traidor dentro de um
cestodepalha.
— Será minha prioridade —
retrucou Zyuganov, ciente de que,
sem o mı́nimo de informaçõ es para
seguiremfrente,semqualquerpista
especı́ icadoinformantenaCIA,sem
alguma sorte nas ruas, eles nã o
teriamalternativaanãoseresperar.
Por ora ele nã o poderia fazer
mais
que
investigaçõ es
e
interrogató rios, apenas para nã o
perderocostume.
Egorovolhoumaisumavezpara
o relató rio inú til. O ú nico fato
con irmado era a identi icaçã o de
Nathaniel Nash ao portã o da
embaixada.Nã ohavianingué mmais
que o tivesse visto para fornecer
algumadescriçã o.Omotoristadeum
doscarrosdaequipe(cujafoto,com
um curativo sobre o olho esquerdo,
fora incluı́da no documento, talvez
para justi icar o incidente na ruela)
reconhecera o americano, assim
como a sentinela à porta do
complexoresidencialdaembaixada.
Aquela histó ria poderia acabar
muito bem ou muito mal, pensou
Egorov. Muito bem se um badalado
caso de espionagem fosse resolvido
pormé ritodeleeparaadesgraçados
americanos. Muito mal se um iasco
viesse acender o pavio curto de seu
padrinho no Kremlin, o que seria o
im de sua carreira. Dependendo da
ira do presidente, era bem possı́vel
que ele fosse parar num beliche ao
lado de Khodorkovsky, o oligarca
arruinado, na Colô nia Penal Nú mero
9deSegezha.
Ao avaliar morbidamente as
oportunidades e consequê ncias
polı́ticas de toda aquela confusã o,
naquelamanhã elehaviarequisitado
e lido oliternoye delo, ou arquivo
operacional, de Nate: “Jovem,
disciplinado, dedicado, luente em
russo. Nenhum excesso com
mulheres ou á lcool. Sem vı́cio em
drogas.Aplicadocomochefedosetor
econô mico da embaixada. E icaz no
trabalho de espionagem; jamais
telegrafa o intuito de suas missõ es.”
Molokosos,resmungaraEgorovaoler
tudoisso.Ianquezinhodemerda.
Ergueu os olhos para seu chefe
de contrainteligê ncia. Zyuganov
sentiuoscabelosseeriçaremnanuca
e achou que devia demonstrar um
pouco mais de entusiasmo. Ivan
Egorov nã o tinha muita experiê ncia
em operaçõ es de campo, mas
pertencia a uma espé cie bastante
comum na fauna do SVR: a dos
burocratas
politicamente
ambiciosos.
— Sr. vice-diretor, o melhor
caminho para descobrirmos a
identidade do traidor que está
vendendonossossegredosé fecharo
cerco em torno desse ianque que se
achaumheró i.Segui-loaondeelefor.
Colocartrê sequipesnacoladele,24
horas por dia. Ordenar, ou melhor,
pedir ao FSB que aumente a
vigilâ ncia. Vamos deixar que eles
monitorem o homem e depois, no
momento certo, entramos com
nossasequipes.Temosquedescobrir
onde será o pró ximo encontro.
Porque sem dú vida haverá outro
encontrodaquiatrêsouseismeses.
Egorov gostou do que ouviu.
Repetiria aquilo quando fosse falar
com o diretor mais tarde no mesmo
dia.
— Muito bem, entã o. Ao
trabalho. Me avise assim que tiver
mais detalhes do que pretende fazer
para que eu possa manter o diretor
informado sobre a nossa estraté gia
— ordenou Egorov, e abanou a mã o
paradispensarseusubordinado.
“Sobre anossa estraté gia?”,
pensouZyuganov,esaiu.
O complexo da embaixada
americana icava a noroeste de
Yasenevo, no distrito de Presnensky,
entreoKremlineumacurvabastante
acentuada do rio Moscou. Naquela
mesma tarde, outra conversa
desagradá vel acontecia no gabinete
do chefe de estaçã o da CIA, Gordon
Gondorf. Assim como o chefe da
LinhaKR,Natenã oforaconvidadoa
sesentareagoraestavadepé diante
damesadeGondorf.Osjoelhosainda
doíamdanoiteanterior.
Enquantooporteavantajadode
Egorov lhe dava uma aparê ncia de
gigante de circo, a estatura e as
feiçõ es angulosas de Gondorf o
faziam lembrar, com assombrosa
precisã o, um cã o de circo da raça
Whippet.Tinha1,70metrodealtura,
cabelosralos,olhosmuitoredondose
pró ximos demais, pé s minú sculos. O
que lhe faltava em estatura lhe
sobrava em malı́cia. Gondorf (ou
Gondork, como era chamado pelas
costas, uma referê ncia à gı́ria
americana para “panaca”) nã o
con iava em ningué m, tampouco se
davacontadaironiapresentenofato
de ele mesmo també m nã o inspirar
con iança. Vivia num inferno secreto
que apenas seus pares de
espionagempoderiamconhecer.
— Li seu relató rio operacional
de ontem — disse ele, mas em tom
neutro,quasehesitante.—Deacordo
comoqueescreveu,pareceque icou
satisfeitocomoresultado.
Nate sentiu um frio na barriga,
antecipandoabroncaqueestavapor
vir.Defendasuaposição,pensou.
— O agente retornou em
segurança. Acho que é um bom
resultado,sim—afirmou.
SabiamuitobemaondeGondorf
queria chegar, mas deixaria que ele
fizesseissoporcontaprópria.
— Nosso ativo mais valioso e
prolı́ ico quase foi preso ontem à
noite.Porsuaculpa.Seuencontrofoi
lagrado por uma equipe de
vigilância,peloamordeDeus!
Nateprecisouconteraraiva.
— Fiz uma rota de doze horas
ontem. Aliá s, uma rota quevocê
aprovou. Con irmei meu status. Eu
estava invisı́vel quando cheguei ao
localdoencontro,eMarbletambém.
— Entã o como você explica a
presença das equipes de vigilâ ncia?
— questionou Gondorf. — Nã o é
possı́vel que acredite que elas
estavamaliporacaso.Você nã oacha
isso, acha? — emendou com
sarcasmo.
— Foi exatamente isso que
aconteceu — retrucou Nate. — E
impossı́vel que eles estivessem me
procurando. Aquela merda toda na
ruela...Elesnã ochegaramaliporque
estavammeseguindodesdeoinı́cio.
Nã oé possı́vel.Estavamaliporoutro
motivo e reagiram. Nem izeram
questã o de ser discretos. Marble foi
emboraemcompletasegurança.
Nate nã o pô de deixar de notar
que para o chefe nã o havia a menor
importâ ncia que o tivessem tentado
esmagar contra uma parede. Outra
pessoa já estaria na sala do
embaixador,exigindo,dedoemriste,
que a embaixada formalizasse um
protestojuntoàdiplomaciarussa.
— Nã o diga bobagens —
devolveu Gondorf. — A noite de
ontem foi um desastre completo.
Onde você estava com a cabeça
quando colocou nosso homem no
metrô ? Aquilo é o mesmo que uma
ratoeira! Alé m disso, ignorou todas
as normas de procedimento quando
oajudouavirarocasacopeloavesso.
Eletinhaquefazerissosozinho,você
sabe muito bem! E se neste exato
momento ele estiver icando todo
verdesobumalanternafluorescente?
— Foi uma decisã o consciente.
Julgueiqueaprioridadeeracolocá -lo
num disfarce e tirá -lo dali o mais
rá pido possı́vel. Marble é um cara
experiente,semdúvidajáselivroudo
casaco e da bengala. Podemos
mandarumamensagempraele,eeu
con irmotudoissononossopró ximo
encontro—propôsNate.
Aconversaeraangustiantepara
ele, sobretudo porque o chefe nã o
tinha o menor conhecimento das
ruas.
— Nã o haverá pró ximo
encontro. Pelo menos nã o com você ,
visado do jeito que está . Ontem à
noite você foi identi icado umas dez
vezes! Sua fachada no Setor de
Economiafoiparaobrejo,e,deagora
emdiante,podeacreditar:metadedo
serviço de vigilâ ncia de Moscou vai
icar no seu pé — disse Gondorf,
visivelmentesaboreandoaspalavras.
— Eles sempre souberam da
minha posiçã o de fachada. Sempre
tive vigilantes no meu pé , você sabe
disso. Posso muito bem continuar
falando com os nossos ativos —
argumentou Nate, apoiando-se no
espaldardeumacadeira.
Sobre a mesa do chefe havia
uma granada esculpida em madeira
com os seguintes dizeres na base:
DEPARTAMENTODERECLAMAÇOES.
PARA UM ATENDIMENTO MAIS
RÁPIDO,PUXEOPINO.
— Nã o. Nã o dá mais pra você
continuar se encontrando com os
agentes—decretouGondorf.—Você
agoraéumímãdeproblemas.
—Serealmentecolocaremessa
gente toda no meu pé , eles vã o à
falê ncia — raciocinou Nate. — Aliá s,
a ideia até que nã o é má : icar
zanzandodecarroporaı́duranteseis
meses só pra sugar os recursos e o
contingente deles. Quanto mais
vigilâ ncia na minha cola, mais fá cil
serámanipulá-los.
Defendasuaposição.
Gondorf nã o icou nem um
pouco impressionado, muito menos
convencido. O jovem á s da
espionagem
representava
um
enorme risco pessoal para ele, que
havia muito tempo sonhava com a
possibilidade de um posto no alto
escalã o apó s sua volta para
Washington.Aquelerisconã ovaliaa
pena.
— Nash, estou recomendando
que sua temporada em Moscou seja
abreviada. Você está muito visado
neste momento, e é só uma questã o
de tempo até ser apanhado com um
dos nossos informantes. — Ele
ergueuorostoparadizer:—Masnã o
se preocupe. Faço questã o que
obtenhaumaótimatransferência.
Nate icouperplexo.Até mesmo
umespiã ode primeira viagem sabia
que uma temporada abreviada por
umchefedeestaçã o—qualquerque
fosse a razã o — era o bastante para
umacarreirairporá guaabaixo.Alé m
disso, nã o havia a menor dú vida de
queGondorfespalhariaqueelehavia
metido os pé s pelas mã os. Sua
reputaçã o extrao icial receberia um
golpe do qual seria muito difı́cil se
recuperar. Os novos trabalhos e as
possı́veis
promoçõ es
icariam
seriamente comprometidos. Nate
experimentou a velha sensaçã o de
que estava afundando em areia
movediça.
Por outro lado, tinha a
consciê nciaabsolutamentetranquila:
nanoiteanteriorelesalvaraavidade
Marble com uma decisã o rá pida e
acertada. Olhou para baixo, para o
rosto impassı́vel do chefe. Os dois
sabiam muito bem o que estava
acontecendoali,e por quê . Portanto,
para Nate, nã o fazia sentido evitar
levar aquela conversa até as ú ltimas
consequências.
— Gondorf, você é um covarde
ilho da puta que se borra de medo
das ruas. Resolveu me fritar só pra
tirar o seu da reta. Sabe, foi muito
educativotrabalharnestaestação.
Ao sair da sala, observou que a
ausê ncia de um ataque de fú ria por
parte de Gondorf dava uma boa
medidadequemeleera.
***
Cortado antes do im da
temporada. Melhor isso do que ser
responsabilizado pela morte de um
informante, por desvio de recursos
ou pela falsi icaçã o de relató rios.
Ainda assim, um desastre. Nate nã o
sabiaaocertocomoissoafetariaseu
futuro, mas tinha certeza de que a
notı́cia se espalharia no instante em
que o telegrama de Gondorf fosse
recebido no QG. Alguns de seus
colegasdetreinamentojá faziamseu
segundo turno, subindo de degrau.
Segundo ouvira dizer, um deles já
ocupava o posto de che ia numa
estaçã o menor. Os meses de
treinamento adicionais em Moscou
haviam lhe custado algum atraso, e
agoraisso.
Por mais que tentasse se
convenceranãofazertempestadeem
copo d’á gua, Nate nã o parava de se
remoer. Crescera ouvindo que era
importante nã o icar para trá s, que
era fundamental vencer. A mansã o
palladiana em que fora criado à s
margens do rio James, na Virgı́nia,
nã oeramuitodiferentedeumringue
deluta,umringuepeloqualjáhaviam
passado muitas geraçõ es da famı́lia
Nash.Oavô deNateedepoisseupai,
respectivamenteofundadoreosó cio
majoritá rio do escritó rio de
advocaciaNash,Waryng&Royallem
Richmond, haviam se alternado na
cabeceiradaamplamesadejantare
aplaudido os irmã os mais velhos de
Nate (um com seus cachinhos
desgrenhados à la Jú lio Cesar e o
outrocomasmadeixaspartidaspara
oladocomtodoocuidado)enquanto
eles se engal inhavam feito dois
capetas nos tapetes da sala,
aprendiam o bá sico do Direito,
levavam ao altar beldades peitudas
daquelas que se calam e erguem os
olhosazuis,obedientes,assimqueos
maridoschegamemcasa.
Mas e quanto ao jovem Nate? O
que vamos fazer com ele? Era isso
que volta e meia se perguntavam.
Formado em literatura russa pela
Johns Hopkins, Nate havia buscado
refú gio no campo espiritual e
ascé tico de Gó gol, Tchecov e
Turgenev,omundomaisdistantede
Richmondqueconseguiraencontrar.
Os irmã os, assim como o pai,
achavam aquilo um desperdı́cio.
Esperavam que ele també m se
formasse
em
Direito
pela
Universidade de Richmond, para a
qual
fora
pré -aprovado,
e
posteriormente se juntasse ao
escritó rio da famı́lia como só cio
jú nior.Odiplomaemletras,portanto,
era um problema, e a subsequente
candidatura para um posto na CIA
havia causado uma grande crise
familiar.
“Tenho absoluta certeza de que
você icará decepcionado com o
serviçopú blico”,o pai dissera. “Com
todaasinceridade,nã oconsigovê -lo
feliz no meio daquela burocracia
toda.” Tinha certa intimidade com a
á rea, pois conhecia alguns ex-
diretores da agê ncia. Os irmã os, no
entanto,erambemmenoscautelosos
ao criticarem. Durante um feriado
particularmente
animado,
eles
haviam feito um bolã o para saber
quanto tempo Nate duraria em sua
aventura na CIA. A previsã o mais
otimistanãochegavaatrêsanos.
Adecisã odeintegrarosquadros
daagêncianãotinhanadaavercoma
vontadedeescapardossuspensó rios
e abotoaduras da vida de advogado,
das colunatas de uma mansã o
colonial à beira do rio, das
previsibilidades
sufocantes
de
Richmond.
Tampouco
estava
relacionada a uma noçã o de
patriotismo: Nate nã o era nem mais
nemmenospatriotadoquequalquer
americano.Emvezdisso,tinhatudoa
ver com os saltos que seu coraçã o
dera quando ele, aos 10 anos,se
obrigara a caminhar pelo beiral da
mansã oaumaalturadetrê sandares,
cara a cara com os gaviõ es que
plainavam sobre o rio, apenas para
enfrentar o pró prio medo, o pavor
que tinha do monstro do fracasso.
Tinhaavercomatensã oentreeleeo
pai, ele e o avô , ele e os irmã os que
exigiam uma conformidade que eles
mesmos nã o estavam dispostos a
oferecer.
Tratava-se dos mesmos saltos
no coraçã o que ele sentira durantes
as entrevistas iniciais na CIA, do
tremor na voz que precisara
controlar ao discursar sobre seu
prazer em se comunicar com as
pessoas,emenfrentarincertezas,em
vencer desa ios. No entanto, ao
conseguir conter os sentimentos e a
voz,eletiveraagrataconstataçã ode
que era capaz de agir com frieza e
enfrentar as coisas sobre as quais
nã o tinha controle. Trabalhar na CIA
eraalgodequeeleprecisava.
Mas o coraçã o de Nate deu o
salto mais forte quando ele recebeu
deumrecrutadoranotíciadequeseu
pedido de ingresso na agê ncia
di icilmente seria aprovado, em
grande parte porque ele nã o tinha
nenhuma “experiê ncia de vida” pó sformatura. Outro entrevistador, no
entanto, mais otimista que o
primeiro, con idenciara que o
resultado excelente nas provas de
russofaziadeleumó timocandidato.
Foram trê s meses até que a CIA
tomassesuadecisã o,enesseperı́odo
as apostas da famı́lia já giravam em
torno dadata exata do retorno de
Nate para casa. A comoçã o foi a
mesma quando o envelope chegou.
Aprovado.
Em
seguida
vieram
a
apresentaçã o no QG, interminá veis
formulá rios para assinar, inú meros
cursos para fazer, meses de
treinamento,
auditó rios
com
palestrantes sonolentos e uma
in inidade
de
apresentaçõ es
audiovisuais. Depois disso tudo,
en im, a fazenda e suas estradinhas
pavimentadas cortando as lorestas
de pinheiros, os dormitó rios com
piso de linó leo, as salas de aula
bolorentas de carpete cinza, os
assentos numerados que haviam
pertencido aos heró is do ano
anterioreaosdequarentaanosatrás,
recrutas sem rosto ou identidade,
espiõ esexı́miosounã o,ostraidores
quehaviamdebandadoparaocampo
inimigo, os que já haviam morrido
muitotempoanteseeramlembrados
apenas pelos poucos que os
conheciam.
Eles
simulavam
reuniõ es
clandestinas, bem como recepçõ es
diplomá ticas em que os novos
recrutassemisturavamainstrutores
sempre muito efusivos, trajando
uniformes do Exé rcito Sovié tico ou
paletó s compridos à la Mao TseTung.Embrenhavam-senosbosques
com alguma engenhoca de visã o
noturnaeiamcontandoospassosaté
encontrarem num toco de á rvore o
tijolo que haviam escondido num
saco de aniagem. Nas simulaçõ es de
blitz,
eram
ameaçados
por
instrutoresquesefaziampassarpor
“guardas de fronteira” e os jogavam
contra o capô do carro, esfregando
papé is em suas caras e exigindo
explicaçõ es. As vezes iam para uma
fazenda perdida no meio do nada e,
enquanto bebiam vodca, tentavam
convencer algum pseudo-o icial a
cometer traiçã o. Atravé s dos
pinheiros,viamasuperfı́cienegrado
rioseagitarcomomergulhodeuma
águia-pescadoraduranteoanoitecer.
Nate era bem-sucedido na
maioria dos exercı́cios prá ticos. Nã o
sabia dizer de onde vinham seus
instintos, mas ele deixava para trá s
toda a pressã o de seu passado
familiaremRichmondeseentregava
comcon iançaà ssimulaçõ esemque
precisava driblar vigilantes para se
encontrar
com
os
pseudoinformantes, quase sempre
fantasiados com os casacos e
chapé us mais imprová veis. Diziam
que ele tinha um olho bom e Nate
começava a acreditar nisso, mas a
descrença dos irmã os mais velhos
ainda pairava sobre ele como um
fantasma. Seu grande pesadelo era
fracassar, ser dispensado do
treinamento e voltar para Richmond
comoraboentreaspernas.Recrutas
eram mandados embora a todo
instante,semnenhumavisoprévio.
— Só nos interessam os alunos
íntegros—dissecertavezoinstrutor
de té cnicas de espionagem. — Nã o
queremos saber de ningué m
recorrendo a meios escusos para
descobrir qual será a simulaçã o
seguinte e se dar bem. — Ele quase
berrava. — Se um de você s for
lagradocomoblocodeanotaçõ esde
uminstrutor,oucomqualqueroutro
material de acesso restrito, será
dispensado
sumá ria
e
irrevogavelmente.
Nate tinha a impressã o de que
esse tipo de coisa era dito quase
comoumdesafio.
Apesar de serem um grupo, os
novatos nã o se misturavam entre si,
cada um acalentando os pró prios
sonhos, imaginando uma primeira
missã o em Caracas, Atenas, Tó quio
ou Nova Dé li. A rivalidade entre eles
icava ainda mais acirrada nos
coqueté is oferecidos pelos diversos
departamentos da agê ncia, uma
espé cie
de
cerimô nia
de
recrutamento para jovens espiõ es. A
tensã oeraamesmaqueosjogadores
sofrem antes de algum campeonato
em que sabem que vá rios olheiros
estarãopresentes.
Numadessasfestinhasde imde
treinamento, Nate foi abordado por
um homem e uma mulher e
informado de que havia sido pré aprovado para a Divisã o Russa da
CIA, de modo que nã o precisaria se
candidataranenhumpostoemoutro
lugar. Nate perguntou, com toda a
delicadeza, se seu conhecimento da
lı́ngua també m nã o poderia ser
aproveitadoparalidarcomrussosno
Oriente Mé dio ou na Africa, por
exemplo, mas eles apenas sorriram,
dizendo que o esperavam no QG
antesdofimdomês.
Ele
conseguira.
Estava
praticamenteempregado.Faziaparte
daelite.
Em seguida vieram as palestras
sobre a Rú ssia moderna. Falaram
sobre os problemas do comé rcio de
gá s natural com a Ucrâ nia, que
afetavam toda a Europa, bem como
sobre a velha mania do Kremlin de
apadrinhar paı́ses do mal para fazer
justiça quando sua real intençã o era
fazer o mal e, em ú ltima aná lise,
provarqueaRú ssiaaindanã oestava
morta. Homens muito peludos
discursaram sobre as promessas da
Rú ssia pó s-Uniã o Sovié tica, sobre
eleiçõ es, reformas no sistema de
saú deecrisesdemográ icas,esobre
atristepossibilidadedeaCortinade
Ferrovoltarasefechardiantedeum
pardeolhosazuisquenã odeixavam
escapar nada. ARodina, a sagrada
Pá triaMã edeterraescuraecé usem
im,teriaqueresistirumpoucomais
enquanto o cadá ver da Uniã o
Sovié tica era içado do pâ ntano em
queohaviamafundadoeseucoraçã o
eraressuscitado,esó entã oasvelhas
prisõ es poderiam ser enchidas de
novo com os in ié is que nã o se
emendavam.
Uma mulher dura e in lexı́vel
falousobreanovaGuerraFria,sobre
as
negociaçõ es
veladas
de
desarmamento e os novos caças
supersô nicoscapazesdevoardelado
mas que ainda traziam uma estrela
vermelha nas asas, sobre a fú ria de
Moscou apó s a instalaçã o, por parte
doOcidente,deumsistemadedefesa
antimı́ssilnaEuropacentral(ah,que
saudade
daquela
antiga
e
conveniente escravidã o!), sobre os
sabresqueaospoucoseramsacados
de suas bainhas enferrujadas, uma
melodia que se ouviatodos os dias
nos tempos de Brejnev e Chernenko.
E o objetivo de tudo aquilo, diziam,
de todo aquele aparato de
espionagem, era a necessidade
crescente de saber quais eram os
planos e intençõ es por trá s da
placidez daqueles olhos azuis e
daquela ampla fronte dourada,
segredos aparentemente diferentes,
masosmesmosdesempre,segredos
queprecisavamserroubados.
Por im, um agente que mais
parecia um tra icante da Rota da
Seda, um senhor de olhos verdes e
sorrisoenviesado,apareceuparaum
bate-papoinformal.
—
Energia,
declı́nio
populacional, recursos naturais,
paı́ses-clientes—disseelecomuma
vozgraveeressonante.—Esqueçam
tudo isso. A Rú ssia é o ú nico paı́s
capaz de plantar um mı́ssil
intercontinental na porta da Casa
Branca.Oúnico,ealé mdissoelestê m
um arsenal incalculá vel de armas
nucleares.
Fez uma pausa para coçar o
nariz, organizou os pensamentos,
depoisprosseguiu:
— Os russos odeiam os
estrangeiros quase tanto quanto
odeiam uns aos outros. E já nascem
conspiradores. Sabem muito bem
quesã osuperiores,mastambé msã o
inseguros: tê m a necessidade de ser
respeitados, sobretudo temidos,
exatamente como nos tempos da
UniãoSoviética.Elesqueremestarno
palco, querem ser aplaudidos. Tê m
verdadeiro horror ao papel
secundá rioaqueforamrelegadosno
cená rio internacional. Por isso
Vladimir Putin está montando sua
versã o 2.0 da Uniã o Sovié tica. E
ningué m vai se colocar no caminho
dele.
Ficou por um momento em
silê ncio, avaliando as reaçõ es, e
depoisretomouapalavra:
— Sabem aquele garotinho
birrentoquepuxaatoalhadamesae
quebra a louça só pra chamar
atençã o?Poisentã o.OKremliné esse
garotinho birrento. Nã o quer ser
ignorado, e aı́ vai quebrar toda a
louça até que lhe deem ouvidos. Vai
continuar vendendo armas quı́micas
pra Sı́ria, doando combustı́vel
nuclear pro Irã , ensinando a
Indoné sia a criar seus pró prios
sistemas de enriquecimento de
urâ nio,construindoreatoresdeá gua
leve na Birmâ nia... Pois é , pessoal,
essa gente nã o conhece limites. O
maior perigo, no entanto, é a
instabilidade que tudo isso cria, o
combustı́vel que essas atitudes
injetam em toda uma nova geraçã o
demalucosincendiários.
AsegundaGuerraFriatemtudo
a ver com o ressurgimento do
Impé rio Russo, e nã o se iludam
achando que Moscou vá cruzar os
braços e icar esperando pra ver
comoamarinhachinesasecomporta
quando,enãose,ocaldoengrossarno
estreitodeTaiwan.
Eledeudeombrossobopaletó
espalhafatoso,depoisconcluiu:
— Dessa vez nã o será tã o fá cil.
Você svã oterqueencontrarumjeito
de desarmar essa bomba. Fico até
com uma ponta de inveja. — Ele
ergueu a mã o. — Boa caçada pra
todosvocês!—desejou,eemseguida
saiudasala.
Todos permaneceram sentados
emudos.
Nate
agora
se
achava
irremediavelmente enredado nas
maquinaçõ es de Moscou. Enquanto
esperavaotã oaguardadodiadesua
partida,elecumpriaaú ltimapartede
um
rigoroso
treinamento
especializado que incluı́a, entre
outras coisas, aprender de um novo
vocabulá rio operacional em russo.
Obtiverapermissãoparaexaminaros
“livros” — arquivos que continham
as fotos de passaporte e també m os
dadosmaisrelevantessobretodosos
agentes com os quais teria que se
encontrarsobasbarbasdavigilâ ncia
russa.Vidaemortenaneve.Eleagora
era a ponta de uma lança, e das
grandes. Seus colegas de turma se
dispersaram e logo Nate os
esqueceria. Outras vidas eram mais
importantes agora. Ele nem sequer
cogitavaapossibilidadedefalharem
suanovamissão.Nãopodiafalhar.
***
Trêsdiasapóssuaconversacom
Gondorf, Nate estava num pequeno
restaurante
do
aeroporto
Sheremetyevo,
em
Moscou,
esperando seu voo ser chamado.
Havia escolhido um “sanwitz
Cubano” e uma cerveja no cardá pio
engordurado.
A embaixada oferecera um
facilitador administrativo para
acompanhá -lo,a imdeajudarcomas
passagenseocontroledepassaporte,
mas ele recusara. Na noite anterior,
Leavitt comprara umas cervejas no
im do expediente e eles haviam
icado conversando tranquilamente,
evitando os assuntos mais ó bvios,
sem dú vida nã o mencionando o que
todos os outros o iciais estavam
pensando: que a carreira de Nate,
assim como sua reputaçã o, sofrera
umdurogolpe. As despedidas foram
bastanteartificiais.
Aú nicanotı́ciaboaeraque,dois
diasantes,emrespostaà noti icaçã o
de dispensa enviada por Gondorf, o
QG informara que uma posiçã o de
agente na vizinha Finlâ ndia havia
vagadoderepente.Dianteda luê ncia
de Nate em russo, da abundâ ncia de
russos na Finlâ ndia e da mobilidade
queofatodesersolteirolheconferia,
eles questionaram se ele se
interessaria por uma designaçã o
lateral em Helsinki, começando de
imediato. Nate aceitara, apesar das
objeçõ es iniciais de Gondorf, que
depois acabara concordando. O
convite formal para o novo posto
haviachegado,seguidodeumbilhete
informalassinadoporTomForsyth,o
chefe da estaçã o de Helsinki,
simplesmente lhe dando as boasvindas.
O voo da Finnair foi chamado e
Nate seguiu com os demais
passageiros para o setor de
embarque. Com suas respectivas
lentes de longo alcance, uma equipe
dedoishomensoobservavadoalto,
numa sala privativa na torre de
controle. A vigilâ ncia do FSB o
seguira até o aeroporto para se
despedir. O FSB, o SVR e, sobretudo,
Vanya Egorov estavam convencidos
de que aquela sú bita partida tinha
um bom motivo. Enquanto Nate
entrava na aeronave e era
fotografado pelos vigilantes, Egorov
queimavaosmiolosemseugabinete.
Uma pena. Sua melhor pista para
identi icar o informante traidor
estava indo embora. Ele levaria
meses, talvez anos, para encontrar
umanovapista,seencontrasse.
Nashaindaeraumapeça-chave,
pensou o vice-diretor. O mais
prová vel era que continuasse
operando sua fonte fora da Rú ssia.
Nã o poderia icar à solta. Egorov
sabia muito bem que a designaçã o
paraHelsinkinã oeraexatamenteum
empecilho incontorná vel. O SVR
podia operar quase sem nenhuma
amarraemtodaaFinlâ ndiae,melhor
ainda, tinha total independê ncia nas
operaçõ es estrangeiras. Nã o haveria
mais necessidade daquela chateaçã o
de trabalhar em harmonia com as
bichinhas do FSB. “Vamos ver”,
pensouVanya.Omundoerapequeno
demais para que algué m pudesse se
escondernele.
SANDUÍCHE CUBANO DO
AEROPORTO DE MOSCOU
Par r e abrir ao meio uma
baguete de pão cubano de mais ou
menos 30 cen metros. Umedecer com
azeite do lado de fora e mostarda do
lado de dentro. Rechear com tênder,
pernil de porco, queijo suíço e picles
fa ados bem finos. Fechar e prensar
por dez minutos numa sanduicheira
elétrica ou entre dois
jolos
embrulhados em papel-alumínio e
aquecidos no forno. Cortar na diagonal
em três pedaços.
CAPÍTULO 3
DOMINIKA EGOROVA OCUPAVA
UMA mesa privativa num dos
restaurantes mais so isticados de
Moscou, um opulento templo de
cristal e má rmore chamado Baccara,
nã o muito distante da praça
Lubyanka. Os talheres de prata, as
taças de cristal, a toalha
branquı́ssima... ela nunca tinha visto
nada igual. Embora estivesse ali a
trabalho,divertia-secomtudoaquilo
e dispusera-se a saborear cada
garfada
daquele
jantar
pecaminosamentecaro.
Dimitri Ustinov estava sentado
do outro lado da mesa, mal se
aguentando de tanto tesã o. Alto,
forte,comumabastacabeleiranegra
e um maxilar quadrado, era um dos
lı́deres da corja que dominava a
exploraçã odepetró leoeamineraçã o
na Rú ssia, um dos oligarcas que
conquistara uma fortuna de bilhõ es
de dó lares durante os anos de
poderioapósaGuerraFria.Começara
como um capanga do crime
organizado,masconseguirasubirna
vida.
Ustinov trajava um impecá vel
smoking de gola xale sobre uma
camisa plissada branca com
abotoaduras de diamante azul. O
relógioeraum
Tourbillon da Corum, um dos
dez produzidos por ano pela marca
suı́ça. As mã os enormes, duas patas
de urso, estavam delicadamente
apoiadas sobre uma cigarreira
Fabergé de esmalte azul, fabricada
em1908paraotsar.Acertaalturada
conversa ele pegou um cigarro do
estojo e o acendeu com um Dupont
de ouro, que se fechou com aquele
cliquemelodiosoquesó osisqueiros
damarcaeramcapazesdeproduzir.
Ustinovpossuı́aaterceiramaior
fortuna da Rú ssia, no entanto, por
maisricoquefosse,nã oeralá muito
esperto. Havia comprado uma briga
pú blica com o governo, sobretudo
com o primeiro-ministro, Vladimir
Putin,aorechaçarumasériedenovas
regulamentaçõ es que ameaçava
prejudicarseusnegó cios.Trê smeses
antes, no auge da disputa, izera
comentá rios
obscenamente
depreciativos sobre Putin durante
um programa de entrevistas
moscovita. Nos bastidores havia
quem se espantasse por ele ainda
estarvivo.
Naquela noite, poré m, o
bilioná rio nã o tinha cabeça para
outra coisa que nã o fosse Dominika,
que conhecera na emissora de
televisã o um mê s depois da tal
entrevista e cuja beleza e
sensualidade inata o deixaram
fascinado. Teria comprado a
emissora ali mesmo só para ter a
oportunidade de voltar a vê -la. Mas
isso nã o fora necessá rio: ela nem
sequer piscara antes de aceitar o
convite dele para jantar. Olhando-a
porcimadamesa,elesó pensavaem
passarasmãosportodooseucorpo.
Dominikatinha25anoseusava
os cabelos castanho-escuros em um
coque preso à nuca com um laço
preto. O azul-cobalto dos olhos
combinava com o da cigarreira
esmaltada, e foi isso que Ustinov
disse antes de empurrar a pequena
joianadireçãodelaeemendar:
—Pravocê.
Ajovemtinhalá bioscarnudose
braços elegantes que naquela noite
estavam descobertos. Vestia um
pretinho bá sico com um decote
ousado o su iciente para deixar à
mostra o colo espetacular. A luz
difusa das velas iluminava uma
pequenina veia azul sob a pele
alvı́ssima de um dos seios. Ela
pousou a mã o de dedos compridos
sobre a cigarreira. Suas unhas eram
curtas, quadradas e sem nenhum
esmalte.Emseguidaergueuosolhos
paraUstinov,quenomesmoinstante
sentiu
uma
contraçã o
nas
profundezasdavirilha.
Dominikasabiaobastantesobre
ele para seguir seus instintos e
ignorar a ná usea que lhe provocava.
Sorrindo para o lagarto asqueroso,
eladisse:
— Dimitri... é lindo, mas nã o
posso aceitar. E um presente
generosodemais.
— Claro que pode — retrucou
ele,esforçando-separasercharmoso.
—Você é amulhermaisbonitaquejá
conheci, e ter aceitado meu convite
foiopresentemaismaravilhosoque
poderiamedar.—Elebebeuumgole
do champanhe e imaginou o vestido
preto jogado no chã o do seu quarto.
— Estou gostando muito de você ,
sabia?—acrescentou.
Dominika precisou se segurar
para nã o rir. Aquelederevenshchina,
aquele caipira, era tã o so isticado
quantoosbrigõ esderuatã ocomuns
nos cafundó s do paı́s. Aliá s, era
exatamente isso que ele fora no
inı́cio da vida. Mas, caramba, como
havia icado rico! Durante sua
semana de preparaçã o, Dominika
receberaalgumasinformaçõ essobre
o patrimô nio do homem. Iates.
Mansõ esdecampo.Apartamentosde
cobertura.Trê sjatinhosparticulares.
Poços de petró leo e minas em
diversas partes do mundo. Um
exé rcito de seguranças que na
verdade eram mercená rios pagos a
pesodeouro.
Dominika era a ilha ú nica de
Nina e Vassily Egorov. Nina havia
sidospalladaOrquestraSinfô nicade
Moscou, uma virtuose em plena
ascensã oqueestudaracomKlimove
eratã otalentosa que fora designada
para tocar o Kochanski, o magnı́ ico
violino confeccionado por Joseph
Guarneri del Gesù em 1741 e que
agorafaziapartedoacervodoMuseu
Glinka de Cultura Musical. Cerca de
quinzeanosanteselaestavaparaser
promovidaparaa
Sinfô nica
Nacional
quando
soubequeforapreteridaemfavorde
Prokhor Belenko, um rabequista
puxa-saco de terceira categoria que
solicitara a vaga e fora atendido
apenasporsercasadocoma ilhade
um membro do Politburo. Todos
sabiam o que acontecera, mas
ninguémdisseranada.
Alé m da habilidade com seu
skripka de verniz vermelho, Nina
Egorova també m era conhecida pelo
temperamento in lamá vel, pelo
vulcã o que trazia no peito e que
entrava em erupçã o sempre que lhe
pisavamoscalos.Porocasiã odeseu
ú ltimo ensaio com a Sinfô nica de
Moscou, sob o olhar perplexo de
oitenta companheiros de orquestra,
elahaviagolpeadoBelenkoacimada
orelha direita com a estante de
partituras de ningué m menos que o
pró prio Belenko. Nã o tinha o
costume de se arrepender, mas era
uma mulher naqueles tempos de
Uniã o Sovié tica. Tomaram de volta
seu Guarneri. Ela se recusou a tocar
um instrumento inferior. Passaramna para a terceira ila dos violinos.
Ela os mandou à merda. Nã o
demorou até que o diretor da
orquestrafosseconvocadoparauma
conversanoMinisté riodaCulturaea
licença administrativa de Nina
resvalasse irrevogavelmente para a
demissã o. Assim acabara sua
carreira. Agora, anos mais tarde, o
elegante pescoço de violinista já
envergara,
as
mã os
fortes
de inharam e os cabelos estavam
quase todos brancos, presos num
coque.
OpaideDominikaeraocé lebre
acadê mico Vassily Egorov, titular
sê nior da cadeira de Histó ria da
Universidade de Moscou. Era uma
das iguras mais respeitadas e
in luentes das letras russas, com o
tı́tulo de professor emé rito. A
medalhadouradaeazuldaOrdemde
SantoAndré icavaemolduradanuma
dasparedesdeseugabinete,eolaço
cor de vinho que ele usava todos os
diasnalapelaeraaMedalhaPushkin,
recebida pelos serviços prestados à
literaturaeàeducação.Ironicamente,
Vasya Egorov nã o tinha a aparê ncia
de um homem importante e
in luente. Era baixinho e frá gil, com
os cabelos ralos cuidadosamente
penteados para o lado a im de
esconderacareca.
Ao contrá rio da mulher, Vassily
sobreviveraà erasovié ticamediante
um deliberado esforço para icar
longedapolítica,dosconchavosedas
polê micas. Isolado na universidade,
faziaquestã odecultivaraimagemde
umhomemrecatado,sensatoeleal.O
queningué msabiaeraqueoemé rito
camarada professor Vassily Egorov
mantinha uma identidade paralela e
secreta, uma consciê ncia totalmente
diversaquenutriaportudooqueera
sovié tico um asco ao mesmo tempo
intelectual e moral. Como todos os
russos, ele perdera boa parte da
famı́lia nos anos 1930 e 40 para
Stalin, tento resistido aos alemã es,
aos expurgos e à katorga. Mas nã o
era só isso. Vassily rejeitava a
desigualdade e a irracionalidade do
sistema sovié tico, desprezava o
acintoso favoritismo doscheloveki, a
preguiça e a autoindulgê ncia que
haviam acachapado o espı́rito
humanoeroubadoosrussosdesuas
vidas, de seu paı́s e de seu
patrimô nio. Era uma visã o que ele
dividiaapenascomNina.
Todos os russos acalentavam
pensamentos secretos, já haviam se
acostumado a isso. Assim era com
Vassily e Nina, que jamais deixavam
transparecer sua aversã o pela
insu iciê nciadasmudançasnaRú ssia
moderna. Mesmo quando Dominika
já tinha idade su iciente para
começar a entender um pouco as
coisas, nem ele nem a mulher
ousavam dividir com a ilha suas
ideias mais ocultas. Ambos
desejavam dar à menina uma visã o
clara do mundo, deixando que ela
enxergasse a verdade com os
pró prios olhos. E, uma vez que nã o
podiamfalardalamentá velevoluçã o
daRú ssia(desdeafú riabolchevique
atéapodridãosoviética,mesmoapós
a glasnost, e de lá até o presente, a
parası́tica ganâ ncia da atual
Federaçã o), Vassily já se resignara a
instilar na pequena Dominika a
verdadeiranobrezadaRússia.
Oespaçosoapartamentodetrê s
quartos (que apó s a demissã o de
Ninaelesreceberampermissã opara
mantergraçasapenasà posiçã oeao
prestı́giodeVassily)erarecheadode
livros, mú sica, arte e conversas em
trê s lı́nguas diferentes. Dominika já
completara5anosquandoelesen im
perceberamaprodigiosamemóriada
menina, que ora repetia versos de
Pushkin, ora cantarolava um tema
inteiro de Tchaikovsky. Sempre que
havia mú sica ela saı́a dançando
descalça pelos tapetes orientais da
sala, rodopiando e saltando sem
jamais perder o equilı́brio, sempre
em perfeita harmonia com o ritmo,
os olhinhos brilhando, as mã ozinhas
espalmadas no alto. Certo dia,
espantadoscomoqueviam,Vassilye
Nina se entreolharam, depois a
mulherperguntouàfilha:
—Ondefoiquevocê aprendeua
dançarassim?
—Eusigoascores—respondeu
ela.
—Comoassim,“ascores”?
Muito sé ria, Dominika explicou
queviacoresportodapartesempre
queouviamú sicaouqueopailiaem
vozalta.Coresdistintas,umasclaras,
outras escuras. As vezes elas
“pulavam no ar” e ela seguia atrá s.
Era assim que conseguia se lembrar
de tanta coisa. Quando dançava, ora
saltavasobrebarrasdeumazulforte,
ora seguia os pontos vermelhos que
viapelochã o.Aoouvirisso,Vassilye
Ninaseentreolharamdenovo.
—Gostodovermelho,doazule
do roxo — prosseguiu Dominika. —
Quando o Batushka lê , ou quando a
Mamulya toca, sã o as cores mais
bonitas!
—Equandoamamã e icabrava
comvocê?—indagouVassily.
— Amarelo. Eu nã o gosto do
amarelo — retrucou a menina,
folheando um livro. — E da nuvem
pretatambémnão.
Vassily achou melhor se
informarsobreessahistó riadecores
com um colega da faculdade de
psicologia,quedisse:
— Já li alguma coisa sobre um
caso semelhante. Ver sons como
cores... Muito interessante. Por que
você nã otrazameninaaquiqualquer
dia?
Vassily icou aguardando no
pró prio gabinete quando levou
Dominika para conversar com o
psicó logonumasaladeaulapró xima.
A espera já se transformara de uma
hora em trê s quando eles en im
voltaram,
Dominika
saltitando
alegremente, o professor com um
semblantepensativo.
— O que foi? — quis saber
Vassily,preocupado.
—Eupoderia icardiasinteiros
conversando com ela — disse o
homem, despejando fumo no
cachimbo. — Sua ilha tem todos os
atributos sinesté sicos. Algué m que
percebe sons, letras ou nú meros
comocores.Fascinante.
Vassily olhou de relance para a
menina, que agora coloria alguma
coisaàmesadele.
—MeuDeus—falou.—Euma
doença?Umproblemamental?
— Doença, fardo, maldiçã o...
Quem pode dizer? — Ele acendeu o
cachimbo. — Por outro lado, Vasya,
talvezsejaumdom.
Vassily, o brilhante homem das
letras,sentia-seperdido.
— Tem mais — prosseguiu o
professor, olhando para Dominika,
debruçada sobre seu desenho. —
Parece que a sinestesia dela se
estendeà sreaçõ eshumanas.Elanã o
vê apenas sons e palavras como
cores, mas també m os diferentes
conteú dos emocionais. Contou que
costuma ver algo parecido com um
halo colorido em torno da cabeça e
dosombrosdaspessoas.
Vassilyarregalouosolhosparao
amigo.
— Talvez ela cresça e se torne
uma espé cie de cientista das
intençõ es humanas — continuou o
homem. — Sem falar em sua
memó ria extraordiná ria. Sua ilha
repetiudiversasvezes,semumú nico
erro, nú meros de mais de vinte
dı́gitos. Nã o chega a ser raro em
casosassim—observou.—Maspra
vocêissonãoénenhumanovidade.
—Não,nãoé—disseVassily.
—Outracoisa,esta,sim,menos
comum: sua ilha tem certa
inclinaçã oparaobuistvo.Paraafú ria,
a impetuosidade, o pavio curto, seja
lá que nome você queira dar. Jogou
toda a minha papelada no chã o
quando nã o conseguiu resolver um
problema. E um traço que ela terá
que aprender a controlar no futuro,
suponho.
— Bozhe — foi o ú nico
comentáriodeVassily.
Entã o ele correu de volta para
casaecontoutudoàmulher.
— Esse gê nio ruim é coisa da
sua famı́lia — resmungou para Nina
quando o aparelho de som foi
desligadoeDominikaimediatamente
armou um beiço, contrafeita, os
olhinhos faiscando no rosto
vermelho.
Sejá eraassimaos5anos,oque
esperardelanofuturo?
Quando, aos 10, ela se
candidatouauma vaga na Academia
Pú blica de Coreogra ia de Moscou,
deixou
os
jurados
muito
impressionados.Nã otinhanenhuma
té cnica, nenhuma educaçã o formal,
mas já naquela idade exibia toda a
intensidade, o talento natural e os
instintos de uma grande bailarina.
Quandolheperguntaramporqueela
queria dançar, Dominika respondera
“Porque eu posso ver a mú sica”. Os
jurados pararam de rir assim que
viram uma sombra tomar conta do
rostinhobonitodamenina,queagora
os fulminava atravé s das pá lpebras
semicerradascomoselhesdesejasse
algummal.
Com uma mistura de insolê ncia
etalento,Dominikafoitrilhandoseu
caminho na academia que era o
principalceleirodedançarinosparao
Bolshoi. Saı́a-se excepcionalmente
bem, apesar de todo o rigor do
método
Vaganova. Aquela altura, já se
habituara à s cores. As visõ es que
tinha, fosse dançando, ouvindo
mú sica ou conversando com as
pessoas, agora pareciam mais
re inadas, talvez um pouco mais
domesticadas. Alé m disso, Dominika
começara a decifrá -las, associandoas com emoçõ es ou estados de
espı́rito.Paraela,essahabilidadenã o
era um fardo, apenas algo com que
precisavaconviver.
O sucesso da menina nã o se
limitava à dança. Suas notas foram
excelentes em todas as maté rias até
o imdesuaformaçã o,oquesedevia
em grande parte à espantosa
memó ria com a qual nascera. Tudo
aquilo era novo para ela, que ouvia
com atençã o absoluta as palestras
sobre polı́tica e ideologia, a histó ria
docomunismo,aascensã oeaqueda
do Estado socialista, a histó ria do
balé sovié tico.Excessoshaviamsido
cometidos, claro, mas apenas para
serem corrigidos depois. E agora a
Rú ssia moderna continuaria a
crescer,sempremaiorqueasomade
suas partes. Sua jovem cabecinha
acreditava piamente em toda aquela
cantilena.
Aos 18 anos, Dominika
ingressou na primeira turma de
alunos da academia e passou a
coordenarosestudospolíticosdeseu
grupo. Todas as noites voltava para
casa e contava ao pai o que eles
haviamdescoberto.Horrorizadocom
o que ouvia, Vassily tentava
contrabalançar
o
crescente
entusiasmo da ilha com doses
maioresdeliteratura e histó ria. Mas
Dominika estava no auge da
adolescê ncia e insistia em decidir
sozinha o rumo de sua incipiente
carreira. Se percebia a natureza das
mensagens que o pai, desesperado,
tentava lhe passar, se traduzia de
forma correta as cores que via em
torno dele, nã o dava nenhum sinal
disso. Vassily nã o podia ser mais
direto com a ilha — ainda nã o
ousava falar abertamente contra o
sistema.
Nina, claro, encantava-se com o
rá pido progresso de Dominika na
turmadejovensbailarinos.Apreciava
o fato de a menina ter um futuro
garantido.
Mas, assim como o marido,
icava
desapontada
com
a
transformaçãodajovemnumacidadã
exemplar da Rú ssia moderna,
ultranacionalista,umamoçaaltaede
cabeloscastanhosqueandavacoma
elegâ ncia de uma bailarina e se
comportava como umaapparatchiki
dosvelhostempos.
Dominika estava sentada no
tapete da sala enquanto a mã e
escovava seus cabelos com gestos
delicados e ritmados. A escova de
tartaruga, com seu cabo comprido e
ligeiramente curvo, pertencera à
bisavó de Nina e era um dos poucos
objetos,juntocomumporta-retratos
e um samovar de prata, que eles
haviam conseguido resgatar da
elegante casa que a famı́lia habitara
na Sã o Petersburgo pré -bolchevique.
As cerdas de pelo de porco
produziam um discreto chiado que
Dominika enxergava num tom
fechado de vermelho. Alongando-se
apó sumdiadebalé ,comoscabelos
radiantes, ela interrompeu a fala
mansa do pai e começou a relatar o
queouviranaescola:
—Pai,você sabiaqueinfluências
externas estã o ameaçando o paı́s?
Que um nú mero cada vez maior de
dissidentes está advogando ocaos?
Por acaso você leu o artigo que V.V.
Putinescreveusobreossionistasque
estãotrabalhandocontraoEstado?
Como se tivessem levado uma
facada, tanto Vassily quanto Nina
olharamparaa ilha.Gospodipomiluj!
Pelo amor de Deus...O Estado. V.V.
Putin.Dissidentes. Dominika ainda se
alongava no tapete. Aquele corpo de
bailarina, tã o esguio e lexı́vel, já
podia
ser
considerado
um
instrumento do sistema, o mesmo
que aos poucos també m se
apoderava daquela cabecinha tã o
esperta.AvontadedeNinaeradizer
o que achava ali mesmo e alertar a
ilha sobre todas as armadilhas
daquele sistema que havia ceifado
suacarreirademusicistademaneira
tã o brutal, que obrigara um homem
tã o brilhante quanto Vassily a calar
suasmaisprofundasconvicções.
Percebendo as intençõ es da
mulher, Vassily balançou a cabeça e
disse:
—Não.Nemagora,nemnunca.
Aos 20 anos, Dominika foi
escolhida por unanimidade como
primeira-bailarina da turma. Diante
detamanhovigoratlético,seumestre
a havia comparado a “uma jovem
Galina Ulanova”, a prima ballerina
assolutadoBolshoidopó s-guerra.As
cores que ela agora via enquanto
dançava nã o se apresentavam em
formas e tons elementares, mas em
complexas ondas de luz que
pulsavamedançavamjuntocomela,
alçando-a à s alturas, combinando-se
à perfeiçã ocomostonsdesé piaque
cercavamseusparceiros.Comaforça
quepossuı́anaspernasenascostas,
os movimentos de Dominika eram
absolutamente precisos, de uma
plasticidade incontestá vel. Era alta e
linda, sempre quente ao toque. Seu
mestre insistia que já era hora de
começaraprepará -la para a audiçã o
anualdoBolshoi.
Enquanto se tornava cada vez
mais forte e lexı́vel, Dominika
percebia algo novo brotar em seu
corpo, uma consciê ncia da pró pria
feminilidade. Nã o era exatamente
lascı́via, uma vez que guardava a
pró pria sexualidade apenas para si.
Eraumaespé ciededespertarı́ntimo
que ela já decidira investigar sem o
menor traço de pudor. Até onde
podiaperceber,nenhumdospaisera
assim, tã o desprovido de vergonha,
entã otalvezelativesseherdadoessa
caracterı́stica de algum libertino
desconhecido de sua á rvore
genealógica.
Emseuquartoescuro,quandoo
corpoachamava,elaiaexplorandoas
diferentes sensaçõ es com a mesma
seriedadecomquefaziaosexercícios
de barra, fechando os olhos para o
vermelho da respiraçã o ofegante,
estremecendo de tanta excitaçã o.
Nã o se tratava de um fetiche ou de
um vı́cio, mas de um eu secreto que
icava cada vez mais ruidoso à
medida que ela crescia. Dominika
gostava dessa identidade secreta.
Mas nem tudo era só curiosidade
juvenil. Certa noite, durante uma
violenta tempestade, ela sentiu
necessidade de algo mais ousado,
algo proibido, entã o pegou a escova
de suaprababushka, a de cabo
comprido e ligeiramente curvo, e a
fezpassearemsuaspartesmolhadas,
maravilhando-se enquanto dava
estocadas ao ritmo dos raios do
outro lado da janela, apertando os
olhosdetantoprazer.Daliemdiante
passouaescovaroscabelostodasas
noitesapósobalé.
Embora conhecesse muita
gente, Dominika nã o tinha nenhum
amigodeverdadeentreoscolegasde
academia.Apesardisso,eraalı́derde
seu grupo e nã o pensava em outra
coisa que nã o fosse o pró prio
progresso, a construçã o de um
currı́culodeexcelê ncia,osucessonas
competiçõ es com as outras escolas,
sobretudo as de Sã o Petersburgo,
centro espiritual do balé imperial
russo.Dominikasemprefalavasobre
a pureza da Escola de Moscou e sua
natureza essencialmente russa, uma
ladainha que seus colegas já nã o
aguentavam mais. Chamavam-na
pelas
costas
deklikusha, a
demonı́aca, a gladiadora, a estrela, a
devota, a faná tica, a Nova Mulher
Russa.Ah,dáumtempo,garota!,erao
que eles tinham vontade de dizer,
masouviam-naemsilêncio.
Aos 22 anos, era prová vel que
SonyaMoroyevativesseapenasmais
um ano para ser promovida da
academia para o Bolshoi, mas, com
Dominika
Egorova
como
concorrente, suas chances nã o eram
asmelhores.Dançavadesdepequena
e, ilha de um membro integral da
Duma, era uma moça mimada e
vaidosa. Estava, a bem da verdade,
desesperada. Vinha dormindo com
umgarotodaturma,Konstantin,que
alé m de muito louro tinha um belo
pardeolhosdelince.Eraumagrande
irresponsabilidade, pois se o caso
viesse a pú blico os dois seriam
sumariamenteexpulsosdaacademia.
No entanto, apó s quinze anos
frequentando aquela escola, Sonya
sabia muito bem quais eram os
horá riosmaisvazios,quandoasauna
icavadeserta,etambé motempode
que eles dispunham para seus
suarentos encontros. Fazia uma
semana
que,
durante
esses
encontros,elavinhatentandoatrairo
namorado para o plano que
arquitetara:aomesmotempoemque
entrelaçavaaspernasnogaroto,que
remexia os quadris contra ele e
lambia seu suor, falava que o amava
muito e suplicava que ele salvasse
suacarreiradebailarina,assimcomo
suavida.
No balé , os alunos mais
experientes sabem tanto de
anatomia, articulaçõ es e lesõ es
quanto um mé dico. Insu lado pelos
hormô nios e os ardores do sexo,
Konstantin esperou pacientemente
até sua vez de formar par com
Dominika. Certo dia, numa sala
apinhada de alunos, ele fazia umpas
de deux com sua parceira quando
pisoufortenocalcanhardeladurante
uma ponta, fazendo com que o pé
vergasse para a frente. Dominika
desabounochã onomesmoinstante
e se encolheu de tanta dor, as cores
sangrando à sua frente. Foi levada à
enfermariasoboolharassustadodas
colegas que praticavam na barra —
Sonyaeraamaispá lidadetodas.Ao
olharparaelaantesdesair,Dominika
intuı́ra toda a verdade ao ver sua
expressã o de culpa, o miasma
cinzentoqueaenvolvianumaespiral
invisívelaosdemais.Seupéagoraera
um volume preto e roxo que se
dobrava para trá s, grotesco, e a dor,
lancinante,irradiavaparaaperna.
— Fratura-luxaçã o de Lisfranc
nomediopé—sentenciouomédico.
Apó s uma sé rie de exames
ortopé dicos, uma cirurgia de
emergênciaeumabotadegessoatéa
altura do tornozelo, Dominika foi
dispensadadaacademia.Numpiscar
de olhos sua carreira de bailarina
havia chegado ao
im. Os
comentá rios de que ela seria a
pró ximaUlanova icaramnopassado.
Asprofessoras,ospreparadoreseos
mestresdebalé já nemolhavammais
paraela.
Aquela altura Dominika já
aprendera a represar sua inclinaçã o
para a fú ria, mas agora nã o havia o
que fazer. Era pedir demais. Num
momento de histeria, cogitou
denunciar Konstantin e Sonya pela
sabotagem.Nã ohaviadú vidadeque
eles també m seriam dispensados
assim que a armaçã o viesse à tona.
Masnofundoelasabiaquenã oseria
capaz disso. Dominika ainda
contemplava o pró prio futuro,
atordoada, quando recebeu o
telefonemadamãe.
***
VassilyhaviasofridoumAVCde
grandes proporçõ es e morrera a
caminho da clı́nica Kremlyovka, em
Kuntsevo,
reservada
aos
privilegiadoseaosmuitoricos.Opai
fora a pessoa mais importante na
vida dela, seu guia, seu protetor, e
agora nã o estava mais lá . Ela teria
levado a mã o dele a seu rosto e
contado sobre a dispensa da
academia, a traiçã o dos colegas.
Pediria conselhos, e ele encontraria
as palavras certas a dizer. Dominika
nã o tinha como saber disso, mas
Vassily teria sussurrado à sua ilha
idealistaqueumcidadã opodemuito
bem se apaixonar pelo Estado, mas
queoEstadonã ocorrespondenunca.
Jamais.
O apartamento agora estava
apinhado de visitas. Dominika se
acomodaranosofá dasalacomopé
apoiado numa cadeira, os olhos já
secos, a cabeça erguida. A seu lado
estavaamã evestidadepreto,muda
e tranquila. Acadê micos, artistas,
autoridades do governo, polı́ticos,
todos
tinham
ido
prestar
condolê ncias. O vozerio preenchia o
cô modo com os tons mais
elementares do verde, a cor que
Dominika associava à tristeza e ao
sofrimento. Ela mal conseguia
respirar. Havia comida por toda
parte: os tradicionais blinis com
caviar vermelho, esturjã o defumado,
truta. No aparador, jarros de á gua
mineralesucodefruta,uı́sque,vodca
gelada e um fumegante samovar de
prata.
De repente tio Vanya surgiu
diantedosofá esecurvouparadaros
pê sames à cunhada Nina. Os irmã os
Egorovnuncahaviamsidopró ximos,
com
personalidades
e
temperamentos quase opostos.
Dominikanã osabiaaocertooqueo
tio fazia no trabalho, mas as siglas
KGB ou SVR quase nunca eram
pronunciadas à sua volta. Dali a
poucoohomenzarrãosesentouaseu
lado, perto demais, invadindo seu
luto, avaliando-a da cabeça aos pé s.
Dominika se retesou no mesmo
instante, e a mã e, percebendo o que
se passava, pousou a mã o na perna
delacomosedissesse“Controle-se”.
—Meusmaissincerospê sames,
Dominika. Sei que você era muito
ligada a seu pai — disse Vanya, e
puxou a sobrinha para um abraço
paternal, deixando no rosto dela o
cheiro forte de seu perfume,
Houbigant de Paris. Em seguida,
apontando com o queixo para o pé
engessado, continuou: — També m
sintomuitopelalesã o,peloqueisso
significaprasuacarreira.
Elaassentiu.
— Sei que você era uma
excelente aluna, tanto na dança
quantonaescola.Seupaitinhamuito
orgulhodevocê.
Ele se recostou no sofá quando
outroamigodafamı́liaseaproximou
paraoscumprimentosdepraxe.
Até aquele momento, Dominika
aindanãodisseraumasópalavra.
— E agora, quais sã o os seus
planos? — perguntou ele. —
Universidade,talvez?
Eladeudeombroseretrucou:
—Aindanã oseidireito.Adança
era minha vida. Preciso achar outra
coisa.
Podia sentir que o tio a
encarava.
Vanya endireitou a gravata,
ficoudepéeolhouparaasobrinha.
—Dominushka,querolhepedir
um favor. Estou precisando da sua
ajuda—falou.
Dominika ergueu os olhos para
ele,assustada.
— Nã o é nada misterioso —
prosseguiuVanya,dandodeombros.
— Preciso que você faça uma
coisinha pra mim, em cará ter
extrao icial.Nã oé muitocomplicado,
masbastanteimportante.
— Pro serviço secreto? — quis
saberela,aindamaisespantada.
Vanyalevouoindicadorà bocae
estendeu o braço para que ela o
acompanhasse até outro canto da
sala.Erabempossı́velqueeletivesse
escolhido aquele dia para abordá -la,
o dia do enterro do pai dela. Era
assimqueelesagiam,nãoera?
— Preciso do seu talento,
dorogaya moya, e da sua beleza
també m — disse ele. — Algué m de
minhainteiracon iança,algué mcom
a sua discriçã o. – Aproximou-se
ainda mais, e Dominika teve a
impressã o de que os elogios se
misturavamaocalordocorpodotio.
— E uma tarefa simples, quase um
jogo: encontrar-se com um homem,
conhecê -lo melhor. Eu lhe darei os
detalhesdepois.
Zmeya. Uma serpente, pensou
Dominika.
— Entã o? Vai ajudar seu tio
querido ou nã o? — concluiu Vanya,
pousando as mã os nos ombros da
sobrinha.
Uma serpente que tateava o ar
comalíngua.Queeletivessecoragem
de propor algo assim naquele
momento era, para Dominika, bem
mais que uma simples falta de tato:
era
uma
aberraçã o,
uma
monstruosidade.Elasentiaocoraçã o
pulsar em compasso com o pé que
latejava.
Umhaloamarelofulgiaemtorno
dacabeçadeVanyacomoseelefosse
um santo bizantino. Era isso que
Dominika via quando, tomada de
uma sú bita calma, decidiu aceitar a
proposta do tio só para contrariar a
recusaqueele sem dú vida esperava.
Vanyaaindaaencaravacomosolhos
estreitados, sondando-a, e ela
simplesmente o itava de volta sem
dar nenhuma pista. Tomando o
silê ncio da sobrinha por um “sim”,
Vanyafoilogodizendo:
—Otimo!Você sabequeseupai
icaria muito orgulhoso, nã o sabe?
Ningué m neste paı́s é mais patriota
doqueelefoi,eestouvendoqueele
soube fazer da ilha uma patriota
também.Umapatriotarussa!
Continuefalandodomeupaieeu
arrancoseuslábioscomosdentes,ela
pensou.Masselimitouaabriraquele
sorriso cujo poder de seduçã o
descobriraapenasrecentemente.
— Agora que minha carreira de
bailarina foi pro espaço — retrucou
—, acho que posso, sim, fazer uns
servicinhossecretospravocê.
O rosto de Vanya foi tomado
pelaemoçã o,depoiseleserecompô s
eretirouasmãosdosombrosdela.
—Venhamevernasemanaque
vem—pediu,ebaixouosolhospara
opé engessadodasobrinha.—Quer
dizer,seestiveremcondiçõ es.Posso
mandar um carro para buscá -la. —
Emseguidaabotoouopaletó ,tomou
a mã o de Dominika entre as suas,
puxou-a para perto e concluiu: —
Agoravenhacá emedê umbeijinho
dedespedida.
A jovem colocou as mã os nos
ombros de Vanya e plantou duas
bitocas rá pidas em suas bochechas.
Entre uma e outra, olhou
sorrateiramente para os lá bios
grossosemolhadosdotio.Cheirode
lavanda, halo amarelo. Ele sussurrou
noouvidodela:
— Nã o espero que você me
ajude sem receber nada em troca.
Acho que posso intervir na questã o
desteapartamento.
Dominikarecuou.
— Sua mã e poderia continuar
com ele, mesmo depois da morte do
seupai.Seriaumgrandeconsolopara
ela.
Vanyasoltouamã odasobrinha,
se empertigou e saiu da sala.
Perplexa, Dominika o viu fechar a
porta à s suas costas.Meu primeiro
contatocomaopressão,pensou.
Em seu Mercedes, Vanya
sinalizou para que o motorista
seguisse adiante, depois se recostou
no banco traseiro, pensando:
Pêsamesdados,missãocumprida.Meu
irmãoVassilyeraumabestalhado,um
acadêmico que vivia no passado. A
mulher, então... uma sumashedshij,
uma lunática. Mas minha sobrinha...
Quedeusa!Perfeitaparaoquepreciso.
Ainda bem que me ocorreu chamá-la.
Agora que arruinou o pé, só lhe resta
aprender coisas novas, buscar outra
carreira.Aqueleapartamentopoderia
servendidoporumapequenafortuna.
Sorte delas que eu esteja aqui pra
ajudar. Mas... família é família. É o
mínimoquepossofazer.
***
Asvisitasjá tinhamidoembora,
eagoraDominikaestavasozinhacom
a mã e na sala escura, ouvindo Bach
tocar baixinho e se sobrepor aos
ocasionais estertores do samovar
quasevazio.Dominikanã oprecisava
de luz: ondas volumosas de um
vermelho escuro pulsavam à sua
frente, vindas da mú sica. Nina sabia
que a ilha via “suas cores”. Estava
com as duas mã os dela entrelaçadas
nopró priocoloeprecisouapertá -las
para interromper aquele devaneio e
fazer a menina lhe dar ouvidos.
Inclinando-senadireçãodela,falando
muito devagar e quase sussurrando
as palavras, foi relembrando
passagens da vida do falecido
marido, consolando-se com as
reminiscê ncias. Depois Dominika
contou à mã e o que de fato
acontecera na academia de balé .
Nina, entã o, relembrando momentos
da pró pria vida, começou a falar
amargamente sobre sonhos nã o
realizados, traiçã o e vingança. Duas
mulheres entre os vermelhõ es de
Bachnumasalaescura;duasklikushy
nasentranhasdeumadensa loresta,
evocandotempestades.
Dois dias depois, Dominika
voltouà escoladebalé parafalarcom
os mé dicos e buscar seus pertences.
Já aviamcomoalgué mquenã ofazia
parte daquele universo, como se
estivessem esperando sua saı́da.
Tentandopassardespercebida,elase
acomodou numa cadeira perto da
portae icou vendo Sonya Moroyeva
e Konstantin dançarem, a perna
direita de Sonya impossivelmente
alta e reta numpenché perfeito,
Konstantin girando-a num lento
promenade, os olhos ixos na virilha
que se insinuava sob a malha preta
daparceira.Anoitejá ameaçavacair
quando,terminadaa prá tica, os dois
saı́ramparaocorredoreseguiramna
direçã o da sauna. Havia boatos a
respeito deles, claro, mas à quela
altura Dominika tinha certeza
absolutadoquesepassava.Ela icou
onde estava, esperando, vendo as
sombras se espicharem no parquete
dosalã oaté sugaremporcompletoo
queaindasobravadatarde.Sabiaque
faltava pouco para um acesso de
fúria,entãoprocurousecontrolar.
Opré dioestavaemsilê ncio,eas
luzes já haviam se apagado nas
diversassalasadministrativas.Via-se
apenas uma claridade difusa na
extremidade do corredor escuro. Pé
ante pé , Dominika foi em direçã o à
antessala da espaçosa sauna seca
reservadaaosalunos,atravessou-ae,
redobrando os cuidados para nã o
fazernenhumbarulho,espiouatravés
da pequena escotilha da porta de
cedro. Sonya e Konstantin estavam
nusnodegrausuperiordasauna,mal
iluminados pela ú nica lâ mpada que
pendia do teto. Konstantin acabara
de levantar o rosto que enterrara
entre as pernas escancaradas de
Sonya, avultando-se sobre ela como
umanimalselvagem.Sonyaoagarrou
pela cabeça e jogou as pernas para
cima dos ombros dele. Atravé s do
vidro, Dominika pô de ver todo o
estrago que o balé havia feito
naqueles pé s: um calo ali, um
calombo acolá , dedos extremamente
tortos.
Refestelada nas ripas de
madeira, Sonya se retorcia e gemia,
embora o som nã o conseguisse
atravessaraespessaportadasauna.
Dominika recuou um passo e mais
umavezrespiroufundoparaaplacar
a fú ria. Precisava pensar com frieza.
Bastaria aumentar a temperatura da
sauna e travar a porta com uma
vassoura para que os amantes
apagassem ali mesmo, assados
naquelefornoimprovisado.Masnã o.
Ela queria algo mais elegante, mais
maligno, algo de initivo e que
evitasse uma possı́vel investigaçã o.
Aqueles dois haviam dado um im à
suacarreiraeagoraelaacabariacom
a deles també m, mas sem deixar
rastros, sem levantar qualquer
suspeitadevingança.
Abriu a porta da antessala e
acendeu a luz mais pró xima,
iluminando o corredor. Em seguida
abriuumadasjanelasquedavapara
a rua e deixou o ar gelado da noite
formar uma corrente até a sala da
governanta. Minú sculas partı́culas
azuladas foram dançando corredor
aforacomoumatrupedevaga-lumes.
Por im, ela entrou numa das salas
administrativas e se escondeu ali,
recostadaàparede.
Bastaramtrê sminutosparaque
a governanta (qual delas estaria ali
à quela
hora?,
perguntou-se
Dominika)sentisseacorrentegelada
esaı́ssedoescritó rioparainvestigar.
Imediatamente estranhou ao ver a
janela aberta e a luz acesa na
antessala da sauna. Resmungou algo
para si mesma, e Dominika teve a
impressã o de que era a voz de
madame Butyrskaya, um dos mais
severos e brutais cã es de guarda da
academia. Ela esperou em silê ncio,
contandoossegundos,edaliapouco
ouviu os berros da mulher, que em
seguida
se
misturaram
aos
choramingosdesesperadosdeSonya,
aos protestos de Konstantin. Mais
gritos e mais lamú rias, agora no
corredor. Depois disso nã o haveria
papainaDumaquepudessesalvaro
pescoçodatraidora.
Na sala em que se escondia,
Dominika ergueu as mã os diante do
rostoe,apesardaescuridão,pôdever
que elas estavam irmes e secas.
Notou també m que os pulmõ es já
voltavam a se encher de ar, como se
de repente algué m tivesse aberto a
vá lvula de um tanque de oxigê nio.
Espantou-se com a ausê ncia de
emoçã o depois de ter arruinado a
vida de duas pessoas — estava
simplesmente satisfeita com a
elegâ ncia e a naturalidade do que
izera. Mas entã o pensou no pai e
ficouumtantoenvergonhada.
***
O gesso fora retirado. A ideia
dosplanejadoresdoSVRerabalançar
DominikadiantedonarizdeUstinov
naemissoradetevê ,naesperançade
que ele a convidasse para sair. Nã o
chegaramapedirqueelafosseparaa
camacomooligarca—segundoeles
isso nã o seria necessá rio —, mas
Dominika sabia muito bem que o
sexo estava implı́cito. Quanto
cinismo, pensou, e achou estranho
que nã o se importasse nem um
poucocomisso.Osagentesa itavam
com
alguma
apreensã o,
desconcertados pelo olhar irme e o
sorriso plá cido que viam, sem saber
aocertooquetinhamnasmãos.
Finalmente, explicaram que
precisavam saber mais sobre o
empresá rio:asviagensprogramadas
para fora do paı́s, seus contatos,
coisas assim. Disseram que ele
estava sendo investigado por fraude
edesviodedinheiropú blico.Embora
as palavras saı́ssem pá lidas,
desmaiadas, como se ainda nã o
estivessem formadas por completo,
Dominika a irmou ter entendido o
que se esperava dela e garantiu ser
capaz de fazê -lo. Os agentes se
entreolharam,depoisvoltarama itá la. Eram todos tã o transparentes,
pensou Dominika, que vinha se
divertindo bastante com sua mais
recentedescoberta:oserviçosecreto
russo.Umbandodetolos,todoseles.
Conforme lia os relató rios, que
eram um turbilhã o de cores, ela
decidiu que faria tudo o que fosse
preciso para silenciar aqueles tolos
presunçosos e, de quebra, apagar o
sorrisodoslá biosdeseuqueridotio
Vanya.Aindaselembravadoperfume
enjoativo dele, da inacreditá vel cara
de pau: “Puxa, minha sobrinha, que
tragé dia... Como se nã o bastasse
perder o pai, você també m perdeu a
carreira de bailarina. Mas... será que
nã o dava pra você quebrar um
pequeno galho pra mim? Sei lá , de
repente sua mã e pode até continuar
neste apartamento...”Ochen horosho.
Muitobom.
***
As velas cintilavam à mesa e os
cristais tilintavam. Vendo Ustinov
comer, Dominika foi tomada por um
desprezo cada vez maior pelo
homem,até queseviunumestadode
absoluto distanciamento, de total
frieza.Estavadispostaacumprirsua
missã o e sabia muito bem o que
precisavafazerparaisso.
Vinha procurando ser o mais
encantadora possı́vel desde o inı́cio
da noite. Educada, atenciosa,
envolvente.Acertaaltura,correndoo
indicador pelo pró prio pescoço,
observou o tom alaranjado das
pará bolasqueseformavamemtorno
dos ombros do oligarca e pensou:
interessante, o amarelo da falsidade
misturado ao vermelho da paixã o.
Zhitvotnoe.Animal.
Ustinovmalconseguiadisfarçar
aereçã o.Dominikapodiaverqueele
arfavasobacamisadosmoking,que
bebia o champanhe com a sede de
algué m muito excitado. Ao im do
jantar,eledissequetinhaemcasaum
conhaque de trezentos anos, melhor
quetodososqueorestaurantepodia
oferecer,eperguntou se ela gostaria
deexperimentá-lo.
Com um brilho malicioso no
olhar, Dominika o encarou e se
inclinou na direçã o dele, os seios se
apertando um contra o outro sob a
luzdasvelas.
— Nunca tomei conhaque —
disse.
Ustinov sentiu o coraçã o vir à
boca.
BLINIS SERVIDOS NO VELÓRIO DE
VASSILY EGOROV
Temperar uma xícara de farinha
com fermento e sal kosher.
Acrescentar leite, um ovo, manteiga
clarificada e bater até formar uma
massa homogênea. Cozinhar uma
colher de massa de cada vez em fogo
baixo até que o blini fique dourado de
ambos os lados. Servir com caviar
vermelho, salmão, crème fraîche e
endro fresco.
CAPÍTULO 4
A BORDO DE UM BMW
BLINDADO, eles deixaram o
restaurante e foram para o
apartamento de Ustinov, que icava
num
imponente
pré dio
de
arquiteturaneoclássicanapartemais
rica de Arbat. A cobertura era na
verdade a junçã o de dois
apartamentoscontı́guos,umpalacete
com piso de má rmore italiano,
mó veis de couro branco e molduras
folheadas a ouro nas paredes. A
cidade se desdobrava do outro lado
dasvidraçasqueiamdochã oaoteto
ecobriamtodooespaçodeumadas
fachadas.
O ambiente recendia a incenso.
Enormes
luminá rias
chinesas
formavam ilhas de luz ao longo da
amplasala.Umquadroemparticular
se destacava: a igura abstrata de
uma mulher que se reclinava nua,
mã os, pé s e olhos apontando em
todas as direçõ es. Sem dú vida, um
Picasso.Essaaísoueudaquiaquinze
minutos,pensouDominika.
Ustinov fez um gesto para seu
destacamento de seguranças e os
homens se retiraram. Num aparador
de é bano, entre uma loresta de
garrafas, Dominika identi icou o
frasco achatado de um conhaque,
provavelmente o tal de trezentos
anos.Ustinovserviuumadosenuma
taça de cristal da Boê mia do sé culo
XVII e insistiu que ela provasse. De
outra bandeja ela pescou uma
torradinha e també m experimentou
o patê , que tinha um gosto terroso
mas com uma deliciosa nota de
limão.
Dali a pouco, Ustinov tomou-a
pela mã o e a conduziu atravé s da
galeria de quadros iluminados que
margeava o amplo corredor. Trê s
degraus largos os levaram à
penumbradasuı́teprincipal.Ustinov
nã o notara que Dominika mancava
ligeiramente por conta de seu pé
recé m-curado: estava ocupado
demaisadmirandooscabelosdela,o
pescoçoesguio,osseiostenros.
Bastouqueentrassemnoquarto
para que as luzes da sanca se
acendessemautomaticamente.Ainda
à porta,Dominikaseespantoucomo
que viu: o cô modo era bastante
espaçoso, tã o amplo quanto o salã o
de um rei, quase todo decorado em
tons de branco e preto. Mantas de
pele tinham sido jogadas com
displicê ncia sobre a enorme cama
redonda que icava em cima de uma
plataforma central. As paredes eram
quase todas revestidas de espelhos.
Ustinov pegou um controle remoto,
apertou um dos muitos botõ es e, no
teto, painé is de tecido foram se
abrindo aos poucos para revelar o
cé ucheiodeestrelasdooutroladode
umaclaraboia.
—Possoacompanharaluaeas
estrelas enquanto elas se movem no
cé u—disseele.—Você vai icarpra
verosolnasceramanhã,nãovai?
Dominika se obrigou a sorrir. O
svin’ya em sua pocilga particular.
Comoerapossı́velquetantodinheiro
se concentrasse nas mã os de uma
ú nica pessoa quando tantas outras
aindaenfrentavamfilasparacomprar
pã o? O quarto tinha uma atmosfera
pesada, cheirava a sâ ndalo. Num
aparador lateral, a prataria de uma
coleçã o brilhava sob as luzes do
ambiente.Umspotisoladoiluminava
um painel de Ebru com as linhas
sinuosas da caligra ia á rabe. Vendo
que Dominika o admirava, Ustinov
disse:
—SéculoXVII.
Ele dava a impressã o de estar
prestes a tirar o quadro da parede
parapresenteá-la.
Agoraqueestavamnoquarto,o
jogo havia icado um pouco mais
sé rio e de nada serviam para
Dominika os artifı́cios de seduçã o
que ela tirara da cartola no
restaurante.Nã oeraosexoemsique
a assustava. Dominika nã o era
exatamenteumadonzelaingê nua.No
entanto, se perguntava o que
perderiacasofosseparaacamacom
aquele homem. Por im, concluiu:
nada.Ustinovnã opoderiatirarnada
dela, tampouco os patos do serviço
secreto, ou o perfumado tio Vanya
com seus pê sames de araque. “Um
trabalho sé rio para o serviço”, ele
dissera.Bobagem, pensou Dominika.
Isso não passa de um jogo político
para desbancar um rival, mas de
qualquer modo esse blyad, esse porco
banhadoaouro,mereceperdertudoo
que tem e apodrecer numa cela de
cadeia. A vontade de Dominika era
degolarodesgraçado.Aı́,sim,seutio
Vanya saberia exatamente quem
haviarecrutadoparaoserviço.
Ela deixou a pashmina cair de
seus ombros para o chã o e se
aproximouparabeijardeleveaboca
do oligarca, acariciando-lhe o rosto.
Ustinovapuxouparasieretribuiuo
beijocomoutrobemmenospueril.A
imagem deles se multiplicavaad
infinitumnosdiversosespelhos.
Ustinovseafastouumpoucoea
encarou com os olhos lamejantes.
Seu corpo era um nervo exposto; o
cé rebro parecia ter se desprendido
das amarras do crâ nio. Ele se
desvencilhoudopaletó edagravata-
borboleta e largou-os no chã o. O
sagaz empresá rio que conquistara
sua fortuna passando a perna em
tanta gente perigosa, manipulando
mercados e até mesmo, quando
necessá rio,
eliminando
a
concorrê ncia, agora nã o via outra
coisaàfrentequenãofossemaqueles
belos olhos azuis, aquele cacho de
cabelo escuro que caı́a pelo pescoço
alvı́ssimo, aqueles lá bios ainda
molhadosdobeijorecebido.
Dominika pousou as mã os no
peitodeleesussurrou:
— Dushka, espere por mim na
cama.Voltoemdoisminutos.
No
banheiro
quase
todo
dourado, olhando-se no espelho,
Dominika pensou:Foi você mesma
quesecolocounestasituação.Foivocê
quem topou a proposta de Vanya, foi
vocêquemdisse “sim” a esse medved,
esse porco babão. Só para se testar.
Agora aguente e acabe logo com isso.
Elaesticouasmã osparaascostase
abriu o zı́per do vestido, deixando-o
cair no chã o em seguida.Seduza o
imbeciledescubraoqueelespediram,
disse a si mesma enquanto itava o
pró prio corpo no espelho. Ela fora
avisada de que Ustinov era um
homem perigoso, que já cometera
assassinatos.Tudobem.
Na manhã seguinte ele estaria
comendo na mã o dela, revelando
todos os seus segredos para depois
serjogadonumaprisã oelá terminar
seusdiasdeex-oligarca.Só entã oela
selembroudealgoqueosagenteslhe
deram no dia da reuniã o: um
estimulante, disseram. Dominika
abriu a bolsa, encontrou o
comprimido de benzedrina e o
engoliuaseco.
Ustinov a esperava deitado,
apoiado nos cotovelos, vestindo
apenas sua cueca boxer de seda
preta.
Dominika
caminhou
lentamente até o pé da cama, sem
saber direito como começar.
Lembrou-se de como era bom
quandoospreparadoresdaacademia
massageavam os pé s dos alunos,
sempre in lamados, entã o icou de
joelhosecomeçouacorreropolegar
contraasoladopé deUstinov,quea
itou com o rosto inexpressivo.
Idiotka, ela pensou,que bela cortesã
você está se saindo. Desesperada,
ouviu a pró pria intuiçã o e passou a
lamber os dedos do pé dele. Ustinov
gemeu de prazer e deixou o tronco
desabar na cama. Agora sim. Com a
mã o trê mula, ele alcançou um
console
junto
à cama
e
imediatamente uma luz vermelha
banhou todo o quarto enquanto
pontinhos rosados dançavam por
toda parte, re letindo-se nos
espelhos, pintalgando os corpos de
ambos. A cama começou a girar.Era
sóoquefaltava,pensouDominika.
Ustinov resmungou algo e
estendeu a mã o na direçã o dela. De
repente cada um dos pontinhos
rosados se dividiu em dois, depois
em trê s, sempre girando em torno
delaedoquarto.Dominikajá estava
icando tonta com a profusã o de
cores e luzes. Ustinov permanencia
com a mã o estendida, e as
obscenidades que dizia eram vistas
porelacomocentelhasdeumlaranja
escuro, e essas centelhas, por algum
motivo, passavam sempre por baixo
dospontinhosrosa,nuncaporcima.
Dominika itou-o com os olhos
semicerrados, cogitando se devia
lamberospró prioslá biosatı́tulode
efeito. Ustinov girava feito um bolo
nomicroondas,semdesviarosolhos
dela. Dominika sabia que precisava
subjugar tanto o corpo quanto a
mente dele, fazer com que
continuasse a desejá -la no dia
seguinte, e depois també m. Por
quanto tempo? Uma semana, duas
semanas, dois meses? Quanto mais,
melhor, eles disseram. També m
a irmaram que a calçada diante do
pré dio de Ustinov era manchada de
ponta a ponta com as lá grimas das
mulheres que ele despachara apó s a
primeiranoite.
Ustinov
se
reposicionou
lentamenteaté icardejoelhosdiante
deDominika.Emseguida,içou-apela
cintura e a jogou de costas na cama
ao mesmo tempo em que lhe
arrancava a calcinha. Curvou-se por
cima dela como uma gá rgula e
começou a fazer amor com ela de
modoapaixonado,quasebrutal.
A luz vermelha os dentes dele,
antes perfeitos e muito brancos,
tornavam-seazuisecomumbizarro
contornopreto.També merabizarro
o contraste que eles faziam com os
pontinhos rosados que circulavam
sobre os dois corpos entrelaçados.
Dominika jogou a cabeça para trá s e
fechouosolhos,sentindonosseiosa
respiraçã o quente de Ustinov.
Determinadaafazê -loperderojuı́zo,
incou os dedos nos braços dele,
ergueuosquadrisearremeteucontra
ele a cada estocada que recebia.
Ustinovtambé mjogouacabeçapara
trá s, prestes a explodir. Dominika
gemeuinvoluntariamentequandoele
aumentou a força e a rapidez dos
movimentos. Surpreendeu-se ao
notar que o pró prio corpo, seu “eu
secreto”,reagiaaosestı́mulosapesar
de toda a luz vermelha, dos dentes
bizarros, dos rosnados selvagens.
Talvez fosse a benzedrina que já
estivesse fazendo efeito. Olhou para
alé mdosombrosdele,paraotetode
vidro, mas nã o viu nenhuma estrela.
Ondeestavamasestrelas?
NolugardelashaviaumAnjoda
Morte, que de inı́cio nã o passava de
um borrã o na claraboia. Mas depois
esse borrã o se transformou numa
sombraque veio deslizando para a
cama, algo semelhante a um volume
demercú riopretoquesederramava
in initamente nos diversos espelhos.
Dominika sentiu o ar se deslocar
quando a apariçã o lutuou sobre a
cabeça de Ustinov. Revirando os
olhos de prazer, alheio a tudo o que
se passava à s suas costas, ele nem
sequernotouquandoum iometá lico
envolveuseupescoço.Masdeuporsi
tã ologoo iocomeçoualhecortara
carne e arregalou os olhos,
desesperado,
tentando
se
desvencilhar do garrote que o
sufocava.Seurostopairavaapoucos
centı́metros do de Dominika, cuja
boca estava aberta em um grito
silencioso. Ustinov a itava com os
olhos injetados, completamente
aturdido,umaveiasaltandodatesta,
os dedos tentando, em vã o, aliviar o
aperto do garrote. Um io preto de
sangue escorreu de sua boca para o
rosto de Dominika, e nã o demorou
para que ele começasse a
convulsionar, estremecendo como
um peixe no anzol. Dominika se deu
contadequeeleaindaestavadentro
dela. Virando o rosto para evitar os
perdigotos e o sangue, plantou as
mã os contra o peito dele e tentou
empurrá -lo para se libertar. Mas
Ustinov era um homem grande,
pesado demais, e ela nã o conseguiu
se desvencilhar. Restava-lhe apenas
cruzar os braços sobre os olhos e
icar ali, sentindo o sangue escorrer
em seu pescoço e seus seios,
minando a vida do corpo de Dimitri
Ustinov. Ele parecia gorgolejar, a
respiraçã o estorvada pelo lı́quido
vermelho que lhe vazava garganta
adentro.Dominikasentiuquandoele
estremeceu uma ú ltima vez, os pé s
batendo duas ou trê s vezes contra a
cama antes de se paralisarem por
completo.Acamacontinuougirando
nosilênciorosadodoquarto.
Por um aterrorizante minuto,
nada aconteceu. Dominika abriu
apenas um dos olhos e deparou-se
comorostodeUstinovcontraoseu,
osolhosarregalados,alı́nguavisı́vel
na boca entreaberta. O vulto escuro
ainda estava ali, imó vel, pintalgado
derosa.Oqueseriaaquilonascostas
dele? Um par de asas negras ou
apenas um efeito dos espelhos? A
imagem de trê s corpos imó veis
giravasempararjuntoà cama.Como
numa açã o coordenada, Ustinov
escorregou para fora dela e o vulto
negro, com um ú nico movimento, o
empurrouparaolado,derrubando-o
no chã o. Ignorando o cadá ver, ele
encontrou os controles da cama e
desligou o mecanismo que a fazia
girar.AoverqueDominikaameaçava
selevantar,pousouamã onoombro
delae,delicadamente,obrigou-aase
deitar de novo. Dominika tremia da
cabeçaaospé s,nuaeencharcadade
sangue. Puxou um dos lençó is e
começouaselimparcomele.
Nã o se atrevia a olhar para o
assassino, mas sabia que ele estava
junto da cama, imó vel. Por algum
motivo,tevecertezadequeelenã oa
machucaria. Ofegante e em choque,
elaparoudetentarselimpare icou
apenas segurando o lençol. Nesse
momento, notou que o homem
olhavaparaumdeseuspé s.Quando
ele ameaçou tocá -lo, ela começou a
recolhê -lo, mas, em seguida,
obedecendo a algum instinto
primitivo, voltou a estendê -lo, e o
homemoacaricioudeleve.Amaioria
daspessoastrocaumapertodemã o
quandoseconhece,mascomMatorin
ascoisaseramumpoucodiferentes.
***
Formalmente, Sergei Matorin
eraumo icialdoSVRcompatentede
majore iliaçã o ao Departamento de
Açã o Executiva (Departamento V).
Informalmente, era umchistilshchik,
um “mecâ nico”, um carrasco do
serviço secreto russo. Na era KGB,
seu departamento tinha outros
nomes:Departamento13,LinhaF,ou
apenasmokroyedelo,“trabalhosujo”.
NoaugedaGuerraFria,atalLinhaF
fora responsá vel por sequestros,
interrogató rios e assassinatos, mas
emteoriaaçõ esdessetiponã oeram
nem propostas no novo SVR, muito
menos aprovadas. Sim, volta e meia
algum jornalista rebelde aparecia
morto num elevador em Moscou, ou
algum crı́tico do regime sucumbia a
altas concentraçõ es de polô nio no
fı́gado,masissonã otinhanadaaver
com o moderno serviço secreto do
país.
Durante a invasã o sovié tica do
Afeganistã o, Matorin servira como
comandante num grupo de elite, o
GrupoAlfadeOperaçõ esEspeciais,à
é poca sob a liderança da KGB, e em
algum momento dos cinco anos que
passara nos vales daquele paı́s um
parafuso se soltara em sua cabeça.
Dali em diante nã o houve quem
conseguisse apertá -lo de volta. Os
oito homens de sua equipe seguiam
ordens, mas Matorin nã o gostava
muitodeobedeceraningué m.Tinha
se transformado em um lobo
solitá rio que apreciava matar
pessoas.
Durante um combate, ele fora
atingido por uma metralha que o
deixara cego do olho direito, e o
globoocularagoraseresumiaauma
massa leitosa e opaca. Alto e magro
feito um caniço, tinha o rosto
marcado por cicatrizes de varı́ola e
de guerra, nariz adunco e cabelos
grisalhos que usava sempre
empapadosdegel.Pareciamuitoum
coveiro. Apó s a retirada do
Afeganistã o, vez ou outra podia ser
vistozanzandocomoumfantasmana
sede do SVR, indo de um gabinete a
outronoDepartamentoV.Oso iciais
mais jovens olhavam com fascı́nio
para aquele deus em forma de
homem. Os mais velhos desviavam
deseucaminho.
Embora ainda fosse convocado
ocasionalmente para “missõ es
especiais”, Matorin sentia saudades
de sua vida no Afeganistã o. Volta e
meia se lembrava dela. Era capaz de
voltarparalá empensamento,dever
as paisagens, ouvir os barulhos e
sentir os cheiros. As lembranças
vinham de forma espontâ nea em
determinados momentos, e essas
viagens inesperadas eram as
melhores, as mais vı́vidas, que por
vezesincluı́amaté mú sica: ele podia
ouvir com perfeiçã o o staccato das
notasdeumrubab,abatidacadavez
maisrápidadastablas.
Matorin acariciou o pé de
Dominikadomesmomodoque izera
com o daquela afegã zinha que eles
haviam imobilizado certa tarde no
valedorioPanjshir.Suaequipetinha
jogado uma lona sobre as pá s do
helicó ptero Mi-24 e amarrado as
pontas no chã o para criar um amplo
espaço de sombra onde os homens
pudessem icar. Mais cedo naquele
dia,haviammetralhadoumgrupode
mujahedeen na estrada e depois
pousaram para pilhar seus bens. Foi
entã o que encontraram a menina,
escondidaentreaspedrasà margem
docaudalosorio.
Ela nã o devia ter mais de 15
anos. Cabelos escuros, olhos
amendoados, vestida com trapos
imundos. Sem dú vida era a putinha
itinerante dos guerrilheiros mortos.
Qualquer sovié tico em serviço no
Afeganistã o já tinha ouvido falar
sobreoqueasmulheresafegã seram
capazes de fazer com os russos
capturados, entã o nã o haveria
misericó rdia com a menina. Ela
lutava contra as cordas que lhe
envolviam o pulso, mas um laço
frouxo em torno do pescoço
ameaçava estrangulá -la caso ela
izesse algum movimento mais
brusco.Adiabinhaxingava,gritavae
cuspianosoitointegrantesdoGrupo
Alfa que a cercavam. Matorin se
agachou diante das pernas dela,
escancaradas e presas pelos
tornozelos, e levou a mã o a um dos
pé s imundos de areia para acariciá lo. Assim que foi tocada, a garota
começou a fazer um escâ ndalo,
pedindo
socorro
a
algum
companheiro que ainda estivesse
escondidonasimediações.
Quantagritariaporumasimples
carícia.Aindahaviamuitopelafrente.
Nos quinze minutos seguintes,
Matorin picotou as roupas dela com
toda a calma, usando uma faca de
lâ mina curta, até despi-la dohijab. A
meninaseretorcianochã oenquanto,
noalto,alonatremulavaaosabordo
vento. Um dos homens jogou á gua
para limpar o rosto da prisioneira, e
elaretribuiunomesmoinstantecom
uma cusparada. Foi entã o que
Matorin sacou o facã o Khyber que
trazia nas costas, uma elegante
lâ minade60centı́metros,retadeum
lado e ligeiramente curva do outro,
brilhandodetãoafiada.
Esgueirando-sedooutroladode
um rochedo cerca de 100 metros
encosta acima, um adolescente
afegã obaixousuaAK-47eespiouna
direçã o do helicó ptero, que ele
reconhecia apenas como um Shaitan
Arba.Podiaveroshomensagrupados
sob a lona estendida nas pá s do
giganteverde.Apesardoruı́dodorio
e do vento, ele podia ouvir os gritos
que vinham de lá , os berros
apavorados e incessantes de uma
garota. Ele fez uma oraçã o e foi
embora.Sabiaquenaquelevalehavia
algobemmais aterrorizante que um
simplesgrupodeheregesrussos.
Matorin recebeu o apelido de
seushomensnaqueledia,pelomenos
daquelesquetiveramestô magopara
vê-looperarofacão.
Agora,“Khyber”baixouosolhos
para Dominika (inclusive o direito,
que mais lembrava um ovo pochê ),
afastouamãodopédelaedisse:
— Vista-se. Seu tio Vanya está
esperando.
O PATÊ RÚSTICO DE USTINOV
Caramelizar gado de galinha,
pance a e alho, depois deglaçar a
panela
com
conhaque.
Picar
manualmente a mistura e acrescentar
salsa, alcaparras, cebolinhas, raspas de
limão, suco de limão e azeite até obter
uma textura grossa. Servir com
torradas e limão.
CAPÍTULO 5
DOMINIKA FORA CONVOCADA
PELO tio para uma reuniã o na sede
do SVR em Yasenevo. No saguã o do
pré dio, foi conduzida até um dos
elevadores e ao entrar nele deparou
com a cé lebre insı́gnia do serviço
secreto, a estrela e o globo, em uma
das paredes. Ainda estava com um
gosto metá lico na boca, ainda sentia
osangueescorregadiodeUstinovna
pró pria pele. Por uma semana ela
tentaraafastardacabeçatodoaquele
horror, sem conseguir dormir,
resistindo ao impulso de esfolar a
pele dos seios e da barriga. Os
pesadelos já tinham parado, mas
agora ela estava doente, deprimida,
inconformada com a manipulaçã o
grosseiradaqualforavítima.
Nunca estivera em Yasenevo,
dentro do quartel-geral do SVR, e
muitomenosnoquartoandardaalta
direçã o. Ali reinava o mais absoluto
silê ncio—nã oseouvianadaportrá s
das inú meras portas fechadas ao
longo do corredor. Uma das paredes
ostentava os retratos visivelmente
retocados de diversos ex-dirigentes
da KGB, cada um com seu discreto
spot de luz: Andropov, Fedorchuk,
Chebrikov, Kryuchkov (Alemanha,
Hungria,
Checoslová quia,
Afeganistã o); na parede oposta
icavam os retratos dos novos
dirigentes do SVR: Primakov,
Trubnikov,
Lebedev,
Fradkov
(Chechê nia, Geó rgia, Ucrâ nia). Onde
estariameles?Nocé uounoinferno?
A sequê ncia de veteranos parecia
acompanhar Dominika com os olhos
à medida que ela avançava pelo
carpetevermelho.
A direita icavam as portas
imponentesdogabinetedodiretor.A
esquerda, portas idê nticas davam
paraogabinetedeVanya,oprimeiro
vice-diretor. Dominika en im entrou
nasaladotio,instaladodooutrolado
de uma mesa de madeira clara
envernizada,comumespessotampo
de vidro. A frente dele, na
escrivaninha,nã ohavianadaalé mde
um risque-rabisque de couro
vermelho. Uma mesinha lateral
abrigava vá rios telefones brancos.
Com o piso coberto por um carpete
azul-escuro, a ampla sala també m
dispunhadeumconfortá velconjunto
desofá epoltronasjuntodasvidraças
panorâ micas com vista para a
lorestadepinheiros.Deforavinhaa
luzdeumlímpidocéudeinverno.
Vanya sinalizou para que
Dominika se acomodasse numa das
cadeirasdiantedamesaeobservou-a
com atençã o. Ela usava uma saia
justa azul marinho com uma camisa
brancaparaforaeumcintinhopreto
por cima. Linda como nunca, apesar
das olheiras e da palidez acentuada.
Usá -lanocasodeUstinovhaviasido
uma cartada de mestre. Pena que
paraelaaexperiê nciaforaumtanto...
radical.Umainfelizobradoacasoque
as ordens urgentes do Kremlin
tivessemcoincididocom a morte do
pai dela e o im da carreira de
bailarina.
A princı́pio, nenhum dos dois
falou. Os relató rios informavam que
eladesempenharaseupapeldemodo
absolutamenteeficaz,seduzindo
Ustinov a ponto de fazê -lo
dispensarossegurançase,comisso,
abrindo caminho para que Matorin
chegasseaté oalvo.Nã osucumbiraa
uma crise de histeria, mas sem
dú vida havia passado por maus
bocados, pensou Vanya. Matorin era
um pouco demais para os nã o
iniciados. Com sorte, ela superaria
tudoaquilo.
— Dominika, eu gostaria de
parabenizá -la por seu ó timo
desempenho na nossa missã o —
começou ele, encarando a sobrinha.
Entã oseinclinouparaafrente.—Sei
quedevetersidodifı́cilpravocê ,um
choque. Mas acabou. Já pode
esquecer toda essa situaçã o
desagradá vel. E nã o preciso nem
dizer que nã o pode contar nada a
ningué m. Jamais. Nã o só por uma
questã o de dever, mas de
responsabilidade.
A mã e de Dominika já lhe
alertara a ter cuidado quando
estivesse perto de Vanya. Estava
tensa,comumnó nagarganta.Vendo
a aura amarelada que cercava o tio,
balbuciou:
— Pra você foi apenas uma
“situaçã o desagradá vel”. Um homem
foiassassinadoapoucoscentı́metros
domeurosto.Está vamosnus,eleem
cima de mim, como você bem deve
saber. Fui banhada com o sangue
dele.
Meu
cabelo
icou
todo
empapado e até hoje está fedendo a
sangue.—Elaergueuorostoparao
tio e detectou nos olhos dele uma
centelha de irritaçã o. Viu que
precisava ter cuidado. Amansando a
voz, disse: — Você falou que se
tratavaapenasdeumpequenofavor.
Uma pequena ajuda. — Ela sorriu e
emendou:—Aquelehomemdeveter
feitoalgodemuitograveparavocê s
omatarem.
Quanta impertinê ncia. Vanya
jamais discutiria polı́tica com a
sobrinha, jamais falaria sobre o
narcisismo patoló gico de Putin,
tampouco sobre a necessidade de
fazerdeUstinovumexemploparaos
outros rebeldes. Nã o. Ele convocara
Dominikapordoismotivos.Primeiro
precisava
avaliar
o
estado
psicoló gicodagarota,verseelaseria
capaz de manter a boca fechada, de
esqueceroincidente,deserecuperar
do trauma. E dependendo da
resposta, teria que considerar mais
duashipóteses.
Caso Dominika se levantasse e
fosse embora descontrolada, sem
querer ouvir, ela nã o poderia sair
daquele pré dio com vida. Matorin
cuidaria disso. Ainda que nã o se
desse conta, ela testemunhara um
assassinato polı́tico que os inimigos
de Putin teriam o maior prazer em
divulgarparaorestodomundo.E,se
isso acontecesse, ele, Vanya Egorov,
icaria em maus lençó is. Naquele
exato momento, certos ó rgã os do
governo estavam cuidando para que
a morte de Ustinov fosse divulgada
como obra de algum rival nos
negó cios. Todos sabiam a verdade:
aquilojá eraesperado.Massedeuma
hora para outra a sobrinha do vicediretor do SVR aparecesse para
contaroquesabia,esobretudocomo
icarasabendo,seria um prato cheio
paraaimprensadaoposição.
No entanto, caso Dominika
reagisseatudoaquilocomsensateze
ummínimodetranquilidade,elefaria
o que fosse preciso para continuar
contando com a discriçã o dela. Sua
longevidade polı́tica dependeria
diretamentedobomcomportamento
dagarota.Foipensandonissoqueele
já decidiratrazê -laparatrabalharno
serviço,ondeela seria submetida de
forma permanente à disciplina e à
supervisã o da casa. Nã o teria
di iculdade para conseguir algo
assim.Umaposiçã onoarquivogeral,
porexemplo.Depoisderecrutada,ela
passaria por um perı́odo de
treinamento no qual aprenderia as
normaseosprocedimentosdosetor.
Semprehaveriaalgué mdeolhonela.
Dependendo de como se saı́sse
(quanto a isso ele nã o esperava
muita coisa), ela poderia ser
designada para um posto de
secretá ria num dos departamentos,
um mero enfeite na antessala de
algum general. Mais tarde, talvez,
poderia ser transferida para o
exterior e sumir de vista em alguma
rezidentura na Africa ou na Amé rica
Latina.Aocabodecincoanos(aessa
altura ele já teria sido promovido a
diretor),poderiaaté serdemitidapor
justacausa.
— Dominika, como cidadã , sua
obrigaçã oé sersemprelealeservira
seu paı́s de modo exemplar — disse
Vanya com toda acalma. — Nã o há
espaço para indiscriçõ es. Acha que
isso pode ser um problema entre
nó s?—perguntou,batendoascinzas
docigarroquejáameaçavaseapagar.
Dominika sabia muito bem que
seufuturodependiainteiramenteda
resposta que ela resolvesse dar
naquele momento. O amarelo
habitualdohalodeVanyaescurecera,
como se manchado de sangue, e o
timbre de sua voz tornara-se mais
grave. Talvez por algum prodı́gio de
telepatia ela tenha ouvido, em sua
mente, o conselho que a mã e lhe
sussurrara em casa:Zaledenet. Aja
com a frieza de uma pedra de gelo.
Mais uma vez ela ergueu os olhos
paraotio,quecomeçavaadetestar,e
tambématemer.
— Você s podem contar com a
minhadiscrição—retrucou,seca.
— Eu sabia — falou Vanya,
satisfeito ao comprovar que a
sobrinha era uma moça inteligente,
que tinha instintos e sabia ouvi-los.
Aquele era um bom momento para
adoçarsuaboca.—Bem,já quevocê
sesaiutã obem,tenhoumaproposta
alhefazer.—Recostou-senacadeira,
acendeu mais um cigarro. — Que tal
uma posiçã o de iniciante aqui
dentro?Eugostariamuitoqueviesse
trabalharconosco.
Dominika fez um esforço
consciente para nã o demonstrar
surpresa. Gostou de ver a
perplexidadenosolhosdotio.
— Aqui dentro? — respondeu
afinal.—Nuncatinhapensadonisso.
—
Seria
uma
ó tima
oportunidade para você neste
momento. Um emprego ixo, uma
pensã ogarantidanofuturo.Seentrar
para o serviço, posso garantir que
sua mã e continue no apartamento.
Alé mdisso,oquemaisvocê poderia
fazer?Trabalharcomoprofessorade
dança? — concluiu ele, cruzando as
mãossobreamesa.
Dominika marcou mentalmente
olocalnopeitodotioondecravariao
lá pis que jazia na mesa. Em seguida
baixouosolhoseavozparadizer:—
É...ajudaramamãeseriaimportante.
Vanyafezumgestocomasmã os
quesignificavaClaroqueseria.
—Poroutrolado—acrescentou
Dominika—,achoqueseriaestranho
trabalharaqui.
— Nem tanto. Poderı́amos
trabalharjuntos,porquenão?
Dominika podia ver as palavras
pairando acima da cabeça do tio,
mudandodecorsobaluzqueentrava
pelas janelas.Ah, claro, ela pensou,
umainiciantetrabalhandocomovicediretor.Acontecetododia.
—
Trabalhar
em
exatamente?—perguntou.
quê
Sabia o bastante para adivinhar
aresposta.
— Você teria de começar por
algo mais bá sico, claro — retrucou
Vanya—,mastodasasfunçõ esaqui
tê m em comum uma necessidade
primordial: informaçã o. Registros,
pesquisas,
arquivos...
Um
departamento
de
inteligê ncia
sobrevive ou sucumbe dependendo
de como suas informaçõ es sã o
gerenciadas.
O que ele queria era vê -la
enterrada no terceiro subsolo
daqueleprédio,issosim.
—Nã oseiselevojeitopraesse
tipo de coisa, tio — comentou
Dominika.—Achoquenã omesairia
bem.
Vanya precisou engolir a
irritaçã o. Restavam-lhe apenas duas
opçõ es com relaçã o à sobrinha: ou
Matorin dava cabo dela ainda antes
do almoço ou ele conseguia
convencê -laaentrarparaoserviçoe
lá permanecersob seu controle. Nã o
havia um meio-termo. Nã o podia
deixá -la à solta em Moscou,
alimentando má goas e pensando em
sevingar.Sookinsyn.
— Tenho certeza que você
aprenderá rá pido—garantiuele,mal
acreditando que havia se rebaixado
à quilo,apersuadiraquelaidiota.—E
umtrabalhomuitoimportante.
— Sei lá . Acho que icaria mais
interessada em outra parte do
serviço—insistiuDominika.
Ainda estava sentada com as
costas e a cabeça muito eretas,
assustadacomaproposta.
Vanyavoltouaencará -lacomas
mã oscruzadassobreamesa,imó vel.
Nã o falou nada, apenas esperou. Foi
Dominika quem quebrou o silê ncio,
dizendo:
— Eu gostaria de fazer um
está gio na Academia de Inteligê ncia
Externa.
—NaAVR...—respondeuVanya,
lentamente. — Você quer se tornar
umaoperadoradeinteligência?
— Quero. Acho que me sairia
bem — disse Dominika. — Você
mesmo disse que eu iz tudo certo
para conquistar a con iança de
Ustinov.
Amençã oaUstinoveraumbom
argumento.Vanyaacendeuoterceiro
cigarro em trê s minutos. Com
exceçã o das mulheres que exerciam
funçõ es de apoio, houvera apenas
duas—talveztrê s—nosquadrosda
Primeira Diretoria-Geral da extinta
KGB, e uma delas era uma bruxa
velhadoPresidium.Nenhumajamais
fora admitida na Escola Superior da
KGB, tampouco no Instituto
AndropovounaatualAVR.Asú nicas
mulheres envolvidas nas operaçõ es
decampoeramasesposascooptadas
dos o iciais rezidenturi e as vorobey,
os “pardais” treinados para seduzir
osalvosderecrutamento.
Mas em trinta segundos Vanya
fez as consideraçõ es necessá rias. Na
posiçã o de candidata à AVR,
Dominika seria submetida a um
controle ainda mais rı́gido. Seu
desempenho,suaatitude,seudestino
no futuro pró ximo, tudo isso seria
constantemente monitorado. Ela
passaria longos perı́odos fora de
Moscou. Se desse algum passo em
falso,se icassetentadaaabrirobico,
seria submetida à jurisdiçã o
disciplinar do serviço. Bastaria uma
simples assinatura para que fosse
dispensadaouatémesmopresa.
Sonhando mais alto, Vanya
percebeuquepoderiaangariaralgum
lucro polı́tico ao sugerir o nome da
sobrinha como candidata à AVR.
Seria visto como o vice-diretor
consciencioso que pela primeira vez
havia apresentado uma mulher
(atlé tica, estudada, poliglota) para
um treinamento formal no moderno
SVR.Oschefõ esdoKremlinsaberiam
reconheceromarketingbené icoque
tudoaquilooriginaria.
Do outro lado da mesa,
Dominikaavaliavaaexpressãodotio,
lendo o que se passava na cabeça
dele.Podiaapostarqueagoraviriao
relutante “sim”, seguido das
inevitáveisadvertências.
— Você está pedindo muito —
começou Vanya. — Terá de passar
por uma prova de seleçã o, que
tradicionalmentetemumbaixı́ssimo
ı́ndicedeaprovaçã o,edepoisporum
longoerigoroso treinamento. — Ele
girounacadeiraeficouolhandopelas
vidraças,re letindo.En imsedecidiu:
— Acha mesmo que está preparada
pra seguir esse caminho? —
perguntou.
Dominika assentiu com a
cabeça. Nã o tinha certeza de nada,
claro. Mas uma possı́vel carreira no
serviço seria um desa io, e ela
gostava de desa ios. Alé m disso, era
uma cidadã leal, amava a Rú ssia e
sabia que o SVR era uma das
organizaçõ es mais importantes do
paı́s. Quem sabe nã o poderia
contribuir de alguma forma? O
assassinato de Ustinov a deixara
enojada, mas també m mostrara, em
uma ú nica noite, que ela tinha
inteligê ncia e coragem su icientes
para levar a cabo uma missã o
secreta.
També m havia mais uma coisa,
ela sabia. Algo um tanto inde inido,
um sentimento que vinha crescendo
em seu peito. Eles a tinham usado.
Agora ela queria entrar no mundo
d a q u e l e sdomovladel’tsy, aqueles
burguesesqueabusavamdosistema
edopovo.Perguntava-seoqueopai
achariadisso.
— Vou pensar no assunto —
decretou Vanya, girando a cadeira
para voltar a encarar a sobrinha. —
Caso decida propor seu nome, e se
você for
selecionada,
seu
desempenho na AVR re letirá
diretamente no meu prestı́gio aqui
dentro, e no nome da nossa famı́lia
també m.Você temconsciê nciadisso,
nãotem?
Ah, sim, a famı́lia. O apreço que
ele tinha pelos familiares nã o o
impedira de empurrá -la para os
braçosdeUstinov.
Dominika quase disse: “Fique
tranquilo,nã ovoujogarseunomena
lama.”Masrefreouaraivaeassentiu,
agorajá maisconvictadequequeria
mesmoentrarparaaacademia.
Vanyaselevantou.
—Tomareiminhadecisã oainda
estatarde—disse.—Enquantoisso,
por que nã o vai almoçar no
restauranteláembaixo?
Ele teria de consultar o diretor
doSVR(umexercíciodepersuasão)e
intimidar o diretor de treinamento
(umprazer).MasolugardeDominika
estaria reservado, e assim que o
martelo fosse batido seu problema
com a sobrinha, resolvido. Esperou
que ela saı́sse e fez um rá pido
telefonema.
Dominika foi acompanhada até
oelevadorporumfuncioná rio.Tinha
a impressã o de que os ex-diretores
haviam aberto um discreto sorriso
emseusretratos.
No amplo refeitó rio, serviu-se
deumfrangoà Kiev,umpã oitaliano
e uma garrafa de á gua mineral. O
lugar estava um pouco cheio, e ela
precisou procurar por um assento
vago.Avistouumamesaemqueduas
mulheres de meia-idade ocupavam
uma das cabeceiras. Elas ergueram
os olhos para a moça bonita com
aparê ncia cansada e crachá de
visitante, mas nã o disseram nada.
Dominikacomeçouacomer.Ofrango
estava uma delı́cia, dourado e
ligeiramente empanado, temperado
com alho e estragã o. Um torrã o de
manteigaderretiaaospoucossobrea
carne quente. Mas de repente o
frango se metamorfoseou na
garganta de Ustinov e a manteiga
adquiriu a cor vermelha. Dominika
largou os talheres com as mã os
trê mulas.Fechouosolhoseprocurou
controlaraná usea.Asduasmulheres
à cabeceira a encaravam. Nã o era
todo dia que viam uma garota como
ela. Nem sequer imaginavam quanto
tinhamrazão.
Dominika ergueu o rosto e por
pouco nã o desmaiou quando viu
SergeiMatorinsentadomaisadiante,
debruçadosobreumatigeladesopa,
osolhosinexpressivossempiscar.O
homema itavaaomesmotempoque
comia, assim como os lobos que
continuam à espreita depois de
mataremasedenorio.
FRANGO À KIEV DO
RESTAURANTE DO SVR
Fazer uma mistura de manteiga,
alho, estragão, salsa e suco de limão e
levar à geladeira. Socar os peitos de
frango até obter filés bem finos.
Enrolar os filés com a mistura de
manteiga e amarrá-los com barbante.
Passar em farinha temperada, depois
em um ovo ba do com um pouquinho
de leite e polvilhar com farinha de
rosca. Fritar até dourar.
CAPÍTULO 6
DOMINIKA ENTROU PARA A
ACADEMIAdeInteligê nciaExternado
SVR pouco tempo depois do enterro
do pai. O nome da escola mudara
diversasvezesduranteaGuerraFria,
passando de Escola Superior de
Inteligê ncia a Instituto Bandeira
Vermelha e depois a AVR, mas os
veteranos
a
chamavam
simplesmentedeEscola101.Durante
dé cadas, localizara-se numa ampla
á rea a norte de Moscou, perto do
vilarejodeChelobityevo.Aosetornar
AVR,ocurrı́culo foi modernizado, os
crité rios de admissã o icaram mais
liberais e o campus foi transferido
para uma clareira em uma densa
loresta na altura do quilô metro 25
da Rodovia Gorky, a leste da cidade.
Porisso,muitaspessoasachamavam
de“Quilômetro25”ou“Floresta”.
Ao mesmo tempo empolgada e
cautelosa, Dominika, a ú nica mulher
da turma de treze pessoas, era
transportadacomoscolegasabordo
de um micro-ô nibus de janelas
escuras aos diversos locais em
Moscou e nos subú rbios da cidade
para a primeira parte do
treinamento. De modo geral, esses
lugares eram complexos murados
sem nenhuma placa na entrada,
dentro dos quais funcionava algum
laborató rio, centro de pesquisa ou
acampamentodaJuventudePioneira.
As aulas eram basicamente sobre a
histó ria da Rú ssia, dos serviços
secretos, da Guerra Fria e da Uniã o
Soviética.
Enquanto o principal atributo
para admissã o na ex-KGB era a
lealdadeaoPartidoComunista,oque
oatualSVRexigiadeseusestagiá rios
era uma devoçã o incondicional à
Federaçã o
Russa
e
o
comprometimentoemprotegê -lados
inimigosinternoseexternos.
Durante o primeiro perı́odo de
doutrinamento, os estagiá rios eram
avaliados em termos nã o só de
aptidã o,mastambé mdaquiloquena
antiga KGB costumava ser chamado
de
“con iabilidade
polı́tica”.
Dominika se destacava tanto nas
discussõ es em sala de aula quanto
nos trabalhos escritos. Apresentava
umaligeiratendê ncia à liberdade de
espı́rito e certa impaciê ncia com as
fó rmulas e os dogmas tradicionais.
Um instrutor observou que a cadete
Egorova costumava hesitar um
segundo diante de alguma pergunta,
“como se estivesse decidindo se ia
responder ou nã o”, e depois
retrucavadeformasemprebrilhante.
Dominika sabia o que eles
queriam ouvir. Os slogans nos livros
e nos quadros-negros eram
caleidoscó pios de cores, fá ceis de
categorizar e guardar na memó ria.
Palavras de ordem sobre lealdade,
dever cı́vico, defesa do paı́s. Como
todososcolegas de treinamento, ela
estava ali na esperança de um dia
fazer parte da elite da Federaçã o, a
EspadaeoEscudodeontem,oGlobo
e a Estrela de hoje. Sua ideologia de
adolescente havia horrorizado o pai
livre-pensador. Agora ela tinha
consciê ncia disso, e já nã o aceitava
assim, de forma tã o incondicional, a
ideologia o icial. Entretanto, queria
sesairbem.
Terminada a primeira parte do
curso, Dominika e os colegas foram
transferidos para o campus do
Quilô metro 25, um agrupamento de
pré dios baixos e compridos com
telhados de duas á guas cercados de
pinheiros e bé tulas. Amplos
gramados separavam os pré dios, e
caminhos de cascalho levavam ao
complexo esportivo nos fundos do
terreno. O campus icava a um
quilô metro da Gorkovskoye chuche,
uma rodovia de quatro pistas, e
separandoosdoishavia,emprimeiro
lugar, uma paliçada alta, pintada de
verde para se confundir com as
á rvores.Apó sesta“cercaviva”,uns3
quilô metros para dentro da loresta,
dois alambrados corriam paralelos,
de modo que uma matilha de
pastores-belgas pudesse transitar
livremente no espaço entre eles. Os
cachorros podiam ser vistos das
janelasdaspequenassalasdeaula.A
noite eram ouvidos, latindo ou
ofegando, dos alojamentos de dois
andares onde os estagiá rios
dormiam.
Dominikaeraaú nicamulherno
dormitó rio. Recebera um quarto só
para si ao im do corredor, mas
dividia com doze homens o ú nico
banheiro do lugar e por isso era
obrigada a aguardar as horas mais
tranquilas da manhã e da noite para
usá -lo. A maioria dos colegas era
inofensiva, ilhos privilegiados de
famı́lias importantes, rapazes com
conexõ es na Duma, nas Forças
ArmadasounoKremlin.Algunseram
muito inteligentes; outros, nem
tanto. També m havia os mais
atirados, que, ao ver aquela silhueta
femininadooutroladodacortinado
boxe, e acostumados a ter o que
queriam, dispunham-se a colocar
tudo em risco em nome de uma
brincadeira.
Certa noite, ao terminar o
banho, Dominika estendeu a mã o
para a toalha que pendurara no
gancho do lado de fora do boxe e
constatou que ahaviam roubado.
Nesse momento, um colega de
cabelos louro-claros, o fortã o de
Novosibirsk, invadiu o boxe e a
imobilizou contra a parede,
prendendo-apeloscabelosmolhados
epelacintura.Dominikapodiasentir
que ele estava nu à s suas costas.
Ouviamasnãoentendiaascoisasque
ele sussurrava; nã o via as cores. Ao
sentiramã odelesubirdesuacintura
para os seios, cogitou se o homem
era capaz de perceber seu coraçã o
disparado,suarespiraçã oofegante.O
rostodeDominikaestavaespremido
contraaparededochuveiro,easeus
olhos o branco da cerâ mica já
começava a se transformar em
vermelho-escuro.
Lembrando-sedequeatorneira
daá guafriaestavafrouxa,Dominika
começouasacudi-laaté sentirquea
empunhadura metá lica de cerca de
10 centı́metros havia se soltado da
rosca. Ofegante, ela virou-se como
pô de até icar de frente para seu
agressor, os seios espremendo-se
contraopeitodele.
— Espere
balbuciou.
um
pouco
—
O homem ainda sorria quando
ela cravou a torneira bem fundo no
olho esquerdo dele. Foi o tom
esverdeado de um vô mito que
Dominika enxergou ao ouvir seu
pavorosogritodedor.
— Pedi pra você esperar um
pouco, nã o pedi? — disse ela,
olhando-o
do
alto,
vendo-o
escorregarparaochã ocomasmã os
norosto.
“Tentativadeestuproelegı́tima
defesa” foi o veredicto secreto dos
dirigentes da academia. A cidade de
Novosibirskganhouummotoristade
ô nibus caolho e a diretoria
recomendou que Dominika fosse
dispensada do treinamento. Ela
argumentouquenã o izeranadapara
provocar o incidente, e os membros
dabancadeliberativa(doishomense
uma
mulher)
simplesmente
continuarama itá -lasemdizernada.
Mais uma cilada em que ela caı́ra:
primeiroforaaescoladebalé ,depois
Ustinov e agora a AVR. Dominika
ameaçou registrar uma reclamaçã o
formal. Mas onde? Com quem? A
notı́ciaen imchegouaYasenevo,eo
vice-diretor Egorov berrou tã o alto
aotelefoneque,seestivessedooutro
lado da linha, Dominika teria visto o
aparelho cuspir centelhas coloridas.
Nã o demorou para que ela fosse
informada de que eles haviam
pensado melhor e decidido lhe dar
uma segunda chance em cará ter
experimental.Daquelediaemdiante
os colegas passaram a ignorá -la, a
evitaraklikushaque viam zanzar de
um pré dio a outro com as costas
eretas,ospassoslongoseelegantes,
quaseimperceptivelmentemancos.
***
A terceira parte do programa
aconteceu em salas de aula com
cadeiras de plá stico, isolamento
acú stico e enormes projetores
pendendodoteto.Moscasmortasse
empilhavamentreasvidraçasduplas
dasjanelas.Osassuntosagoraseriam
economia mundial, polı́tica, energia,
relaçõ es internacionais, Terceiro
Mundo, “problemas globais”... e os
Estados Unidos. Ningué m se referia
mais ao paı́s como o maior inimigo
da Rú ssia, mas como seu maior
concorrente. Isso era tudo o que a
Rú ssiapodiafazerparasemanterno
mesmopatamardesuperpotência.As
aulas
sobre
esse
assunto
costumavamserasmaisinflamadas.
Os norte-americanos faziam
questã o de ignorar os russos,
achavamquesabiamtudosobreeles
e tentavam manipulá -los. Haviam
interferido nas ú ltimas eleiçõ es,
felizmentesemsucesso.Apoiavamos
dissidentes russos e nã o tinham o
menor pudor em instilar a discó rdia
naquele delicado perı́odo da
reconstruçã o russa. Forças militares
americanas desa iavam a soberania
russa desde o Bá ltico até o mar do
Japã o. A recente polı́tica de
“recomeçar do zero” (a tentativa de
angariar o apoio dos paı́ses rivais
para garantir o alcance dos pró prios
objetivos)erauminsulto:nãohaviao
que recomeçar. A questã o era
simplesmenteesta:aRú ssiamerecia
respeito; aRodina merecia respeito.
Poisbem,sealgumdiaDominika,na
qualidadedeagentedoSVR,viessea
travarcontatocomalgumamericano,
mostraria a ele que seu paı́s tinha
queserrespeitado.
A ironia disso tudo, diziam os
professores, era que os Estados
Unidos
estavam
em
franca
decadê ncia, já nã o eram mais a
potê ncia de outros tempos.
Depauperando-se com as guerras
prolongadas, sofrendo com os
indicadores econô micos, o suposto
berço
da
igualdade
vinha
chafurdandoemcon litosdeclassee
numa nociva polı́tica de ideologias
con litantes. E os tolos ainda nã o se
davamcontadequemuitoembreve
precisariamdaRú ssiaparacortaras
asinhas dos ambiciosos chineses,
precisariam da Rú ssia como aliada
numafuturaguerra.
Mas caso os americanos
decidissem medir forças com a
Rú ssia, dando por certo a pró pria
superioridade, icariam surpresos.
Um aluno da turmadiscordou,
sugerindoqueasnoçõ esdeOrientee
Ocidente já haviam icado obsoletas.
Alé m disso, a Rú ssia fora derrotada
nafamigeradaGuerraFria.“Bolapra
frente, pessoal”, disse ele. Seguiu-se
um burburinho na sala. Outro aluno
icoudepé e,comosolhosfaiscando,
decretou: “A Rú ssia nã o perdeu a
GuerraFria.Dejeitonenhum.Porque
a Guerra Fria nunca acabou.”
Dominika viu as palavras vermelhas
ascenderem para o teto. Palavras
belas,fortes.Interessantes.“AGuerra
Frianuncaacabou.”
***
Pouco tempo depois, Dominika
foi separada do resto de sua turma.
Nã o precisava aprender lı́nguas —
podiadaraulasdeinglê sefrancê s,se
quisesse.Tampoucoeratalhadapara
o lado burocrá tico do serviço. Os
instrutores haviam percebido seu
potencialefalaramsobreelecomos
diretores da academia, que por sua
vez entraram em contato com
Yasenevo e pediram a permissã o da
central para que Dominika Egorova,
sobrinha do primeiro vice-diretor,
ingressasse na fase prá tica, ou
operacional, do treinamento. Seria
uma das raras mulheres a serem
treinadas
pelo
SVR
como
operupolnomochenny (o icial de
operaçõ es). Nã o foi necessá ria
nenhuma espera. A aprovaçã o da
centralfoiimediata.
Dominika fora admitida no
treinamento operacional, na zona da
açã o, no jogo. Ingressara na fase
especial, o ú ltimo está gio dentro do
casuloantesdecriarasasasquelhe
permitiriam servir à Pá tria Mã e. O
tempopassaraantesqueelasedesse
conta. Uma estaçã o dava lugar a
outrasemqueelapercebesse.Aulas,
palestras, laborató rios, entrevistas...
As atividades se sucediam numa
velocidadealucinante.
O programa começava com os
assuntos mais ridı́culos: sabotagens,
explosivos,in iltraçõ es,coisasquejá
eramensinadasdesdeostemposem
que Stalin reinava e a Wehrmacht
sitiava Moscou. Em seguida vinham
as aulas prá ticas, e aqui eles foram
duroscomDominika.Faziam-nacriar
personas que lhe servissem de
disfarce nas ruas, percorrer rotas
externas para detectar vigilantes no
campo
inimigo,
encontrar
esconderijos, transmitir mensagens
cifradas, simular encontros com
informantes, arquitetar abordagens
de recrutamento. Ela praticava com
comunicaçõ es, sinais e dispositivos
de armazenamento digitais. Os
instrutores icavam boquiabertos
comamemó riadelaparaosdetalhes,
paracadaliçãoaprendida.
Os instrutores de combate nã o
armado
també m
icaram
impressionados com a força e o
equilı́brio de Dominika. Assustaramseumpoucocomaintensidadedela,
com a rapidez com que a jovem se
reerguia apó s ser derrubada no
tatame.Todosjá tinhamouvidofalar
do incidente no chuveiro, e os
homens da turma redobravam o
cuidado, sobretudo com os pró prios
testı́culos, quando treinavam em
duplacomela.Dominikaobservavao
rostodeles,viaaauraesverdeadado
medo e da censura enquanto eles
arfavam e bufavam no giná sio da
academia. Ningué m se aproximava
delaporiniciativaprópria.
O treinamento també m incluı́a
simulaçõ esnocentrodeMoscou,nas
ruas que se transformavam numa
enorme sala de aula onde eram
colocados em prá tica os princı́pios
aprendidos nas dependê ncias cheias
de mofo nos arredores de Yasenevo.
Nessas atividades os instrutores
e r a mpensionerki, espiõ es da velha
guarda aposentados há dé cadas,
alguns com mais de 70 anos. Eles
tinham di iculdade em acompanhar
Dominikaà medidaqueosexercı́cios
setornavammaisrá pidos,e icavam
para trá s enquanto ela avançava
pelas calçadas mal iluminadas de
Moscoucomsuaspotentespassadas
debailarina.Omanquejar,sequelado
pé machucado, era apenas um
charme a mais. Dominika era uma
aluna motivada, determinada a ser
bem-sucedida. Estava sempre com o
rosto molhado de suor, a camiseta
escurecidaentreosseiosenaaltura
dascostelas.
As cores a ajudavam na rua: os
azuis e os verdes das equipes nas
vansdevigilâ nciapermitiamqueela
seorientassemelhornamultidã onos
bulevares. Ela deixava as equipes de
vigilâ ncia totalmente perdidas,
calculava com meticulosidade o
tempo dos encontros-relâ mpagos
nas plataformas de metrô , ia se
reunir com falsos agentes em becos
imundos à meia-noite, assumia o
controle desses encontros, lia o que
se passava na cabeça dos
interlocutores.Osveteranossecavam
osuordorosto,depoisdiziam:
—Fanatichka!
Comoscabelospresosnaaltura
da nuca, os ombros retos, Dominika
ria deles, lendo as cores da
admiraçãonosvelhinhosexaustos.
— E aı́, seus dinossauros
enferrujados, vã o desistir? —
provocava.
Os dinossauros a adoravam, e
elasabiadisso.
Esses mesmos instrutores
deveriam colocá -la a par das
condiçõ es que ela encontraria no
exterior, do que Dominika poderia
esperar das ruas. Eram eles que a
ensinariam a operar nas grandes
capitais.Quanta estupidez, pensou
e l a ,achar que esses homens que
saíramdopaíspelaúltimavezquando
Brejnev ainda enviava tropas para o
Afeganistão tenham alguma coisa a
dizer sobre como operar nas ruas de
Londres,NovaYorkouPequimhojeem
dia.Elateveaousadiademencionar
essa incongruê ncia a um dos
coordenadores do curso, que a
mandou calar a boca e reportou a
impertinê ncia aos canais superiores
da linha de comando. Dominika saiu
da sala do homem com o rabo entre
as
pernas,
recriminando-se,
morti icada por ter sido tratada
daquela maneira. Mais uma liçã o
aprendida.
***
Dominika começou a ter aulas
sobre psicologia da coleta de
informações,psiquedosinformantes,
identi icaçã o de motivaçõ es e
vulnerabilidades.
Mikhail,
seu
instrutor, chamava tudo isso de
“desvendar a alma humana”. Era o
psicó logodacentral,tinha45anose
apenas Dominika como aluna.
Andava com ela pelas ruas de
Moscou, ambos observando as
pessoas, analisando as interaçõ es.
Dominikanã olhedisseranadasobre
as cores que era capaz de ver: havia
muitotempojuraraà mã equejamais
falariadissocomalguém.
— Mas com base em quê você
pode a irmar uma coisa dessas? —
perguntou Mikhail certa vez,
surpreso,apó sDominikaa irmarque
o homem no banco ao lado do deles
estavaàesperadeumamulher.
— Sei lá , é o que parece —
respondeu ela, e icou silê ncio
quando o roxo da paixã o se
intensi icou em torno do homem
assimqueeleviuatalmulherdobrar
aesquina.
Mikhaildeuumasonorarisadae
olhou perplexo para Dominika
quandoateoriadelaseconfirmou.
Nodecorrerdocurso,Dominika
percebeu com sua re inada intuiçã o
que o psicó logo estava atraı́do por
ela. A princı́pio ele tinha se
comportadocomoosisudoinstrutor
daDiretoriaTdoSVR,masagora,nã o
raro, ela o lagrava olhando
furtivamente para seu corpo,
forçando alguma situaçã o para que
eles se esbarrassem, tocando-a no
ombrosemnenhummotivoaparente
ou pousando a mã o nas costas dela
aoconduzi-laporumaporta.
Seria um risco terrı́vel ir para a
cama com ele. Mikhail era um
instrutor. Mais que isso, era o
psicó logo encarregado de avaliá -la
em termos de personalidade e
aptidã o para o trabalho operacional.
Mesmo assim, Dominika sabia que
ele nã o diria nada, tinha consciê ncia
de que exercia sobre ele um vago
poder, e transar com um instrutor,
por maior que fosse a transgressã o,
ou talvez por isso mesmo, era algo
que provocava nela uma excitaçã o
queiamuitoalémdoprazerfísico.
Certa tarde, apó s um exercı́cio
de campo, eles icaram sozinhos no
apartamentoqueMikhaildividiacom
os pais e o irmã o, que naquele
momento estavam fora. Nã o
demorou para que se atracassem e
fossem para a cama dele. Depois de
jogar as cobertas longe, Dominika
icou por cima de seu instrutor e
começou a cavalgá -lo com as coxas
trê mulas, os cabelos caindo em
desalinho sobre o rosto, sentindo os
espasmos correrem por sua espinha
até os dedos do pé , sobretudo os do
pé dani icado.Elasabiaexatamenteo
que queria apó s tanto tempo
negligenciando seu eu secreto por
causa das aulas e do treinamento,
que consumiam todo o seu tempo.
Ela o imobilizou na cama (quem
estava
comendo
quem?)
e
concentroutodoopesodocorponas
estocadas do quadril, aproveitando
ao má ximo. Delicadezas, gemidos e
beicinhos poderiam icar para
depois. O que importava ali era
concentrar-se na busca daquilo que
elatantoqueria,dapressã oquedalia
poucoaumentouaté en imexplodire
lhe roubar por inteiro a consciê ncia,
fazendo-a cair para a frente, sem
forças, alheia à s câ imbras nas
panturrilhas e nos pé s. Mikhail jazia
sob ela em silê ncio, com os olhos
arregalados, um mero observador
quenã osabiaaocertooqueacabara
detestemunhar.
Mais tarde, na cozinha, volta e
meia ele a espiava furtivamente
enquantoesperavaaá guaferverpara
o chá . Embrulhada num sué ter,
Dominika o itava da mesa com um
olharplá cido.Opsicó logoemMikhail
já haviasedadocontadequeaquela
transanã otiveranadaavercomele.
Sabia que a garota nã o diria nada a
ningué m. Nunca. Sabia també m que
jamaishaveriaumasegundavez.Ede
certomodoficoualiviado.
O ú ltimo dos trê s mó dulos
operacionais que compunham o
treinamentoestavachegandoao im.
Os instrutores aposentados de
Dominika tinham lhe dado o apelido
carinhoso demushka, que alé m de
signi icaralgonos moldes de “linda”
també m era o nome dado à mira
dianteira de uma arma de fogo, a
primeira a captar o alvo. Nas
avaliaçõ es
individuais
que
preencheram,
mencionaram
o
espı́ritocombativo,ainteligê nciaea
esperteza da candidata, bem como a
intuiçã o por vezes inexplicá vel que
ela demonstrava em campo. Sua
lealdade e dedicaçã o à Rodina eram
inquestioná veis. Alguns observaram
queelaeraumpoucoimpaciente,que
algumas vezes manifestava uma
inclinaçã o excessiva a discussõ es e
que precisava de um pouco mais de
lexibilidade nas abordagens de
recrutamento.Somenteumescreveu
que,apesardodesempenhosuperior,
ela dava indı́cios de que seu
patriotismo nã o era muito profundo
e de que cedo ou tarde seu espı́rito
livre falaria mais alto que a devoçã o
ao paı́s. Tratava-se apenas de uma
impressã o, ele nã o tinha nenhum
exemplo a citar. O comentá rio foi
descartado como a opiniã o
equivocadadeumvelhoranzinza.De
qualquer modo, Dominika jamais
teriaacessoàssuasavaliações.
Agora restavam apenas os
exames inais:umaprovaprá ticanas
ruas,umaescritaeoutraoral.Faltava
pouco para que o treinamento fosse
dado o icialmente por encerrado.
Antes que isso acontecesse, no
entanto,paraaconsternaçã odeseus
instrutores, Dominika sumiu por
completo de vista apó s uma reuniã o
paraaqualforaconvocadanacentral.
“Requisitada para uma missã o
especial”,foioquetodosdeduziram.
***
Dominika foi instruı́da a subir
ao quarto andar do pré dio de
Yasenevoeseguiratéaúltimasalado
corredor, que icava perto dos
retratos dos diretores. Ela bateu à
portademognoeentrou.Tratava-se
de uma pequena sala de jantar com
paredes de madeira, carpete cor de
vinho e nenhuma janela. O verniz da
parede e dos aparadores re letia a
iluminaçã o indireta. Sobre a mesa,
uma toalha alvı́ssima, pratos de
porcelana Vinogradov, taças e copos
de cristal. Vanya Egorov levantou-se
da cabeceira assim que viu a
sobrinhaentrar,foiaoencontrodela
edeu-lheumforteabraço.
— A formanda está de volta! —
exclamou, ainda com as mã os nos
ombrosdela.—Aprimeiradaturma,
as maiores notas nas provas em
campo.Eusabia!
Ele a soltou, ofereceu-lhe o
braço e foi andando com ela sala
adentro.
Haviaumhomemsentadoperto
da cabeceira da mesa, fumando
tranquilamente
um
cigarro.
Aparentava uns 50 anos e tinha um
monte de varizes no nariz. Os olhos
eram sombrios e lacrimosos e os
dentes encardidos apresentavam
uma
textura
á spera.
Ele
esparramara-se na cadeira com
aquele ar displicente de autoridade
talhado ao longo de muitas dé cadas
de funcionalismo pú blico. A gravata
estava torta sob o terno marrom
desbotado,quetinhaamesmacordo
haloqueDominikaviaaseuredor.O
problema nã o era o marrom em si
(embora os tons de preto, cinza e
marrom fossem maus pressá gios),
mas o modo pá lido como ele o
e n v o l v i a .Um maníaco, pensou
Dominika. Umbluzhdajushiy que nã o
merecianenhumaconfiança.
Ela se acomodou à frente do
desconhecido e nem sequer piscou
quando ele a encarou com um olhar
de avaliaçã o. Vanya voltou para seu
lugar à cabeceira e cruzou as mã os
enormes de forma solene sobre a
mesa. Ao contrá rio do homem a seu
lado, Vanya estava elegante como
sempre num terno cinza-perolado
com uma camisa azul de colarinho
engomado e uma gravata azulmarinho de bolinhas brancas. Na
lapela, usava uma pequena ita
vermelha com uma estrela azulcelestenaponta,umacomendapelas
contribuiçõ es prestadas à defesa da
pá tria (Za Zaslugi Pered Otechestvom
). Ele acendeu um cigarro e em
seguidafechouseuisqueirodeprata
ruidosamente.
—Esseé ocoronelSimyonov—
disse, apontando com o queixo o
desleixado de marrom. — Chefe do
QuintoDepartamento.
Simyonov nã o falou nada,
apenas se inclinou para a frente e
bateu o cigarro num cinzeiro de
cobreaoladodoprato.
—
Identi icamos
uma
oportunidade operacional bastante
singular — prosseguiu Vanya —, e o
Quinto Departamento foi escolhido
para realizá -la. Garanti ao coronel
que você seria a pessoa ideal para
ajudá -lo nessa operaçã o, sobretudo
depoisdeter sido tã o bem-sucedida
notreinamentodaacademia.Porisso
a chamei aqui, para apresentá -la a
ele.
Dominika olhou do tio para o
homem.
Que
diabo
estava
acontecendoali?
— Muito obrigada, general —
retrucou, tendo o cuidado de nã o
chamarVanyadetionafrentedeum
o icialgraduado—,masaindafaltam
duassemanasparaterminarocurso,
algumasprovase...
— Sua avaliaçã o inal está
completa — interrompeu Vanya. —
Você nã o precisa mais voltar para a
AVR.Naverdade,queroquecomeceo
maisrá pidopossı́velumtreinamento
adicionalcomopreparaçã oparaesta
suaprimeiramissãocomSimyonov.
Elebateuocigarronocinzeiroa
seulado,idênticoaodocoronel.
—Possosaberqualé anatureza
da missã o, general? — perguntou
Dominika, e itou os rostos
indecifrá veis dos dois homens na
sala.
Ambos
eram
experientes
demaisparadeixaralgotransparecer
no olhar, mas nenhum deles sabia
dos poderes sinesté sicos que ela
possuı́a. Os halos que os cercavam
estavam aumentando em torno de
suascabeças.
— Por ora basta dizer que se
trata de uma missã o razoavelmente
importante—resumiuVanya.—Um
casodelicadodekonspiratsia.
— Quanto a esse treinamento
adicional... o que seria, em detalhes?
— indagou Dominika, mas num tom
comedidoerespeitoso.
Nesse instante uma porta nos
fundos da sala se abriu e entrou um
garçom com uma bandeja que
continhaumatravessadeprata.
—Oalmoçochegou—anunciou
Vanya,endireitando-senacadeira.—
Continuamosnossaconversadepois.
O garçom começou a servir os
fumegantesgolubtsi, trouxinhas de
repolho fritas mergulhadas em um
molhoespessodetomatecomcreme
azedo.
—Omelhordacozinharussa—
a irmou Vanya, vertendo o vinho
tinto de um decantador de prata na
taçadeDominika.
Tudo aquilo cheirava a uma
grande cilada. As antenas da jovem,
recé m-treinadas,
estavam
completamente em pé . E aquela
comidapesadanã olheapetecianem
umpouco.
Oalmoçoduroumeiahora,mas
parecia interminá vel. Simyonov nã o
dissemaisquetrê spalavrasdurante
toda a refeiçã o, mas nã o tirou os
olhos de Dominika, sentada à sua
frente. Exibia uma expressã o
acintosa de enfado, como se nã o
quisesse estar ali. Assim que
terminou de comer,limpou a boca
comoguardanapo,afastouacadeira
edisse:
—Comsualicença,general.
Antesdesair,olhouDominikade
altoabaixomaisumavezeentã ose
despediudeVanyacomumacenode
cabeça.
— Vamos tomar um chá na
minha sala — falou Vanya, já se
levantando da mesa. — E mais
confortável.
No escritó rio do tio, Dominika
sesentoumeiorı́gidaaoladodele,de
frente para a esplendorosa vista do
bosquedeYasenevo.Comoscabelos
presos no alto, ela vestia uma saia
preta e uma camisa branca, o
uniformeinformaldaacademia.Dois
coposdechá fumegante,envoltosem
antigos
suportes
de
prata,
aguardavamsobreamesadecentro.
— Seu pai icaria muito
orgulhosodevocê—começouVanya,
edeuumgolenochá.
—Muitoobrigada—respondeu
ela,eesperou.
— Estou muito feliz com seus
resultadoseseuingressonoserviço.
— O treinamento nã o foi fá cil,
mas nã o poderia ter sido melhor.
Estou pronta pra começar a
trabalhar.
Eraverdade.Muitoembreveela
jáestarianalinhadefrente.
— E sempre uma honra poder
servir ao paı́s. Aliá s, nã o há gló ria
maior — a irmou Vanya, e roçou a
comenda na lapela. Em seguida deu
mais um gole no chá , olhou para a
sobrinha e disse: — Essa operaçã o
com o Quinto Departamento... Nã o é
todo dia que aparece algo assim.
Sobretudo para uma agente que
acaboudeseformar.
—Nã ovejoahoradecomeçaro
novo treinamento — comentou
Dominika.
—Bastadizerqueaoperaçã oé
umaabordagemparaorecrutamento
de um diplomata americano. E
fundamentalquenenhumrastroseja
deixado, nada que sugira que temos
alguma coisa a ver com isso. O
diplomata deverá ser neutralizado,
completamente e sem nenhum
tropeço. — Vanya quase sussurrava,
e Dominika nã o conseguia ver com
clareza as palavras, indistintas e
pá lidas.—Comoeradeseesperar,o
coronel Simyonov icou preocupado
com a sua inexperiê ncia, mesmo
sabendo do seu desempenho
exemplar no treinamento. Garanti a
ele que minhasobrinha — aqui ele
estendeu a palavra para deixar claro
que havia exercido sua in luê ncia —
eraaescolhaperfeitaparaotrabalho.
E ele, claro, logo reconheceu que faz
sentido usarmos você , sobretudo
quando mencionei o treinamento
adicional ao qual você será
submetida.
Dominikajá nã oseaguentavade
tanta curiosidade. Que diabo de
treinamento seria esse? Recursos
té cnicos? Idiomas? Algum tutorial
especı́ ico? Vanya acendeu mais um
cigarroesoprouafumaçaparaoalto.
Sóentãodisse:
— Você foi matriculada num
cursoespecializadonoInstitutoKon.
Dominika
obrigou-se
a
permanecer calma e manter o rosto
impassı́vel
enquanto
absorvia
friamente o soco que acabara de
receber na boca do estô mago.
Conheciaosrumoresquecirculavam
em torno do tal instituto: tratava-se
da extinta Escola Quatro, mais
conhecidacomoaEscoladePardais,
onde homens e mulheres eram
treinados nas té cnicas de seduçã o
para ins de espionagem. O tio a
estavamandandoparaumaescolade
putas.
— Por acaso esse instituto é
aquele lugar conhecido como Escola
de Pardais? — perguntou ela,
procurando manter a voz irme. —
Tio, achei que fosse entrar para o
serviço como agente, que seria
designada a um departamento e
incumbida de alguma operaçã o de
inteligê ncia.Essetreinamentoé para
prostitutas,nãoparaagentes.
Elamalconseguiarespirar.
Vanyaaencarouedisse:
— Procure ver o lado bom,
Dominika. O curso lhe dará mais um
recursoquevocêpoderáusar,ounão,
quando começar a conduzir as
própriasoperaçõesnofuturo.
Eleserecostounosofá.
— E essa operaçã o com o
diplomata?Eparaserumaarmadilha
sexual?Dominikalera,naacademia,a
respeito de escabrosas operaçõ es
que envolviam as manobras sexuais
maissórdidas.
— O alvo é muito tı́mido.
Avaliamos as vulnerabilidades dele
durante vá rios meses. O coronel
Simyonov concorda que ele é
suscetível.
O corpo de Dominika icou
rígido.
— O coronel sabe de tudo isso
que você quer que eu faça? Sabe da
Escola de Pardais? — Ela balançou a
cabeça.—Nã otirouosolhosdemim
durante todo o almoço. Só faltou
abrir a minha boca pra examinar os
dentes.
Vanya interrompeu-a, já com
certaimpaciência:
— Tenho certeza de que ele
icou muito impressionado. E um
o icial experiente. No entanto, toda
operaçã o
tem
caracterı́sticas
individuais, ú nicas. Ainda nã o
tomamos uma decisã o inal sobre
como proceder. Mesmo assim,
Dominika, esta é uma oportunidade
quevocênãopodedesperdiçar.
—Nãovouconseguir—afirmou
ela. — Depois daquela ú ltima
operaçã o,ojeitocomoelaterminou...
Levei meses pra esquecer o que
aconteceucomUstinov.
— Esse assuntode novo? Por
acaso nã o fui claro o su iciente
quando a instruı́ a esquecer esse
episó dio e nunca mais voltar a falar
nele? — retrucou Vanya. — Eu exijo
obediê ncia absoluta neste caso,
Dominika.
— Nunca comentei nada com
ningué m — garantiu ela. — Só que...
se esta for mais uma daquelas
operações,eupreferiria...
—Preferiria?Você acaboudese
formar na academia e agora é uma
o icialjú niordoserviçosecreto.Nã o
temquepreferirnada.Simplesmente
acata ordens. Recebe uma missã o e
fazoquetemdefazer,queé defender
suapátria.
— Estou sempre disposta a
servir a meu paı́s, nã o é isso —
devolveu Dominika. — Mas nã o sei
por que fui escolhida pra essa
operaçã oemparticular.Já ouvidizer
que há pessoas no SVR que fazem
isso com regularidade. Por que nã o
usarumadelas?
Vanyafranziuatestaedisse:
— Cale-se. Nem mais uma
palavra. Você nã o percebe a
dimensã odaoportunidadequeestou
lhedando.Está pensandoapenasem
si mesma, nesses melindres infantis.
Na qualidade de agente do SVR você
nã o tem preferê ncias, nã o escolhe
nada. Cumpre exemplarmente a
missã o que lhe foi designada e
pronto. Se nã o quiser participar
dessa operaçã o, se preferir deixar
queseuspreconceitosbobosacabem
com sua carreira antes mesmo que
ela comece, entã o fale já . Você será
dispensada do serviço, seu arquivo
será fechado, a pensã o de sua mã e
será cancelada e seus privilé gios,
retirados.Todoseles.
Dominikamalacreditouaovero
pescoço de Nina ser colocado na
forca de novo. Quantas vezes isso
ainda iria se repetir? O que mais
iriam obrigá -la a fazer antes de
deixá -la servir a seu paı́s em paz e
com honra? Ela deixou cair os
ombros,resignada.
— Tudo bem — falou. — Posso
iragora?
Quando o tio assentiu, ela se
levantou e passou diante das
vidraçaspanorâ micasacaminhoda
porta.Nessemomento, o sol realçou
os traços clá ssicos de seu per il, o
brilho dos cabelos. Vanya seguiu-a
comoolhar—seráqueaviramancar
um pouco? — e sentiu um frio na
espinhaquandoelaparouà portaeo
encarou por trê s longos segundos
com aqueles olhos incrivelmente
azuis, intensos e cortantes, olhos de
umalobaà espreitanaescuridã o.Ele
jamais tinha visto olhar semelhante.
Nem sequer teve tempo de falar
alguma coisa antes que Dominika
desaparecesse do outro lado da
porta.
GOLUBTSI DO SVR
Escaldar folhas de repolho e
reservar. Refogar cebola, cenoura e
tomates descascados e sem sementes
até que amoleçam. Juntar uma porção
de arroz e carne moída já cozidos.
Colocar duas colheradas dessa mistura
em cada uma das folhas de repolho e
fazer trouxinhas grandes. Fritar na
manteiga, depois cozinhar em fogo
baixo por uma hora em caldo de
legumes com molho de tomate e
folhas de louro. Servir com o molho
reduzido e creme azedo.
CAPÍTULO 7
NATENASHDESEMBARCOUEM
HELSINKI apó s um voo de duas
horas. Assim como no Aeroporto
Sheremetyevo, em Moscou, enormes
letreiros luminosos podiam ser
vistos por toda parte no
modernı́ssimo
HelsinkiVantaa,
anunciando perfumes, reló gios e
pacotes turı́sticos. Lojas de lingerie,
de produtos culiná rios e bancas de
jornal se sucediam ao longo do
arejadoterminal,masocheiroalinã o
eraderepolhocozido,á guaderosas
e lã molhada, como em Moscou.
Roscas de canela eram assadas em
algum forno pró ximo. Nate recolheu
suaúnicamala,passoupelaalfândega
efoiparaa iladotá xisemnotarem
momento alguem que no saguã o de
desembarque um homem baixo de
ternoescurooobservavadelonge.O
sujeito fez um rá pido telefonema de
seu celular e se foi. Em meia hora, a
900 quilô metros dali, Vanya Egorov
foiinformadodequeNathanielNash
chegara à Finlâ ndia. O jogo estava
prestesacomeçar.
Na manhã seguinte, Nate se
apresentou ao chefe da estaçã o de
Helsinki, Tom Forsyth. O escritó rio
dele era pequeno mas confortá vel,
com uma pintura de tema ná utico
acima da mesa e um pequeno sofá
encostadonaparedeoposta.Sobrea
mesinha lateral havia dois portaretratos,umcomafotodeumveleiro
navegando as á guas de um mar
calmo, o outro com o retrato de um
jovemaolemequepareciapertencer
à famı́lia Forsyth. As cortinas da
ú nica janela da sala estavam
fechadas.
Forsyth era alto, magro e
beirava os 50 anos. Tinha o queixo
quadrado e os cabelos grisalhos
começavam a rarear dos lados da
cabeça, criando entradas. Assim que
viu Nate à porta, ergueu os olhos
escuros e intensos sobre os ó culos
meia-lua, abriu um sorriso, jogou
algunspapé isdentrodeumacaixae
se levantou para cumprimentá -lo.
Seuapertodemãoeraforteebreve.
— Bem-vindo à estaçã o! —
exclamouelecomavozsuave,depois
gesticulou para que Nate se
acomodasse numa das cadeiras de
courodiantedesuamesa.
—Obrigado,chefe—falouNate.
—Você já temumapartamento?
Onde a embaixada o acomodou? —
perguntouForsyth.
Naquela manhã o serviço de
alojamentodaembaixadaoinstalara
numconfortávelapartamentodedois
quartos em Kruununhaka, e Nate
icaramaravilhadoaoabrirasportas
duplas da varandinha e se deparar
comamarina,oterminaldasbalsas,
a imensidã o do mar. Contou isso a
Forsyth.
— E uma parte bacana da
cidade. Dá pra você vir a pé pro
trabalho—disseochefe,edepois:—
Bem,euqueriaquevocê passasseum
tempinho comigo e com o Marty,
parasefamiliarizarumpoucocomo
quefazemosaqui.
Marty Gable era o vice-chefe da
estaçã o. Nate ainda nã o fora
apresentadoaele.
— Temos alguns casos bons,
mas acho que podemos fazer muito
mais — continuou Forsyth. —
Esqueça os alvos internos. Os
inlandesessã onossosaliados,nunca
criamproblema.Marty e eu fazemos
asligaçõ escomeles,entã ovocê nã o
precisa se preocupar com isso. Os
problemasvê mdefora.Osá rabesde
sempre:
Hezbollah,
Hamas,
palestinos.
Todos
eles
tê m
representantes na cidade. Nã o será
fá cil se aproximar deles, portanto
sugiro algum tipo de intermediaçã o
com os iranianos, sı́rios e chineses.
As embaixadas sã o pequenas e eles
se sentem mais seguros aqui, na
neutralidade da Escandiná via. E
possı́vel que os persas estejam
interessados em equipamentos
embargados.Dêumaolhadanonosso
sistema — concluiu, depois se
recostounacadeira.
— Quero correr atrá s de algo
maior — retrucou Nate. — Marcar
umgolimportante.Depoisdoqueme
aconteceuemMoscou...Vocêsabe.
Forsythsabiamuitobem.Podia
ver a preocupaçã o no olhar do
agente, a determinaçã o projetada no
queixo.
Nateseempertigounacadeira.
— Eu entendo, Nate — disse
Forsyth
—,
mas
qualquer
recrutamento que você izer, desde
que seja produtivo, já será um belo
gol. E pra pescar um peixe grande é
preciso paciê ncia, trabalhar e gerar
contatos su icientes que o levem a
algumlugar.
— Eu sei, chefe — respondeu
Nate depressa. — Mas nã o tenho
tempoaperder.Gondorfestá fazendo
minha caveira. Se esta oportunidade
aqui nã o tivesse surgido, neste
momento eu estaria na Rú ssia,
enterrado na frente de algum
computador. Você nem imagina
comoasuaconvocaçã oveioemboa
hora.
Forsyth lera a icha de Nate,
enviada à estaçã o logo apó s a
aprovaçã o da transferê ncia para a
Finlâ ndia.Nã oerammuitososjovens
agentes que tinham luê ncia quase
total em russo. Nate tivera um
excelente desempenho nã o só no
treinamento na fazenda, mas
també m no treinamento de
“operaçõ es em condiçõ es adversas”
em Moscou, a arte de operar sob
vigilâ ncia ao mesmo tempo
constante e agressiva. O arquivo
també m fazia mençã o à boa
performance dele na Rú ssia,
sobretudo na gestã o de certo caso
importante sobre o qual nenhum
detalheerainformado.
Mas o que Forsyth via agora à
sua frente era um operador
ressentido, com sede de vingança, e
isso nã o era nada bom. Atitudes
assimcriavamespaçoparatodotipo
deacidentes,deprecipitações.
— Nã o quero que você ique
pensando em Moscou. Andei
conversando com um pessoal aı́ do
QGevocê nã otemnadacomoquese
preocupar.
Forsyth notou que Nate ainda
ruminava os infortú nios recentes,
perdidonosprópriospensamentos.
— Escute o que eu digo —
continuou, e esperou até ver que
tinha a total atençã o do recé m-
chegado.—Queroquevocê trabalhe
direitinho, seguindo as regras, sem
recorrer a nenhum atalho. Todo
mundo quer um caso importante, é
natural. Mas você está com um nas
mã osagoramesmo.Nã ovouadmitir
que en ie os pé s pelas mã os. Fui
claro? — Ele cravou os olhos em
Nate,sério,erepetiu:—Fuiclaro?
— Sim, senhor — respondeu
Nate.
Ele havia entendido o recado
muito bem, mas disse a si mesmo
queiriaà luta,quesairiaà sruaspara
encontrarseusinformantes,quenã o
erahomemde icarmofandoatrá sde
uma mesa como gerente de caso. A
hipó tese de ser despachado de volta
para casa simplesmente era
inaceitá vel. De repente lhe veio à
cabeçaaimagemassombrosadeum
possı́vel futuro em Richmond: ele
num country club qualquer, ao lado
dealgumalouracomoslá bioscheios
de botox e os cabelos entupidos de
laquê ,osirmã os dando suas tacadas
de golfe sobre o tapete xadrez do
salãodoclube.Nemfodendo.
— Muito bem — disse Forsyth.
— Sua mesa ica na primeira sala à
direita no corredor. Agora vá
procurar o Gable — ordenou, já
pescando de volta os papé is que
jogaradentrodacaixa.
Marty Gable, o vice-chefe da
estaçã o,estavaemseugabinete,que
era vizinho ao de Forsyth e tã o
pequeno quanto o dele. Sentado ao
computador, Gable queimava os
miolos para escrever um cabograma
diplomá tico ao QG sem usar a
expressã o“ ilhodaputa”.Maisvelho
que Forsyth (beirava os 60 anos),
tinhaombroslargosefortes,cabelos
brancos cortados à escovinha, olhos
azuis e um nariz de aço. O rosto era
bronzeado,quasevermelho,tı́picode
um homem das ruas. Igualmente
bronzeadas,asmã osenormesjaziam
imó veis no teclado que parecia
pequeno demais para elas. Ele
detestava escrever mensagens,
detestava digitar com dois dedos,
detestava
qualquer
tipo
de
burocracia.Seulugareraemcampo.
Nate parou à porta da sala, que
nã o tinha nenhum adorno alé m de
uma foto do Monumento a
Washington na parede, dessas que
existiam em todos os endereços do
governo mundo afora. Sobre a mesa
nã o se via nada. Antes que Nate
pudesse tossir ou bater de leve à
porta para anunciar sua presença,
Gable girou em sua cadeira e o
encaroucomatestafranzida.
— Você é o cara novo, nã o é ?
Cash?
O sotaque vinha de algum lugar
doCinturãodaFerrugem.
— Nash — corrigiu Nate, e se
aproximoudamesa.—NateNash.
Gable estendeu-lhe a mã o do
tamanhodeumafrigideiraeNatese
preparou para ter os dedos
esmagados.
—Você demorou—comentouo
vice-chefe. — E aı́, recrutou algum
informantenocaminhodoaeroporto
até aqui? — Ele riu. — Nã o? Entã o
depois do almoço você cuida disso.
Vamos lá . — A caminho da saı́da ele
foi passando a cabeçorra de
Rottweiler pelas diversas portas ao
longodocorredor,paraveroqueos
demais operadores da estaçã o
estavam fazendo. Todas as salas
encontravam-se vazias. — Otimo —
disse.—Todomundocomorabona
rua.Éassimqueeugosto.
Gable levou Nate para almoçar
numa espelunca de comida turca,
uma portinha numa viela cheia de
neve nas imediaçõ es da estaçã o
ferroviá ria. O lugar enfumaçado nã o
tinhamaisquemeiadú ziademesas,
uma janela aberta para a cozinha e
umretratoemolduradodeAtatü rk,o
fundador e primeiro presidente da
Turquia, pendurado na parede. As
pessoas gritavam na cozinha, mas o
tumultocessounomomentoemque
Gablebateupalmasjuntoàjanela.Um
homemmagrodepeleescura,bigode
preto e avental emergiu atravé s da
cortinadecontasquedavaacessoao
salã o. Deu um abraço rá pido em
Gable,queo apresentou como Tarik,
o proprietá rio. O sujeito apertou a
mã o de Nate vagamente, sem itá -lo
nos olhos, entã o eles se dirigiram a
uma mesa no canto. Gable puxou a
cadeira em que queria que Nate se
sentasse, contra a parede e virado
para a porta, e depois se acomodou
també m, com as costas viradas para
aoutraparede.Emturco,pediudois
kebabs Adana, duas cervejas, pã o e
salada.
— Espero que você goste de
pimenta — disse a Nate. — Este
buracotemamelhorcomidaturcada
cidade. Há muitos imigrantes turcos
poraqui.—Eleespiounadireçã oda
cozinha,emseguidaseinclinoupara
Nate e falou: — Fisguei o Tarik há
maisoumenosumanocomoativode
apoio, pra dar uma mã ozinha nas
operaçõ es. Sabe como é : buscar
correspondê ncias,pagaroaluguelde
um esconderijo, bisbilhotar por aı́.
Umas duzentas, trezentas pratas por
mê s e ele está feliz. Sempre que é
necessá rio a gente pode ir recolher
informaçõ es na comunidade de
expatriadosemHelsinki.
Gable se endireitou na cadeira
ao ver a comida chegar: dois kebabs
compridos, bem tostados e
salpicados de pimenta vermelha em
cima de uma rodela grande de pã o
á rabe besuntada com manteiga
derretida. No canto do prato, uma
saladadecebolascruascomsumagre
esucodelimã o.Tarikdepositouduas
garrafas de cerveja gelada sobre a
mesa.
— A iyet olsun. Bom apetite —
falou,emseguidaseretirou.
Natenemsequerhaviapegadoo
garfo quando Gable começou a
devorarseukebabcomafú riadeum
crocodilo.
— Nada mau, nã o é ? —
comentou com a boca cheia, entã o
despejou metade da cerveja goela
abaixo.
Depois, abocanhou mais um
naco do kebab, espicaçando sua
presasemmisericó rdia.Daliapouco,
sem nenhum preâ mbulo ou
constrangimento, perguntou a Nate
que diabo acontecera em Moscou
entreeleeaquelebostadoGondorf.
Sem qualquer vontade de
reabriraferida,Nateofereceu-lheum
breveapanhadodosfatos.
Gable apontou a faca para ele e
falou:
—Ouçacomatençã o.Temduas
coisas que você precisa saber sobre
nosso ramo. Primeiro: ningué m
amadurececomooperadorsemfazer
pelo menos uma grande cagada no
caminho. Segundo: você é julgado
pelas informaçõ es que traz e pela
capacidade de proteger seus
informantes. Nada mais importa. —
Nesse ponto ele engoliu a outra
metade da cerveja e pediu uma
segundagarrafa.—Ah,temmaisuma
coisa:Gondorfé umbunda-mole.Nã o
sepreocupecomele.
Elejá havia destroçado o kebab
antes mesmo que Nate chegasse à
metadedoseu.
—Evocê ?—quissaberNate.—
Jáfezalgumamerda?
— Eu? Sou o rei da merda. Foi
assim que vim parar aqui. Forsyth
salvoumeupescoçodepoisdaúltima.
***
Gable passara boa parte da
carreiranaÁfricaenaÁsia,empaíses
do Terceiro Mundo — o “tour do
inferno”, como o conjunto formado
por esses lugares era conhecido nas
internas. Alguns operadores faziam
seu trabalho em quartos de hotel e
café s em Paris. O universo de Gable
era bem diferente: encontros dentro
de um Land Rover imundo, quase
sempreà meia-noite,emalgumarua
deserta de terra batida. Alguns
operadores gravavam suas reuniõ es
com ministros de governo; Gable
anotavanumblocotoscoossegredos
que ouvia de algum informante
apavorado ao mesmo tempo que
tentava fazer o desgraçado se
concentrar — eles icavam no
interior do carro com as janelas
fechadas, o motor estalando de tã o
quente,
enquanto
serpentes
rastejavam no mato alto em ambos
os lados do veı́culo. Nate já ouvira
dizer que o homem era uma lenda
viva.Lealaseusativos,aosamigose
à CIA, nessa ordem. Nã o havia nada
que ele nã o tivesse visto, e sabia
reconhecer as coisas realmente
importantes.
Gable se recostou na cadeira,
bebeuumgoledecervejaecomeçou
a falar. Sua ú ltima missã o fora em
Istambul, uma cidade enorme, com
bons operadores. Seu conhecimento
deturcoerarazoá vel,elesabiaaonde
ir,comquemfalar.Empoucotempo
recrutouummembro do PKK, grupo
de curdos separatistas que vinham
do leste do paı́s para aterrorizar a
cidade, deixando bombas em caixas
deengraxatenarua,emlatasdelixo
na praça Taksim, em maletas nos
prédiosdogoverno.
Certodia,Gableentrounumtá xi
conduzido por um rapaz curdo que
devia ter uns 20 anos, no má ximo.
Parecia inteligente, dirigia bem.
Manterosolhossemprebemabertos
é osegredodonegó cio,eGableteve
umpalpite,umaintuição,entãopediu
ao garoto que parasse na frente de
um restaurante e o convidou para
comercomele.Precisoufazercarade
poucos amigos para o turco ilho da
putaatrá sdobalcã o,quecomotodos
osturcosodiavaoscurdos,os“turcos
dasmontanhas”.
O moleque parecia faminto.
Começou a falar da famı́lia. Gable
sentiuumcheirodePKKnahistó ria,
entã o contratou o taxista por uma
semanae icourodandocomelepela
cidade. Seu palpite estava certo. O
garotofaziapartedeumacé lulalocal,
mas nã o concordava com aquela
merda de terrorismo. Pronto, Gable
conseguiuumbelorecrutamentopor
um pouquinho de respeito e
quinhentoseurospormê s.Tudopor
ter mantido os olhos abertos dentro
da porra de um tá xi. E assim que se
faz.
O garoto começou entregando
só porcaria,coisasinú teis,masGable
logotratoudecolocá -lonalinha(por
isso que na academia eles tinham
aula de “gestã o de informantes”), e
dali em diante eles se concentraram
nos lı́deres da cé lula, em como as
ordens eram transmitidas, em como
osmensageirosviajavam.Nadamau,
mas bastou apertar o moleque um
pouco mais para ele começar a
revelar a localizaçã o dos galpõ es em
que o PKK armazenava o Semtex, o
Nitrolit polonê s, ou qualquer outro
explosivo que estivessem usando no
momento. Depois de um tempo o
garotopassouainformaronomedas
pessoasquefabricavamasbombas.
A coisa foi icando cada vez
melhor e a certa altura eles
precisaram segurar as ré deas da
Polı́cia Federal Turca, porque os
caras queriam entrar em açã o
imediatamente, colocar as mã os em
todo mundo. O chefe da estaçã o em
Ancara estava feliz da vida, os
igurõ es do QG també m. Mas depois
Gable icou se achando, perdeu o
juı́zo. Uma liçã o para Nate: quando
você começaaacharqueé ocara,aı́
dámerda.
O jovem curdo morava em
Tepebasi,
um
gueto
de
fundamentalistas do outro lado da
colina de Pera, um antigo bairro
europeu. Gable costumava se
encontrar com ele no tá xi e icar
rodando pela cidade sem parar,
sempre à noite. Aı́ um dia resolveu
ignorarosprocedimentosefoiaté a
casa do moleque para conhecer a
famı́lia dele. Nã o podia recusar o
convite, podia? Seria um insulto. E
preciso respeitar a cultura dos
outros, ué . Nã o é ? Alé m disso, ele
precisavasaberondeseuinformante
morava.Umacoisaimportante:você
tem sempre que saber onde os seus
informantes moram; nunca se sabe
quando vai ser preciso buscá -los lá
poralgummotivo.
Aruaeraı́ngreme,eascasasde
arquitetura europeia já haviam
perdido todo o antigo esplendor: as
fachadas descascavam, as portas
duplas tinham uma ou ambas as
folhas quebradas, tapumes cobriam
as janelas. Lixo por toda parte, um
cheiro constante de esgoto. Em
Istambulvocê acabaseacostumando
comesseodor,é até meioadocicado.
Bem,já estavaanoitecendoeasluzes
começavam a se acender no interior
das casas. As oraçõ es noturnas
tinhamacabadodeterminar.
Ele já havia se preparado para
umavisitalongaeenfadonha:faltade
assunto,olhostı́midosvoltadospara
o chã o, muito chá . Paciê ncia. Ossos
doofı́cio.Noentanto,já estavaquase
chegando quando ouviu a gritaria. A
portadafrenteencontrava-seaberta
na casa de seu informante e, lá
dentro, o maior quebra-quebra.
Merda. Mau sinal. Os vizinhos nã o
tardariam a chegar para ver o que
estava acontecendo. Gable nã o dava
dois minutos para aquilo virar um
circo. Entã o começou a se afastar,
decidido a ir embora. Já estava bem
escuro,ninguémoveria.
Dali a pouco, poré m, ele viu o
taxistacurdoserarrastadoparafora
por dois merdinhas esquelé ticos.
Estranhou que ele nã o oferecesse
nenhumaresistê ncia,masdepoisviu
a arma que um deles tinha na mã o.
Atrá sdostrê svinhaumagarotaque
só podia ser a mulher do taxista, de
pele escura e os olhos amendoados
das tribos das montanhas Taurus:
descalça e usando apenas uma
camiseta amarfanhada, ela gritava e
desferia socos nos dois agressores
enquanto uma criancinha de uns 2
anos chorava à porta da casa,
abandonadaecompletamentenua.
Que merda, o garoto tinha se
metidoemapuroscomoPKK.Talvez
tivessedadoalgumabandeiracomo
dinheiro extra que vinha recebendo,
feitoalgumcomentá riosobreonovo
amigo estrangeiro, vai saber. Uma
coisa é certa: quando as coisas dã o
errado, é assim, de uma hora para
outra. O papel dos operadores
també m é proteger esses caras, e à s
vezes é preciso agir por eles.
Ningué m quer estar na pele de um
traidordoPKK:elesaindanãosaíram
da Idade Mé dia quando o assunto é
traição.
Gablepoderiasimplesmenteter
viradoascostas.Masviuacriancinha
na porta, uma menininha linda, e
pensou:Não, não dá pra ir embora.
Atravessou o portã o do taxista,
aproximou-se da varanda e sorriu
paraosdoismerdinhas,quelargaram
o jovem nos primeiros degraus da
varanda. A esposa parou de gritar e
encarouoyabanci,oestrangeiro ilho
daputa.Osvizinhosjá começavama
chegar, uns dez ou doze, todos
curdos. Nã o se ouvia uma porra de
um pio naquela rua, a nã o ser o
esgotoquecorrialadeiraabaixo.
De repente o merdinha armado
berrou alguma coisa em curdo e
começou a brandir a pistola ora na
direçãodotaxista,oranadajovemde
olhosamendoados.Nã ohaviadú vida
dequeapagariaotraidorcasoGable
nãofizessealgumacoisa.Dequalquer
maneira, aquela fonte já havia
secado: o moleque teria de sair da
Turquiasequisessecontinuarvivo.O
merdinha do PKK veio descendo e
berrando na direçã o dele. Ignorando
os olhos do garoto, que só faltavam
pular para fora, Gable se concentrou
na arma que ele empunhava. Os nó s
dos dedos do ilho da puta já
começavamaesbranquiçar,tamanha
a força com que ele segurava a
pistola.Quandoé assimvocê já sabe:
nã otemmaisquetrê ssegundospara
agir. O cano foi se levantando
devagarinho.
Gable tinha uma Browning HiPower
na
cintura.
Sacou-a
rapidamente e atirou trê s vezes no
curdo, pum-pum-pum. Té cnica de
Moçambique. De repente foi lá que
inventaram esse troço. Você atira
duasvezesnopeito,avaliaoestrago,
depois dispara uma terceira vez na
testa do infeliz, só por garantia. O
merdinha arregalou os olhos ainda
mais, desabou para trá s e bateu a
cabeçanosdegraus da escada. Gable
recolheuapistolaqueeledeixoucair
eaarremessoudentrodeumbueiro
pró ximo. Devia ter mais de um
milhã o de armas nos esgotos de
Istambul.Ocartuchodoterceirotiro
aindanã otinhanemchegadoaochã o
quandoosvizinhosfugiramfeitoum
bando de animaizinhos assustados,
cada um para um lado, janelas
batendoàspressasaolongodetodaa
rua.
O taxista correu para abraçar a
mulher. Talvez nem tivesse se dado
conta de que nascera de novo, mas
ela sim, percebia tudo, era
visivelmente esperta, os mamilos
marcados sob o pano da camiseta.
Gable olhou para o outro PKK, que
pareciatervistoJesus,ouMaomé ,eo
merdinha ergueu os braços em
rendiçã o, foi descendo os degraus
devagarinho, depois desapareceu no
breudarua.
Gable deu cinco mil pratas ao
taxista para ele sumir no mundo —
nã o tinha conseguido mais que isso
comopessoaldoQG.Nã osabiapara
ondetinhamido,talvezAlemanhaou
França. Cinco pirralhos curdos
aprendendo
alemã o.
Quando
izessem 20 anos, quem sabe o ilho
deNatenã oirialá recrutá -los?Tudo
muitolouco.
Agora a moral dessa histó ria
comprida.Oqueveiodepoisfoiuma
tempestade de merda, sem nenhum
exagero. Primeiro foi o cô nsul-geral,
um poço de histeria, com uma
vozinha ina e estridente, depois o
embaixadoremAncara,emseguidao
Departamento de Estado inteiro.
Diplomata americano envolvido em
homicı́dio. Todo mundo puto dentro
das calças, um chororô dos infernos.
Repercussõ es muito graves. Nã o
dava para continuar em Istambul. A
Polı́cia Federal Turca deu a Gable
uma placa e um jantar de despedida
—estavamadorandoaquilotudo.Os
policiais turcos adoram ver o circo
pegar fogo. Mas fora eles, todo
mundoqueriaverGablepelascostas,
e a investigaçã o o icial da CIA ainda
nemtinhacomeçado.
Depois disso, Gable montou
acampamento na corregedoria de
Washingtonporquaseummê s.Apó s
quarenta horas de discussã o, eles
chegaram ao veredicto de “má
conduta operacional”. O chefe da
estaçã o de Ancara simplesmente
tirou o dele da reta — havia muitos
fatorespolı́ticosem jogo. Nã o muito
diferentedeGondorf.SegundoGable,
Nate ainda iria topar com muitos
bundõ es assim na carreira. Tudo
indicava que tã o cedo Gable nã o
receberiaoutraoperaçã onoexterior,
ederepenteeleseviuenjauladonum
cubı́culo no setor turco do QG em
Washington, ouvindo a conversa do
cubı́culo vizinho, uma novata de 23
anos usando a linha externa para
contaraumaamigaqueen imcriara
coragem para fazer um boquete no
namorado naquele im de semana.
Nenhum dos recé m-contratados
usava um reló gio de pulso: eles
olhavam as horas em um maldito
telefone ou tablet, o que quer que
issofosse.
Gable nã o icava se lamentando
—asoperaçõ eseramassimmesmo.
Tudo isso tinha lhe acontecido, mas
por um bom motivo. O resumo da
ó pera era: nã o existe nada mais
importante que um informante, a
segurançadele,avidadele.
Maisoumenosnamesmaé poca,
Forsythestavasaindodesuapró pria
tempestade de merda para ocupar a
che ia de Helsinki. Ouvira dizer que
Gable izera uma bela cagada, o que
nã o chegava a ser nenhuma
novidade,entã ooconvocaraparaser
seu braço direito como nos bons
tempos,
quena verdade nunca
tinhamexistido— nã o passavam de
um grande mito. Quanto a Gable, foi
comenormeprazerqueospalermas
do QG o despacharam para a
Finlâ ndia: ningué m mais queria
ocupar aquele cargo e Washington
nã o via a hora de se livrar daquela
peste,aquelamáinfluência.
— Entã o, cá estamos nó s. Trê s
trapalhõ esexiladosnoCı́rculoArtico.
Eu e você aqui, bebendo cerveja no
pulgueiro de um turco. — Gable
terminou sua cerveja e berrou: —
Hesap. — Esperou Tarik sair da
cozinha, apontou para Nate e disse:
—Hojeéelequevaipagar.
Nateriu,depoisfalou:
— Espere um instante. Você
falou que Forsyth també m passou
porumatempestadedemerda.Oque
aconteceu com ele? — Pegou alguns
eurosnacarteira,entregou-osaTarik
e emendou: — Pode icar com o
troco.
O homem agradeceu com um
sorriso apagado e voltou para a
cozinha.
— Você exagerou na gorjeta,
novato—avisouGable.—Assimeles
icam mal-acostumados. E melhor
deixá-loscomfome.
Eleselevantouevestiuocasaco.
—Bobagem—retrucouNate.—
Você deucincomilpratasprotaxista
curdo só pra tirá -lo daquela
enrascada,evocê mesmodissequeo
garoto já era carta fora do baralho,
que nã o valia mais nada. Nã o
precisavadarnenhumdinheiroaele.
Nate itou Gable enquanto eles
saı́am da viela e seguiam caminho
diantedaestaçã oferroviá ria.Viuque
ele nã o olharia de volta, mas à quela
alturajá sabiaqueohomemeramais
que apenas um cara durã o. De
qualquer modo, nã o tinha a menor
intençãodetestaroslimitesdele.
Odiaestavafrio,eNateergueua
gola do sobretudo para se proteger
dovento.
— Você nã o me contou sobre
Forsyth—falou.—Oquehouvecom
ele? Gable mais uma vez ignorou a
pergunta.
— Sabe onde ica a embaixada
da Rú ssia? — perguntou. — E as da
China, do Irã , da Sı́ria? Você precisa
estarpreparadopraentrarnumcarro
eirdiretopraqualquerumadelas.A
gente nunca sabe quando vai ter de
pedirasilopraalguminfeliz.Voulhe
dar uma semana pra localizar todas
elas.
— Tudo bem, sem problema.
Mas e Forsyth? Qual é a histó ria? —
Nate desviava dos pedestres, que
eram muitos à quela hora da tarde,
enquanto Gable ia esbarrando em
todos os que atravessavam seu
caminho. A certa altura ele avistou
um café do outro lado da rua e
sugeriu: — Que tal um cafezinho?
Vamoslá,éporminhaconta.
Gableoolhoudeladoeassentiu
comacabeça.
Tomando um café com
conhaque, ele en im desembuchou.
Forsytheraumdoschefesdeestaçã o
mais prestigiosos que existiam. Ao
longo de uma carreira de 25 anos,
construı́ra um currı́culo invejá vel.
Logo no inı́cio, recrutara o primeiro
informantenorte-coreanodahistó ria
da CIA. Antes da queda do Muro,
convenceraumcoronelpolonê salhe
passar todos os planos de guerra do
Comando Sul do Pacto de Varsó via.
Alguns anos mais tarde, recrutara o
ministro de Defesa da Geó rgia, que,
em troca de uma conta bancá ria na
Suı́ça, providenciara que um tanque
T-80 de blindagem reativa chegasse
exatamente à s trê s horas da
madrugada a uma praia remota de
Batumiesubissearampadonaviode
desembarque pesado que a CIA
alugaradosromenos.
Nã o demorou para que Forsyth
fosse visto como um dos o iciais
seniores que mais entendiam do
jogo, e um dos que melhor jogavam.
Os operadores tinham verdadeira
adoraçã o por ele. Embaixadores o
procuravam em busca de conselhos.
No QG, os igurõ es do sé timo andar
depositavam nele uma con iança
quase cega. Por conta disso, aos 47
anos Forsyth foi presenteado com a
che ia de uma das mais cobiçadas
estaçõ es do mundo, a de Roma, e,
comoesperado,seusprimeirosanos
nacidadeforamumenormesucesso.
Oqueningué mesperavaeraque
Tom Forsyth, um homem tã o
experiente, izesse a besteira de
mandar a arrogante assistente de
certosenadoremvisitaaRomacalar
aboca,duranteumaapresentaçã ona
estaçã o.Recé m-graduadaemYaleem
Ciê ncias Polı́ticas, com 23 anos e
apenas vinte meses de experiê ncia
no Capitó lio, a moça havia
questionado a “pertinê ncia” de
determinadaoperaçã odaestaçã ode
Roma, uma manobra ao mesmo
tempo controversa e complexa, e
comoseissonã obastassecriticarao
pró prio Forsyth pelas tá ticas
empregadas, dizendo que elas
haviam
sido,
“no
mı́nimo,
inadequadas.” Foi o su iciente para
Forsythretrucarcomumsonoro“Vá
à merda”edaliaalgunsdiasreceber
uma noti icaçã o do QG informando
que o senador reclamara e que seu
perı́ o doem Roma seria abreviado
porjustacausa.
Passado algum tempo, com a
protocolar carta de reprimenda já
arquivada, os chefõ es do sé timo
andar discretamente lhe ofereceram
o comando de Helsinki. O principal
objetivo da proposta foi mostrar ao
CongressoqueoQGconcordavacom
a
reaçã o
de
Forsyth
ao
comportamento de senadores que
usavam o trabalho como pretexto
parafazercomprasemRomaeainda
por cima constrangiam um de seus
mais ié isededicadosoperadoresde
campo. Na verdade, tratava-se de
uma oferta quase nominal, porque
ningué mesperavaqueForsythfosse
aceitar. Alé m de muito menor que a
estaçã odeRoma,adeHelsinki icava
no que talvez fosse o menos
importante dos quatro sossegados
paı́ses da Escandiná via, posto mais
adequado a um o icial em inı́cio de
carreira. A expectativa era que
Forsyth recusasse e permanecesse
em Washington aguardando os dois
anos que ainda faltavam para sua
aposentadoria.
—AoaceitarachefiadeHelsinki
— disse Gable —, ele basicamente
cagou na cabeça do pessoal do
sé timo andar. Seis meses depois,
mandou me buscar como vice. E
ontem você chegou. Nã o que você
seja um trapalhã o como a gente —
acrescentou, rindo. — Você só tem
famadetrapalhão.
Gablenãopôdedeixardenotaro
olhardistantedeNate.Já tinhavisto
aquele ilme antes: o talentoso
operador que, preocupado demais
com o pró prio futuro e a pró pria
reputaçã o, nã o conseguia relaxar e
deixar as coisas luı́rem. Gondorf
estragara o garoto, aquele ilho da
puta. Agora Gable e a Forsyth
precisariam consertá -lo. A ú ltima
coisa de que a estaçã o precisava
naquele momento era de um
operador que nã o sabia a hora certa
detentarrecrutaruminformante.
ADANA KEBAB DO TARIK
Fazer um purê com pimentões
vermelhos, pimenta dedo-de-moça,
azeite e sal. Adicionar carne de
cordeiro moída, cebolas picadas, alho,
salsa, cubos de manteiga, coentro,
cominho, páprica, mais azeite, sal e
pimenta. Amassar tudo, depois
modelar os kebabs e colocá-los para
grelhar. Servir com pão pide e cebolasroxas salpicadas com limão e sumagre.
CAPÍTULO 8
O HIDROFOLIO VOSKHOD AZUL
e branco se acomodou na á gua e foi
se aproximando do cais, deixando
atrá s de si uma mancha azulada de
diesel queimado. Carregando apenas
umamalapequena,Dominikadesceu
pela rampa que se elevava acima do
lamaçalà beiradorioeseguiuparao
ô nibus mais à frente, estacionado
numa estrada de cascalho. Onze
jovens — sete moças e quatro
rapazes—vinhamatrá sdela.Mudos
e cansados, todos depositaram suas
respectivasmalasnochã o,diantedo
bagageiro do ô nibus. Ningué m dizia
nada, nã o olhavam uns para os
outros. Dominika virou para trá s e
itou o imponente rio Volga e os
pinheirais que cobriam ambas as
encostas até a á gua. O ar estava
ú mido e o rio cheirava a ó leo diesel.
Trê s quilô metros ao norte, os
campaná rios e minaretes nos
arredores do Kremlin de Kazan
podiamservistosemmeioà neblina
matinal.
Dominika sabia que se tratava
de Kazan porque, depois de terem
pousado no aeroporto, eles haviam
atravessado a cidade até deixarem
para trá s a ú ltima placa rodoviá ria.
Isso signi icava que estavam no
Tartaristã o, ainda na Rú ssia
europeia. A meia-noite, tinham
embarcado num aviã o em Moscou e
voado 700 quilô metros até a
escuridã o de um campo de pouso
militar.
Letreiros
luminosos
apagados
informavam:
BORISOGLEBSKOYE AERODROME E
PARQUE AERONAUTICO DE KAZAN.
Delá ,abordodeumô nibusdevidros
trincados e cortinas encardidas, eles
haviamatravessadoasruasdesertas
da cidade até chegarem a um
afastado porto luvial. O sol já
despontava no horizonte quando
enfimembarcaramnohidrofólio.
Acomodados em silê ncio nas
poltronas que pareciam as de um
aviã o, eles ainda esperaram por
quaseumahoranaabafadacabinedo
hidrofó lio.
O
balançar
descompassado do casco, o bater da
á gua contra o pı́er, o roçar do
cordame de ná ilon nos postes de
amarraçã o, tudo isso deixava
Dominika um tanto enjoada e
sonolenta.Comexceçã odomotorista
do ô nibus e de um homem no
passadiço do barco, eles nã o tinham
visto ningué m até entã o. Dominika
contava os pá ssaros conforme o sol
sederramavanorio.
Finalmente, um Lada cinza
estacionou pró ximo à prancha de
embarqueeumcasalsaltoudocarro,
carregando duas caixas de papelã o.
Eles
entraram
no
barco,
acomodaram-nas sobre o balcã o na
parte dianteira da cabine e abriramnas.
— Sirvam-se — disse a mulher,
e se sentou na primeira ila de
assentos, de costas para o restante
dospassageiros.
Lentamente, eles se adiantaram
até lá . Nã o haviam comido nada
desde o café da manhã do dia
anterior. Uma das caixas continha
bulochki frescos e rosquinhas doces
com uvas-passas, e a outra,
garra inhas de laranjada morna. O
homemesperouquetodosvoltassem
a sentar, depois subiu ao passadiço
para falar com o comandante. Dali a
pouco os motores do barco
começaram a roncar e o casco
estremeceu.Arampadealumı́niofoi
recolhidaeascordasforamsoltas.
O barco seguia acima da
superfı́cie da á gua, sustentado pelos
fó lios, e tremia de proa a popa
enquanto avançava. Dominika via o
assento à sua frente vibrar e o teto
chocalhar no alto, junto com os
rebites. Os cinzeiros de metal
zumbiam nos braços das poltronas.
Para afastar o enjoo, ela olhava
ixamente para o tecido imundo da
poltrona à sua frente, mal
acreditandoqueestavaatravessando
oVolgarumoàsuamaiorhumilhação
de todos os tempos: uma faculdade
decortesãs.
A bordo de um segundo ô nibus
paraoú ltimotrechodaviagem,com
amulheranô nimaocupandoobanco
da frente, eles passaram por uma
lorestadepinheirosaté chegarema
um muro de concreto armado cheio
de cacos de vidro no alto, que
re letiamaluzdosol.Omotoristado
ô nibus buzinou, depois atravessou o
estreito portã o e seguiu por um
caminho sinuoso até parar na frente
de uma mansã o de dois andares em
estilo neoclá ssico com telhado de
ardó sia. O silê ncio era absoluto —
nã oseouvianemumabrisa—enã o
havianenhummovimentodentroou
foradacasa.
Dominika respirou fundo.Não
adianta reclamar, falou para si
mesma. Aquele lugar repulsivo era
apenas mais um obstá culo, um
sacrifı́cio,umtesteà sualealdade.Ela
desceudoô nibuseesperouemmeio
aospinheirosdiantedacasa.Acabara
dechegaràEscoladePardais.
Apó s a conversa com o tio,
Dominika quase mandara todos eles
à merda. Cogitara mudar-se com a
mã eparaStrelna,à smargensdabaı́a
do rio Neva, nas imediaçõ es de Sã o
Petersburgo. Poderia encontrar
trabalho como professora ou
instrutoradeginá stica;comopassar
dotempo,eumpoucodesorte,talvez
até conseguisse uma posiçã o na
AcademiaVaganovae voltar ao balé .
Mas, por im, decidira nã o jogar a
toalha. Levaria aquela histó ria
adiante a qualquer custo. Nã o se
deixariavencer.Oquelheensinariam
naquela escola pertencia ao â mbito
do fı́sico, e apenas do fı́sico. Nã o
importava o que a obrigassem a
fazer, ningué m conseguiria atingi-la
noespírito.
Por
outro
lado,
conforme
pensavanessascoisas,seueusecreto
cogitava se ela nã o conseguiria ter
algum prazer, por menor que fosse,
na só rdida catequese a que se
submeteria naquele lugar. Dominika
odiava a ideia de uma Escola de
Pardais,envergonhava-sedeestarali,
masnoíntimoestavacuriosa.
— Deixem suas malas no hall e
venham comigo — orientou a
mulher, depois subiu a escadaria
paraabriragigantescaeantigaporta
demadeiradamansão.
Eles seguiram direto para o
auditó rio. A julgar pelas prateleiras
de livros, o lugar era uma biblioteca
convertida em sala de palestras.
Havia uma plataforma nos fundos,
sobre a qual icava um pequeno
pó dio, e, em frente a ela, diversas
ileiras de bancos de madeira, que
rangeramquandoosjovensalunosse
sentaram. Trajando um terninho
preto disforme, a mulher começou a
distribuir envelopes aos presentes,
dizendo:
— Aı́ dentro você s encontrarã o
onú merodoquartoreservadoacada
um e o nome que deverã o usar
durante todo o treinamento. Usem
apenas este nome. Nã o revelem
nenhum tipo de informaçã o pessoal
aos colegas. Os que infringirem esta
norma
serã o
sumariamente
dispensados.
Aparentando50epoucosanos,a
administradora
tinha
cabelos
grisalhos escovados para trá s, um
rostoquadradoeonarizreto.Parecia
Valentina Tereshkova, a primeira
mulher a ir ao espaço. Suas palavras
saíamemgotasdeamarelo.
— Você s foram selecionados
para um treinamento especializado
— prosseguiu ela. — O que é uma
grande honra. E possı́vel que a
natureza deste treinamento pareça
estranhaaalgunsdevocê s.Procurem
se concentrar nas liçõ es e nos
exercı́cios.Esó issoqueimporta.—
Suavozecoavanosalã odepé -direito
alto. — Agora subam para seus
quartos.Ojantarserá servidoà sseis
na sala do outro lado do corredor. A
p r i m e i r asessã o
do
nosso
treinamento será aqui mesmo, à s
sete.Podemseretirar.
No corredor do andar de cima,
Dominika contou doze quartos, seis
decadalado;todostinhamumaplaca
esmaltada informando o nú mero.
Entre as portas dos aposentos havia
outrassemnú meroesemmaçaneta,
que só podiam ser abertas com a
chave correspondente. O quarto de
Dominika era verde-claro, modesto
mas confortá vel, com uma cama de
solteiro, um armá rio, uma cô moda e
uma cadeira. Era possı́vel sentir um
discreto cheiro de desinfetante em
toda parte: nas cobertas, no guardaroupa, nos lençó is empilhados na
prateleira. Uma cortina de plá stico
demarcava os limites do banheiro,
que se resumia a uma pia
enferrujada, um vaso sanitá rio e um
chuveirodemã ologoacima.Noalto
dacô moda icavaumespelhogrande
demais para o estilo espartano da
decoraçã o. Dominika colou o rosto
contraasuperfı́ciedeleeoexaminou
atentamente, tal como aprendera no
treinamento.Logoviuquesetratava
de um espelho de duas faces. BemvindaàEscoladePardais.
A noite caiu, embora o cé u
escuronã opudesseservistoatravé s
do pinheiral. A mansã o estava na
penumbra. Nã o havia reló gios em
nenhum lugar da casa. Tampouco
telefones. Nã o se ouvia nada nos
corredores, nas escadas ou nos
cô modos do andar de baixo. Nã o
havia enfeites nas paredes, nem
mesmoosdaguerreó tiposo iciaisde
Lê nin e Marx, mas ainda eram
evidentes os contornos dos quadros
de outrora. Que famı́lia de tá rtaros
teriamoradoaliantesdaRevoluçã o?
Como seriam os nobres que
cavalgavam e caçavam naquele
pinheiral? Teria sido possı́vel ouvir
dali o apito dos paquetes a vapor
chegando de Moscou pelo rio? Que
instinto sovié tico teria colocado
aquelaescolatãolongedacapital?
Dominika correu os olhos pelos
outros onze “alunos” que tomavam,
calados,aespessasopademacarrã o,
o utokmach, que o garçom lhes
servira em silê ncio de uma linda
sopeiradeporcelanaazulebranca.A
sopa se seguiria um prato de carne
cozida. As mulheres e trê s dos
homensaparentavamter20epoucos
anos,masoquartorapazpareciaum
adolescente pá lido e magro.
Dominika cogitou se eles també m
haviam sido treinados no SVR.
Virando-se para a moça a seu lado,
elasorriuedisse:
—MeunomeéKatya.
Era assim que ela se chamaria
daliemdiante.
— O meu é Anya — retrucou a
jovem,sorrindodevolta.
Tinha um porte miú do, cabelos
lourosemaçãsdorostosalientes,nas
quais se viam algumas sardas.
Parecia uma elegante ordenhadeira
de olhos azul-claros. Suas palavras
tinham o tom azulado de uma
centá urea, a cor da pureza e da
ingenuidade.
Timidamente,
os
demaisseapresentaramtambém.
Quando terminaram de jantar,
eles passaram à biblioteca, onde
reinava mais absoluto silê ncio. De
repente, as luzes se apagaram e um
ilme em preto e branco começou a
rodar no telã o armado sobre a
plataforma, uma sucessã o de
imagens brutais e selvagens, um
atropelo de rostos crispados, corpos
contorcendo-se e genitais por toda
parte,algumasvezestã oemfocoque
chegavam a icar irreconhecı́veis,
sobrenaturais.O ilmeseinicioucom
som no volume má ximo, assustando
a todos, inclusive Dominika, que
começou a icar tonta em razã o do
remoinho de cores que girava à sua
volta. Vermelho, violeta, azul, verde,
amarelo: o arco-ı́ris da sobrecarga
visual. Ela precisou fechar os olhos
para escapar daquele tormento. Foi
entã o que uma das caixas de som
estourou e o volume passou do
má ximo ao mı́nimo, dando a
impressã o de que a mulher na tela
sussurrava, ainda que seus cabelos
estivessem grudados na lateral do
rosto e o corpo se sacudisse
freneticamente a cada estocada do
parceiro.
Dominika receou nã o ter
estô magoparalevaraquiloaté o im.
O que estariam esperando dela? O
que fariam caso ela se levantasse e
saı́sse dali? Seria dispensada do
serviço?Nã o,nã odariaessegostinho
a eles. Queriam um pardal, nã o
queriam?Entã oeraissoqueelalhes
entregaria. Ningué m sabia que ela
visualizavacores.Mikhaildisseraque
jamais vira algué m tã o bom na
percepçã o de pessoas. Ela icaria.
Aprenderiaoquelhefosseensinado.
Disseasimesmaqueaquilonã o
era amor. Aquela escola, aquela
mansã o cercada por muros e cacos
de vidro, nã o passava de uma
má quina
do
Estado
que
institucionalizava e desumanizava o
amor.
Nada
daquilo
tinha
importâ ncia, era apenas sexo, algo
fı́sico. Um treinamento nã o muito
diferente do balé que ensinavam na
academia.Napenumbradabiblioteca
bolorenta, Dominika disse a si
mesma que chegaria ao im daquela
histó ria nem que fosse como uma
afrontaàquelesfilhosdaputa.
As luzes se acenderam e os
alunos se entreolharam, corados de
vergonha. Com a voz inexpressiva, a
supervisoradisse:
— Você s izeram uma longa
viagem. Vã o para seus quartos e
procurem descansar. O treinamento
recomeça amanhã à s sete horas.
Podemseretirar.
Nada no comportamento dela
indicava,nemremotamente,queeles
haviamacabadodeassistiranoventa
minutos de sexo ininterrupto e
explı́cito. Os alunos saı́ram em ila e
foram subindo pela escadaria de
balaú stres pesados e imponentes.
Anya acenou um boa-noite antes de
fecharaportadoquartoeDominika
cogitou se ela e os demais alunos
descon iavam de que seriam
espiados enquanto se despiam,
tomavam banho e dormiam, de que
cada um daqueles aposentos
intermediá rios abrigava um voyeur
doInstitutoKon.
Ela parou diante do espelho e
começou a pentear os cabelos com
sua escova de cabo longo, o ú nico
pertencequehavialevadodecasa.A
certa altura olhou para o objeto e
teve a impressã o de que ele a itava
de volta com um ar zombeteiro. Em
seguida ela tirou a blusa, colocou-a
num cabide de arame e pendurou-o
displicentemente na quina do
espelho, cobrindo boa parte dele.
Pegou a mala, apoiou-a sobre a
cô moda, abriu-a e lá se foi mais um
terço do espelho. Por im, despiu a
saia, virou-se para dar uma espiada
rá pida nas ná degas sob as meias de
ná ilon e, com a maior naturalidade
possı́vel,jogou-asobreamoldurado
espelho,cobrindooqueaindasevia
dele.Namanhãseguinteelestirariam
tudo dali, claro, talvez até a
repreendessem, mas ela teria pelo
menosumanoitedepaz.
Dominika escovou os dentes,
entrou debaixo das cobertas, que
cheiravam a desinfetante de câ nfora
e ó leo de rosas, e apagou a luz. A
escovaficousobreacômoda.
***
Oshomenseasmulheresforam
separadosunsdosoutroseà medida
que os dias passavam eles
começaram a perder a noçã o do
tempo. Manhã s tediosas eram
dedicadas a palestras interminá veis
sobreanatomia, isiologia,psicologia
dos estı́mulos e das respostas
sexuais. Alguns novos professores
iam dando as caras. Uma mé dica
falou por horas sobre as prá ticas
sexuais de diferentes culturas.
Depois vieram as aulas sobre a
anatomia
masculina,
o
funcionamento do corpo de um
homem,oquefazerparaexcitá -lo—
mais de cem té cnicas, posiçõ es e
movimentos, tudo devidamente
estudado, repetido e memorizado
numa espé cie de Kama Sutra russo.
Dominika icavaperplexacomaquela
enciclopé dia
monstruosa,
com
aquelasinformaçõ esqueaospoucos
roubavam sua inocê ncia e minavam
qualquer perspectiva de uma vida
sexual normal no futuro. Como seria
possı́vel fazer amor depois de ver e
ouvirtudoaquilo?
As tardes eram reservadas à s
“atividades prá ticas”, como se o
assunto em pauta fosse algo tã o
banalquantopatinaçã o no gelo. Elas
treinavam o modo correto de
caminhar, conversar, abrir uma
garrafa de champanhe. Num dos
quartos da casa, aprendiam a se
vestir com um deplorá vel acervo de
roupas usadas, sapatos puı́dos e
lingerie manchada de suor. També m
aprendiam a falar umas com as
outras, a ouvir, a demonstrar
interesse, a bajular e, mais
importante de tudo, a arrancar
informaçõesduranteumaconversa.
Certavez,numraromomentode
descontraçã o, cinco delas se
sentaram em cı́rculo no chã o da
bibliotecaparapraticar,entremuitas
risadasemuitofalató rio,o“linguajar
dosexo”quehaviamaprendidocom
osfilminhosnoturnos.
—Eassim—falouumamenina
de cabelos escuros e um forte
sotaquedaregiã odomarNegro.Em
seguida fechou os olhos e sussurrou
numa linguagem cheia de erros: —
Isso,gostoso,vocêmefazergozar...
Todas elas começaram a
gargalhar. Dominika olhou para
aquelas moças ruborizadas e se
perguntou quanto tempo levaria até
que estivessem só de calcinha num
quarto de hotel em Volgograd,
esperando que algum ministro
vietnamitatirasseseussapatos.
— Katya, agora é sua vez —
disseameninaaDominika.
Desde o inı́cio elas haviam
intuı́do que por algum motivo
Dominika era diferente, especial.
Anya agora a encarava, curiosa para
veroqueelafaria.
Semsaberdireitoporquê,talvez
para mostrar à s outras, ou a si
mesma, que era capaz, Dominika
semicerrouosolhosemurmurou:
— Isso, meu amor... assim, vai...
vai, vai, vai... — Entã o, das
profundezas do ser, ela tirou: —
Aaaaaaaaaahhh...
Seguiu-se um silê ncio de
espanto, mas de repente as moças
irromperam num entusiasmado
aplauso,
aprovando
com
unanimidade o desempenho de
Dominika. Ao lado dela, Anya estava
com
os
olhos
arregalados,
boquiaberta, alheia à comicidade da
situaçãocomoumtodo.
Anya e seu halo azul-centá ureo.
Ela vinha tendo muitas di iculdades
com o curso: horrorizava-se com os
aspectos mais só rdidos e volta e
meia procurava Dominika em busca
de apoio e encorajamento. “Você
precisa se acostumar”, dizia
Dominika,masameninaainda icava
terrivelmente constrangida nas
sessõ es de cinema e apertava sua
mã o enquanto o circo sexual
in lamava o telã o à frente delas.
Dominikatinhaquasecertezadeque
acamponesinhanã ochegariaao im,
via que as cores em torno dela já
começavamadesbotar.
Então,certanoite,apósumfilme
especialmente pornográ ico que a
izera chorar baixinho, Anya bateu à
porta do quarto de Dominika e
entrou com os olhos vermelhos e os
lá biostrê mulos.Precisavadoconsolo
da amiga, estava prestes a perder o
juı́zo. Dissera a eles que queria
desistir, mas eles retrucaram algo
que só Deus sabia o que fora e ela
seriaobrigadaacontinuar.Dominika
puxou-aparaooutroladodacortina
dobanheiro.
—Você precisasermaisforte—
sussurrou, sacudindo Anya pelos
ombroscomdelicadeza.
Choramingando,
a
garota
envolveu o pescoço dela com os
braços e a puxou para um beijo. A
pobre idiota tremia, e Dominika nã o
a repeliu. No instante seguinte elas
estavam no chã o do pequeno
banheiro, Dominika aninhando a
outra nos braços, sentindo os
tremores dela. Anya virou o rosto
para um segundo beijo e Dominika
cogitou recusá -lo, mas acabou
cedendoeretribuiuacarícia.
Encorajada, Anya pegou a mã o
dela e a passou sob o roupã o de
banhoquevestia,naalturadosseios.
Ah, tenha santa paciência, pensou
Dominika, que nã o sentia nada pela
garotaanã osercertapena.Será que
aquiloeraatalbissexualidadedeque
haviam falado nas aulas? De repente
ela icou preocupada. Talvez aquela
cortina nã o bastasse para escondê las do voyeur do outro lado do
espelho. Podia haver algum
microfone escondido por perto.
Talvez aquilo que estavam fazendo
fosseumafaltagrave.
Com os dedos fechados no
punho de Dominika, Anya fez com
que a mã o dela roçasse um de seus
mamilos até que ele enrijecesse e,
depoisdisso,comoroupã ocaı́do,foi
descendo a mã o escravizada na
direçã o da pró pria virilha. Dominika
nã o oferecia qualquer resistê ncia.
Perversã o? Generosidade? Alguma
outracoisa?Alibertinaqueelatrazia
em algum lugar da alma, fosse lá
quem fosse, observava o que se
passavaalielhediziaparaseguirem
frente, até porque, à quela altura,
talvez já fosse tarde demais para
recuar. Com a leveza de uma pluma,
Dominika traçou, com os dedos,
cı́rculosminú sculoseperfeitosentre
as pernas de Anya, que estremeceu
de prazer com a cabeça arqueada
paratrá s,opescoçodesenhandouma
curvabonitaevulnerável.
Dali a pouco, recostada nos
azulejos do banheiro, Dominika
sentiuarespiraçã odeAnyaentreas
pró priaspernas.Nã oviumotivopara
impedi-la. Foi orientada por seu eu
secretoaseentregarà ssensaçõ es,a
saborear o calor que as narinas dela
emanavam e que se irradiava pela
barriga. Com a cabeça jogada para
trá s, Dominika ergueu o braço para
seapoiarnapiaeencontrouaescova
decabelodecabodetartarugadesua
prababushka. Sua avó e sua mã e
haviam se penteado com aquela
mesma escova, que por im se
transformara no brinquedinho
secreto de Dominika nas noites de
tempestade.
Ela deslizou o cabo da escova
pelabarrigadeAnyacomdelicadeza,
bem devagar, até fazê -lo sumir
dentro dela. A camponesinha
entreabriu os lá bios e revirou os
olhos. De repente ela se retesou e
depois começou a acompanhar o
lento vaivé m do cabo de tartaruga,
em seguida ergueu o rosto para
Dominika e, tentando reproduzir a
faladosfilmes,sussurrou:
— Isso, meu amor, assim, vou
gozar.
Dominika sorriu e observou a
loirinha estrebuchar de prazer
enquantoelamesmamandavaseueu
secreto de volta para a toca de onde
elenuncadeveriatersaído.
Ao im de alguns minutos, Anya
suspirou e se inclinou para mais um
b e i jo .Chega, pensou Dominika, e
disse:
—Agoravocêprecisair.Rápido.
Comorostocorado,Anyavestiu
oroupã o,olhouumaú ltimavezpara
Dominikaesaiuemsilê ncio.Será que
algué m as tinha visto do outro lado
do espelho? Será que seriam
repreendidas na manhã seguinte?
Cansada demais para se importar,
Dominika voltou para a cama e
apagoualuz.
Aescovapermaneceuesquecida
nochãodobanheiro.
Na manhã seguinte, num dos
cô modos do andar de baixo, um
amplosalã ocomparedesdemadeira
eumenormetapeteazulebrancodo
Cazaquistã o, as moças foram
instruı́das a se acomodar nas
cadeiras posicionadas em cı́rculo no
meio do aposento. Assim que se
sentaram, uma delas, uma jovem
morenacomomelodiososotaquede
Novgorod,foiorientadaa icardepé ,
tirar as roupas e andar em torno do
cı́rculo para ser avaliada pelas
demais. Seguiu-se um silê ncio de
perplexidade. A garota hesitou por
ummomento,masen imobedeceu.A
mé dica e sua assistente, ambas de
jaleco, agiram como moderadoras,
observandoospontosfortesefracos
docorpodamoça,depoismandaramna voltar à cadeira e continuar nua.
Em seguida foram chamando as
demaisparaomesmoprocedimento,
o que originou uma lenta procissã o
de corpos trê mulos e incongruentes
com o rosto ruborizado, a pele
arrepiada e os lá bios mordidos. As
roupas e os sapatos formavam
montinhos deplorá veis debaixo das
cadeiras.
Por sorte nã o havia homens na
sala. Anya apertou as mã os
nervosamente quando en im chegou
suavez,depoisolhouapavoradapara
Dominika, que a ignorou. A mé dica
rugiu para que ela se apressasse e
tirasselogoacalcinha.
Em seguida foi a vez de
Dominika. Ignorando a pró pria
ansiedade,elaselevantouassimque
foi
chamada.
Achava
uma
monstruosidade ter de icar nua
diante de tantas desconhecidas, mas
obrigou-se a ir em frente. Ficou
constrangida nã o só pela pró pria
nudez,mastambé mpelosilê ncioque
tomouasalaassimqueelacomeçou
a caminhar pelo cı́rculo. Sentia
claramente os olhos de Anya ixos
nela.
— A melhor da raça —
sussurrouaassistente.
— A melhor da exposiçã o —
corrigiuamédica.
Nodiaseguinteelasvoltaramao
mesmo salã o, mas encontraram um
homem no meio do cı́rculo de
cadeiras,vestindoapenasumroupã o
curtoquedaliapoucotirou.Osujeito
precisava de um bom banho, assim
comocortarasunhasdopé .Amé dica
descreveueavaliouocorpodelepara
asalunas,detalhepordetalhe.Nodia
seguinte lá estava ele de novo, mas
agora acompanhado de uma mulher
baixinhaegorducha,decabelosbem
ruivos, as faces e os cotovelos
ressecados. Eles se despiram e
começaram a fazer amor de forma
mecâ nicasobreum colchã o no meio
do cı́rculo de cadeiras. A mé dica
comentou as diferentes posiçõ es
sexuais, interrompendo o casal
algumas vezes para ressaltar um
ponto relevante ou apontar um
detalhe fı́sico. Os modelos nã o
demonstravam nenhuma emoçã o e
os cı́rculos de cor em volta deles
eram tã o desbotados que Dominika
nem
conseguia
distingui-los.
Pareciamnãoteralma.
— Eu mal conseguia olhar pra
eles — confessou Anya a Dominika.
Elas haviam adquirido o há bito de
fazer uma breve caminhada pelos
jardins abandonados da mansã o nos
poucos minutos livres de que
dispunhamapó socafé damanhã .—
Seilá ,nã otenhoestô magopraessas
coisas.Simplesmentenãotenho.
— Olha, a gente pode se
acostumar com qualquer coisa na
vida—disseDominika.
Ficou se perguntando por que
diabo haviam selecionado aquela
caipira e em que roça a teriam
encontrado. Em seguida pensou:E
você, Dominika? É capaz de se
acostumaraqualquercoisa?
Talcomoelaprevia,ascoisassó
pioraram na semana seguinte. De
novo as moças foram conduzidas ao
salã o, mas dessa vez eram homens
queocupavamascadeirasemcírculo,
sujeitos broncos, com paletó s
apertadosdemaise cortes de cabelo
medonhos. Elas foram obrigadas a
icar nuas diante deles e ouvir as
crı́ticas que o grupo tinha a fazer
sobreocorpoourostodetodas.Em
nenhum momento aqueles homens
lhes foram apresentados, e os halos
encardidos que os cercavam só
contribuı́am para embaçar a
atmosferadasala.
Anyacobriuorostoinundadode
lá grimas até que a mé dica lhe disse
paraparardepalhaçadaeabaixaras
mã os imediatamente. Como em um
sonho, Dominika saiu do pró prio
corpo, bloqueou os pensamentos e
enfrentoucomresignaçã oosolhares
dohomemqueaavaliava,umsujeito
horrı́vel com o rosto coberto de
cicatrizes de varı́ola. Os olhos dele
tinhamamesmacorqueemanavade
seu corpo, um amarelo tã o intenso
quanto os de um gato no escuro.
Dominika o itava sem piscar
enquantoeraexaminada.
— Tem pouca carne — a irmou
ele,paraningué memparticular.—E
osmamilossãopequenosdemais.
Doisoutroshomensassentiram
em concordâ ncia e Dominika os
encarou até obrigá -los a desviar o
olhar para acender um cigarro. Com
alguma surpresa, constatou que aos
poucossetornavaindiferenteatudo:
à nudez,aos comentá rios obscenos,
aos olhos que lhe devoravam os
seios, o ó rgã o sexual e as ná degas.
Elespodemfazeroquequiserem,disse
asimesma,masnãovoupermitirque
sustentem meu olhar. As demais
alunas reagiram cada uma à sua
maneira. Uma boboquinha de
Smolensk, que falava um dialeto do
sul do paı́s, fez caras e bocas e
rebolou os quadris enquanto era
examinada.Anyaseremoeudetanta
vergonha. O cheiro de desinfetante
quepermeavaamansã osejuntouao
odor acre do corpo delas, um misto
de almı́scar, suor, á gua de rosas e
sabã o de coco. Quando as luzes se
apagaram, os voyeurs suarentos
voltaram para suas respectivas
cabines e prosseguiram com suas
anotaçõ es, certi icando-se de que
nenhumadascâmerasfossetapada.
Certanoite,Anyabateudeleveà
porta de Dominika, que abriu uma
frestaedisse:
— Vá embora. Nã o posso mais
ajudarvocê.
Bastam
meus
próprios
problemas, ela pensou.Tenho minha
sanidadementalparatentarmanter.
Anya lhe deu as costas e sumiu
naescuridãodocorredor.
Dali a alguns dias, um ô nibus
chegou com os cadetes militares, os
quetinhamtiradoasnotasmaisaltas
em seus respectivos regimentos. As
moçasjá esperavamemseusquartos
e observaram, sentadas na cama, os
homens magros e machucados se
livrarem do uniforme. Precisaram
aguentar irme quando eles se
deitaram por cima delas com a
rapidez de animais no cio. Quando a
sirene tocou, todos eles saı́ram dos
aposentossemnemolharparatrá se
dali a pouco o ô nibus atravessou o
mesmo portã o pelo qual havia
entrado,levando-osembora.
De volta à biblioteca na manhã
seguinte, o projetor foi ligado
novamente, mas, em vez dos ilmes
de sempre, o que elas viram foi a
aluna do aposento nú mero cinco na
cama com um sujeito magro de
cabeça raspada, o cadete da noite
anterior.Malconseguiramolharpara
o telã o. Aquilo era uma vergonha,
umaindignidade,verasimesmacom
as pernas entrelaçadas à s costas
espinhentas de um desconhecido, as
mã os cravadas nos ombros
esquelé ticos feito as garras de um
animal. Volta e meia a mé dica
congelava a imagem para fazer um
comentá rio
ou
sugerir
um
aperfeiçoamento. O pior era que
à quelaalturatodasjá sabiamqueos
ilmes seguiriam a ordem de
numeraçã odosquartos.Anyabaixou
acabeçaeenterrouorostonasmã os.
Seu quarto era o onze, e ela teria de
enfrentar nã o só os ilmes, como
també m a longa espera. Quando
chegouasuavez,correudevoltapara
o quarto, aos prantos, assim que o
ilmeterminou.Amé dicadeixouque
ela se fosse e prosseguiu
tranquilamentecomoscomentá rios,
apontando os erros que vira, o que
poderiasermelhorado.
O quarto de Dominika era o
doze, no im do corredor. Logo, seu
exercı́ciocomocadetefoioú ltimoa
ser mostrado. Ela acompanhou o
pró prio desempenho sem nenhuma
emoçã o, surpresa com aquele rosto
inexpressivo, os gestos mecâ nicos e
automá ticos, o puxã o de orelha com
queafastaraogarotoapó soorgasmo
dele.Sentia-seum pouco zonza, mas
nã o
de
vergonha
ou
constrangimento.
Via
aquelas
imagens com frieza e repetia a si
mesma que era uma combatente do
SluzhbaVneshneyRazvedki,oServiço
Externo de Inteligê ncia do governo
russo.
Na manhã seguinte, Anya nã o
apareceu para o café e duas moças
subiram para procurá -la no quarto.
Precisaram arrombar a porta, e
encontraram-namortadooutrolado,
penduradaaoganchodecasacospor
uma meia de ná ilon em volta do
pescoço. Tivera a força de espı́rito
para manter as pernas erguidas até
perder a consciê ncia e deixar que o
peso do corpo cuidasse do resto.
Dominika caminhava no jardim
quandoouviua gritaria. Correu para
o andar de cima da mansã o, abriu
caminhoentreasduasgarotas,tirou
Anya do gancho e a deitou no chã o.
Sentia um misto de culpa e raiva. O
que a imbecil esperava dela, a inal?
Como explicar que ela tivesse
coragem para se enforcar, mas nã o
parasedeitarpormeiahoracomum
rapaz?
Quase nã o houve reaçã o. As
alunas viram o corpo e depois lhe
deram as costas. Anya foi levada da
mansã onumamaca de lona, coberta
porumlençolquedeixavaescaparem
algumas pontas dos cabelos louros.
Ningué m disse nada. As aulas
prosseguiram como se nada tivesse
acontecido.
Ocursoestavachegandoao im.
As garotas, que já podiam ser
chamadasdepardais,sereuniramna
saladejantarparareceberosquatro
“corvos” que tinham sido treinados
nocasarã omaisafastado.Trê sdeles
se transformaram em especialistas
na arte de seduzir as mulheres
solitá rias e vulnerá veis que
pudessemteralgumautilidadeparao
SVR: a secretá ria solteirona do
ministro, a esposa negligenciada do
embaixador,
a
assistente
subestimada do general. O quarto
rapaz havia se especializado em
outra arte, a de seduzir homens que
buscavamsecretamenteacompanhia
de outros homens: algum diplomata
denívelsuperior,umadidomilitarou
até mesmo um criptó grafo que
preferiria
a
morte
ao
desmascaramento pú blico. Todos
eles diziam, com certa soberba, que
haviam
sofrido
durante
o
treinamento. Conseguir garotas para
praticar nã o era fá cil, Dimitri
sussurrou, e eles eram obrigados a
treinar com as mulheres imundas
que traziam dos vilarejos pró ximos
ou alguma prostituta com cara de
tuberculosa que importavam dos
distritos industriais de Kazan.
Dominikapreferiunã osabercomoe
comquempraticavaoquartocorvo.
— Mas agora sabemos tudo
sobreoassunto.Somosespecialistas
no amor — arrematou Dimitri, e
abriu os braços ao correr os olhos
porsuaplateiadepardais.
Asmoçaso itavamemsilê ncio.
Dominika notava na expressã o delas
umacentelhadeceticismo,fatalismo
oudescon iança,amesmaquejá vira
nas prostitutas da Tverskaya Ulitsa,
em Moscou.Os frutos da Escola de
Pardais,pensou.AmortedeAnyanã o
havia sido o ú nico custo daquela
históriatoda.
Eles saı́ram para o aeroporto à
meia-noite, carregando suas malas
vagabundas, sem olhar para trá s. A
lorestadepinheirosestavaescurae
silenciosa. A Escola de Putas
permaneceria fechada até a chegada
dopróximogrupo.
O aviã o sobrevoou as chaminé s
de Kazan e seguiu para oeste em
meioà escuridã odanoite.Daliauma
hora, passaram pelas luzes de
Nizhniy Novgorod, cortadas pela
faixa negra do Volga. Entã o a
aeronave inalmente começou a
descida em direçã o ao brilho da
agitada Moscou. Jamais voltariam a
sever.
Dominika fora instruı́da a se
apresentar no Quinto Departamento
namanhã seguinteparacomeçarsua
carreira como operadora de
inteligê ncia jú nior. Pensou no chefe
do departamento, Simyonov, e nos
outros o iciais a que seria
apresentada,imaginandocomoelesa
olhariam e o que diriam. Bem, a
cortesã tinha voltado das estepes e
agora queria fazer parte do mundo
deles.
Asalaestava escura quando ela
entrou em casa ainda antes do
amanhecer, mas sua mã e surgiu no
corredorvestindoumroupão.
— Ouvi você chegar — disse
Nina.
Dominikacorreuparaabraçá -la,
depoistomousuamã oeabeijoucom
os mesmos lá bios que tinham sido
treinados para destruir um homem
—umatodeexpiação.
SOPA TOKMACH DA ESCOLA DE
PARDAIS
Cozinhar em caldo de carne um
punhado
de
batatas
cortadas
grosseiramente, fa as finas de cebola
e cenouras. Acrescentar macarrão e
aguardar até que fique no ponto.
Servir em um prato de sopa por cima
de pedaços de carne cozida.
CAPÍTULO 9
DOMINIKASEAPRESENTOUNO
QUINTO Departamento na manhã
seguinte, ainda exausta do voo.
Atravessou o longo corredor de
paredesverde-clarasebateuà porta
do gabinete de Simyonov, mas foi
informada de que o coronel nã o
estava e orientada a voltar mais
tarde. Enquanto isso, mandaram-na
ao Departamento de Recursos
Humanos, ao Registro Geral e aos
Arquivos.
Quando virou o corredor,
deparou com Simyonov, que falava
comumhomemdecabelosbrancose
terno cinza-escuro. Notou que o
desconhecido tinha sobrancelhas
grossas, um sorriso gentil, olhos
castanhoselímpidos.
— Essa é o cabo Egorova,
general—disseocoronelaohomem.
Entã o, dirigindo-se a ela: — General
Korchnoi,chefedoDepartamentodas
Américas.
Dominika reconheceu o nome
apenas vagamente; sabia que se
tratava de um o icial graduado.
Diferentemente de Simyonov, que
tinha apenas uma aura pá lida em
tornodacabeça,Korchoibanhava-se
num manto lamejante de cor, um
tomaveludadoderoxo,omaisbonito
queDominikajáviraemalguém.
—Ocabochegouontemmesmo
do curso em Kazan — prosseguiu o
coronel, com um sorriso malicioso.
Todosnoserviçosabiamoqueaquilo
signi icava. Dominika sentiu que
ruborizava.—Elaestá nosassistindo
na abordagem daquele diplomata, o
caso de que eu lhe falava agora há
pouco,general.
— Mais do que apenas
“assistindo” — disse Dominika,
olhando para Simyonov. Para
Korchnoi:—EumeformeinaAVR,na
turmamaisrecente.
Nã o fez nenhuma mençã o à
Escola de Pardais, e sua vontade era
cortar o pescoço de Simyonov.
Entendiamuitobemaintençã odele,
mas nã o tinha nenhuma intuiçã o
quanto ao veterano de cabelos
brancos,queeradifícildeler.
— Ouvi falar do seu
desempenho na academia, cabo —
comentou
o
general
enigmaticamente. — E um prazer
conhecê -la — emendou, e a
cumprimentou com um aperto de
mãofirmeeseco.
Simyonov observava a cena,
ainda sorrindo, pensando que
Korchnoiseriaoprimeirodemuitos
o iciaisdealtapatentequetentariam
desabotoar aquela blusa. Nã o dava
seismesesparaqueamoçaestivesse
trabalhandonogabinete(enosofáde
couro) de algum general. Surpresa e
envaidecida, Dominika agradeceu a
Korchnoi e continuou seu caminho
no corredor. Os dois homens a
seguiramcomoolhar.
—Ofogoalié maisaltodoque
numasaunadeYakutsk—sussurrou
Simyonov assim que ela se afastou.
—Esobrinhadovice-diretor,sabia?
Korchnoifezquesimcomacabeça.
— Sobrinha ou nã o, vai ser um
osso duro de roer — resmungou
Simyonov. O general icou em
silêncio.
— Ela quer ser operadora —
prosseguiuogeneral.—Masvocê viu
aquele corpo. Talhado pra ser uma
vorobey. Foi por isso que Egorov a
mandouparaKazan.
— E o francê s? — perguntou
Korchnoi.
Maisumrisinhoirônico.
— Polavaya zapadnya. Este aı́
nó s vamos pegar pelas calças. Só
precisamos de algumas semanas. E
um cara aı́ do Setor Comercial. —
Simyonov apontou o queixo para o
corredor.—Elaquerleroarquivo,se
envolver. Mas a ú nica coisa que vai
ver é o que está entre as pernas do
francês.
Korchnoisorriu.
—Boasorte,coronel—disse,e
apertouamãodeSimyonov.
—Obrigado,general.
***
A saleta que tinham lhe
reservado icava escondida num
canto qualquer do Setor Francê s do
Quinto Departamento. No cubı́culo
sem janelas havia apenas uma mesa
decré pita com uma bandeja
organizadora també m caindo aos
pedaços,naqualduaspastasgrossas
haviam
sido
displicentemente
jogadas.Simyonovacabaraliberando
astaispastasparaqueelaodeixasse
empaz.Ambastinhamumaorelhana
capaazuldelistraspretasdiagonaise
já estavam encardidas pelo
manuseio.
OalvoeraSimonDelon,48anos,
primeiro-secretá rio
do
setor
comercial da embaixada da França
emMoscou.Deloneracasado,masa
mulher permanecera em Paris e ele
raramentevoltavaà Françaparasuas
visitas conjugais. Na qualidade de
solteiroemMoscou,foranotadopelo
FSB assim que chegara ao paı́s. A
princı́pio tinham designado apenas
uma pessoa para vigiá -lo, mas apó s
pouco tempo já havia uma equipe
inteiraatrá sdele.Umgrupodedoze
agentesoseguiaquandoelesaı́apara
o trabalho e o acompanhava até o
instante em que se deitava para
dormir. Fotos transbordavam de um
envelope localizado entre as pá ginas
de um dos arquivos: Delon
caminhando sozinho à beira do rio;
sozinho vendo os patinadores no
rinque Dynamo; sozinho num
restaurante.
Dominikapassouamãoporuma
dasfotosamarfanhadasdaequipede
vigilâ ncia. Eles haviam usado um
espelho para registrar uma puta de
pernas compridas alisando os
genitais de Delon num barzinho de
garotas de programa em Krymskiy
ValUlitsa.Umaanotaçã odizia:“Alvo
nervoso, constrangido, nã o quis (ou
nã o pô de) contratar a garota.”
Coitado, pensou Dominika,o lugar
delenãoeraali.
Uma escuta plantada numa
tomada elé trica no apartamento do
francê s havia produzido horas de
gravaçã o:“2036:29,ruı́dosdepratos
na pia da cozinha. 2212:34, mú sica
tocandobaixo.2301:47,foidormir.”
O telefone fora grampeado para
monitorar as conversas semanais
que Delon tinha com a mulher em
Paris. Dominika leu as transcriçõ es
emfrancê s:deumladodalinha,uma
madameDelonimpacienteerı́spida;
do outro, um Delon silencioso e
humilhado. “Um casamento infeliz e
assexuado com uma mulher
impositiva”, algué m anotara na
margemdatranscrição.
Em dado momento o SVR havia
tiradoocasodoFSBeotomadopara
si, alegando que o alvo era
estrangeiro e que, portanto, a
jurisdiçã oeradeles.Asegundapasta
começava com uma avaliaçã o
operacional escrita de um modo
abreviado e tosco, tipicamente
sovié tico, do qual eles costumavam
zombar na academia. “Potencial do
alvo excelente para exploraçã o
operacional. Nenhum vı́cio aparente.
Sexualmente carente. Acesso a
informaçõ es restritas bom. Avaliado
como pacato e nã o agressivo.
Suscetı́vel a chantagem devido ao
casamento abastado.” E assim por
diante.
Dominika se recostou na
cadeira,olhouparaaquelaspá ginase
icou pensando no treinamento que
recebera na academia. Estava claro
que se tratava de um caso pequeno
com um alvo pequeno e dividendos
pequenos. Sim, o francê s era um
homemsolitá rioevulnerá vel,masas
informaçõ esà squaiseletinhaacesso
naembaixadaeramdenı́velinferior.
Seria possı́vel que o Quinto nã o
tivesse nada melhor que aquele pé rapado?
Simyonov
estava
aumentando a importâ ncia daquele
caso,quantoaissonã ohaviadú vida.
E ela? Tanta dedicaçã o naquela
academia, tanto sofrimento naquela
escola de putas... Paraquê? Apenas
para ter que conviver agora com
outrotipodeprostituta?Seriaesseo
seufuturonoserviço?
Ela desceu de elevador para a
cafeteriadopré dio,pegouumamaçã
efoisesentaraosolnoterraço,longe
dosbancos,namuretaqueladeavaa
cerca viva. Tirou os sapatos, fechou
os olhos e icou ali, aproveitando o
calordostijolosnasoladospés.
— Posso sentar com você ? —
disse algué m dali a pouco,
assustando-a.
Ao abrir os olhos, Dominika se
deparou com o vulto impecá vel do
general Korchnoi, do Departamento
dasAméricas,paradoàsuafrente.Ele
tinha o paletó abotoado de cima a
baixoeospé sunidos,perfeitamente
alinhados, como os de um maı̂tre de
restaurante. A aura roxa icava mais
escura sob o sol e adquiria uma
textura quase discernı́vel. Dominika
se empertigou no mesmo instante e
seatrapalhouparacalçarossapatos.
— Fique descalça, por favor —
disse Korchoi, rindo. — Quem dera
eu també m pudesse tirar os sapatos
e encontrar um lago qualquer para
poderrefrescá-los.
Dominika riu també m, depois
falou:
—Porquenã otira?Ochã oestá
umadelícia.
Korchnoi itou aqueles olhos
azuis, aqueles cabelos castanhos,
aquele rosto sem nenhuma malı́cia.
Que espé cie de o icial em inı́cio de
carreira teria coragem de fazer
semelhante sugestã o a um general?
Quetipoderecé m-formadaseriatã o
ousada? Mas entã o o chefe da
diretoria do SVR, o homem
responsá vel por todas as ofensivas
de inteligê ncia no Hemisfé rio Norte,
sentou-senamureta,tirouossapatos
easmeiase icouali,aproveitandoo
calordostijolosnasoladospés.
***
—Comovaiotrabalho,cabo?—
perguntou Korchnoi, olhando as
árvoresdoterraço.
— E minha primeira semana.
Tenho uma mesa, uma bandeja de
arquivos, e estou lendo o material
sobreocaso.
— O material sobre seu
primeiro caso, suponho. Entã o, o
queestá achando?
— Interessante — retrucou
Dominika, pensando no desleixo
geral do material que havia
recebido, nas conclusõ es dú bias, nas
recomendaçõesequivocadas.
— Você nã o parece muito
entusiasmada
—
comentou
Korchnoi.
—Ah,nã o,estouentusiasmada,
sim—respondeuDominika.
—Mas...?—incentivouKorchoi,
virando-seligeiramenteparaela.
Suas sobrancelhas grossas
projetavamsombrassobreasfaces.
— Acho que preciso de um
pouco mais de tempo pra me
acostumar
aos
arquivos
operacionais.
— Como assim? — insistiu o
general, mas com delicadeza, sem o
menortraçodetruculência.
Dominika sentiu-se à vontade
paradizer:
—Depoisqueliomaterial,nã o
concordeicomaconclusã o.Nã ovejo
comochegaramaela.
— Do que exatamente você
discorda?
— Eles estã o monitorando um
alvodenı́velinferior—falouela,sem
entrarmuitoemdetalhes,atentaaos
procedimentos de segurança. — E
umhomemsolitá rio,vulnerá vel,mas
nã o creio que justi ique todo esse
esforço.Lá naacademia,voltaemeia
algué mfalavasobreodesperdı́ciode
recursosoperacionais,sobreosalvos
nãolucrativos.
— Houve um tempo em que as
mulheres nã o tinham acesso à
academia — comentou Korchnoi,
testando-a. — Em que seria
impensá vel um o icial jú nior colocar
as mã os nos arquivos de uma
operaçã o em andamento, quanto
maiscomentararespeitodela.
Ele apertou as pá lpebras contra
osoldomeio-dia.
— Desculpe, general — disse
Dominika,comdelicadeza.Sabiaque
o general nã o estava bravo. — Nã o
tiveaintençã odecriticar,nemdeser
impertinente. — Ela olhou para ele.
Sentiaquepodiaseabrircomaquele
homem. — Me perdoe. Eu só queria
observar que o caso é fraco. Nã o
entendocomoeleschegaramà quelas
conclusõ es operacionais. Sei que
ainda
nã o
tenho
nenhuma
experiê ncia, mas qualquer um pode
verisso.
Korchnoi virou-se para ela.
Vendo que Dominika estava
calmaeconfiante,eleriueretrucou:
— Temos sempre que ler esses
arquivos com olhos crı́ticos. E
aquelesidiotasdaacademiatêmtoda
a razã o: precisamos ser mais
e icientes. Os velhos tempos já nã o
existem mais. As vezes nos
esquecemosdisso.
— Eu nã o queria faltar ao
respeito — a irmou Dominika. —
Queroapenasfazerumbomtrabalho.
— E está certa — disse
Korchnoi,sorrindo.—Junteosfatos,
organize os argumentos e levante a
questão.Haveráquemnãogoste,mas
nã o se deixe abater. Desejo-lhe boa
sorte. — Ele pegou os sapatos e se
levantou da mureta. — Ah, cabo...
Como é mesmo o nome desse alvo?
— Percebendo que ela hesitava em
responder, emendou: — Só por
curiosidade.
Dominika logo percebeu que
aquelenã oeraomomentodebancar
a novata. Caso o general ainda nã o
soubesseonomedofrancê s,poderia
descobrirnumestalardededos.
— Delon — respondeu ela,
enfim.—Embaixadafrancesa.
— Obrigado — respondeu
Korchnoi, e se retirou, ainda com os
sapatosnamão.
***
Nã o que Dominika esperasse
algo diferente, mas as di iculdades
começaram logo nas primeiras
reuniõ es
de
planejamento.
Carregando as duas pastas de
arquivo, ela entrou na sala de
reuniõ eseseacomodouemtornode
uma mesa descorada com mais trê s
o iciais do Quinto Departamento,
responsá veis por França, Benelux,
Europa Meridional e Romê nia. Logo
viu os tons de marrom e cinza que
envolviam o trio e percebeu o nı́vel
baixo da energia deles. Nã o havia
nenhuma emoçã o naqueles homens.
Nenhuma imaginaçã o, nenhuma
paixão.
Um enorme mapa da Eurá sia
cobria por inteiro uma das paredes;
diversos telefones se en ileiravam
num aparador empoeirado no fundo
dasala.Oshomenssecalaramassim
que Dominika entrou. Os rumores
sobre a beleza da nova formanda da
Escola de Pardais já circulavam por
todo o pré dio. Dominika os itou de
volta,fazendoopossı́velparanã ose
abalar
com
os
semblantes
carrancudos, os sorrisos que se
insinuavam. Marrons e cinzas: cores
sujasparamentessujas.Guimbasde
cigarrotransbordavamdoscinzeiros
baratos de alumı́nio no centro da
mesa.
—
Alguma
observaçã o
preliminar?—perguntouSimyonovà
cabeceiradamesa,tãoinexpressivoe
desinteressadoquantonodiaemque
Dominikaoconhecera.
Ele olhou para os trê s homens
na sala, um por um, e eles
permaneceram calados. Em seguida
sevirouparaDominika,desa iando-a
afalar.
Elarespiroufundo.Podiaouviro
pró priocoraçã obatendonopeitoao
dizer:
— Com sua permissã o, coronel,
eu gostaria de discutir o nı́vel de
acessodonossoalvo.
— Isso já foi devidamente
avaliado — retrucou Simyonov. O
tomdevozdavaaentenderquenã o
era da alçada de Dominika
preocupar-se com os meandros da
operaçã o.—Eumalvoimportante.O
que precisamos fazer agora é
determinar a abordagem certa —
emendou,olhandoparaoo icialaseu
lado.
— Receio que nã o seja bem
assim—insistiuDominika.
Todos se viraram para ela. Que
diabo seria aquilo? Um motim? Por
parte de uma recé m-formada? Um
pardal?
Os homens desviaram o olhar
para Simyonov, curiosos para ver
qual seria a reaçã o dele. A reuniã o
prometia.
O coronel se debruçou sobre a
mesa e cruzou as mã os à sua frente.
Irradiava um tom desbotado de
amarelo. Nã o era homem de levar
desaforoparacasa.Osolhosestavam
injetados e aquosos, os cabelos
grisalhosgrudadosàcabeça.
— A camarada está aqui para
colaborar naabordagem do francê s
— disse. — Questõ es relativas a
acesso, manuseio e produçã o sã o de
responsabilidade exclusiva dos
oficiaisdestedepartamento.
Quando terminou de falar,
inclinou-se ainda mais e encarou
Dominika. Os homens se viraram
para ela. Com certeza, davam o caso
porencerrado.
Dominika apertou as pastas de
arquivo com irmeza, para nã o
começaratremer.
— Sinto muito contradizê -lo,
camarada — retrucou, repetindo o
anacronismo do chefe —, mas fui
designadaparaparticipardestecaso
como operadora, e como tal eu
gostaria de ser incluı́da em todas as
fasesdoprocesso.
— Uma operadora, você disse?
—perguntouSimyonov.
— Isso mesmo — respondeu
Dominika.
—Quandovocêseformou?
—Naúltimaturma.
—Edepoisdissofez...
Simyonov olhou para os
companheirosdemesa,praticamente
salivando.
—Treinamentoespecializado.
— Que tipo de treinamento
especializado?—insistiuele,emvoz
baixa.
Dominika já havia se preparado
paraessetipodesituaçã o.Simyonov
sabia muito bem por onde ela
passara.Estavatentandohumilhá-la.
— Fiz o curso bá sico do
Instituto Kon — respondeu
Dominika,comoslábioscontraídos.
Nã o se deixaria intimidar por
aquele bando de vermes. Alé m do
coronel, em seu ı́ntimo ela també m
crucificavaotio.
— Ah, sim, a Escola de Pardais
—disseSimyonov.—Eéexatamente
por isso que você está aqui. Para
participardoardilquearmamospara
nossoalvo,SimonDelon.
Umdoshomenstentou,emvã o,
abafarumrisinho.
—Sintomuito, coronel, mas fui
designadaaestedepartamentocomo
membro integral da equipe —
contestouDominika.
— Sei — retrucou ele. — Por
acasojáleuoarquivodeDelon?
—Osdoisvolumes—informou
Dominika.
— Muito bem. E que
observaçõ es preliminares você teria
a fazer a respeito do caso e dos
méritosdele?
A fumaça dos cigarros ia
subindo para o teto, pontuando o
silê ncioquedominava o ambiente
enquanto Dominika observava os
rostos que aavaliavam.Por im,ela
engoliuemsecoedisse:
—Aquestã odonı́veldeacesso
do alvo é discutı́vel. Na posiçã o de
adido comercial de categoria
intermediá ria, o acesso de Delon a
informaçõescon idenciaisé limitado,
oquenã ojusti icaumaoperaçã otã o
delicadaquantoumachantagem.
— E o que você entende de
chantagens?—questionouSimyonov
com todaa calma, quase se
divertindo. — Considerando que
acaboudesairdaacademia?
— Delon simplesmente nã o
compensa todo este esforço
operacional—insistiuDominika.
—Suponhoquealgunsanalistas
da Linha R haverã o de discordar —
retrucou Simyonov, começando a
perder a paciê ncia. — Delon tem
acesso aos dados comerciais nã o só
daFrança,masdetodaaComunidade
Europeia. Dados orçamentá rios,
programas,
estraté gias
de
investimento, polı́ticas de energia.
Você jogaria no lixo todas essas
informações?
Dominika fez que nã o com a
cabeçaeargumentou:
— Mas sã o informaçõ es que
poderı́amos conseguir direto de
qualquer um dos nossos ativos de
baixo escalã o nos ministé rios em
Paris. Com certeza esse seria um
caminho muito mais ló gico e que
atenderia perfeitamente à s nossas
necessidades.
Simyonov, agora com uma
expressã o de poucos amigos, se
recostounacadeira.
— Parece que você aprendeu
muita coisa naquela academia. Está
sugerindo,
entã o,
que
o
departamento nã o endosse a
operaçã o?Queofrancê ssejadeixado
pralá?
— Estou dizendo apenas que o
risco potencial de coagirmos um
diplomata ocidental em Moscou nã o
corresponde ao baixo potencial dele
enquantofontedeinformações.
— Volte pra sua sala, cabo
Egorova, e leia todo o arquivo de
novo — ordenou Simyonov. — Só
volte aqui quando tiver algo
construtivoaacrescentar.
Todos encararam Dominika
enquanto ela recolhia seus papé is e
tomava a direçã o da porta com as
costas eretas, os olhos focados na
maçaneta. Começaram a rir antes
mesmoqueelachegasseaocorredor.
Na manhã seguinte, Dominika
encontrouemsuamesaumenvelope
branco de aspecto absolutamente
comum. Abriu-o com cuidado e
desdobrouafolhadepapelquehavia
dentro.Escritacomumatintavioleta
e uma caligra ia de traços clá ssicos
haviaestaúnicafrase:
Delon tem uma ilha. Siga sua
intuição.K.
No dia seguinte, Dominika
voltouà saladereuniõ eseencontrou
a mesa atulhada de fotogra ias e
relató riosdevigilâ ncia.Oscinzeiros,
comosempre,transbordavam.Elase
acomodoueoshomensaignoraram:
fumavam sem parar enquanto
examinavam o per il de Delon com
visı́veldesinteresse,umolhovoltado
para o reló gio de parede, as auras
descoradas. Analisavam os há bitos e
padrõ es do diplomata francê s,
pensandonoslugaresondepoderiam
armar um contato. Entediado como
sempre, Simyonov olhou para
Dominikaedisse:
— Entã o, cabo Egorova, alguma
sugestã o para locais de contato?
Quero
dizer,
caso
tenha
reconsiderado suas objeçõ es à
operação.
Dominika
firmeza:
respondeu
com
— Reli o arquivo, coronel, e
aindaacreditoqueestehomemnã oé
umalvoválido.
Dessa vez os homens em torno
damesanã osederamotrabalhode
erguer a cabeça: continuaram
imersos na leitura de seus papé is.
Aquelavorobey nã o duraria muito
temponoQuinto,talveznemmesmo
noSVR.
— Ainda insiste nisso?
Interessante — retrucou Simyonov.
—Entã odevemosabandonarocaso?
Éessasuarecomendação?
— Nã o foi o que eu disse —
falou Dominika. — Acho, sim, que
devemos continuar explorando o
francê s, a vida solitá ria que ele leva.
— Ela abriu uma das pastas que
levara para a reuniã o. — Mas o alvo
inal, o objetivo real de toda esta
operaçã o, nã o deveria ser o pró prio
Delon.
—Quebobageméestaagora?—
quissaberSimyonov.
— Está tudo no arquivo. Só iz
mais algumas pesquisas — falou
Dominika. O coronel correu os olhos
pelos homens sentados à mesa,
depois voltou a encará -la e
resmungou:
—
Este
caso
exaustivamentepesq...
já foi
— Descobri que Simon Delon
tem uma ilha — interrompeu
Dominika.—EumamulheremParis!
Todosnósjásabemosdisso!
—A ilhatrabalhanoMinisté rio
deDefesadaFrança.
— Bobagem! — disparou
Simyonov. — A famı́lia inteira já foi
rastreada. Arezidentura de Paris já
vasculhoutodososregistroslocais.
— Entã o deixaram isso passar.
Ela tem 25 anos, é solteira e mora
comamãe.OnomedelaéCécile.
—Istoé umabsurdo—insistiu
Simyonov.
— Ela foi mencionada apenas
uma vez nas transcriçõ es. Pesquisei
osdiretó riosnabibliotecadaLinhaR
— explicou Dominika, folheando os
papé is à sua frente. — Cé cile Denise
Delon está listada no registro-geral
da Rue Saint-Dominique, isto é , o
registro-geral do Ministé rio de
Defesa. — Ela olhou para cada um
doshomensqueaencaravam.—Isto
sugere, pelo menos até onde pude
determinar, que ela tem acesso aos
boletins de defesa con idenciais que
sã odistribuı́dosaogovernotodosos
dias. Cé cile é uma das pessoas
responsá veis pela custó dia dos
documentos de planejamento das
Forças
Armadas
francesas.
Provavelmente cuida da distribuiçã o
e do arquivamento de uma ampla
variedade
de
documentos:
orçamentos
militares,
dimensionamento de contingentes,
avaliaçõesdeprontidão.
— Até agora, sã o apenas
conjeturas—retrucouSimyonov.
— Nã o sabemos onde os
franceses guardam seus segredos
nucleares, mas eu nã o icaria
surpresase...
— Especulaçõ es desta natureza
nã olevamalugaralgum—observou
Simyonov.
A neblina amarelada em torno
do coronel começava a crescer e a
escurecer. Dominika sabia que o
homem estava frustrado, irritado,
constrangido, e tinha consciê ncia de
que sua petulâ ncia e insubordinaçã o
bastariam para que ela fosse
sumariamenteenxotadadoSVR.
Seguiu-se um silê ncio sepulcral.
Osantiquadosinstintossovié ticosde
Simyonov encontravam-se agora em
alertamá ximo;oladoburocratadele
começou a fazer os cá lculos. De um
segundo a outro, o coronel passou a
pensar com a cabeça de um tı́pico
funcioná riodaKGB:Essa tsarevnade
sobrenome importante está querendo
me fazer passar por negligente e
burro. O que posso lucrar com o
trabalho dela? Se essa maneken
estiver certa, as recompensas podem
ser enormes, mas os riscos também.
UmaoperaçãocomalvonoMinistério
de Defesa da França teria de ser
aprovadapelotopodahierarquia.
— Se isso for verdade,talvez
haja mesmo um benefı́cio a mais —
admitiueleacontragosto,mascomo
sejá tivesseconsideradotudoaquilo
muitotempoantes.
Em seguida bateu as cinzas do
cigarro.
Dominika podia ler o que se
passava no cé rebro escorregadio do
chefe. — Concordo plenamente,
coronel. Este é o real potencial de
SimonDelon,oquedá sentidoatoda
estaoperaçã o,oquejusti icaorisco
derecrutarmosofrancês.
Simyonov balançou a cabeça e
falou:
—A ilhaestá emParis,a2.500
quilômetrosdedistância.
— Nã o é tã o longe assim —
observou Dominika, e abriu um
sorriso que desconcertou Simyonov.
— Claro, vamos ter de elaborar um
per il bem mais detalhado sobre a
relaçãoentrepaiefilha.
— Naturalmente — concordou
Simyonov.
Maisalgunsminutosdaquiloea
garota assumiria o controle integral
do Quinto Departamento. No
entanto... ela que izesse todo o
trabalho preparató rio que lhe desse
na telha. Assim que a operaçã o
deslanchasse, ele cuidaria para que
elaacabassedepernasabertasnuma
cama qualquer, sob a mira de uma
câmera.Issodariaumjeitonela.
— Muito bem, cabo Egorova, já
que você descobriu esse detalhe tã o
interessante,
gostaria
que
continuasse trabalhando nisso até
conseguirelaboraralgumaestraté gia
decontatocomDelon.
—Naverdade,coronel,já pensei
em um plano para o primeiro
contato.—Sei...
Terminadaareuniã o,oso iciais
afastaramascadeiraseapagaramos
respectivos cigarros. Os boatos a
respeito do novo pardal haviam se
limitadoà belezadosolhosazuis,ao
farto recheio do uniforme, mas
ningué m dissera nada sobre os
colhõ esdagarota.Elessaı́ramdasala
deixando sobre a mesa toda a
papelada para que a novata
arrumasse. Dominika nã o se
importou. Recolheu os documentos,
empilhou-os sobre as pastas do
arquivo de Delon e saiu també m,
fechandoaportaatrásdesi.
***
Nas imediaçõ es da Rua Arbat,
maisprecisamentenonú mero12da
Nikitsky Bulvar, icava um pequeno
restaurante chamado Jean Jacques,
um estabelecimento parecido com
umbarfrancê s, um lugar barulhento
em que a fumaça dos cigarros se
misturava ao odor dos vinhos e dos
cozidos. Toalhas alvı́ssimas sobre as
mesas realçavam o xadrez preto e
branco do piso de cerâ mica.
Prateleiras com garrafas de vinho
cobriamtodasasparedes.Bancosse
en ileiravam diante de um balcã o de
linhas curvas ecadeiras de madeira
se apertavam em torno das mesas
quase sempre cheias. Na hora do
almoço,
os
moscovitas
que
estivessem desacompanhados eram
obrigados a dividir a mesa com
algumdesconhecido.
Erameio-diadeumaterça-feira
chuvosa. O restaurante estava ainda
mais cheio que de costume. Sob o
toldo da calçada e junto à porta,
clientes se acumulavam à espera de
um lugar. A confusã o era quase
insuportá vel,eafumaçadoscigarros
pairava no alto. Garçons circulavam
entre as mesas abrindo garrafas,
carregando bandejas. Apó s uma
espera de quinze minutos, Simon
Delon, da embaixada francesa em
Moscou,foiconduzidoaumamesajá
ocupadaporoutrocliente,umjovem
que terminava tranquilamente seu
cozido de carne. Limpando o molho
dopratocomnacosdepã opreto,ele
nem sequer ergueu o rosto quando
Delonseacomodou.
Apesar da confusã o e do
barulho, o francê s gostava do lugar,
queofazialembrarParis.Alé mdisso,
graças ao há bito russo de
compartilhar mesas durante o
almoço, à s vezes ele dava a sorte de
se sentar junto com uma
universitá ria bonitinha ou com uma
vendedora atraente. Algumas delas
até sorriamparaele,equemosvisse
de longe poderia pensar que
formavamumcasal.
Delon pediu uma taça de vinho
enquanto examinava o cardá pio. O
homem à sua frente pagou a conta,
limpou a boca, vestiu o paletó que
deixara no encosto da cadeira e se
foi. Ao erguer o rosto, Delon avistou
nomesmoinstanteabelamulherde
cabelos escuros e olhos azuis que
vinha em direçã o à sua mesa. Mal
acreditou quando ela ocupou
justamenteolugarquetinhaacabado
de vagar. Ela estava com os cabelos
presos no alto e usava um colar de
pé rolas.Sobumacapadechuvaleve,
vestiaumacamisadesedabege,uma
saiamarromeumcinto inodecouro
de crocodilo. Delon deu um longo
gole no vinho e aproveitou a
oportunidade para espiar o modo
como a seda da camisa se movia
sobreocorpodela.
Assim que se sentou, ela pegou
os ó culos de leitura na carteira de
mã o de couro de crocodilo,
equilibrou-os na ponta do nariz e
começou a ler o cardá pio. Quando
sentiuqueohomema itava,ergueu
os olhos para ele. Envergonhado,
Delon rapidamente desviou o olhar
para o pró prio cardá pio, mas na
espiadela seguinte ele notou os
dedoselegantesdajovem,acurvado
pescoço,oscílioscompridos.
Dominika o lagrou mais uma
vezedisseemrusso:
—Izvinite,algumproblema?
Delon fez que nã o e deu outro
gole no vinho, ainda mais
atrapalhado
do
que
antes.
Aparentava50epoucosanosetinha
a cabeça grande demais para o
pescoço inoeosombrosestreitose
caı́dos. Usava os cabelos castanhos
penteadosparaolado.Lembravaum
rato, e os olhos muito escuros e
pequenos, o nariz a ilado e o
bigodinho ino por cima dos lá bios
crispados contribuı́am para isso.
Umapontadocolarinhoescapavada
lapeladopaletó azul-escuroeonó da
gravata, alé m de torto, era pequeno
demais. Dominika precisou resistir
ao impulso de endireitá -lo. Sabia a
datadoaniversá riodele,amarcado
analgé sico que ele guardava no
armarinho do banheiro, a cor da
colcha com que ele cobria sua cama
tã o pouco visitada.Bem, ela pensou,
com certeza ele parece um adido
comercial.
Percebeuqueelemalconseguia
itá -la.Viutambé moesforçoqueele
fazia para iniciar uma conversa.
Delon respirou fundo e ela esperou.
Sabiaqueaavaliaçã oque izeradele
estava correta e que seu plano já
estava em andamento. Quando ele
en im deixou escapar algumas
palavras,elassaı́ramnumsuavetom
deazul,nã omuitodiferentedoazulcentá urea que ela vira em Anya na
EscoladePardais.
— Desculpe... — balbuciou ele.
—Eque...eunã ofalorusso.Você fala
inglê s? — Claro — respondeu
Dominika.
— Et français? — perguntou
Delon.
—Oui.
— Otimo — gaguejou ele em
francê s. — Nã o tive a intençã o de
incomodá -la. E que... bem, achei que
foi uma grande sorte você ter
encontradoestelugarvago.Precisou
esperarmuito?
—Nemtanto—disseDominika,
e correu os olhos à sua volta. — De
qualquer modo, parece que o
movimento já está bem mais
tranquilo.
—Quebomquevocê conseguiu
sentar—foisó oqueelefoicapazde
retrucar.
Dominikaassentiucomacabeça
e voltou à leitura do cardá pio. Sorte
nã otinhanadaavercomofatodeela
ter conseguido justo aquele lugar.
Naquela tarde, todos os clientes no
restauranteeramoficiaisdoSVR.
Um
segundo
encontro
supostamentecasualnoJeanJacques
criou a oportunidade para ela se
apresentarcomoNadiaaodiplomata.
Dias depois, um esbarrã o na calçada
diantedorestaurantefezcomqueele
tivesse coragem su iciente para
sugerir que almoçassem juntos.
Depois disso os dois decidiram
conhecer restaurantes diferentes.
Delon era muito tı́mido e cortê s em
excesso. Bebia com moderaçã o,
falava pouco de si mesmo e
disfarçadamente secava o suor da
testaenquanto,perdidonospró prios
pensamentos, observava Dominika
colocaratrásdaorelhaumamechade
cabelo. Conforme os encontros se
sucediam,eleiabaixandoaguardana
mesmamedidaemqueoazuldesua
aura escurecia. Era isso que
Dominikaqueria.
Delon havia acreditado, sem
pestanejar,queNadiaeraprofessora
de lı́nguas na Liden & Denz, na Rua
Gruzinsky.Decasopensado,nãodizia
nada quando ela contava a respeito
do marido distante, um geó logo que
trabalhava nos con ins do Leste, em
outra zona de fuso horá rio, e ingia
desinteresse quando ela fazia
mençã oaopequenoapartamentoem
quemorava,comentandoqueoú nico
pontofortedaquelecubı́culoeranã o
ter de dividi-lo com ningué m. Delon
icava em silê ncio, mas por dentro
ardiaembrasa.
Simyonov tinha pressa: queria
que o homenzinho fosse seduzido o
mais rá pido possı́vel, para ter
controle total sobre ele. Dominika,
por sua vez, resistia, inventando
pretextos para ganhar tempo e
beirandoasraiasdainsubordinaçã o.
Sabiaqueo coronel pretendia usá -la
comopardal,queelenã otinhaoutra
estraté gia de recrutamento que nã o
fosseumaarmadilhasexual,quenã o
acreditava nem um pouco no
potencial
daquela
operaçã o.
Dominikadefendiacomveemê nciaa
necessidadedeumprazomaiorpara
que ela pudesse desenvolver uma
relaçã o com seu alvo, o que era
duplamenteimportanteemrazã odo
potencial da ilha dele como uma
informante de valor inestimá vel. O
francê s teria de ser isgado com
cautela, sem pressa. Simyonov
precisava refrear a ira sempre que a
gazelinha
recé m-formada
o
procuravapararelatarseuprogresso
esugerirnovospassos.
AosolhosdeDominika,bastaria
que ao longo das semanas seguintes
ela continuasse o trabalho que já
vinha fazendo. Ela e o francê s aos
poucos passavam de meros
conhecidos a amigos recentes, ele
cadavezmaisà vontadeaoladodela,
mais ı́ntimo també m, ainda que nã o
desse nenhum sinal do desejo que
sentia. Dominika lia a mente dele,
procurava encorajá -lo, dava a
entender que estava gostando cada
vez mais dele. Delon mal acreditava
naprópriasorte.Estavaloucoporela,
mas Dominika sabia que ele era
tı́mido demais para se declarar. Nã o
haveria recrutamento nenhum caso
elesesentisseludibriadoouinduzido
a uma situaçã o de perigo. Ela só
conseguiria recrutá -lo se tivesse por
base uma relaçã o de amizade e
desejo
crescente:
as
coisas
chegariam a um ponto, ela supunha,
em que o francê s nã o teria mais
forças para recusar nada do que lhe
fossepedido.
Aprincı́pioelesseencontravam
apenas uma vez por semana, depois
duas, entã o també m nos ins de
semana,parapassearpelacidadeou
visitar algum museu. Ambos eram
naturalmente discretos, a inal, eram
casados. Conversavam sobre a
famı́lia dele, os pais, a infâ ncia feliz
naBretanha.Dominikatinhaqueser
cuidadosa. O francê s era uma
tartaruga que nã o hesitaria em
recolher a cabeça para dentro do
cascoaomenorsinaldeameaça.
Apó s algum tempo Delon se
sentiu à vontade o su iciente para
falar, ainda que com alguma
hesitaçã o, sobre o casamento falido.
Amulhererabemmaisvelhaqueele,
alta e de traços aristocrá ticos, e
gostava de dar as cartas. A famı́lia
tinhadinheiro,muitodinheiro,eeles
haviam casado pouco tempo depois
do inı́cio do namoro. Delon contou
que a mulher metera na cabeça que
eleprecisavasubirnavida,afeitaque
era a posiçõ es e tı́tulos, coisas da
famı́lia dela. Ao perceber que se
casara com um homem reservado e
sem maiores ambiçõ es, desistira da
relaçã o. Insistia em manter as
aparê ncias, claro, mas nã o se
importava com a distâ ncia imposta
pela posiçã o que ele ocupava. A
situaçã odelenacarreiradiplomá tica
dependiadiretamentedela.
Delontinhaadoraçã oporCé cile,
a ú nica ilha do casal. Uma foto
revelava que ela era uma garota de
porte miú do, cabelos escuros e
sorriso gracioso. Como o pai, era
tímida, reservada e cautelosa. Coma
crescente intimidade entre eles,
Delonen imcontouaDominikaquea
jovem trabalhava no Ministé rio de
Defesa. Ele, claro, tinha o maior
orgulho da incipiente carreira da
ilha, mesmo sabendo que ela se
devia à in luê ncia do sogro
endinheirado. Falava com bom
humor das esperanças que nutria
paraCé cile:umbomcasamento,uma
carreirasó lida,umavidaconfortá vel.
Ofatodeterlhecontadosobrea ilha
era um avanço importante no
processoconduzidoporDominika.
Certa tarde, durante um café ,
Dominika perguntou se ele nã o se
preocupava com o futuro, se nã o
temiaqueamulherodeixasse,quea
ilha se envolvesse com o homem
errado e passasse a levar uma vida
melancó licacomoadele.Delonolhou
para ela, o objeto de sua crescente
afeiçã o, e pela primeira vez deve ter
sentido o toque sedoso do SVR. Um
sinal de perigo. Mas ele ignorou o
alerta, distraı́do pelo azul daqueles
olhos,peloscabelosquecaı́amparao
lado, pelas listras da camiseta que
ondulavam sobre os seios. No
entanto, apesar de todo esse
encantamento, nada acontecia para
que a castidade daquela relaçã o
chegasse ao im. Os encontros
terminavam
com
despedidas
constrangedoras, ambos corandoao
trocarem apertos de mã o, a nã o ser
porumaú nicavezemqueDominika
arriscara um beijo rá pido e
perfumadonorostodele,paragrande
alegriadotímidofrancês.
— O que você está esperando?
— rugia Simyonov. — Nossa missã o
é encurralarosujeito,nã oescrevera
biografiadele.
Numa dessas
Dominikaretrucou:
repreensõ es,
—Nã oé horadesermosburros.
— Sabia que estava cometendo uma
falta grave de disciplina. — Deixe o
francê scomigo.Cedooutardeelevai
comer na minha mã o.Assim como a
filha.
Simyonov só faltava espumar.
Umaneblinaamareladapulsavaaseu
redor,oramaisforte,oramaispá lida.
Dominika sabia que ele estava
tramando algo, planejando algum
bote. Apesar disso, continuava a
enfrentá -lo com seus argumentos,
por vezes chegando ao ponto de se
interpor isicamente no caminho
dele. Faltava pouco para que Delon
fosse isgado,quantoaissonã ohavia
a menor dú vida. O francê s queria
espionarparaela,só nã osabiadisso
ainda.
Repetindo o que tinha ouvido
dos veteranos aposentados que
conheceranotreinamento,eladisse:
— Fique tranquilo, camarada.
Estabatatajáestáquaseassada.
Ao falar isso, ela se sentiu uma
veteranaaposentadatambém.
— Nã o estou para brincadeiras
— avisou Simyonov, de dedo em
riste,eemendou:— Nã o perca mais
tempo.Conclualogoestecaso.Minha
paciênciaestáseesgotando.
No entanto, ao mesmo tempo
que se sentia na obrigaçã o de
repreenderasubordinada,Simyonov
podia perceber o requinte com que
ela conduzia a operaçã o, as nuances
que apontava e que ele mesmo
jamais seria capaz de perceber
sozinho. A moça tinha futuro, e isso
nãoeranadabom.
***
Dominikaen imconvidouDelon
aseupretenso apartamento na zona
norte de Moscou, pró ximo à estaçã o
ferroviá ria Bielorrú ssia e nã o muito
longedaescoladelı́nguasemqueela
dizia trabalhar. Tratava-se de um
quarto e sala em que tanto o quarto
quanto a sala eram minú sculos, a
cozinha era um diminuto anexo da
sala e o banheiro, ou melhor, o
lavató rio, se separava do resto do
apartamentoporumarelescortina.O
carpete era puı́do, e o papel de
parede já estava desbotado havia
muitotempoetinhabolhasportoda
parte. Uma chaleira decré pita, velha
demaisparaapitar,jazianofogã ode
uma boca só . O lugar era pequeno e
encardido,masemMoscouaindaera
um luxo considerá vel o fato de nã o
precisar dividi-lo com parentes ou
colegasdetrabalho.
Outra
caracterı́stica
do
apartamento, que Delon nã o tinha
comoconhecer,eraqueasparedes,o
teto e os eletrodomé sticos estavam
infestados de câ meras e microfones.
Os dois apartamentos vizinhos,
assim como o de baixo e o de cima,
també m eram unidades controladas
pelo SVR. A quantidade de energia
elé trica consumida apenas por esse
bloco de apartamentos era capaz,
sozinha,defazervoarumaaeronave
Tupolev Tu-95. As vezes, tarde da
noite, era possı́vel ouvir o ronronar
dosgeradoresnoporão.
— Simon, preciso da sua ajuda
— disse Dominika, abrindo a porta
do apartamento. Com um buquê de
loresazuisnamã oeumagarrafade
vinho sob o braço, Delon icou
imediatamente preocupado. Aquela
era a terceira vez que ia ao
apartamento de Nadia, e as visitas
anteriores haviam se limitado a
conversas,mú sicaevinho.Comuma
nota de a liçã o na voz, Dominika
explicou: — E que peguei um
trabalho como inté rprete de francê s
nafeiradecomé rciodaITFMnomê s
quevem.Praganharumdinheirinho
extra, sabe como é . Nem sei onde
estava com a cabeça. Sou
completamente ignorante nessas
coisas de indú stria, energia,
comé rcio...
Nã o
conheço
o
vocabulá rio nem em russo, quanto
maisemfrancês!
Delonsorriu,eelaviuemtorno
dele uma aura azulada que irradiava
con iança e afeto. Eles se
acomodaram no sofazinho da sala.
Delon sabia tudo a respeito da tal
feira, era esse o seu trabalho. Do
outro lado das paredes, pelo menos
seis té cnicos do SVR observavam e
gravavamacena.
—Esó isso?—retrucouele.—
Em um mê s posso lhe ensinar todas
as palavras de que vai precisar. —
Deu um tapinha na mã o dela e
acrescentou:—Nãosepreocupe.
Dominika se aproximou, tomou
orostodeleentreasmã osedeu-lhe
um beijo de agradecimento nos
lá bios.Já haviacalculadoaduraçã oe
a natureza desse beijo. No entanto,
pormaisinfantileinó cuoquetivesse
sido o gesto, essa foi a primeira vez
que Delon sentiu os lá bios dela nos
seus, o gosto do batom dela na
própriaboca.
— Nã o se preocupe — repetiu
ele,aindaumtantoabalado.
O azul das palavras agora tinha
uma tonalidade mais uniforme e
maisescura.Elehaviasedecidido.
Dominika sempre demonstrara
interesse pelo trabalho dele, pelos
meandros da diplomacia, e Delon já
seacostumaraadescreversuarotina,
satisfeito com o fato de algué m se
importar com ela. Agora ele poderia
retribuir. Na noite seguinte, vindo
direto da embaixada, chegou ao
apartamento de Nadia com uma
maleta em punho e tirou dela um
relató rio de vinte pá ginas que ele
mesmo
preparara
sobre
as
oportunidades de investimento na
Rú ssia. Eles leram juntos todo o
conteú do. As pá ginas estavam
carimbadas com um acintoso
Confidentiel.
Mais
encontros,
mais
documentos.Quandonã opodialevar
os originais, ou uma có pia deles,
Delon
aparecia
com
fotos
razoavelmente legı́veis que tirava
comocelular.Elestrabalhavamcom
os dicioná rios dele, em francê s, e os
dela, em russo. Tal como seria
esperado de uma professora de
lı́nguas, Dominika aprendia o
vocabulá rio té cnico com bastante
rapidez,eelepercebia,comoorgulho
de um tutor, que alé m das palavras
ela
també m
aprendia
com
impressionante
facilidade
as
questõ es mais amplas do comé rcio
internacional e da energia. Delon
decidiuqueensinariatudooqueela
quisesse, que a treinaria, que faria
dela uma especialista. Estava
apaixonado.
Para que Dominika pudesse
estudarsozinhaemcasa,elepassoua
deixar com ela as có pias dos
documentos, o que para o SVR nã o
era tã o importante em termos de
espionagem,umavezqueascâ meras
secretas eram poderosas o bastante
para captar cada vı́rgula de toda
aquela papelada. O que realmente
importava era o fato de que o
diplomataquebraratodasasnormas
de segurança da embaixada à qual
deviafidelidadetotal.Dominikasabia
que o tinha nas mã os. Para Delon, a
icçã o do “estudo de vocabulá rio”
resvalara para outra icçã o, a de
“treinar Nadia”, e esta se
transformara numa devoçã o cega à
sua nova discı́pula. Ele agora faria
tudo o que ela pedisse, e essa
motivaçã oerabemmaisfortedoque
qualquer salá rio de informante que
porventura lhe oferecessem, mais
convincente do que qualquer
chantagem sexual. Se ele sabia que
estava lidando com a inteligê ncia
russa,nãodavaomenorsinaldisso.
Acompanhando de perto o
progresso da operaçã o, Simyonov
convocou mais uma reuniã o e, aos
berros, exigiu que Dominika fosse
mais rá pida, que levasse logo o
homenzinhoparaacama.
— Por quevocêsnã ovã oparaa
cama com ele? — berrou ela em
resposta a Simyonov e os homens à
suavolta.—Qualdevocê squerdaro
rabopraele?
Silêncioabsoluto.
Dominika tentou se acalmar e
disse:
— Olhem, o pró ximo passo é
muito delicado. — Primeiro ela
precisavapersuadirDelonaprocurar
a ilha,edepois,commuitotato,fazê lo convencer a garota a fornecer os
segredos de defesa do Estado
francê s. Seria como se um titereiro
controlasse um boneco que, por sua
vez,controlasseumsegundoboneco.
Assim que Cé cile desse o primeiro
passo,
bastaria
que
Delon
assegurasse a participaçã o contı́nua
dela. — Assim que os documentos
franceses começarem a luir, a
operaçãoestaráencerrada.
Simyonov ouviu tudo isso com
umacaradepoucosamigos,nemum
pouco convencido. O plano era
complicado demais, e aquela
diletantka era uma insubordinada.
Masresolveuesperarumpouco,eviu
que estava certo ao encontrar o
general Korchnoi e ter com ele mais
umadesuasconversasdecorredor.O
espiã o
veterano
concordava
plenamente que era preciso acelerar
o recrutamento e demonstrou
compaixã o para com o coronel ao
saber dos desaforos da petulante
Dominika.
— Ah, esses novatos... —
comentou. — Entã o, me conte mais
sobreessamoça.
***
Ironicamente, foi o vagaroso
Delon quem resolveu acelerar as
coisas. Certa noite, sentado ao lado
de Dominika no sofá da sala,
examinando mais um documento de
nivelmé diodecon idencialidade,ele
cedeuaumimpulsoetomouasmã os
delaentreassuas,depoisseinclinou
para dar-lhe um beijo afetuoso.
Talveztivesse icadomaissegurode
sicomaintimidadedosencontrosde
estudo, ou talvez mais fatalista, já
intuindo que estava, aos poucos,
sendo tragado pelo ralo da
espionagem. A despeito do que o
tivesse
despertado,
Dominika
retribuiu o beijo com o mesmo
carinho,acabeçafervilhandocomos
cá lculos que precisavam ser feitos.
Tratava-sedeummomentodelicado
da operaçã o. Ir para a cama com ele
agora, antes que a ilha tivesse sido
cooptada,poderiacomprometertoda
a transiçã o. Por outro lado, poderia
fortaleceraindamaisocontroledela
sobre ele. Dominika pensou nos
barrigudos suarentos que estariam
assistindo a tudo do outro lado da
parede, con inados num cubı́culo
quente.
Comosepercebesseaindecisã o
dela, Delon abrandou o beijo e abriu
os olhos, ameaçando recuar no
momento mais imprová vel. No
entanto, o halo em torno de sua
cabeça parecia arder em chamas. Ao
ver isso, Dominika decidiu que
precisava avançar, que eles tinham
que se tornar amantes. Ela o
conduziria ao longo do caminho,
ajudando-oaseduzi-la.
Dominikaaindatevetempopara
umpouquinhoderemorso.Ofrancê s
era um sujeito tã o doce, tã o
con iá vel... Bem diferente do
asquerosoUstinov.Masagoraelaera
um pardal a serviço da pá tria,
treinada nas artes da seduçã o.
Algumas das quais, aliá s, pipocavam
deformaautomáticaemsuacabeça.
Ela levou a mã o à nuca dele e
tratou de reacender o beijo (no 13:
Sinalize com bastante clareza a
disponibilidade sexual). Em seguida,
começou a ofegar ruidosamente (no
4:Demonstrepaixãoparaestimulara
paixãodooutro).Delonseafastouea
itoucomosolhosarregalados.Elao
itoudevolta,acariciou-lheorostoe
conduziuamã odeleparaumdeseus
seios.
Vendo que o francê s icou sem
açã o,começouaesfregaramã odele
emsuapelecomsensualidade(no55:
Demonstre desejo para alimentar a
excitaçã o
fı́sica).
Dominika
estremeceu. Delon ainda a encarava,
estático.
—Nadia...—sussurrouele.
Agora com os olhos fechados,
Dominika roçou o rosto no dele,
aproximou a boca de sua orelha (no
23: Encorajamentos verbais são
estimuladoresdodesejo)esussurrou:
—Simon,baise-moi...Mebeije.
No instante seguinte eles se
levantaram do sofá e saı́ram
tropeçando na direçã o do quartinho
escuro (que na verdade estava mais
iluminadoqueumestá diodefutebol,
mas por raios infravermelhos
invisı́veis).Dominikatirouasaiaea
blusa, mas manteve o sutiã cavado.
(no 27: A seminudez pode ser tão
excitante quanto a nudez total. )
Começou a acariciar as pró prias
coxas (no 49: Autoestimule-se para
produzir feromônios) enquanto o
atrapalhado francê s dava saltinhos
ridículosparaselivrardascalças.
Delon era como um passarinho
na cama: leve, penugento, e parecia
lutuar ao se colocar em cima dela e
posicionaracabeçaentreseusseios.
Dominikamalsentiaapresençadele
ali,masarqueavaascostaseestirava
as pernas (no 49: Gerar tensão
dinâmica nas extremidades para
apressar as reações nervosas) como
se estivesse em ê xtase. Por um
instante, olhou para o obturador
escondido na lâ mpada do teto, mas
viu que Delon erguia a cabeça de
entreseusseiosparaencará -la,entã o
baixou os olhos para os dele e o viu
exalarumsuspiroantesdecomeçara
seremexercommaisvigoremcima
dela. Mais uma vez ela fechou os
olhos (no 46: Bloqueie as distrações
que
possam
atrapalhar
o
desempenho)epassouamurmuraro
nome do francê s até sentir um
tremorpercorrerocorpodele.Nesse
momento,ajudou-oachegaraoá pice
(no 9: Exercite o músculo
pubococcígeo).
—Nadia,jet’aime...Euteamo—
balbuciouDelonaofimdetudo.
— Lyubov’ moya. Meu amor —
devolveuela,correndoosdedospelo
pescoçodele.
Nesse instante, a lâ mpada do
teto se acendeu (uma lâ mpada
pintada de laranja para favorecer o
contrastedascâ merasdigitais)etrê s
homens de terno irromperam no
quarto,osolhosbrilhandofeitoosde
um porco à cata de trufas numa
loresta.Elesvinhamacompanhando
a cena num dos apartamentos
vizinhoseestavamsuadosefedidos.
Dominika se ergueu na cama,
abraçou o apavorado Delon como se
ele fosse sua boneca predileta e
berrouemrussoparaqueoshomens
saı́ssemdali.Sabiaexatamenteoque
estava acontecendo: Simyonov
mandaraà sfavasapropostadelade
uma abordagem mais sutil. Ele nã o
era capaz de esperar, precisava agir
de acordo com seu manual tosco.
Tratava-se, claro, de uma represá lia
contra ela. Aquele era o castigo por
seus inú meros atrevimentos nas
reuniõ es, pelas interrupçõ es e pelos
comentá rios
inconsequentes.
Lembrava-se de ter tentado falar a
linguagem da velha guarda (“Esta
batatajá está quaseassada”),eagora
essa mesma velha guarda estava lhe
mostrando
quem
realmente
comandavaaquelebarco.
Os homens arrancaram Delon
dos braços dela e o arrastaram de
volta para a sala ainda nu. Em
seguida, empurraram-no para o sofá
ejogaramemcimadeleascalçasque
haviam recolhido do quarto. O
francê s os itava sem entender.
Dominika ainda gritava na cama
enquanto se enrolava num lençol
antes de se levantar. Quase cega de
fú ria, tinha a impressã o de que seu
cé rebro
explodiria.
Estava
determinada a expulsar os trê s
brutamontes do apartamento e
reassumirocontroledasituação.
Antes que ela pudesse icar de
pé , no entanto, um deles a agarrou
pelospulsoseapuxouparaasala.Ao
ver isso, Delon ameaçou socorrê -la,
mas logo foi imobilizado no sofá . O
homem que segurava Dominika a
virou para si e desferiu-lhe um tapa
norosto,dizendo:
—Suaputa!Vagabunda!
Emseguidaajogounochão.
Poderia tratar-se de uma
encenaçã o, mas ainda assim
Dominika encarou o desgraçado que
axingara,calculouadistâ nciaaté os
olhosdeleeficoudepé,deixandocair
o lençol. Todos se viraram atô nitos
paraela,paraocorponu.Noinstante
seguinteela intouumchute,esperou
o homem inclinar o tronco para se
proteger e imediatamente avançou
contra ele, cravando as unhas do
polegaredoindicadoremseunariz.
Usandoamesmaté cnicacomumnas
câ maras de tortura da NKVD na
dé cadade1930,elapuxouomaldito
pelo nariz e bateu a cabeça dele
contra a quina da mesinha atulhada
de documentos comerciais da
embaixada francesa. O mó vel
emborcou com o peso, os papé is
voaram por toda parte e o homem
desabou no chã o, onde permaneceu
imó vel.Nosofá ,Delonmalacreditava
noqueacabaradever.
Tudo isso nã o consumira mais
que dez segundos. Um segundo
homem do SVR agarrou Dominika,
saiu com ela para o corredor e a
empurrouparaapartamentovizinho.
— Tire as mã os de mim! —
rugiu ela, enquanto o brutamontes
batiaaportacomelaládentro.
No interior do apartamento,
alguémdisse:
— Belo trabalho, cabo Egorova.
Um ó timo inal para uma operaçã o
muitoperspicaz.
Ao virar o rosto, Dominika se
deparou com Simyonov acomodado
numsofá diantededoismonitores.O
primeiromostravaoapartamentoao
lado: um dos homens acudia o
companheiro desfalecido no chã o
enquantoooutropostava-seà frente
de Delon, que tinha o rosto erguido
como se rezando, as calças ainda na
mã o. A segunda tela reprisava as
imagens de Dominika com o francê s
nacama.Semsom,osexoentreeles
pareciaumatoclı́nico,encenado.Ela
ignorouascenas.
Embrulhou-se novamente no
lençolegritou:
— Zhopa! Seu idiota! Você
arruinoutudo!
Simyonov nã o respondeu. Seus
olhos se alternavam entre um
monitoreoutro.
— Ele teria recrutado a pró pria
filhapormim!—emendouDominika.
Sem desviar o olhar das telas,
Simyonovresmungou:
—Eleaindavaifazerisso.
Pegou o controle remoto e
pressionou o botã o que fazia o som
das imagens ao vivo voltar. Os dois
homensdoSVRagoraberravamcom
Delon, que permanecia imó vel no
sofá . Dominika deu um passo na
direçã o do coronel, cogitando
seriamente furar o olho dele com o
polegar.
— Delon nã o vai ceder a
chantagem nenhuma! Nã o tem
coragem pra isso! Se você s estã o
achandoque...
Simyonov virou-se para ela
enquantoacendiaumcigarro.Comos
olhosfaiscando,ameaçou:
— Nesse caso o fracasso da
operaçã o
será devidamente
registrado noseu currı́culo. Pelo
visto, você ainda nã o entendeu uma
coisa, cabo Egorova. Nã o é você
quem dá as ordens por aqui. O SVR
nãoéoquintaldasuacasa.
— Em seguida se voltou para o
segundo monitor, no qual Dominika
enlaçava as pernas na cintura de
Delon.
— Qual é a necessidade de
reprisar essas cenas, camarada? —
questionouela.
Emvezderesponderà pergunta,
ocoronelsoprouafumaçadocigarro
paraoalto,depoisfalou:
—LevandoemcontaqueSerov
lhe deu um tapa, nã o vou abrir um
processo disciplinar pelo que você
fez com ele. — Apontou para o
primeiro monitor, que mostrava o
grandalhã o ainda caı́do no chã o, e
emendou: — Você tem o sangue
quente,vorobey. Poderá usar isso a
seufavornestasuanovaprofissão.—
Sorriu e apontou com o queixo na
direçã o do cô modo adjacente,
dizendo:—Temumamudaderoupa
aı́. Pode se vestir. A menos que
pre ira passar o resto da noite nua,
claro.
Dominika foi para o quartinho,
en iou-se no vestido reto que
encontrou ali, colocou o cinto de
plá sticoecalçouossapatospretosde
cadarços: o visual socialmente
aprovado durante os ú ltimos
cinquenta anos para a mulher
soviéticamoderna.
***
Dominika nunca mais voltou a
ver Delon. O inal da histó ria viria à
tona em partes. Um informante do
SVR, que ocupava um posto
burocrá tico na embaixada francesa,
relatou que na manhã seguinte o
homenzinho pediu uma audiê ncia
com o embaixador e confessou ter
tido “um relacionamento ı́ntimo e
clandestino com uma moça russa”.
Tiveramuitacoragemaodescrevera
quantidade e a natureza dos
documentos
que
havia
compartilhado,
copiado
ou
comprometidodeumamaneiraoude
outra. O chefe da Direçã o Geral da
Segurança Exterior em Moscou
relatouocasoà matrizemParis,bem
comoà Divisã odeContrainteligê ncia
da Direçã o de Segurança Territorial.
Nã o houve escâ ndalo. Uma mulher
bonita,quoiPaire?Oquequalquerum
faria?
Semdú vidaosalemã esoteriam
consideradoculpadoeocondenadoa
trê sanosdedetençã o.Osamericanos
teriam taxado o infeliz como mais
uma vı́tima da espionagem sexual e
encerrado o caso com uma pena de
oito anos. Na Rú ssia, opredatel’, o
traidor, teria sido liquidado. Os
franceses, por sua vez, haviam
registrado um simples caso de
négligence. Delon logo foi mandado
de volta a seu paı́s de origem e
submetido a uma “quarentena” de
dezoitomesesemumcargoquenã o
lhe oferecia acesso a documentos
con idenciais. Agora estava de novo
emParis,maisumavezjuntoda ilha.
No im das contas seu castigo se
resumira a ter de voltar a morar na
mansã o que a mulher tinha no 16o
distrito, apenas com as lembranças,
nas madrugadas de insô nia, de um
apartamentinho
encardido
em
Moscou e um par de olhos azul-
cobalto.
COZIDO DE CARNE DO JEAN
JACQUES
Polvilhar farinha temperada
sobre cubinhos de carne e selá-los no
óleo bem quente. Reservar. Refogar
batatas, tomates e cenouras com
pedacinhos de bacon, cebola picada e
tomilho. Assim que os legumes
verem amolecido, adicionar a carne,
cobrir com caldo e deixar ferver até
que esteja bem macia. Misturar com
mostarda Dijon e um pouco de creme
de leite. Reaquecer e servir.
CAPÍTULO 10
VANYA
EGOROV
PRATICAMENTE
ACENDIA
um
cigarronooutro,osGitanesfranceses
queorezidentdeParislheenviavade
temposemtempospormensageiros.
Estavacomavistacansadaetinhaa
sensaçã o de que havia uma bola de
ferroesmagando-lheopeito.Sobreo
risque-rabisque de couro vermelho
jazia mais um relató rio de vigilâ ncia
doFSB,oterceiroemtrê smeses.Um
diplomataamericano(supostamente
um agente da CIA) fora seguido
duranteumaoperaçã odedozehoras
duas noites antes. Vá rias equipes
haviamsidodestacadasparavigiaro
jovem ianque, e o contingente
aumentara ainda mais com o
anoitecer,quando icouevidenteque
ele estava mesmo a caminho de um
encontro secreto com algum
informante.Asequipeshaviamficado
entusiasmadasaosedaremcontade
que o americano nã o detectara a
presençadelas,oqueeramuitoraro.
O nú mero inal de vigilantes
chegaraa120,talcomoinformavao
relató rio, com orgulho. As nevascas
do dia haviam impedido a utilizaçã o
de helicó pteros, mas as unidades
terrestres avançaram aos poucos,
revezando-se na posiçã o de “olho”.
Ativos pedestres tinham sido
distribuı́dos em todos os itinerá rios
mais prová veis do americano,
amparadosporequipesmotorizadas,
e pelo menos um ativo está tico fora
plantado em sessenta das 180
estaçõ es de metrô de Moscou na
hipó tese de que ele mudasse de
caminho de repente. Egorov lia com
impaciê ncia as ú ltimas pá ginas do
relató rio.Esses dolboyobido FSB...,
pensou.Idiotas.
O sol já se punha quando o
americano en im entrou no parque
Sokolniki, na zona norte da cidade.
Alheioaofrioeàescuridãocrescente,
eleatravessouoparquedediversõ es
decré pito, passou pela roda-gigante
enferrujadaeseguiupelolabirintode
á rvoresnuasaté parardiantedeuma
fonte ornamental seca. Empoleirouse na borda de cimento e icou ali,
contemplandooscanteirosmortosà
sua frente. As transmissõ es
criptografadas
de
rá dio
se
intensi icaram. Con irmado: ele
realmentesaı́raparaumencontro.Os
agentesforaminstruı́dosamanteros
ó culos de visã o noturna voltados
para o ianque, mas permanecendo
atentos a todos os pedestres.Todos.
Entre eles haveria algum mais
furtivo, nervoso, seguindo para a
fonte.
Ao ler o relató rio, Egorov podia
imaginar os homens do FSB se
esgueirando de uma á rvore a outra
com os ó culos de visã o noturna, um
bando de marcianos verdes e de
olhos esbugalhados. Um cã o
farejador fora levado para localizar
qualquer material enterrado. O
pastor-alemã oerausadoparaseguir
americanos,treinadoparaidenti icar
oscheirosespecı́ icos do sabonete e
do
desodorante
que
eles
costumavamusar.
Entã o eles esperaram. E o
americano esperou. Muito alé m dos
protocolares quatro minutos. Dez,
vinte, trinta minutos se passaram e
nada. O parque estava vazio. O
cachorro refez o caminho do
americano,masnã oencontrounada:
nenhum tesouro enterrado, nenhum
marcador incado no chã o, nenhum
dispositivo.Oscarrosequipadoscom
rá dio circulavam lentamente em
torno do parque, anotando as placas
decarro,maisdecem,paraqueelas
fosseminvestigadas:nada.Por imo
ianque deixou o lugar e, mais uma
vez contrariando a tradiçã o da
espionagem,foidiretoparacasa,sem
sedaraotrabalhodetentardespistar
umapossı́veleprová veloperaçã ode
vigilâ ncia. Os rá dios do FSB se
calaram.
Egorov arremessou o relató rio
na bandeja de documentos com
visı́vel desdé m. O FSB se
autoparabenizava por ter realizado
uma operaçã o perfeita, já que o alvo
nem sequer percebera sua presença.
Grandemerda,pensouovice-diretor.
Muito barulho por absolutamente
nada.
***
Vanya Egorov nã o sabia, mas o
zum-zum em torno da operaçã o de
vigilâ ncia dedicada ao americano
havia sido tamanho que Marble, em
vezdeseguirparaoparqueSokolniki
para tentar um encontro com o
americano, decidira esperar e
observar, posicionado em um ponto
deô nibuscobertonaMalenkovskaya
Ulitsa,avá riasquadrasdaentradado
parque. Seu extraordiná rio faro nas
ruas foi con irmado quando trê s
carros de vigilâ ncia estacionaram a
uns100metrosdeondeeleestava,os
homens desceram e começaram a
fumareapassargarrafasdemã oem
mã o, tentando despistar quem quer
que os estivesse observando. Aquele
era o erro clá ssico de uma operaçã o
de vigilâ ncia em campo: icar
batendo papo em rodinhas e zanzar
deumladoparaoutrofeitoumbando
debaratastontas.
Bem,maisumadiamentonomeu
projeto de aposentadoria, pensou
Marble. Quantos outros ainda
estariam por vir? Enquanto se
afastava, ele pensou no que
escreveria em seu relató rio naquela
noiteeem quã o desesperado estava
para achar um motivo que o izesse
sair do paı́s. Ele precisava se
encontrarcomNathanieloutravez.
Na manhã seguinte, Zyuganov,
chefe da Linha KR, enviou um
memorando con idencial para o
general
Egorov,
um
texto
cuidadosamente redigido para
demonstrar que ele sabia de tudo e
queestavanocomandodasituação.
Seguem algumas explicações
possíveis para as a vidades do
diplomata americano: 1. Pode ter
sido um exercício para atrair, e
depois quan ficar, a capacidade
de vigilância do FSB, incluindo a
coleta de sinais de inteligência
nas frequências criptografadas do
serviço; 2. O americano detectou
a operação e abortou o encontro
marcado, seguindo para o parque
apenas
para
confundir
os
vigilantes; 3. O informante
simplesmente não compareceu,
por razões desconhecidas ao
americano.
Essa inves da por parte dos
americanos nos pareceu mal
planejada e executada, vindo a
confirmar a avaliação que desde o
início fizemos do chefe de estação
da CIA, Gordon Gondorf, como um
oficial mal preparado para lidar
com as complexidades de sua
posição, fruto infeliz de uma
an ga
relação
de
apadrinhamento.
Quem se importa com esse
imbecil?,pensouEgorov.Comosenão
bastassem os imbecis vaidosos, os
incompetentes de costas quentes que
temos aqui mesmo, na nossa própria
casa.
Vanya sabia, ou melhor, estava
absolutamente convencido, de que
maisumavezeleshaviammetidoos
pé spelasmã os,dequeoinformante
aindaandavaà soltaporaı́,traindoa
Rú ssia, colocando em risco o futuro
polı́tico que ele, Vanya, tanto vinha
lutandoparaconstruir.
Foi entã o que um telefonema o
surpreendeu no meio da tarde, uma
ligaçã o do Kremlin, a voz suave do
presidenteronronandodooutrolado
da linha criptografada. Putin estava
ciente da operaçã o de vigilâ ncia
realizada na vé spera, a ponto de
repetir, praticamente palavra por
palavra, as diversas hipó teses sobre
o que acontecera. Vanya logo se deu
conta de que o memorando de
Zyuganov havia encontrado seu
caminho
para
o
gabinete
presidencial.
—
Uma
operaçã o
de
contraespionagem
bem-sucedida
seria muito valorizada neste
momento—sussurrouopresidente.
—Emtemposdecrisenapá triamã e,
temos menos tempo para lidar com
estashozjajki, essas donas de casa,
que icam batendo panelas em
protesto por aı́. — Seguiu-se um
demorado silê ncio, mas Vanya sabia
que a ligaçã o ainda nã o havia
terminado. Conhecia muito bem as
cadê ncias da fala de Putin. — Nã o
podemos contar com o luxo do
tempo, general — concluiu en im, e
sóentãodesligou.
Vanya icou olhando para o
telefone por alguns segundos antes
de colocá -lo no gancho.Sookin syn.
Filho da puta. Pressionou um dos
botõesdointerfoneedisse:
— Ligue
imediatamente.
para
Zyuganov
O informante ainda estava à
solta, mas se as reuniõ es
clandestinasemMoscounãoestavam
funcionando,omaisprová veleraque
os novos encontros passassem a
acontecerforadopaı́s.ENashestava
logo ali do lado, na Finlâ ndia.
Nathaniel Nash. Vanya pressionou o
botã o do interfone mais uma vez e
ordenou:
— Egorova, minha sobrinha.
Agora.
Em vinte minutos Dominika já
se encontrava à sua frente. Ao lado
dela estava Zyuganov, chefe da
contrainteligê ncia, as duas mã os
plantadas nos braços da cadeira, os
pé s mal tocando o chã o. Como
sempre,obaixotehaviaabotoadode
cima a baixo o paletó do terno
vagabundo, e també m como sempre
tinha no rosto aquele sorrisinho
altivoquetantoirritavaVanya.Alexei
Zyuganov,oanãozinhopeçonhento.
Dominika, por sua vez, estava
linda no terninho azul-marinho do
uniforme,oscabelospresosnocoque
regulamentar. Ao olhar de relance
para Zyuganov, ela viu triâ ngulos
negrosatrá sdacabeçadele.Nã oera
tã o nova assim no serviço que nã o
tivesse ouvido falar das façanhas
daqueledemô nionascelasdetortura
da KGB na é poca dos estertores da
UniãoSoviética.
As histó rias eram sussurradas
pelos
corredores,
narrativas
inacreditá veis, repetidas apenas
entre amigos de con iança no SVR.
NosvelhostemposZyuganovforaum
dosdoisprincipaiscarrascosdaKGB,
jovem demais mas perfeitamente
talhado para o serviço, uma vez que
era imune aos horrores envolvidos
nele. Dizia-se que o anã o tinha
verdadeiro fascı́nio pelo que fazia,
que salivava de prazer ao pendurar
um prisioneiro numa viga qualquer,
ao torturar algué m numa mesa ou
numa superfı́cie inclinada com a
cabeça apontada para o esgoto.
Comentava-se à é poca que ele
manipulava seus prisioneiros como
sefossembonecosdepano,virandoos de um lado para outro,
reposicionando pernas e braços
enquanto falava com eles. Dominika
podia
imaginar
as
roupas
ensanguentadas, os hematomas por
todaparte,os...
—Parecequevocê eeuestamos
semprenosencontrandoporaqui—
disse Vanya, bem-humorado. — E
muito bom revê -la, minha sobrinha.
Dominika afastou da cabeça as
imagens grotescas. Ao ver o halo
amarelado em torno do tio, achou
que a reuniã o poderia ser
interessante. — Obrigada —
respondeucalmamente.
Esepreparouparaoqueestava
porvir.
—Fiqueisatisfeitoaosaberque
o general Korchnoi lhe ofereceu um
lugarnoDepartamentodasAméricas.
Ora,desembuchedeumavez, ela
pensou.
— Quando o coronel Simyonov
me dispensou do Quinto, iquei sem
terparaondeir.Sougrataaogeneral
pelaoportunidadequeestámedando
—retrucouDominika.
— Korchnoi falou que icou
muito impressionado com seu
trabalhocomofrancês.
— Embora a operaçã o tenha
sido um fracasso... — completou
Dominika.
—Todostemosnossossucessos
efracassos—contemporizouVanya,
banhado em amarelo, a simpatia em
pessoa.
Dominika levantou um pouco o
tomdevoz:
— A operaçã o contra Delon
ainda estaria em andamento se o
Quinto nã o tivesse agido tã o
prematuramente. Poderı́amos ter
conseguido acesso ao Ministé rio de
DefesadaFrança.
— Eu li o arquivo — interveio
Zyuganov. — Havia mesmo essa
possibilidade. Por que nã o foi
explorada?
Dominika precisou fazer algum
esforço para nã o arregalar os olhos
ao ver as pará bolas negras que se
formavam atrá s dos ombros de
Zyuganov, feito as asas de um
m o rc e go .Shaitan, ela pensou. O
demônio.
— Isso o senhor vai ter de
perguntar ao chefe do Quinto
Departamento—respondeuela,sem
itaroanã odiretamente,semquerer
ver o que habitava o interior
daquelesolhosdiabólicos.
— Talvez eu pergunte —
retrucouZyuganov.
— Já chega. Recriminaçõ es nã o
levam a lugar algum — falou Vanya.
— Cabo Egorova, nã o cabe a você
questionar as decisõ es dos seus
superiores—emendousuavemente.
Semtirarosolhosdotio,ecom
a mesma delicadeza dele, Dominika
disse:
—Eporissoqueoserviçotem
tanta di iculdade para continuar
existindo. Graças a atitudes como
essa, a o iciais como Simyonov, a
Rú ssia nã o pode competir com os
gigantes. Agentes como ele sã o
sanguessugasgrudadasnabarrigada
pá tria, sugando todo o sangue dela,
impossíveisdeserretiradas.
Osilê ncioseabateusobreasala
enquanto Dominika e Vanya se
encaravameZyuganovolhavaparaa
jovem com as mã os imó veis na
cadeira.
—Ah,minhasobrinha,oqueeu
vou fazer com você ? — disse Vanya
a inal, icandodepé esedirigindoà s
janelaspanorâ micas.—Seucurrı́culo
é muito bom, seria uma pena que
você colocassesuacarreiraemrisco.
Omodocomoacaboudefalarcomigo
bastaria para que fosse afastada do
serviço.Então,gostariadeprosseguir
comasreclamaçõ es? — Dominika já
podiapreveroqueelediriaaseguir.
Nãoseenganou.—Pensenasuamãe,
minha querida. Ela precisa da sua
ajuda.
— Estou abusando do nosso
parentesco, eu sei — admitiu ela. —
Mas nosso trabalho é importante
demais,nã opodemos deixar que ele
continue sendo minado dessa
maneira.
Observando o tio diante das
vidraças, Dominika teve certeza de
duas coisas. Primeiro, ele nã o se
importava com nada daquilo. Tinha
em mente algum objetivo maior e
precisava dela para alguma coisa, e
só por isso ainda nã o a degolara.
Segundo, Zyuganov sorvia cada
palavra dela, irradiando seu calor
comoumafornalhadosinfernos.Era
desses que nã o icavam satisfeitos a
menos que tivessem alguma presa
para triturar. Dominika ainda nã o
ousavaencará-lo.
Olhando para fora, Vanya
balançou a cabeça.Bem-vindo ao
moderno SVR, pensou.Melhorias,
reestruturações, relações públicas,
agentes do sexo feminino, novatos
criticandoveteranos.
— Quer dizer entã o que você
nã o aprova os velhos mé todos? —
indagouàsobrinha.
— Nã o gosto de ver uma
operaçã o fracassar quando poderia
ter sido bem-sucedida, só isso —
rebateuela.
— E acredita que está pronta
praconduziraprópriaoperação?
— Com o apoio e os conselhos
deo iciaiscomoosenhoreogeneral
Korchnoi... E do coronel Zyuganov
també m, claro — respondeu
Dominika, obrigando-se a incluir o
diminutonecrófiloaseulado.
Zyuganov virou-se para ela e
assentiu.
— Muitos diriam que você é
jovem e inexperiente demais, mas
veremos — falou Vanya. Dominika
nã o deixou de reparar seu tom
cordato, mas sabia que o bote nã o
tardaria a vir. — Infelizmente você
terá de abrir mã o do Departamento
das Amé ricas caso aceite a missã o
quetenhoemvistapravocê.
— Qual é a missã o? — quis
saberela.
Daria um grito se ouvisse que
teriadeseduzirmaisalguém.
—Umaaçã oexterna—explicou
Vanya. — Umarezidentura com
trabalho operacional de verdade:
uma missã o de recrutamento. — As
lembrançasqueelemesmoguardava
das açõ es externas eram muito
vagas, mas Vanya falava como se
tivessem sido as melhores de sua
vida.
—Umamissãonoexterior?
Dominika nã o sabia o que
pensar.NuncasaíradaRússia.
— Na Escandiná via. Preciso de
algué mnovoporlá ,umapessoacom
a cabeça fresca, com os talentos que
vocêtemdemonstradoatéagora.
Meus talentos na cama, pensou
Dominika.Vendooazedumenoolhar
dela,Vanyalogotratoudeesclarecer:
—Nã o,nã oé issoquevocê está
pensando.Precisodevocê comouma
operupolnomochenny, uma agente
operacional.
—Eissoqueeusemprequis—
disse ela. — Fazer parte do serviço,
trabalharpelaRússia.
Zyuganov falou, e sua voz saiu
oleosa, as palavras negras feito
carvão:
— Pois é exatamente isso que
você fará . Trata-se de uma missã o
delicada que demandará muita
habilidade. Talvez a mais difı́cil de
todas:neutralizarumagentedaCIA.
***
De seu escritó rio, Maxim
Vo l o n t o v, rezident do SVR na
embaixada russa em Helsinque, viu
Dominikaatravessarocorredorpara
devolver as pastas pardas à sala de
arquivo onde elas deviam pernoitar.
Desde que chegara de Moscou,
Dominikaretiravaessesdocumentos
e os lia numa á rea reservada, em
geral fazendo anotaçõ es num
caderno. Ao im do dia todo o
materialerarestituı́doaoarquivista,
talcomopreconizavamasnormasda
rezidentura. Alé m de Volontov,
Dominika era a ú nica o icial com
permissã o de acesso à quele arquivo
em particular. Tratava-se de uma
có pia de todo o material que o
pessoaldoSVRemYasenevojuntara
a respeito de Nathaniel Nash, o
americanodaCIA.
Aoveraspernasdebailarinada
recé m-chegada, Volontov
icou
imaginando o corpo escultural por
baixo daquela camisa de alfaiataria.
Aos55anos,eraumhomemgordoe
cheio de verrugas que cultivava, no
topodacabeça,umvolumosotopete
grisalho que devia usar desde a
dé cada de 1950. Num dos molares
Volontov tinha uma obturaçã o de
ouro, visı́vel apenas quando ele
sorria, ou seja, nunca. Seus ternos
eram sempre escuros, largos demais
e brilhantes em algumas partes.
Enquanto os espiõ es atuais tinham
acompanhado
os
sinais
da
modernidade, Volontov estacionara
no passado no que se tratava de
vestuário.
Dominika
observava
com
atençã ootomdaneblinaquecercava
acabeçaovaldosujeito,olaranjada
falsidadeedooportunismo,diferente
do
amarelo
encardido
dos
moscovitas. Tratava-se de um
macaco velho que sobrevivera a
todas as di iculdades da KGB, um
maria vai com as outras esperto o
bastante para se adaptar aos novos
tempos. Pois era esse mesmo
instinto de sobrevivê ncia que lhe
diziapara icarlongedasobrinhado
primeiro vice-diretor do SVR, por
mais que lhe custasse. Alé m disso, a
gostosa tinha chegado a Helsinque
com uma missã o especial, uma
operaçã o bastante delicada. Apó s
uma semana de preparaçã o,
Dominika estava pronta para
comparecer à recepçã o daquela
noite, o primeiro compromisso
diplomá tico que ela teria em sua
incipiente carreira: a Festa Nacional
da Espanha, na elegante embaixada
espanhola, onde tentaria fazer o
primeiro contato com o americano
Nash. Volontov també m estaria
presente, observando-a de longe.
Seria interessante ver como ela se
sairianarecepçã o.Eranissoqueele
pensava quando de repente se
lembrou dos deliciosos salgadinhos
queosespanhóissempreserviam.
Dominika havia sido alojada na
parte antiga da cidade, num
apartamento alugado à s pressas
segundoasorientaçõ esrecebidasde
Moscou, distante dos cubı́culos em
queficavamosdemaisintegrantesda
comunidade diplomá tica russa.
Helsinque era, para ela, um paraı́so
de ruas sempre limpas, de fachadas
multicoloridas, de cornijas nas
janelas e cortinas de renda por toda
parte,inclusivenaslojas.
Foi em seu confortá vel
apartamentinho que Dominika se
arrumou para a recepçã o dos
espanhó is. Maquiou-se, vestiu-se e
penteou os cabelos, sentindo o cabo
da escova quente nas mã os, tã o
quentequantoelaprópria,queestava
pronta para a batalha. Barras de cor
ondulavam à sua volta: vermelho,
magenta, lilá s: paixã o, entusiasmo,
desa io. Repassou mentalmente o
que Volontov lhe instruı́ra a fazer
comoamericano: na primeira noite,
estabelecer contato; nas semanas
seguintes, monitorar o alvo; em
seguida, transformar os encontros
em rotina, fortalecer os laços de
amizade, estimular a con iança,
descobrir padrõ es e há bitos. Fazê -lo
falar.
Ainda em Moscou, ela també m
receberainstruçõesdeZyuganov:
— Alguma pergunta, cabo? —
disseraele,e,semesperararesposta,
prosseguiu: — Espero que tenha
entendido que nã o se trata de uma
operaçã o de recrutamento, pelo
menos nã o no sentido tradicional.
Nosso principal objetivo nã o é a
arregimentaçãodeuminformante.—
Ele umedeceu os lá bios. Dominika
nã o dizia nada, nem sequer piscava.
— Nã o — prosseguiu Zyuganov. —
Trata-se sobretudo de uma
armadilha, uma arapuca. Precisamos
apenas de uma indicaçã o, ativa ou
passiva, de quando e como esse
americanoseencontracomotraidor
russo. Do resto, cuido eu. — Olhou
para Dominika, inclinou a cabeça
ligeiramente e falou: — Está
entendendo? — Depois, num tom de
voz mais amistoso, emendou: —
Cabe avocê levá -lo a falar. Faça do
jeitoqueacharmelhor.
Ele a encarava. Dominika tinha
certezadeque,dealgumaforma,ele
sabia que ela conseguia ver cores.
Seusolhospareciamdizer:Leia-mese
for capaz. Ela agradeceu pelas
instruçõ es e saiu da sala o mais
rápidopossível.
Nasheraumagentetreinadona
CIA. Todo cuidado com ele seria
pouco, até mesmo no primeiro
contato. Mas a diferença era que a
operaçã o agora eradela. Eraela
quem estava no comando daquele
barco.
Dominika largou a escova,
cravou as mã os nas bordas da
penteadeira e se olhou no espelho,
tentando imaginar como seria o
americano.Perguntou-seoquefazer
caso ele nã o gostasse dela. Haveria
algum modo de se inserir nas
atividadesdele?Aabordagemcorreta
teria de ser determinada logo. Ela
recordou suas té cnicas: identi icar,
avaliar
e
manipular
as
vulnerabilidadesdoalvo.Emseguida,
aproximando ainda mais o rosto do
espelho, lembrou que Volontov
estaria lá para observá -la. Mais que
isso, todos os olhos em Moscou
estariam
voltados
para
o
desempenho dela. Tudo bem. Ela
mostrariadoqueeracapaz.
Os
americanos
eram
materialistas, vaidosos,nekulturny.
Os instrutores da academia sempre
frisavam que a CIA obtinha seus
sucessos apenas com dinheiro e
tecnologia, uma vez que era
desprovida de alma. Dominika
mostraria ao ianque o que era alma.
O samerikanskiy també m eram
moles,nã ogostavamdecon litonem
de correr riscos. Dominika o faria
con iar nela. A KGB havia dominado
osamericanosduranteaGuerraFria
de Krushchev, na dé cada de 1960.
Pois agora era a vez dela. Dominika
sentiu as mã os doerem, tamanha a
força com que segurava a
penteadeira. Vestiu o casaco e foi
para a porta. O agente da CIA nem
faziaideiadoqueoaguardava.
***
Osalã opalacianodaembaixada
espanhola resplandecia sob a luz de
trê s gigantescos candelabros de
cristal. Numa das fachadas, portas
francesas davam para um jardim
ornamental, mas estavam fechadas
em razã o do frio daquele im de
outono.Olugarseapinhavadegente,
e uma centena de imagens passava
diante de Dominika, que do alto de
um degrau observava a multidã o:
ternos, smokings, vestidos de gala,
pescoços nus, penteadoselegantes,
sussurros, risadas espalhafatosas,
cinzas de cigarro nas lapelas, copos
envolvidosemguardanaposdepapel.
Dezenasdeidiomas eram falados ao
mesmo tempo, e o vozerio era
constante.Unsandavamdeláparacá,
outros se aglomeravam diante dos
bufê s à beira do salã o. Dominika se
obrigavaaignorarocaleidoscó piode
cores,receandoumaoverdose.
Perguntava-se como faria para
localizar Nash em meio à quele
rebanho.Erapossı́velaté queelenã o
estivesse lá . Minutos depois de
descer para o salã o, ela já se via
acuada por diversos homens mais
velhos, sem dú vida diplomatas, que
falavamaltodemais,chegavamperto
demaiseolhavamparaodecotedela
de forma acintosa demais. Dominika
usava um terninho cinza e um colar
de pé rolas. Estava com o paletó
abotoadoeelevezououtradeixavaà
mostraarendapretadablusinhaque
vestia por baixo.Sensual sem ser
vulgar.
Comsofisticação. As
escandinavas, sim, entendiam de
vulgaridade. Prova disso era a loura
escultural parada perto de uma das
portas francesas, que mal cabia no
top de caxemira que escolhera para
valorizar os seios. Os cabelos eram
quase brancos de tã o louros, e ela
remexia neles enquanto ria de algo
que acabara de ouvir de um jovem
diplomata.O jovem diplomata. Ali
estava Nash. Ela já vira aquele rosto
centenas de vezes nas fotos do
arquivo.
Dominikaseguiunadireçã odas
portasfrancesas,masosalã oparecia
o metrô de Moscou em horá rio de
pico.Quandoen imconseguiuchegar
lá , Miss Escandiná via e Nash já
tinham se afastado. Tentou localizar
os cabelos platinados da mulher,
mais alta que todos ali, mas nã o foi
bem-sucedida. Tal como aprendera
naacademia,percorreuosalã opelas
bordas,emsentidohorá rio,sempreà
procuradeNash.Daliapoucoavistou
orezidentVolontov,quedevoravaum
prato detapasjuntoaumdosbufê s,
alheio a tudo e a todos. Ele agora
abocanhavaumatortilha.
Dominika continuou circulando.
A certa altura avistou os ombros
largos da amazona escandinava, que
agora era cortejada por pelo menos
quatro homens. Nash nã o estava
entreeles.Elaen imolocalizoumais
adiante,pró ximoaumdosbalcõ esde
bebida. Dominika se aproximou de
uma coluna e icou parada em uma
posturacasual,foradavistadele.
De cabelos escuros e porte
atlé tico,oamericanovestiaumterno
azul-marinho com uma camisa azulclara e uma gravata preta simples.
Tinha um semblante franco e
acessı́ v el.E um sorriso encantador,
pensouela.Umsorrisoqueirradiava
sinceridade. O mais espantoso de
tudo, no entanto, era a cor da aura
dele, uma das mais bonitas, um tom
fechado de violeta que denotava
honestidade,calidezesegurança.Um
tom que ela vira em apenas outras
duas pessoas: o pai e o general
Korchnoi.
Nash
conversava
com
um
homem baixo, calvo e de nariz
batatudo que devia ter 50 e poucos
anos. Dominika o reconheceu.
Tratava-se de um dos tradutores da
embaixadarussa.Comoeramesmoo
nome dele? Trentov? Titov? Nã o,
Tishkov. O inté rprete pessoal do
embaixador. Falava inglê s, francê s,
alemã o e inlandê s. Usando a
multidã o como escudo, ela se
aproximou do balcã o de bebidas,
serviu-sedeumataçadechampanhe
ecomeçouaentreouviraconversada
dupla.
Nash
falava
russo
perfeitamente, quase sem sotaque, e
até mesmo gesticulava como um
russo nativo, abrindo e fechando as
mã os como se as palavras
precisassem de um empurrã ozinho.
Impressionante. O suarento Tishkov
empunhava um copo de uı́sque
enquanto ouvia, nervoso, o que ele
dizia, ora balançando a cabeça, ora
erguendoosolhosparaoteto.
Dominika deu um gole no
champanhe e se aproximou ainda
mais, espiando Nash por sobre a
borda da taça. Ele mantinha alguma
distâ ncia de Tishkov, sem sufocá -lo,
mas inclinava o tronco para a frente
ligeiramente quando precisava se
fazerouviremmeioà quelaconfusã o.
Contava ao homem a histó ria do
cidadã o russo que estacionara o
carronafrentedoKremlin.
—Umpolicialveiocorrendona
direçã o dele e disse: “Ficou maluco?
Nã osabequemtrabalhaaı́?Todosos
polı́ticos do governo!” Aı́ o outro
respondeu:“Nã otemproblema.Meu
carrotemalarme.”
Tishkovtentounãorir.
Da outra ponta do bufê ,
Dominika viu o americano pegar
mais um uı́sque para o tradutor.
AgoraeraTishkovquemcontavasua
histó ria, segurando o braço de Nash
ao falar. Nash ria, e Dominika podia
ver muito bem o charme que ele
destilava para cima do russo.
Atencioso, simpá tico, discreto. Sabia
como deixar seu interlocutor à
vontade.Um espião de verdade, ela
pensou.
Deixando-os de lado por um
instante, Dominika voltou os olhos
para Volontov e viu que, do outro
ladodosalã o,orezidentverruguento
simplesmente ignorava aquele caso
clá ssico da espionagem: o agente
americano que tentava seduzir um
alvo em potencial. A certa altura,
Nashesquadrinhouosalã odeforma
bem discreta e eles se entreolharam
por uma fraçã o de segundo.
Dominika logo virou o rosto e ele
voltou a atençã o para Tishkov sem
registrar a presença dela. Mas
naquele instante mı́nimo Dominika
sentiu um frio na espinha, o frisson
natural de uma agente que cruza
olhares com seu alvo pela primeira
vez. Sua presa. Ou seu inimigo
nú mero um, tal como diziam na
academia.
Elavoltouparapertodacolunae
icou observando o americano de
longe, fascinada com a naturalidade
dele,comsuacapacidadedemantero
interesse do interlocutor. Seguro,
mas sem a petulâ ncia dos ogros que
ela
conhecera
no
Quinto
Departamento.Sympatichnyi. Aquela
altura, ela nã o tinha mais nenhum
receio sobre a abordagem, que
imaginaraqueseriamuitodifı́cil.Sua
vontade era ir lá naquele mesmo
instanteesefazernotarparadepois
entrar na cabeça dele, tal como
praticara com Mikhail em Moscou,
usando o rosto e a linguagem
corporalcomoiscas.Bastariachegar
mais
perto,
apresentar-se
rapidamentee...
Não.Calma,Dominika.Enquanto
Tishkov estivesse por perto, ela nã o
poderia abordar ningué m. As
instruçõ es de Moscou haviam sido
claras. O contato entre eles deveria
ser de natureza pessoal, nã o
pro issional,
e
ningué m
da
embaixada deveria icar sabendo,
excetoVolontov.Eladeveriaagircom
frieza e pro issionalismo. Era isso
queaoperaçã odemandavaeeraisso
que ela pretendia fazer. Portanto,
para se aproximar do americano
seria necessá rio encontrar outra
estraté gia
que
nã o
fosse
simplesmente bater ponto em todos
os eventos diplomá ticos em
Helsinquenospróximosdozemeses.
***
Vá rios dias depois, o destino
deu a Dominika a oportunidade de
que ela tanto precisava, e num lugar
que di icilmente teria previsto.
Apesar da entrada discreta sob uma
placadeneonquaseimperceptı́vel,a
piscina pú blica de Yrjö nkatu, no
centro de Helsinque, era uma joia
neoclá ssica, construı́da nos anos
1920 nas imediaçõ es da estaçã o
ferroviá ria. Luminá rias de cobre art
dé co corriam ao longo do mezanino
que sobrelevava a bela piscina,
projetando
sombras
cinematográ icas sobre o má rmore
cinzento das pilastras e a cerâ mica
dopiso.
Graças à s inú meras sessõ es de
hidroterapia na escola de balé ,
Dominika era uma nadadora
disciplinada e forte. Começara a
frequentar a piscina pú blica, que
icava a poucos quarteirõ es de seu
apartamento, apenas como uma
vá lvuladeescape.Haviaoptadopelo
horá rio do almoço, uma vez que as
ruas eram muito escuras e frias à
noite, e a solitá ria caminhada de
voltaparacasa a deixava deprimida.
Alé m disso, ela vinha se sentindo
cada vez mais sozinha e irritadiça.
Volontov,re letindoaimpaciê nciade
Moscou, nã o parava de pressioná -la
para arranjar logo aquele primeiro
encontro com Nash, sem levar em
conta a di iculdade de se arquitetar
uma “trombada” fortuita e plausı́vel,
mesmo numa cidade relativamente
pequenacomoHelsinque.
A oportunidade de Dominika
surgiu quando Volontov pediu que
ela terminasse um relató rio urgente
paraYasenevoeelaprecisoutrocaro
horá rio da nataçã o. Apesar da
escuridã o e do frio, foi à piscina
depois do trabalho e justo nesse dia
avistou Nate saindo do vestiá rio
masculino
com
uma
toalha
pendurada no pescoço. Estava
sentada numa ponta da piscina com
as pernas na á gua. Sem nenhuma
pressa, icoudepé ,seguiunadireçã o
de uma das pilastras de má rmore e
icou observando o americano dali.
Elenadavacomtécnicaeeficiência.
Dominika precisou conter o
nervosismo, sem saber ao certo se
deviapulardecabeçanaquelapiscina
e
naquela
histó ria.
Poderia
simplesmente esperar e apaziguar
Volontov dizendo que já identi icara
um dos há bitos de Nash e agora
bastaria conceber uma abordagem.
Masissoseriavistoapenascomoum
atraso desnecessá rio. Talvez fosse
melhor entrar em açã o já , naquele
mesmo instante. Ali estava uma
oportunidade perfeita para um
primeiro contato que pareceria
fortuito e natural.Vamos lá, mãos à
obra.
Usando um recatado maiô de
lycra e uma touca de borracha
branca,Dominikavoltouparaaá gua
efoilentamentepassandopelasraias
até seaproximardeNate.Começoua
nadar sem nenhuma pressa,
deixando que ele a ultrapassasse
duasvezes.Fezoscá lculosparaquea
terceira ultrapassagem acontecesse
na borda, esperou o americano dar
suapreguiçosaviradaparapercorrer
os pró ximos 25 metros e seguiu
nadando ao lado dele sem grande
esforço. Nenhum dos dois estava
indo muito rá pido. Atravé s dos
ó culoselapodiaverocorpodelesob
a á gua, movimentando-se ao ritmo
das braçadas de crawl. Os dois
chegaram juntos à outra borda da
piscina e foram nadando de volta
para a parte funda. Só entã o Nate
percebeuapresençadelaaseulado.
Olhando sob a superfı́cie, viu que se
tratava de uma mulher, elegante em
seu maiô escuro, resoluta nas
braçadas.
Nate imprimiu um pouco mais
de velocidade para ver se conseguia
ultrapassar a misteriosa nadadora,
mas Dominika nã o teve di iculdade
paraacompanhá -lo.Maisumavezele
acelerou, mas ela continuou irme a
seu lado. Nate aumentou a rapidez
das pernadas. Ela també m. Vendo
que a borda estava pró xima, ele se
decidiu por uma virada olı́mpica e
um tiro inal na velocidade má xima.
Vamos ver se ela topa o desa io,
pensou.Entã oencheuospulmõ esde
ar, fez a virada e seguiu nadando a
toda, os braços perfeitamente
arqueados, as mã os incando a á gua
com a regularidade de um
metrô nomo, os ouvidos retumbando
com otchof-tchof-tchofdasbraçadas.
Ao aumentar o vigor das pernadas,
sentiu a onda que se formou em
torno da cabeça e dos ombros. Ele
agora respirava apenas para um dos
lados, oposto ao de sua adversá ria.
Haveriatempodesobraparaanalisá la quando ele alcançasse a borda e
icasse esperando a chegada dela.
Nos ú ltimos metros ele espichou o
tronco o má ximo possı́vel e virou o
rosto para olhar na direçã o da
mulher, que devia estar no encalço
dele.Maselaseencontravalogoalia
seulado.Naverdade,bateranaborda
com uma vantagem de alguns
milé simos de segundo. Dominika
icoudepé ,tirouatoucaesacudiuos
cabelos molhados enquanto olhava
paraele.
— Você nada muito bem —
observou Nate em inglê s. — Faz
partedealgumaequipe?
— Nã o — respondeu Dominika.
—Nuncafiz.
Nateobservouosombrosfortes
dela, as mã os elegantes que se
apoiavam na borda, as unhas curtas,
osolhosazuis e eletrizantes. Pensou
terpercebidoumlevesotaquebáltico
ou russo no pouco que ela dissera.
Muitos inlandeses falavam inglê s
comumsotaquerusso.
— Você é daqui mesmo, de
Helsinque?—perguntouele.
—Não,sourussa.
Dominikaobservouorostodele
em busca de alguma reaçã o de
desprezo ou pouco-caso. Em vez
disso, deparou com o lindo sorriso
que já vira na recepçã o dos
espanhó is.E então, Sr. CIA?, ela
pensou.Oquevocêvaidizeragora?
—Umaveztiveaoportunidade
de ver a equipe de nataçã o do
Dínamona
Filadé l ia — comentou Nate. —
Eram muito bons, sobretudo no
borboleta.Aá guaseagitavaemtorno
dos ombros dele, re letindo a aura
violeta.
— Claro — retrucou Dominika.
— Os nadadores russos sã o os
melhoresdomundo.
Pensara em dizer “os atletas
russos sã o os melhores do mundo”,
mas achara melhor nã o exagerar.
Precisavaseconcentrar.Ocontatojá
fora feito, ele já sabia qual era a
nacionalidadedela.Opassoseguinte
seria jogar o anzol e esperar. Ela foi
paraaescadinhaesaiudapiscina.
—Você vemsempreà noite?—
indagou Nate assim que ela se
despediu.
— Nã o. Meus horá rios sã o
irregulares — respondeu Dominika.
— Muito irregulares — emendou, e
viu uma centelha de decepçã o no
olhar dele. Bom sinal. — Nã o sei
quandovouvoltar,masquemsabea
gentesevêporaí?
Caminhandoparaovestiário,ela
sentiu o olhar quente do agente
americanoàssuascostas.
***
Elesvoltarama se encontrar na
piscina dali a dois dias. Ele acenou
com a mã o e ela respondeu com um
discretomeneiodacabeça.Maisuma
vez nadaram lado a lado. Dominika
nã otinhapressa: ingiaindiferençae
agiadeummodoformalereservado,
umcontrapontopropositalàirritante
informalidade dos americanos. Volta
e meia dizia a si mesma que nã o
precisava icar tã o nervosa. Via no
olhardeNatequeelenã osuspeitava
denada.Evibravacomisso.Oagente
daCIAnã osabiacomquemestavase
metendo.Quandoterminoudenadar,
ela novamente saiu da piscina
depressa. Mas dessa vez olhou de
voltaparaNateeacenousemsorrir.
Porenquantoeraosuficiente.
Aolongodassemanasseguintes
eles se encontraram mais cinco ou
seisvezes,nenhumadelasporacaso.
Quase todas as noites Dominika ia
para o Torni Hotel e icava de
sentinela no saguã o, de onde podia
ver Nate chegar à piscina do outro
ladodarua.Até ondesabia,nã ohavia
nenhum esquema de vigilâ ncia para
protegê-lo.
Ela tentava esquentar as coisas
com incrementos pequenos e
imperceptı́veis. Com o passar do
tempo,nadamaisnaturalqueelesse
apresentassem. Nate disse que era
diplomatanaembaixadaamericanae
trabalhava no setor econô mico; ela
falou
que
era
assistente
administrativa na embaixada russa.
Ouviuamentiradele,depoiscontoua
sua.
Impressionada
com
a
naturalidade de Nate, icou se
perguntandoquetipodetreinamento
ele poderia ter recebido. Era um
americano tı́pico: ingê nuo, incapaz
de uma boakonspiratisa.Elea itava
semnenhumamalı́cia,oroxodaaura
sempreomesmo.
Nate, por sua vez, pensava:meu
Deus, como ela é séria. Uma russa
típica:morredemedodedarumpasso
emfalso.Masgostavadadiscriçã oda
moça, da sensualidade comedida, do
modocomooencaravacomosolhos
azuis. Apreciava sobretudo a forma
como ela pronunciava seu nome:
Neyt.Umapenanã ohaveralinenhum
potencial de espionagem. Tratava-se
apenas de uma secretariazinha
bonitinha da embaixada. Moscovita,
cercade25anos...Assimquepossı́vel
ele espiaria o sobrenome dela na
carteirinha do clube. Para ter saı́do
de Moscou tã o nova, certamente era
sustentada por algué m. A inal, com
uma carinha daquelas... O corpo que
seinsinuavasobomaiô també mnã o
era nada mau. Inatingı́vel. Nate
decidiu
que
solicitaria
um
rastreamento do nome dela apenas
como medida protocolar. Sabia que
aquilonãodariaemnada.
ParaDominika,aquelaoperaçã o
erabemdiferentedeumaarmadilha
sexualcontrauminofensivoeuropeu
emsolorusso:eraumaoperaçã oem
soloestrangeirocontraumagenteda
CIA.Sabiaqueteriaquesercautelosa
e paciente. Já enviara um relató rio
inicial para Yasenevo, detalhando os
primeiroscontatoscomoamericano,
masVolontovaindainsistiaparaque
elaavançasse.
Algumassemanassepassarame
até entã o nenhuma resposta havia
chegado de Washington sobre o
rastreamento
solicitado.Típico,
pensou Nate. Mas e daı́? Para ele já
estava
su icientemente
bom
encontrá -la de vez em quando e se
afogarnaquelesolhosazuis.Porduas
vezes conseguira fazê -la sorrir,
sabendo que ela falava inglê s bem o
su iciente para entender uma piada.
Nã o arriscaria assustá -la ainda mais
comseusconhecimentosderusso.
Certa noite eles se dirigiram
juntos para a escadinha da piscina e
seus corpos se aproximaram mais
que
de
costume,
roçando
acidentalmente sob a á gua. Nate
pô de sentir o coraçã o dela batendo
fortesobalycradomaiô .Ofereceua
mã o para ajudá -la a subir e ela
aceitou.Amã odeDominikaeraforte,
quente. Nate a segurou por um
instanteamaisqueonecessá rio.Nã o
viu nenhuma reaçã o em seu rosto,
mas sustentou o olhar dela até vê -la
tiraratoucaparasacudiroscabelos.
Dominika sabia que estava
sendo observada. Procurou mantersecalma,distante.Oqueoamericano
diria se descobrisse que ela fora
treinada como pardal, se soubesse o
que ela izera com Delon e Ustinov?
Dominika já decidira que nã o o
levariaparaacama,mesmosabendo
queouviria,emHelsinque,osberros
que seriam dados em Moscou. Nã o,
ela cumpriria sua missã o com
disciplina e inteligê ncia. Achava que
já erahoradedarumpassoadiantee
começaradesvendaroamericano—
hora de perturbar um pouco a
irritante constâ ncia daquela aura
violeta.
Foi por isso que ela aceitou
quando Nate, naquela mesma noite,
convidou-a para tomar um vinho
numdosbareslocais.Orostodelese
iluminara, primeiro de surpresa,
depois de felicidade. Ambos
estranharam um pouco quando se
viramvestidosdacabeçaaospé sna
calçada.
Acariciando sua taça de vinho,
foi Dominika quem puxou conversa.
DequepartedosEstadosUnidosele
vinha? Tinha irmã os? Com que sua
famı́lia trabalhava? Ela ia ticando as
perguntas
mentalmente,
preenchendo as lacunas de uma
hipotéticafichacadastral.
Se Nate nã o soubesse que nã o
era o caso, pensaria estar sendo
submetido a um interrogató rio
policial. Talvez ela estivesse um
pouco nervosa, afogando-o em
perguntasapenasparaevitarfalarde
simesma.Assimeramosrussos:ora
intensos demais, ora inexpressivos.
Nate preferiu esperar até que ela se
sentisse mais à vontade. Nã o queria
forçar nenhuma barra, receando
afugentá -la.Mas...afugentá -ladequê ?
Ela nã o era um alvo em potencial e
elenãoirialevá-laparaacama.
Ele chamou o garçom e pediu
umaporçã odepã opretocomqueijo.
Queótimo, pensou Dominika,eledeve
achar que é só isso que os russos
comem.Elarecusouasegundataçade
vinhoeen imdissequeprecisavair.
Nateperguntousepodiaacompanhá laatéemcasa.
A porta do prediozinho
moderno, Dominika viu claramente
que ele hesitava diante da
enormidade que era se inclinar para
um beijinho de despedida na
bochecha. Os homens eram mesmo
todos iguais. Antes que ele pudesse
se decidir, ela estendeu a mã o,
esperouqueeleaapertasseeentrou
na portaria do pré dio. Atravé s da
porta de vidro, viu-o partir com as
mãosenterradasnosbolsos.
A o icial de inteligê ncia do SVR,
devidamente treinada na AVR e na
Escola de Pardais, parabenizou a si
mesma pelo sucesso da noite, pelos
progressos obtidos, sobretudo pela
cereja do bolo: nã o ter deixado que
ele a beijasse à porta de casa. Em
seguida, riu. A cortesã que já levara
um magnata russo à morte e
conduzira um diplomata francê s à
pró priadesgraçaagoranã opermitia
nem sequer um casto beijinho de
boa-noite.
***
—
E
aı́,
Romeu?
—
cumprimentou Forsyth à porta da
sala de Nate na estaçã o. — Já viu o
cabogramaquechegoudoQGhojede
manhã sobre a sua nadadora
preferida?
Ele se referia ao resultado do
rastreamento que Nate solicitara a
Washington com os dados de
Dominika Egorova (local e data de
nascimento:
Moscou,
1989;
ocupaçã o: assistente administrativa
na embaixada russa). Fazia mais de
um mê s que ele izera o pedido.
Estava esperando uma resposta
negativa, algo como “rastro zero no
QG”, já que a moça nem sequer
constavadobancodedadoslocal.Ela
dissera que ocupava um posto
administrativo qualquer nos nı́veis
mais baixos da hierarquia. Nate
també mhaviapassadoaWashington
as circunstâ ncias do contato
realizado, os encontros esporá dicos
na piscina. A seu ver, um contato
absolutamente
inú til.
Nenhum
acesso,nenhumpotencial.
—Nã o,aindanã o—respondeu
Nate.—Estánoquadrodeleitura?
— Aqui está a minha có pia. Dê
umaolhadanisso—disseForsyth,e
deixou escapar um risinho ao
entregaropapel.
Gable surgiu de repente à s
costasdele.
—Eaı́?—perguntou.—Nosso
galãdeplantãojáleuasnovidades?
Eletambémestavarindo.
Sem olhar para eles, Nate deu
inícioàleitura:
Segundo rastreamento
realizado, elemento é
cabo do SVR,
possivelmente na
Diretoria I (Tecnologia e
Disseminação de
Informações). Data
aproximada de admissão
no serviço público: 20072008. Formado pela
Academia de Inteligência
Externa (AVR), 2010.
Provável parentesco com
primeiro vice-diretor do
SVR, Ivan (Vanya)
Dimitrevich EGOROV.
Elemento estacionado na
Finlândia não consta dos
quadros do Ministério de
Relações Exteriores da
Federação Russa, o que
sugere uma contratação
temporária ou missão
operacional específica
com duração limitada.
Comentário: o contato
referido é de interesse do
QG em razão do
parentesco com a alta
chefiado SVR, o que
talvez lhe dê uma
oportunidade única de
acesso e sem dúvida
justifica uma operação de
recrutamento.
Parabéns à estação pela
diligência na localização e
no desenvolvimento de
novos alvos. Encorajamos
que o agente iniciador dê
sequência aos trabalhos
de avaliação e progresso.
QG à disposição para
qualquer auxílio
necessário. Saudações.
Nate en im ergueu o rosto e
olhouparaForsytheGable,queainda
esperavamàporta.
—
Nunca
houve
um
rastreamento com uma resposta
melhor do que esta — observou
Forsyth. — Isso pode levar a algo
bastante importante se você
conseguirfazerorecrutamento.
Nate sentiu as pernas pesarem
feitodoisblocosdecimento.
— Nã o sei... Tem algo errado
nisso,Tom.Onı́velhierá rquicodelaé
baixo demais. Nem sei se ela é
recrutá velounã o,issoagentesó vai
saberdepois.Mas,seilá ,agarotame
parece meio... distante, fechada. —
Eleolhoumaisumavezparaopapel
em suas mã os. — Aquela academia
de Moscou icou mais de cinquenta
anos sem aceitar mulher nenhuma.
Eu poderia desperdiçar, sei lá , uns
seismesesdetrabalhopradepoisdar
com os burros n’á gua. Acho melhor
encontraroutroalvoemeconcentrar
nele.
Gable deu um passo à frente e
disse,rindo:
—Ficoumaluco,nã o icou?Você
só pode estar brincando. Uma gata
daquela,eaindaporcimaparentede
umchefã odoSVR?Emelhorvocê dar
uma boa investigada, meu irmã o.
Sem essa de procurar outro alvo.
Porque você já tem um nas mã os,
caindo de maduro, pedindo pra ser
colhido.
— Eu sei, eu sei — concordou
Nate. — E que... ela nã o faz o tipo
“agente do SVR”. E meio tristonha,
meio travada, pelo menos na minha
avaliaçã o — comentou, dando de
ombros.
— Faça a avaliaçã o que quiser,
cara,masoquevocê temnasmã osé
um
belo
prospecto
de
desenvolvimento—a irmouGable,e
foi saindo para o corredor. — Me
procure quando estiver pronto pra
discutirumaestratégiaoperacional.
Forsyth també m se retirou
depois de se despedir com uma
piscadela.
Bem, vamos ver no que isso vai
dar, pensou Nate. Ele achava tudo
aquilo uma perda de tempo, mas
procurou se animar. Dali em diante
Dominika Egorova seria bem mais
que um rostinho bonito: seria um
alvoasertrabalhado.
***
Mais adiante, na mesma rua da
embaixadaamericana,naembaixada
russa,VolontovrepreendiaDominika
por conta da lentidã o de seu
progresso.
— Você começou muito bem,
cabo Egorova, mas depois nã o
avançou quase nada. Já recebi trê s
solicitaçõ esderelató rioporpartedo
general Egorov desde que você
chegou. Você precisa redobrar os
esforços no sentido de fortalecer a
amizade com Nash. Mais encontros.
Uma viagem de esqui. Passeios de
im de semana. Use a imaginaçã o. O
general recomendou mais uma vez
que você cultive nesse americano
uma dependê ncia emocional com
relaçãoavocê.
Volontovserecostounacadeira
e correu os dedos gordurosos pelos
cabelosengomadoscomvaselina.
— Muito obrigada, coronel —
retrucou ela. Primeiro o tio, depois
Simyonov, e agora aquele caipira
fedorento. — Só uma dú vida: o que
exatamente o general Egorov quis
dizercom“dependênciaemocional”?
Comoolhar,Dominikadesafiava
orezidentasugerirqueelaseduzisse
oamericano.
— Lamento, mas nã o estou
autorizado a falar em nome do vicediretor
—
respondeu
ele,
esquivando-se da armadilha. — Seu
papel é fazer essa relaçã o evoluir.
Desenvolver laços de con iança —
emendou, gesticulando com o braço
como se de alguma forma isso
ilustrasseoqueelequeriadizercom
“laços de con iança”. — O mais
importantedetudoé queelecomece
afalardesimesmo.
— E claro, coronel — disse
Dominika, entã o se levantou. — Vou
acelerar as coisas e mantê -lo
informado. Muito obrigada pela
valiosaorientação.
A reuniã o com Volontov a
deixou desanimada. O homem vivia
num mundo só rdido, cheio de
insinuaçõ eseeufemismos.“Laçosde
confiança”,“dependênciaemocional”.
Escola de Pardais. Até quando ela
teriadelidarcomisso?
Voltando a pé para casa,
Dominika
esbravejou
consigo
mesma:Supere isso. Ela estava em
missã o num paı́s estrangeiro,
vivendo numa cidadezinha de conto
de fadas, morando sozinha no
pró prio apartamento. Era o paraı́so.
Alé m disso, tinha um importante
trabalho a cumprir, uma missã o
contra um o icial treinado pelo
serviço de inteligê ncia americano.
Bem, o sujeito até que nã o parecia
tã o perigoso assim, mas era um
agentedaCIA,eissobastava.Naquela
noite ela o faria falar mais sobre si
mesmo.
Perguntaria qual era a opiniã o
delearespeitodosrussos.Eleainda
nã o admitira que era luente no
idioma. Ela falaria de Moscou e ele
teriadeadmitirquejá haviamorado
nacidade.Caminhandopelasruasna
direçã o de Yrjö nkatu, sem se dar
conta de que mancava mais
visivelmente, Dominika ansiava pelo
próximoencontrocomoamericano.
També m
seguindo
para
Yrjö nkatu, Nate estava de tal modo
perdido nos pró prios pensamentos
quenemsequerobservavaasruasou
obedeciaaosprocedimentosnormais
de segurança. A certa altura pensou:
Fique atento, cara. Hoje é a primeira
noitedoseunovocaso.Aproveitouum
sinalfechadoeatravessou,mudando
de direçã o ao mesmo tempo que
dava uma espiada nos carros à sua
volta.Nã odetectounada.Andoumais
trê s quarteirõ es e repetiu a té cnica.
De novo, nada. Sabia que nã o podia
vacilar. Nã o se tratava mais de um
lerte inofensivo com uma eslavinha
deolhosazuisemaiô delycra.Seela
fosse mesmo uma agente do SVR
(ainda tinha dú vidas), ele teria de
proceder com cautela e aprofundar
suasavaliaçõ es.Por Deus, seria bem
mais fá cil se o alvo fosse Tishkov, o
tradutor beberrã o. Pelo menos ele
teriaacessoadocumentoseminutas
de reuniõ es privadas. Um material
valioso o bastante para causar
algumaagitaçãoemWashington.
Igualmente
perdida
em
pensamentos, Dominika també m
negligenciara os procedimentos de
segurança e já estava a trê s
quarteirõ esdapiscinaquandoen im
sedeucontadisso.Paracompensara
desatençã o,voltouatrá spelamesma
ruela,umamanobraridı́culaquefaria
os velhinhos aposentados que a
haviam treinado em Moscou
gargalharem.
Os dois dobraram esquinas
opostasechegaramjuntosà portado
clube. A respiraçã o dela icou mais
rá pida, o pulso dele també m, mas
amboslembraramasimesmosoque
precisavamfazercomooutro.Mãosà
obra.
***
Dominika se recostava na
divisó ria de madeira, roçando os
dedoslongosnahastedeumataçade
vinho. Nate sentava-se à frente dela
com as pernas esticadas e cruzadas
na altura dos tornozelos. Ela usava
uma blusa azul de tricô trançado,
umasaiaplissadasobreumalegging
escura e sapatos pretos de salto
baixo; ele, um sué ter de gola em V e
calças jeans. Nate notou que ela
balançavaopésobamesa.
— Os americanos nunca levam
nada a sé rio — dizia Dominika. —
Estãosemprefazendopiada.
— Quantos americanos você
conhece?—perguntouNate.—Já foi
aosEstadosUnidos?
—Naminhaescoladebalé tinha
um garoto americano. Vivia
brincandoarespeitodetudo.
Dominika nã o se importava de
mencionar o balé . Decidira incluı́-lo
nasuahistóriadefachada.
—Maseledançavabem?
— Mais ou menos. O programa
erabemdifı́cil,eelenã osededicava
muito.
— Devia se sentir muito
solitá rio — comentou Nate. — Você
saiucomelealgumavezpramostrar
acidade,beberalgumacoisa?
— Nã o, claro que nã o. Era
proibido.
— Proibido o quê ? Beber ou
fazê -lo se sentir bem-vindo? —
indagouNate,fitandoaprópriataça.
Dominika itou-o por um
instante,depoisdesviouoolhar.
— Está vendo? — falou. —
Semprefazendopiada.
—Nã oé piada—devolveuNate.
— Sei lá , ico me perguntando que
tipo de lembrança esse garoto levou
de Moscou, da Rú ssia. Lembranças
boasdacidadeourecordaçõestristes
desolidão,deabandono?
Que coisa estranha de se dizer,
pensouDominika.
— O que você sabe sobre
Moscou? — perguntou ela, mesmo
conhecendoaresposta.
— Vivi lá por um ano, acho que
já comentei.
Trabalhava
na
embaixada americana. Morava num
complexo residencial perto da
chancelaria. Nenhum interesse
especial, nenhuma mudança na
entonação.
—Egostavadelá ?—quissaber
ela.
— Vivia muito ocupado, nã o
tinhatempodeexploraracidade.—
Nate deu um gole no vinho e,
sorrindo, disse: — Pena que a gente
nã oseconhecia.Você poderiaterme
mostrado a cidade. A menos que
fosseproibido.
Quanta ingenuidade, quanta
encenação. Dominika ignorou o
comentário.
—Porquevocêsóficouumano?
Achei que os diplomatas icassem
maistempoqueisso.
A resposta dele estaria no
primeiroparágrafodorelatóriodela.
— De repente abriu uma vaga
emHelsinque—falouNate.—Entã o
vimpracá.
Dominika notou que o roxo da
aura nã o se modi icava quando ele
mentia.Muitoprofissional.
— Ficou triste quando foi
embora?—perguntou.
— De certo modo, sim —
retrucouNate.—Mastambé m iquei
tristepelaRússia.
—TristepelaRússia?Porquê?
—AGuerraFriaacabousemque
agenteseexplodisse,nã oé ?Embora
tenhasidoporpouco.Masosistema
sovié tico, a despeito do que você s
pensassem dele, isso, sim, explodiu.
Achoquetodososrussosesperavam
ver um novo paı́s, uma Rú ssia de
mais liberdades civis, com uma vida
melhorpratodomundo.
— E você acha que a vida na
Rú ssia nã o está melhor agora? —
quissaberDominika,tentadoapagar
davozaindignaçã oqueardiaemseu
peito.
— Em certos aspectos, sim,
claro — respondeu Nate, dando de
ombros.—Masachoqueaspessoas
ainda tê m uma vida difı́cil. E uma
crueldadeverumanovaerachegare
depoisnãodaremnada.
— Nã o entendi — disse
Dominika.
Vamos ver se ela morde a isca,
pensouNate.
—Nã omeleveamal,masacho
que o governo russo atual está
criando um sistema tã o repressor
quanto o sistema sovié tico do
passado.Nã oé tã ofá cildeperceber,
porque é mais moderno, mais
tecnoló gico,maisbonitonatelevisã o.
Asnovasarmassã oopetró leoeogá s
natural,masnos bastidores há tanta
crueldade, tanta repressã o e tanta
corrupçã oquantoantes.—Eleolhou
para
Dominika
timidamente,
levantouasmãosespalmadasedisse:
—Desculpe.Nã oeraminhaintençã o
criticar.
Apesardetodootreinamentoe
de toda a prá tica, Dominika jamais
tivera conversa semelhante com um
americano.Precisavalembrarqueele
era um agente da CIA disposto a
cutucá -la apenas com o intuito de
provocar
algum
comentá rio
proveitoso. Disse a si mesma para
icarcalma.Nã oerahoradeperdera
cabeça. Mas tinha que dar alguma
resposta.
—Tudoissoquevocê dissenã o
é verdade — falou. — E a mesma
postura anti-Rú ssia que sempre
vemos por aı́. Simplesmente nã o é
verdade.
Pensando no rebelde da KGB
envenenado com polô nio e na
jornalista assassinada a tiros no
elevador do pró prio pré dio, Nate
terminouseuvinhoeconcluiu:
— Diga isso para Alexander
LitvinenkoeAnnaPolitkovskaya.
Ou para Dimitri Ustinov, pensou
Dominika, engolindo a culpa. Mesmo
assim,estavafuriosacomele.
TORTILHA DA EMBAIXADA
ESPANHOLA
Cortar cebolas e batatas em
pedaços médios e refogá-los em
bastante azeite até que amoleçam.
Escorrer. Juntar ovos ba dos às
batatas e às cebolas, despejar a
mistura sobre uma frigideira untada
com óleo e cozinhar em fogo médio
até as bordas e o fundo começarem a
dourar. Virar a tor lha para dourar o
outro lado.
CAPÍTULO 11
EMSUASALANAESTAÇÃO,Nate
olhava atravé s das ré guas da
persiana enquanto arremessava a
cordinha na parede distraidamente,
fazendo a ponta de plá stico
ricochetear:clic, clic, clic. Na noite
anteriorelecompareceraamaisuma
festa nacional numa embaixada
qualquer.Haviaagora meia dú zia de
cartõ es de visita inú teis sobre sua
mesa e um monte de nó dulos de
tensãoemsuascostas.
Pensou em nadar e se lembrou
de Dominika. Ele a analisara com
todaaatençã o,osdoistinhamsaı́do
juntos inú meras vezes, mas mesmo
assimocasoaindanã oderaemnada.
A moça era uma rocha de crenças e
certezas, nã o tinha nenhuma dú vida,
nenhuma vulnerabilidade. Ele estava
perdendotempo.Oscartõ esemcima
da mesa pareciam zombar dele. Um
ú nico papel (seu ú ltimo cabograma
sobre os contatos com Dominika)
jazia na bandeja metá lica sobre a
mesa.
Gablesurgiuàporta.
— Ué , o que temos aqui? O
prisioneiro na torre do castelo? Por
que você nã o está na rua? Vamos lá ,
chame algué m pra almoçar e dê o
foradaqui!
— A noite de ontem nã o serviu
pra nada — comentou Nate. — Só
nesta semana foram quatro festas
nacionais.
Gable balançou a cabeça,
aproximou-se da janela e fechou as
ré guas da persiana com um sonoro
plec. Sentou-se na borda da mesa de
Nateedisse:
— Muito bem, Hamlet, vou
compartilhar uma pé rola de
sabedoriacomvocê .Temumaspecto
perversonestamerdaqueagentefaz.
As vezes, quanto mais se tenta
encontrar um alvo, mais ele foge de
você . Impaciê ncia, agressividade e,
no seu caso, desespero, tudo isso
começaaexalarumfedorqueafasta
as pessoas, aı́ ningué m quer falar,
muito menos jantar com você . Você
ficacheirandoaovopodre.
— Acho que nã o estou
entendendo—retrucouNate.
Gable se inclinou para mais
perto.
—Você está comansiedadepré coito—desferiuele.—Quantomais
icarolhandopropau,maismoleele
vai icar. Continua tentando, cara,
mastiraopédoacelerador.
— Bela metá fora — ironizou
Nate. — Acontece que já estou aqui
há um tempo e ainda nã o iz nada
importante.
— Pare com isso, ou entã oeu
vou começar a chorar. Preste
atençã o, Nate. Aqui você só precisa
agradaraduaspessoas:aochefeea
mim. E nenhum de nó s está
reclamando...porenquanto.Você tem
tempo,cara.Estácedopradesistir.—
Gable pegou o cabograma que Nate
haviadeixadonabandeja.—Alé mdo
mais, essa russinha é uma mina de
ouro esperando pra ser explorada,
pormaisquevocê penseocontrá rio.
Tem que investir nela. Tenho uma
ideia do que a gente pode fazer pra
descobrirmaissobreessagarota.
***
Gable sugeriu que eles
colocassem a pequena equipe de
vigilâ ncia da estaçã o na cola de
DominikaEgorovaa imdedescobrir
exatamente o que ela fora fazer em
Helsinque.ParaNate, era um grande
exagero. Ele vinha tentando dizer a
ForsytheaGablequeamoçaeraum
alvo de baixo nı́vel hierá rquico, uma
burocrata sem acesso a nada que
pudesseimportar.
— Permita-me discordar —
disse Gable. — Em outras palavras,
caleaporradaboca.
Forsythergueuamãoefalou:
— Nate, já que você é nosso
contatocomessamoça,porquenã o
comanda pessoalmente o casal de
espiõ es que vamos designar para
segui-la? Com a experiê ncia que já
tem com ela, você vai poder ajudar.
Elessã omuitointeressantesemuito
experientes.
Conhecem
os
procedimentosdetrásparaafrente.
Que dupla, pensou Nate. O
primeiro sugeria uma equipe de
vigilâ nciaeosegundooescolhiapara
comandar essa equipe de forma a
fazê -loseenvolvermaisnaoperaçã o.
Realmente os dois sabiam trabalhar
em
conjunto,
verdadeiros
especialistasemmotivaraequipe.
GableentregouoarquivoaNate,
desa iando-o com o olhar a dizer
qualquercoisa.
—Aquiestá apastadeArchiee
Veronica. — Pausa. — Sã o duas
lendasvivas,estã onaativadesdeos
anos 1960. Trabalharam em alguns
doscasosmaiscabeludosdahistó ria,
inclusive na deserçã o de Golitsyn.
Mandeumabraçopraeles.
Dalia24horas,apó sduashoras
de uma rota para detecçã o de
vigilâ ncia que o fez ir para o norte
durante uma hora pela E75, depois
para
oeste
pelas
estradas
secundá rias de Tuusula e de volta à
cidadepela120,Natedeixouocarro
no estacionamento na estaçã o
ferroviá ria de Pasila e seguiu a pé
para Lä nsi-Pasila, um distrito de
arranha-cé us e pré dios comerciais,
muitos deles com fachadas de tijolo
aparente e varandas de vidro. Ele
apertou o botã o do interfone
marcado com o nome RAIKKONEN,
esperou a porta da rua se abrir e
pouco tempo depois tocou a
campainha do apartamento do
quartoandar.
— Pode entrar — disse a
senhoraàporta.
Aos 70 e poucos anos, Veronica
era bastante ené rgica e tinha um
rosto de traços nobres que ainda
conservava a beleza da juventude,
com um nariz reto, lá bios irmes,
olhosmuitoazuisebrilhantes,apele
rosada e viçosa. Os cabelos fartos
estavam presos num coque
perpassado por um lá pis. Ela vestia
calças de lã , um sué ter leve, e trazia
os ó culos de leitura pendurados ao
pescoço. Jornais e revistas se
empilhavamnochã oaoladodeuma
poltrona.
— Está vamos ansiosos para
conhecê -lo. Meu nome é Jaana —
falou, e apertou a mã o de Nate com
firmeza.
Ela irradiava vitalidade e
energia. Mã os fortes, olhos vivos,
posturaereta.
— Aceita um chá ? — ofereceu.
Em seguida, conferiu as horas no
reló gio que usava com o mostrador
na parte inferior do punho, há bito
tı́pico de um vigilante de campo. —
Bem, o horá rio já permite algo mais
forte.Prefereumdrinque?
Tudoissofoiditonumatorrente
degestosesorrisos.
— Marty Gables mandou um
abraço—disseNate.
— Quanta gentileza — retrucou
Jaana,abrindoespaçonumamesinha
decentroatulhadadecoisas.—Eleé
uma graça. Sorte sua tê -lo como
supervisor.
Ela foi à cozinha e voltou com
copos e uma garrafa oval com um
lı́quido transparente que Nate nã o
soubeidentificar.O“drinque”.
— Já tivemos uns chefes bem
estranhos ao longo dos anos —
comentou. — Tanto do lado de cá
quanto do de lá . Os russos, claro,
eram sempre os piores, bestas
selvagens tentando sobreviver em
meio à crueldade do sistema deles,
que Deus os abençoe. Já nos
proporcionaram experiê nciasmuito
interessantes.
JaanaRäikkönenserviuabebida,
ergueu seu copo à maneira dos
escandinavose,encarandoNate,deu
oprimeirogole.Asalaerapequenae
acolhedora, com mó veis estofados e
prateleiras de livros nas paredes de
madeira envernizada. O lugar
recendiaasopadelegumes.
—Seumaridoestá emcasa?—
perguntouNate.—Eugostariamuito
deconhecê-lo.
—Elejá deveestarchegando—
informou Jaana. — Estava na rua
vigiandosuachegada.Achoquedeve
ser uma deformaçã o pro issional da
nossaparte.
Nateriuinternamente.Ele izera
umarotadedetecçã odeduashorase
deixara passar despercebido o
senhor nas imediaçõ es do pré dio.
Semdú vidaeraporissoqueadupla
haviaduradotantonaqueleramo.
Nessemesmoinstante,eleouviu
um tilintar de chaves à porta e viu
Marcus Rä ikkö nen entrar. Archie
trazia um cachorrinho marrom da
raça Dachshund na coleira. O cã o
farejou as pernas de Nate, depois
seguiu para sua caminha e se
acomodou nela. Chamava-se Rudy.
Marcustinhaosombroslargoseera
bem alto, com mais de 1,80 metro.
Sobrancelhasfartasencimavamseus
olhos azuis. Os cabelos, bem menos
fartos,estavamcortadosà escovinha.
O pescoço era forte e o queixo,
anguloso. Ele usava um moletom
azul-marinhoetê nis pretos. No lado
esquerdo da blusa havia uma
bandeirinha da Finlâ ndia. Tinha um
jeito atlé tico de caminhar, á gil como
amulher,eoapertodemã oera irme
comoodela.
— No quintal do outro lado da
rua?—perguntouNate.—Nobanco,
pertodosdegraus?
— Muito bem — disse Marcus.
—Penseiquenã otivessenotado.—
Sorriuetambé mseserviudabebida.
— A sua saú de — falou, depois
esvaziouocopoenquanto itavaNate
nosolhos.
Nate relembrou o que já lera a
respeito deles. Por quase quarenta
anosArchieeVeronicahaviamsidoa
essê ncia da equipe de vigilâ ncia
unilateral da estaçã o de Helsinque.
Ambos já estavam aposentados. A
princı́pio, Archie trabalhara como
investigador do isco inlandê s, e
Veronica como bibliotecá ria. Eram
e icazes porque uniam um talento
especialparaosdisfarcesemcampo
aumapuradoinstintoemrelaçã oao
pró ximo passo dos alvos que
seguiam. E claro que conheciam a
cidade e o metrô como a palma da
mã o — haviam crescido junto com
Helsinque. Obstinados e discretos,
com a paciê ncia e a perspectiva de
quem tinha uma vida inteira pela
frente, eles podiam trabalhar por
meses com um mesmo alvo sem
seremdescobertos.
NateeosRä ikkö nentraçaramo
plano de açã o para espionar
Dominika, que devia ser vigiada em
intervalos irregulares mas em
momentos
cuidadosamente
selecionados — à noite apó s o
trabalho e nos ins de semana,
quando era mais prová vel que algo
interessanteacontecesse.
Depois que a vigilâ ncia
começou, Nate via os dois em açã o,
delonge.Numdia,usavamtoucasde
lã , luvas e casacos pesados; noutro,
trajes executivos e guarda-chuvas.
Como transporte, bicicletas com
buzina,umascootercomcestinha,um
Volvopequenoecinza.Asvezeseles
caminhavam juntos, de mã os dadas;
em outras ocasiõ es cada um ia para
um lado. Certo dia, Jaana usou um
andador para seguir Dominika até
uma loja. Archie e Veronica faziam
todos os tipos de vigilâ ncia: mó vel,
estática,paralela,cruzadaetc.
Ao cabo de duas semanas, Nate
voltou
a
encontrá -los
no
apartamento. Eles haviam tirado
algumas fotos. Marcus resumiu os
resultadosfazendoumrelatosucinto,
preciso, enquanto Jaana incluı́a
algumcomentárioaquieali.
— Em primeiro lugar —
começou o veterano —, temos
certeza quase absoluta de que até
agoraelanã odetectououdescon iou
da nossa vigilâ ncia. — Deu de
ombros e emendou: — E muito
jovem, mas consideravelmente há bil
nas ruas. Nunca recorre aos truques
maisbanaisesedeslocamuitobem,
aproveitando o ambiente. Tem um
desempenho acima da mé dia, eu
diria, e já conta com um
conhecimentorazoá veldacidade.—
Olhou para Jaana e continuou: —
Identi icamos
apenas
um
procedimento de praxe: ela vai ao
TorniHotel,dooutroladodapiscina
de Yrjö nkatu, e ica no mezanino
aguardando você chegar. Espera
algunsminutoseentratambém.
—Marcusnã oconcordacomigo
— falou Jaana —, mas nã o acredito
que ela esteja em missã o. Nã o está
coordenando informantes nem
dando qualquer tipo de apoio
operacionalàrezidentura.
Quando terminou, olhou para o
marido,jáesperandoaréplicadele.
— Claro que ela tem alguma
missã o — disse ele. — Só nã o
descobrimosaindaqualé .Masé uma
questãodetempo.
— Uma coisa é certa —
prosseguiu Jaana. — Ela tem uma
vida solitá ria. Vai direto pra casa
quando sai da embaixada. No
mercado, faz compras apenas pra
umapessoa.Passeiasozinhanos ins
desemana.
— Por acaso você s perceberam
algumtipodevigilâ nciaporpartedos
russos? — perguntou Nate. — Tem
algué m da embaixada seguindo os
passosdela?
— Achamos que nã o —
respondeuMarcus.— Em todo caso,
vamosficardeolhonissotambém.
— Vou sair com ela mais vezes
— disse Nate. — Preciso que você s
vigiem alguns dos nossos encontros
depoisdanatação.
Marcusassentiu.
— As coisas vã o icar mais
interessantes conforme você s forem
se vendo com mais frequê ncia. Cedo
ou tarde ela vai tentar falar com
algumo icialdaembaixadadepoisde
um dos encontros. Por telefone ou
pessoalmente. Na medida do
possı́vel, nos mantenha informados
sobre seus planos. Se quiser,
podemossugeriralgunslugaresonde
vocêpoderáencontrá-la—ofereceu.
— Uma ú ltima coisa —
acrescentou Jaana, servindo-se de
mais um copo. — Você vai me
desculpar, mas... ela me parece uma
boa pessoa. Está precisando de um
amigo.
Marcus olhou para ela e depois
para Nate com as sobrancelhas
arqueadas.
***
Nate repassou com Gable as
informaçõ es fornecidas por Archie e
Veronica.—Otimo—disseGable.—
Fiquedeolhonamoça,sobretudose
ela tiver suporte de algué m da
embaixada. Se vir algué m, entã o é
porque ela está mesmo em missã o.
Talvezoalvosejaatévocê.
—Impossível—decretouNate.
—Aindabemquevocê temtoda
essacerteza.Sejacomofor,continue
no pé dela. Vá com tudo, mas sem
afobação.
Nateestabeleceuametadesair
com Dominika pelo menos uma vez
por semana, fora a nataçã o.
Vasculhouacidadetodaembuscade
lugares em que poderiam se
encontrarsemseremvistos.Quando
saı́am à noite, iam a algum bar;
quando tomavam o café juntos nas
manhã sdesá badooualmoçavamaos
domingos, iam a algum restaurante
mais afastado. Sempre que possı́vel,
Nate fazia com que ela se
acomodasse em uma cadeira de
costas para o salã o. A cidade estava
apinhadaderussosquetrabalhavam
na embaixada, e ele achava melhor
nãodarnenhumachanceaoazar.
Construirumarelaçã o,mantera
clandestinidade. Sempre chegar e
sair separados. Evitar os telefones,
variar os padrõ es. Nate achava tudo
issopuraperdadetempo.
Dominika també m fazia seu
trabalho.
Procurava
detectar
vigilantes sempre que atravessava a
cidade para os encontros. Os
inlandeses olhavam admirados
quando ela subia por uma escada
rolante, entrava numa ruela suja ou
deixava alguma loja pela porta dos
fundos, sem suspeitar que a bela
moça de cabelos escuros estava
tentando ludibriar um possı́vel
esquema de vigilâ ncia. Antes dos
encontros ela icava esperando Nate
do outro lado da rua, contando as
cabeças,
observando
rostos,
memorizandochapéusecasacos.
Eles estavam começando a se
conhecer
melhor.
Vinham
conversando mais — conversando
mesmo, de verdade, o que era um
caminho natural apó s passarem
tanto tempo juntos. Dominika
avaliava Nate como um sujeito
honesto,espontâneo,inteligente.Não
era um ignorante qualquer. Era
apenas... americano. Sempre evasivo
quando falava de sua passagem por
Moscou, claro, pois nã o podia dizer
que estava ali para manipular um
informante russo. Ela ainda se
incomodavaquandoelefaziacrı́ticas
à realidade de seu paı́s, mas sabia
que ele tinha razã o em algumas
coisas.Tinhaconsciê nciatambé mde
que precisava se apressar. Passar
maistempocomele,identi icarmais
padrõ es. Precisava, sobretudo, saber
em que momento ele estaria no
pontoparaserneutralizado.
A pressã o era grande. A equipe
deMoscoueVolontovnã olhedavam
tré gua.Dominikajá seperguntavase
nã o seria melhor mudar de
abordagem
e
tentar
uma
aproximaçã o fı́sica caso nã o
conseguisse
arrancar
alguma
informaçã o importante dele em
breve.Nelzya! Nã o, nunca. Por mais
atraente, simpá tico e autê ntico que
fosseoianque.
Quantas vezes eles já haviam
saı́do?Nateestavaansiosoparavê -la
de novo, mas ainda achava difı́cil
tirardelaalgoproveitoso.Arussinha
era osso duro de roer. Driblar uma
centena de carros de vigilâ ncia em
Moscounã o era tã o difı́cil quanto
tentardescobriramotivaçã odaquela
moça. Se ela estava realmente em
missã o, ele ainda nã o havia
percebido.Eracomoseelaestivesse
em Helsinque apenas para adquirir
um pouco mais de experiê ncia, mas
issonã ofaziasentido.Aconexã ocom
oSVReraimportante,eraoquefazia
delaumalvodignodeserrecrutado.
Ele precisava descobrir algo logo,
antes que Forsyth perdesse a
paciê ncia e Gable lhe desse uns
cascudos.
Uma coisa era certa: ele podia
icar horas apenas olhando para
aquele rostinho bonito.Por Deus, se
concentre, cara!, ele se repreendia.
Depois lembrava a si mesmo o que
era preciso fazer: focar no
desenvolvimento e na avaliaçã o do
alvo, descobrir o que tirava a russa
dosé rio.Aconversaentreelesagora
luı́acommaisfacilidade,apesardas
desavenças. Ela icava brava sempre
que ele punha o dedo nas feridas da
Rú ssia, mas algo lhe dizia que à s
vezes concordava. Talvez tivesse
alguma imunidade a todas aquelas
balelaspropagandı́sticas.Quemsabe
nã o seria essa a abertura de que ele
tantoprecisava?
Natefoiparaafrentedoespelho
e penteou os cabelos. Naquele
domingo havia sugerido um almoço
em um pequeno restaurante de
comida é tnica em Pihlajisto, um
bairro no subú rbio, a noroeste do
centro. Dominika concordara em ir
de metrô e encontrá -lo lá . O lugar
tinha sido sugestã o de Archie, que
semanasantesdissera:“Lá você nã o
correrá oriscodeencontrarnenhum
dos amigos russos dela. Um de nó s
irá nometrô comelaeooutro icará
cobrindo você .” Nate vestiu um
casacoimpermeá velporcimadeum
sué ter de gola em V e calças de
veludocotelê .Emseguidacalçouum
par de sapatos de sola de borracha
dentada pró prios para caminhada e
saiudecasa.Descreveuumitinerá rio
em zigue-zague pelas ruas de
Kruununhaka,seguiumaisumpouco
pelabeirad’á guaeen imcomeçoua
traçaraverdadeirarotadedespiste.
Do outro lado da cidade,
Dominika també m se arrumava
diantedoespelho,comosolhosbem
abertos. Nã o passou perfume, mas
deviaseradé cimavezqueescovava
oscabeloscomsuarelı́quiadecasco
detartaruga.Assimque icoupronta,
foiparaajanelaeespiouaruaantes
de descer e tomar o caminho para o
metrô . Estava ansiosa para rever o
americano, conversar com ele de
novo, deixá -lo falar, aprender um
poucomaissobreavidadele.
Dominika usava um sué ter de
gola rulê , um terninho de tweed e
calças de lã . També m escolhera
sapatos pró prios para o frio. Como
uma velhababushka, enrolou uma
echarpe na cabeça, saiu para o
corredor e trancou a porta. Em
seguida desceu para o porã o do
pré dio, atravessou o depó sito de
tralhas e entrou na sala da caldeira.
Um pequeno corredor levava a uma
janelaaltacomgradedeferroqueela
descobrira algumas semanas antes.
Sem dú vida se tratava do vã o onde
costumava
icar a calha de
escoamento de carvã o. Duas noites
antes, ela levara mais de uma hora
para alcançar a grade e abrir o
cadeado,oquenã oforafá cil,porque
aú nicaferramenta com que contava
era um grampo de cabelo. Dominika
empilhoualgumascaixas,subiunelas
e se espremeu janela afora.Belojeito
decomeçarumencontro, pensou, e a
imagem de Nate lhe veio à cabeça
maisumavez.
Terminada a manobra, ela
fechou a grade, saiu para o beco e
ergueu os olhos para as janelas do
pré dio. Ningué m à vista. Com toda a
calma,Dominikaseguiupelobeco,se
espremeu entre um caminhã o
estacionado e uma caçamba de lixo,
pulou uma mureta baixa e só entã o
chegou à rua. Já estava a um
quarteirã o de seu pré dio. A gola
erguida do casaco e a echarpe em
torno da cabeça escondiam suas
feiçõ es. Ela caminhou com ar
indiferente na direçã o oeste,
buscando rostos repetidos sempre
que precisava olhar para os lados
antes de atravessar uma rua. Dali a
pouco alcançou o shopping Kamppi,
entrounumalivrariaemaisumavez
procurou possı́veis vigilantes; só
entã odesceuparaaestaçã odemetrô
no subsolo do shopping. Na escada
rolante, icouatentaaosre lexosque
via nos painé is de propaganda, mas
nã o identi icou nenhum suspeito. Já
estavaameiocaminhodaplataforma
quandodetectou,à ssuascostas,uma
senhora descendo pela mesma
escada,usandoumacapadechuvae
um
chapé u
desengonçado,
carregando um maço de lores
embrulhado em papel verde e uma
sacolinha com duas maçã s. Veronica
esperava um dia poder falar com a
adorávelmocinhaealertá-laquantoà
previsibilidadedetodososseusatos
até entã o, sobretudo ao escolher a
estaçã o de metrô mais pró xima de
casa.
Muito tempo antes, Nate tivera
como instrutor de vigilâ ncia um
sujeitochamadoJay, um ex-fı́sico de
barba e cabelos louros e compridos.
Certa vez ele dissera aos alunos:
“Nem pensem em ser heró is. Tirem
issodacabeça.
Se detectarem algum esquema
de vigilâ ncia, deem a noite por
encerrada e abortem a missã o.”
Entã odesenhouumalinhahorizontal
no quadro-negro e continuou: “O
objetivo de uma rota para detecçã o
de vigilâ ncia é atrair os vigilantes
para fora da moita. Nã o é provocar
umconfronto.Nã oé matarningué m.
Toda rota tem seu ponto crı́tico.”
Nessa altura ele cortou a linha
horizontal com uma perpendicular e
falou: “Este é o ponto em que os
bandidos tê m de decidir se vã o
permanecer invisı́veis e perder seu
alvodevista.”Limpouogizdasmã os
e arrematou: “Se você s conseguirem
fazer com que eles se mostrem sem
nenhumconfronto,entã oforambemsucedidos. Apenas naquela noite.
Depoistê mdecomeçartudodenovo.
Dozero.”
Que se foda esse tipo de cuidado,
pensouNate.Sehouvessecarrapatos
na sua cola, eles teriam de se
mostrar. Ele escorregou pelo aterro
que margeava os fundos da estaçã o
detrem,escalouumacercadearame,
saltoudooutrolado,emumaruela,e
foidriblandooscarrosaté atravessar
a rodovia E12. Pensou no que
Dominika estaria vestindo. Ao longo
de sua rota, tentou localizar Archie,
masemvã o,porqueohomemeraum
fantasma nas ruas, um protoplasma,
fumaçadegeloseco.
Archie estava fazendo a
contravigilâ ncia de Nate, també m
procurando
vultos
repetidos,
medindo tempos e distâ ncias. O
veterano pouco se importava com
casacos e chapé us. Para ele, o que
realmentemereciaserobservadoera
o modo como as pessoas
caminhavam,oritmodaspassadas,o
portedosombros,oformatodonariz
edasorelhas:coisasqueumvigilante
nã opoderiamudar.Sapatostambé m.
Vigilantesnãotrocavamdesapatos.
Apó s trê s horas percorrendo
quase metade da cidade, Nate en im
localizou Archie e viu que ele
carregava sua sacola na mã o direita,
sinaldequeestavatudobem,deque
eleestava“limpo”,livredevigilantes.
O restaurantezinho era bem
modesto, administrado por uma
famı́liadeafegã os.Tapetesorientais
decoravam as paredes caiadas do
pequenosalã oealmofadascoloridas
enfeitavam as cadeiras. Cada mesa
tinha uma vela. Um rá dio velho
tocavabaixinho.Olugarestavavazio,
a nã o ser por um jovem casal de
inlandeses acomodado no canto. Da
cozinhavinhaumcheiromaravilhoso
de cordeiro assado com ervas. Nate
escolheuumamesajuntoà janelada
frente. Dali a dois minutos, Archie e
Veronicapassaram de braços dados
na calçada, ambos olhando para a
frente. Veronica coçou o nariz, sinal
de que estava tudo bem. Archie
achava aquele gesto absolutamente
ridı́culo, mas já desistira de
convencê -la a abrir mã o dele. Olhou
paraamulher,revirouosolhoseeles
sumiramdevista.
Um minuto depois Dominika
surgiu à porta, viu Nate e foi ao
encontro dele. Segura de si, linda,
descontraı́da. Nate puxou a cadeira
para ela se sentar e fez mençã o de
ajudá -la a tirar o casaco, mas
Dominika cuidou disso sozinha. As
duas taças de vinho que ele pedira
foramservidas.OjoelhodeNatedoı́a
em razã o do baque que sofrera ao
saltardeumacercaemseucaminho
acidentado, durante o qual també m
arranhara a mã o esquerda descendo
pelo aterro. A manga do terninho de
Dominika havia rasgado no ombro
quando ela icara presa na caçamba
do beco; um dos sapatos e a meia
estavam molhados da poça em que
ela acidentalmente mergulhara ao
emergir da estaçã o de metrô de
Pihlajisto.
—Quebomquevocê conseguiu
encontrarolugar—disseNate.—E
meio fora de mã o, mas um amigo
falou que a comida é excelente. —
Nãopôdedeixardenotarobrilhodos
cabelosdela.—Esperoquenãotenha
achadolongedemais.
—Foitranquilo,nã otinhaquase
ningué m no trem — retrucou
Dominika.Você é que acha, pensou
Nate.
— Espero que goste daqui. Já
provou alguma comida afegã ? —
perguntou. — Nã o, mas há muitos
restaurantes afegã os em Moscou.
Todomundodizquesãoótimos.
Dominikaviuohalodele,violeta
como sempre, e mais uma vez se
lembroudopai.
— Sabe... cheguei a icar
preocupadodepoisdeconvidarvocê
aumrestauranteafegã o.Talvezvocê
vissecomoumaprovocaçã o—falou
Nate,sorrindo.
Queriafazê-larelaxar.
— Nã o vi provocaçã o nenhuma
— respondeu Dominika. — Você é
americano,nãoconsegueevitar.Acho
que estou começando a entendê -lo,
pelomenosumpouquinho.
Ela mergulhou um pedaço de
pã o á rabe na pasta de grã o-de-bico
banhadaemazeite.
— Desde que você me perdoe
por ser americano... — devolveu
Nate.
—Euperdoo—disseDominika,
osolhoscravadosnosdele.
ComumsorrisodeMonalisa,ela
deuumamordidanopão.
— Que bom, ico feliz —
retrucou Nate, apoiando-se nos
cotovelosesustentandooolhardela.
—Evocê,estáfeliz?
—Queperguntamaisestranha...
—Nãoestoumereferindoaeste
momento, mas à vida em geral —
explicouNate.—Vocêéfeliz?
—Sou,sim—afirmouela.
— E que à s vezes você me
parecetã o...sé ria.Eudiriatriste,até .
Sei que perdeu seu pai há alguns
anos,queerammuitopróximos.
Dominika já falara do pai.
Respirou fundo, pois nã o queria
voltaraesseassunto,tampoucofalar
desimesma.
— Ele era um homem
maravilhoso.Professoruniversitá rio.
Umapessoagentil,generosa.
— O que ele achava das
mudanças recentes na Rú ssia? Era a
favor da dissoluçã o da Uniã o
Soviética?
—Sim,claro,comotodomundo.
Era um patriota. — Dominika deu
mais um gole no vinho, remexeu os
dedosmolhadosdentrodosapato.—
Mas... e você , Nate? — Ela nã o o
deixaria dominar a conversa. —
Como era o seu pai? Você disse que
sua famı́lia é enorme, mas nunca
falou do seu pai. Você s eram
próximos?
Natesuspirou.Elesavançavame
recuavam naquele fogo cruzado de
perguntas.
Uma semana antes ele
con idenciaraaGablequenã oestava
fazendo nenhum progresso com a
russa. Ela era fechada demais,
cautelosa demais, e ele ainda nã o
dera nenhum passo no sentido de
aumentar a intimidade entre eles.
“Você queria o quê ?”, respondera
Gable. “Comer a garota logo no
primeiro encontro? Ela é muito
novinha, uma russinha tensa e
esquisitona;nã otemossupervisores
sensı́veis e prestativos que você
tem.”
Até esse dia Nate ainda nã o
notara que Gable tinha na parede da
sala um calendá rio chinê s de 1971.
“Se abra um pouco com ela, mostre
algumacoisapraverseelarelaxa.”
— Meu pai é advogado —
contou Nate. — Um pro issional
muito bem-sucedido, que tem o
pró prio escritó rio. E muito in luente
tantonocampododireitoquantona
polı́tica. E mais pró ximo dos meus
dois irmã os mais velhos, que
trabalham com ele. O escritó rio
pertence à famı́lia há quatro
gerações.
Mais próximo dos irmãos mais
velhos, registrou Dominika, e foi
diretoaoponto:
—Porquenã ofoitrabalharcom
ele també m? Podia ser um homem
rico. Todos os americanos querem
serricos,nãoquerem?
—Porqueachaisso?Seilá ,acho
que quis seguir meu pró prio
caminho, ser independente. Tinha
interesse pela diplomacia, sempre
gostei de viajar. Entã o achei que
devia tentar alguma coisa sozinho
antesdecorrerparadebaixodasasas
dovelho.
— Mas e seu pai? Nã o icou
decepcionado por você nã o ter
seguido o mesmo caminho dos seus
irmãos?
—Achoquesim,nã osei.Maso
que eu queria mesmo era evitar ter
sempre algué m me dizendo o que
fazer,entende?
Imagensespocaramnamentede
Dominika. Balé , Ustinov, Escola de
Pardais,tioVanya.
— Mas será que basta fugir da
famı́lia? Você nã o tem nenhuma
ambiçãoprofissional?—insistiuela.
Estava disposta a encostá -lo na
parede.
— Eu nã o fugi da famı́lia —
retrucouNate,umpoucoirritado.—
Tenho uma carreira. Estou ajudando
meupaís.
Ele podia ver a cabeça de
Gondorfflutuandoacimadamesa.
— Claro. Mas como exatamente
você ajudaopaı́s?—disseDominika,
ebebeumaisumgoledovinho.
— De muitas maneiras — falou
Nate.
—Medêumexemplo.
Vocêquerumexemplo?Bem,pra
iníciodeconversaeucontroloomelhor
ativo da CIA, um informante de
altíssima patente nesse seu maldito
serviçosecreto,umhomemquevainos
ajudarasabotar,umporum,todosos
planos que a Federação Russa e seu
cruel presidente possam tirar de sua
cartola de maldades, pensou Nate,
masoquedissefoi:
— Estou desenvolvendo um
trabalho muito interessante na á rea
econô mica, relacionado com a
exportaçã o de madeira por parte da
Finlândia.
—É,muitointeressante—disse
Dominika, piscando acintosamente.
— Achei que você fosse me falar
sobre a paz mundial — emendou, e
viu o halo do americano arder em
chamas.
— Eu até falaria, se uma russa
pudesseentenderoquesignifica“paz
mundial” — devolveu ele, depois
correu os olhos pelo restaurante
afegã o e acrescentou: — Depois do
Afeganistãoetudo...
Dominika bebeu mais um gole
dovinho.
— Da pró xima vez vou levar
você a um restaurantevietnamita
ótimoqueeuconheço—retrucou.
Eles icaramseencarandonuma
espé cie de duelo de olhares.Que
diaboestáacontecendoaqui?,pensou
Nate. Ela conseguira irritá -lo um
pouco. Lembrou-se de Veronica ter
dito que talvez Dominika nã o
possuı́sse nenhum alvo, que talvez
nã o fosse esse o trabalho dela. Seria
possı́vel que a veterana estivesse
enganadaefosseeleoalvo?Dooutro
lado da mesa, com os olhos mais
azuis do que nunca, a russa nem
sequerpiscava.
— Está tudo bem — falou
Dominika, lendo os pensamentos
dele. — Só nã o deprecie a Rú ssia o
tempo todo. Merecemos um mı́nimo
derespeito.
Muito interessante, observou
Nate,eemseguidadisse:
—Daquiaumtempoagentevai
olhar pra trá s e se lembrar disso
comoanossaprimeirabriga.
Dominika deu uma mordida no
pão.
— Como você s mesmos dizem,
vou guardar a lembrança com
carinho.
A comida chegou. Dominika
havia pedido um cozido de cordeiro
comlentilhas,quechegoufumegando
numatigelagrande, com uma bolota
de iogurte grosso derretendo por
cima. Nate pedirabowrani, pedaços
deabó boracaramelizadacommolho
decarneeiogurte.Estavadelicioso,e
ele fez questã o de que Dominika
experimentasse
uma
garfada.
Quando terminaram o vinho,
pediramumcafé.
—Apró ximavezserá porminha
conta — decretou Dominika. — A
gente devia ir a Suomenlinna antes
queotempoesquenteeolugar ique
cheiodemais.
—Ésómarcar—retrucouele.
Ela assentiu, itou-o por alguns
instantes,depoisfalou:
—Sabe,Nate,achovocê umcara
simpá tico, engraçado, gentil. Um
ó timo amigo. — Nate se preparou
para o que viria a seguir. — Espero
que me considere uma amiga
também.
Agoraelaquerserminhaamiga,
elepensou.
—Claroqueconsidero—disse.
—Mesmoqueeusejarussa?
— Especialmente por você ser
russa.
Eles icaram ali na penumbra,
encarando-se,amboscogitandopara
onde aquilo estava indo, como um
poderiamanipularooutro.
Quarenta e cinco minutos
depois já estavam na plataforma do
metrô , uma estaçã o a cé u aberto
naquela parte longı́nqua da cidade.
Escurecia e o clima estava frio, mas
nã ocongelante.Natenã oseofereceu
para levá -la de carro para casa, e de
qualquermodoelanãoteriaaceitado.
Ele nã o podia correr o risco de que
algué m da embaixada russa a visse
dentrodeumautomó veldiplomá tico
daembaixadaamericana.
O trem irrompeu na estaçã o e
diminuiu a velocidade. Nã o havia
ningué mnaplataforma,tampoucono
trem.
— Muito obrigada pela ó tima
tarde — disse Dominika, virando-se
paraNate.
Eles se entreolharam e ela
apertouamã odelecomocharmede
um gladiador do SVR. Nate decidiu
testá -la um pouco, entã o se inclinou
para a frente e a beijou no rosto.
Muito encantador, pensou Dominika,
emborajá tivessevistobemmaisque
isso na sua incipiente carreira. O
sinaltocoueelaentrounovagã osem
sorrir, mancando um pouco quando
se virou para acenar atravé s das
portasquesefechavam.
Enquanto o trem deixava a
estaçã o, Nate avistou uma senhora
de parca, com um cesto de tricô no
colo, no vagã o seguinte. Apesar da
velocidade, ele ainda teve tempo de
vê -la coçar o nariz. A plataforma
estava deserta. Como Veronica tinha
conseguido
embarcar
naquela
composição?
Ao longo de suas respectivas
viagensdevoltaparacasa,tantoNate
quantoDominikadeveriamcatalogar
suasimpressõ es,relembrardetalhes,
compor o relató rio que teriam de
entregar na manhã seguinte. Em vez
disso, Nate pensava no beijo que
havia roubado na estaçã o, na
elegâ ncia com que ela saltara para
dentro do vagã o. Dominika, por sua
vez, se lembrava das mã os dele, do
arranhã oavermelhadoemumadelas,
da expressã o dele quando ela
rebatera Afeganistã o com Vietnã ,
uma expressã o nã o só de surpresa,
masdedeleitetambém.
KADDO BOURANI – ABÓBORA À
MODA AFEGÃ
Dourar pedaços grandes de
abóbora, cobri-los generosamente
com açúcar e assá-los no forno em
temperatura média até ficarem macios
e caramelizados. Servir com um molho
de carne moída, cebolas picadas, alho,
molho de tomate e um pouco de água.
Finalizar com uma colher de iogurte
com endro e alho amassado.
CAPÍTULO 12
PARADO A PORTA DA SALA,
Forsyth viu que Nate trabalhava no
relató rio sobre seu ú ltimo encontro
com Dominika Egorova. Nate vinha
tentando apressar as coisas, mas de
forma cé tica. Tudo era lento com a
russa, e ele se sentia inseguro.
Precisava emplacar um ê xito o mais
rá pidopossı́vel,mas icarbatendona
mesma tecla tinha seu preço.
Inevitavelmente, o jogo icava mais
tenso. A cada novo contato com
Egorova, Forsyth sabia que o QG
pressionariamais:faltavapoucopara
elescomeçaremaofereceravaliações
externas,apedirtestesoperacionais.
A resposta mais recente aos
relató riosenviadosporNateera,nas
palavras de Gable, “um bom indı́cio
damerdaqueestavaporvir”.
Com o recebimento deste
cabograma, favor limitar
os relatórios aos canais
expressamente
autorizados. Estabelecer
a lista de permissões de
acesso da estação e
repassar ao QG. Alvo foi
codificado como Diva.
O QG continua a aplaudir
a diligência do operador
e da estação em geral nas
investidas operacionais
contra o alvo ref. Diva.
Consideramos
especialmente
significativo que Diva
continue disposta a se
encontrar e falar de sua
vida pessoal com um
operador (certamente
não autorizado). Pedir ao
operador que continue
tentando extrair dela
alguma informação de
cunho profissional e
determinar até que
ponto ela reage.
Esperamos ansiosos
pelos próximos
relatórios. Bravo.
Em ref. ao
desenvolvimento,
solicitamos atualização
dos planos e testes
operacionais
contemplados para
futuros contatos com
Diva. Favor avisar data
prevista para próximo
encontro, bem como
medidas de segurança
previstas. QG à
disposição para trocar
ideias quanto aos
próximos passos.
Forsyth sabia ler os sinais. A
ú ltima frase, por exemplo, era um
indı́ciodeque,casoascoisasdefato
tomassem um rumo interessante, o
QG nã o deixaria de meter seu nariz
na operaçã o. Os urubus já estavam
sobrevoando, mas a enxurrada de
visitantes começaria apenas quando
o frio fosse embora. No im do
expediente, Forsyth chamou Nate à
suasala.
— Sente aı́ — disse. — Os
ú ltimoscabogramasquevocê enviou
sobre o caso Diva foram excelentes.
Objetivosecomavaliaçõ essensatas.
Exatamente o que se espera de um
bomoperador.
—Valeu,chefe—retrucouNate.
Masnãoestavatãoseguro.Sabia
que os relató rios que ele enviava
seriamlidosporumnú merocadavez
maior de pessoas, e com um olhar
cadavezmaiscríticotambém.
— Seu desempenho nas ruas
també m tem sido impecá vel até
agora — prosseguiu Forsyth. —
Continue assim. Marble ainda é sua
prioridade,claro,masfaçaopossı́vel
paraquesuaoperaçã ocomDivanã o
seja detectada pela embaixada dela.
— Ele re letiu por um instante. —
Aqueletradutorquevocê conheceu...
Como é mesmo o nome dele?
Tishkov. Esse també m pode ser um
alvo interessante. Mas coordenar
duas pessoas na mesma embaixada
talvez nã o seja boa ideia, sobretudo
porque Diva está começando a
render. Acho que é melhor deixar o
tradutorpradepois.
Nate estava convicto de que, se
nã o conseguisse recrutar Dominika,
nem todos os Tishkovs do mundo
poderiam salvar seu pescoço. As
expectativas eram grandes, tal como
o pró prio Forsyth logo viria a
confirmar.
—Estecasojá caiunoradardo
QG. Todo mundo vai querer meter o
bedelho,escuteoqueeudigo.Sevocê
recrutar a moça, todos vã o vir pra
cima como mariposas em volta de
umalâ mpada.Masoquetemdefazer
agora é descobrir se essa Diva tem
uma devoçã o cega pelo sistema dela
ouseexistealgumespaçopradú vida.
Será que ela está disposta a ouvir
você e ser conduzida até a grande
decisã o? — Forsyth se recostou na
cadeira. — Nada mau, hein? Tentar
convencer uma russinha linda a
espionarpravocê ...Minhaportaestá
sempre aberta caso tenha alguma
pergunta. Agora dê o fora daqui.
Divirta-se.
Gable levou Nate para jantar
num bistrozinho de proprietá rios
gregos e insistiu que ele
experimentasse os ovos mexidos da
casa, sempre leves, acrescidos de
cebola e tomate. As cervejas se
multiplicavam
enquanto
Gable
tentava animar Nate com relaçã o ao
casoDiva.
— Nã o tente levar a garota pra
cama antes de recrutá -la. Ela vai
pensar, com razã o, que você trepou
com ela só pra dar o bote. Primeiro
você a recruta, e aı́ depois vai poder
saborear os dois maiores prazeres
que o mundo tem a oferecer: operar
uminformantedoSVRetomarocafé
damanhã comosdedoscheirandoa
boceta.
Gable matou a cerveja da vez e
pediumaisduas.
— Puxa, Marty, é sempre muito
educativo conversar com você —
comentou Nate, revirando os olhos.
—Oqueeuseié oseguinte:preciso
fazê-larelaxarmais,começaragostar
demim.Masedepois?Oquefaçose
as coisas tomarem um rumo mais
sentimental?
Gable o encarou com uma
careta.
—Tenhadó ,né ?Issonã oexiste.
Um operador nã o se apaixona pela
informante. E contra as regras.
Esqueçaisso.Vá emfrenteecomaa
garota se for necessá rio. Mas... se
apaixonarporela?
***
A sala principal darezidentura
doSVRnaembaixadadaRússiaem
Helsinque era pontilhada de
mesas comuns, distribuı́das em
ileiras nã o muito regulares e
equipadas nã o com computadores,
mas com má quinas de escrever
elé tricas dispostas em mesinhas
metá licas laterais e protegidas por
estranhascapasenvernizadasdecor
turquesa. Eram má quinas fabricadas
emMoscouespecialmenteparaoSVR
e o FSB, despachadas com todo o
cuidado para asrezidenturi fora do
paı́s, de modo que nã o fossem
adulteradas.
Lâ mpadas
luorescentes,
també m importadas de Moscou pelo
mesmo motivo, conferiam uma
iluminaçã o irregular à sala de pé direito baixo. Elas zumbiam,
piscavam e re letiam o branco do
tampo de vidro rachado das mesas.
Do lado de fora, as mansardas (a
rezidentura ocupava o só tã o da
embaixada) eram protegidas em
primeiro lugar por barras externas,
depoisporvenezianasdeaço,depois
porvidraçasduplase, inalmente,por
pesadas cortinas cinzentas cujas
barras chegavam ao chã o. O carpete
entreasmesaseragastoeencardido.
O ambiente fedia a cigarro velho e a
chá preto frio largado em copinhos
depapel.
Nos fundos da sala havia dois
gabinetes isolados. Cercado por
divisó rias de vidro, o primeiro
abrigava os arquivos con idenciais e
contava com uma atendente que
trabalhavaemsuamesinhasobaluz
de uma luminá ria. Cofres altos
margeavamasparedes.Algumasdas
gavetas icavam abertas, outras
fechadas e protegidas por lacres de
cera amarelos. O segundo gabinete,
semdivisóriasdevidroesemjanelas,
pertenciaaorezidentVolontov.
A meia dú zia de o iciais da
rezidentura trabalhava em silê ncio
enquanto ouvia os berros que
vinhamdogabinetedeVolontov.Sem
dú vida ele estava enquadrando a tal
Egorova, a novata que viera de
Moscou.
— Todos os dias algué m da
central me cobra um relató rio sobre
o americano — dizia Volontov. —
Estãoquerendoresultados!
Uma nuvem laranja se agitava
em torno da cabeça dele feito uma
espiral de fumaça.Por causa da
pressão,pensouDominika.
— Mas euestou progredindo —
argumentou ela. — Já tivemos mais
de dez encontros. Ele nã o deu
nenhum indı́cio de ter relatado o
contato a seus superiores, o que é
uma
informaçã o
bastante
significativa.
— Você nã o precisa me dizer o
que é signi icativo e o que nã o é .
Minha orientaçã o era que você
documentasse todos os encontros
com Nathaniel Nash. Ordens da
central. Onde estã o os telegramas
que a mandei redigir pra que eu
revisasse antes de mandar pra
Yasenevo?
— Euredigi os telegramas. Foi
você mesmo que me pediu para
juntar diversas mensagens num
ú nico sumá rio. Nã o posso escrever
sobre os contatos que ainda nã o
aconteceram.
Volontovfechouagavetadesua
mesa com um gesto brusco e
estrepitoso, fazendo sua aura
espiralaraindamais.
— Acho melhor você deixar o
sarcasmo de lado e trocá -lo pelo
respeito — rugiu. — Agora preste
atençã o: quero que você acelere as
coisascomoamericano.Lembreque
nosso objetivo inal é tirar dele
alguma informaçã o que nos leve à
identidade de um traidor. E urgente,
éfundamental,quevocêconsigafazer
esseianquefalar.
—Eusei—retrucouDominika.
— Fui eu mesma quem redigiu a
propostaoperacional,entã oconheço
muito bem o objetivo desta missã o.
Tudo está indo bem, nã o precisa se
preocupar.
— Fique de olhos bem abertos.
Procureverseeleestá sepreparando
para alguma operaçã o iminente, se
está planejando alguma viagem, se
está nervoso,
distraı́do
ou
preocupadocomalgumacoisa.
— Fique tranquilo, coronel.
Estouatentaatudoisso.Econ iante
també m.Vousaber se houver algum
evento extraordiná rio na agenda
dele.
Dominika nã o tinha certeza de
nada. Tudo indicava que a relaçã o
entreelesestavaestagnada.
Volontov a itava como se
re letisse sobre algo de grande
importâ ncia. Na verdade, ele corria
os olhos discretamente pelo corpo
dela: a boca, o tronco, a cintura.
Recostando-senacadeira,falou:
— Muitos dos indicadores que
procuramos talvez sejam mais
discernı́veis numa relaçã o de maior
intimidade. Naminha experiê ncia,
quanto mais ı́ntima a relaçã o, mais
íntimasasconversas.
Na sua experiência com
jovenzinhos marroquinos, pensou
Dominika, tentando aplacar a fú ria
enquantoolhavaparaasverrugasno
pescoçodochefe.
— Muito bem, coronel. Semana
que vem tenho mais um encontro
com o americano. Vou me lembrar
dosseusconselhossobreintimidade
e relatar o progresso realizado. Vou
sugerirmaisencontros,demodoque
eu possa descobrir detalhes da
agenda pro issional dele. Está bem
assim?
—Sim,sim.Masnã osubestime
o poder da dependê ncia emocional,
entendeu?
A neblina alaranjada rodopiava
em torno de Volontov. Ansiedade.
Medo.Aspalavrasescaparamdaboca
de Dominika antes que ela pudesse
contê-las:
— Por que nã o diz logo de uma
vez? — falou, levantando-se. — Por
quenã omandalogoqueeuvá paraa
cama com o americano? Sou uma
o icial do serviço secreto russo.
Trabalho para o meu paı́s. Nã o vou
deixarquevocê sedirijaamimdessa
maneira.
Ela tremia de ó dio e frustraçã o.
Nem sequer deixou Volontov
responder:saiumarchandoebateua
portaàssuascostas.
Se no lugar de Dominika
estivesse algum outro novato, o
coronel teria seguido no encalço do
infelizetiradoocourodeleantesde
despachá -lo para os porõ es de
Lubyanka.Masnocasodela,levandose em conta o pedigree da moça, o
maisseguroseriafazervistagrossa.
Todos se voltaram para
Dominikaquandoeladeixouasalado
coronel e, fumegando, seguiu para
sua mesa na extremidade oposta da
sala, junto a uma das mansardas.
Ouviram a gritaria dela. Será que a
garota nã o tinha nenhum juı́zo?
Melhor
icar
longe
daquela
samoubiystvo, daquela suicida em
potencial, era o que pensavam.
Todos,menosumapessoa.
Dominika remoeria a conversa
comVolontovaté seunovoencontro
comNate,daliacincodias,dessavez
um jantar numa parte mais pró xima
do centro da cidade. Ela agora
admirava sua imagem re letida na
janela do apartamento, a escuridã o
da noite do outro lado do vidro, as
luzes de Punavuiori aparecendo por
entreasá rvores.Quemévocê?,elase
perguntava, cansada.Até onde vai
aguentar? Sua vontade era cutucar a
onça com vara curta, dar uma bela
liçã o naquele bando de arrogantes,
manipuladores e hipó critas. Mas
fazer isso publicamente seria o
mesmo que dar um tiro no pró prio
pé . Nã o, melhor seria uma vingança
secreta,impossı́veldedescobrir,algo
delicioso que ela pudesse celebrar
em seu ı́ntimo depois, algo queela
sabiamaselesnão.
Volontov era apenas o mais
recente da longa procissã o de
homens autoritá rios e asquerosos
com que ela tivera o desprazer de
cruzarnavidaenacarreira,masera
ele quem estava logo ali, ao alcance
damã o,eelaqueriafazeralgocontra
o verruguento, apagar o alaranjado
encardido daquela aura nojenta.
Antes, precisava pegar aquela fú ria
recé m-nascida, guardá -la numa
caixinha e botar a cabeça para
funcionar. A operaçã o contra Nate
eradefundamentalimportâ nciapara
Volontov,queseborravademedoda
centralemMoscou. Uma maneira de
se vingar dele, oudeles, seria
prejudicar
deliberadamente
a
operaçã o. Mas como fazer isso sem
queimaroprópriofilme?
Mais tarde na mesma noite, ela
parou com a escova de dentes na
boca, se olhou no espelho do
banheiroepensou:Quetalpresentear
o americano com uma surpresinha?
Largar o disfarce e contar a ele que
vocêtrabalhaparaoSVR?
Izmena. Traiçã o, era esse o
nome do que ela acabara de cogitar.
Gosudarstvennaya izmena. Alta
traiçã o.Mascomissoelaarruinariao
casodeVolontov,fariaosamericanos
seprevenireme, de quebra, deixaria
Nateboquiaberto.Seriainteressante
verosustodeleaosaberqueelaera
uma agente de inteligê ncia. Ficaria
impressionado,teriarespeitoporela.
Dominika censurou a si mesma
no mesmo instante, tentando
recobraradisciplina,lembrar-sedos
deveresquetinhaparacomapá tria.
No entanto... nã o se tratava
exatamente de um ato contra a
Rú ssia. Era sobretudo uma vingança
pessoal,contraeles.Suaintençã onã o
era vender segredos de Estado, mas
derrubar aquela longa sequê ncia de
dominó s. Ela manteria o controle
sobreascoisas,determinariaoponto
que elas poderiam alcançar até que
sua sede de vingança fosse saciada.
Nã o. Isso seria uma loucura
completa. Problemas na certa.
Impossı́vel. Ela teria de encontrar
outrojeitodesevingar.Aessaaltura
ela já escovava os cabelos. Olhando
para o cabo grosso da escova,
imaginou-o enterrado até o talo no
rabodeVolontov.Emseguidaapagou
aluzevoltouparaoquarto.
***
No im da semana, ela e Nate
foram jantar no Ristorante Villeta,
uma cantina italiana de qualidade
inferiornaregiã odeTö ö lö .Umtoldo
deplá sticocomascoresdabandeira
da Itá lia se projetava da fachada do
pré dio residencial em que icava o
estabelecimento. No interior, a
decoraçã o se completava com o
indefectı́vel xadrez vermelho e
branco das toalhas e as velas
derretendo sobre cada uma das
mesas.Aindafaziafrio,masoinverno
já chegava ao im: mais algumas
nevascas,umabrevı́ssimaprimavera
eentã oviriaodeliciosoverã o,como
porto fervilhando de veleiros e as
balsasfazendoatravessiadabaía.
Dominika e Nate haviam
chegado separadamente, como de
há bito. Sob o casaco de inverno ela
usavaumvestidojustodetricô preto
com cinto e meias de lã també m
pretas. Nate estava de paletó , mas
sem gravata e com o colarinho da
camisadelistras inaseazuisaberto.
Ele deixara a embaixada duas horas
antes, seguira de carro pela E12 até
Ruskeasuo, dobrara para oeste e
voltara para a zona sul por ruas
secundá rias, chegando a Tö ö lö logo
depoisdetervistoArchieestacionar
numaruazinhapró ximacomoparasol baixado no lado esquerdo do
carro.Sinaldequeestavatudobem.
Nate havia conversado com
Gablenavéspera.
—Tentefazê-lafalardotrabalho
— dissera o supervisor. — Ela faz
parte do SVR, esse é o segredinho
sujodela.
Nate concordava com ele, mas
sofriacomanecessidadedeproduzir
alguma informaçã o importante o
mais rá pido possı́vel. Forsyth o
elogiara, Gable só fazia encorajá -lo,
masele,Nate,já estava icandoa lito.
Precisavachegaraalgumlugar,ejá.
EleeDominika icarambatendo
papo por alguns minutos enquanto
examinavam
o
menu
exageradamentegrande.
— Você está quieto hoje —
comentou Dominika, olhando para
eleporcimadocardápio.
—Tiveumdiadifícilnotrabalho
— retrucou Nate, procurando soar
indiferente. — Cheguei atrasado a
uma reuniã o, esqueci de incluir uns
nú merosemumrelató rio,meuchefe
nã o icou satisfeito e fez questã o de
medizerisso.
—Duvidoquevocê nã osejaum
funcionárioexcelente.
— Bem, agora me sinto melhor
— falou Nate, e pediu duas taças de
vinho ao garçom que se aproximou
damesa.—Vocêestábonita.
—Vocêacha?
Elesepermitirafazerumelogio.
Parecia mais seguro, notou
Dominika.
— Acho. Você me faz esquecer
de tudo: trabalho, chefe, o dia chato
quetivehoje.
O chefe. Dominika icou se
perguntandooquedefatosepassava
nacabeçadele.Baixouosolhospara
o cardá pio, mas nã o conseguiu se
concentrar.
— Nã o foi só você que teve um
diachato,Nate—falou.—Meuchefe
tambémmedeuumabronca.
Ela quase podia ver o sangue
começar a pulsar nas orelhas dele.
Deuumgolenovinho,sentiu-semais
leve.
— Entã o nó s dois estamos
encrencados—comentouNate.—O
quevocêaprontou?
— Nada muito grave — disse
Dominika. — Mas ele é uma pessoa
desagradável,umnekulturny.Emuito
feio.Temverrugas.
Quantos rezidentiem Helsinque
devemterverrugas?,elaseperguntou.
—Oqueéisso?Nekulturny?
Como se você não soubesse,
pensouDominika,eexplicou:
—Umcaipira.Umapessoasem
instrução.
Nateriu.
—Comoelesechama?Talvezeu
o tenha conhecido em algum
coquetel.
Ela mudara de ideia no mı́nimo
cincovezesaolongodosú ltimosdois
dias, e en im decidira manter
distâ ncia dos joguinhos perigosos.
Ergueu os olhos para Nate. Ele
mordiscava seugrissini, sorrindo
paraela.Não!
Izmena!Traição.
— O nome dele é Maxim
Volontov — revelou, ouvindo a
pró priavozcomosouvidosdeoutra
pessoa.
Bozhe moi, pensou. Meu Deus.
Mal podia acreditar no que acabara
de fazer. Olhou de novo para Nate,
queagoraliaocardá piocomosenã o
a tivesse escutado. O halo em torno
dacabeçaeraomesmodesempre.
— Nã o. Acho que nã o conheço
—respondeuele.
Sentia os pelos dos braços se
eriçarem.Caramba.Quediaboelaestá
fazendo?Acaboudeseentregar!
— Bem, sorte sua — comentou
Dominika,aindaoencarando.
Nate en im ergueu os olhos do
cardá pio. Chegara a pensar que
Dominika tivesse deixado escapar o
nome de Volontov sem querer. Mas
nã o. Ela parecia tranquila. Tinha
faladodepropósito.
—Porqueeleé tã oruimassim?
—perguntouele.
— E um homem nojento, um
cafajeste dos tempos sovié ticos.
Tododia icameencarando...Comoé
mesmoquevocêsdizemnoseupaís?
Dominika o itava com toda a
calma.
—Eledespevocê comoolhar,é
isso?—sugeriuNate.
—Issomesmo.
Ele ainda nã o esboçara
nenhuma reaçã o. Será que tinha
entendido o que ela dissera?
Dominika chegou a recear que
tivesse ido longe demais. Mas de
repente percebeu que nã o se
importava. O leite já estava
derramado,eagoraelaeraaguardiã
de um segredo mortalmente
peri go s o .Feliz agora, durak, seu
bobinho?
— Ele parece mesmo uma
pessoa horrı́vel... Mas até entendo
por que nã o para de encará -la —
comentou Nate, e abriu um sorriso
maroto.
Meu Deus, pensou em seguida.
Deondesaiuisso?Seráumsinalpara
mim? Será que ela está apenas se
fazendo de tímida e recatada? Ele
itou aqueles olhos impossivelmente
azuis. O peito arfava sob o tricô do
vestido. Os dedos compridos
agarravamocardápiogigantesco.
— Agora você falou como um
nekulturny—disseela.
Seria possı́vel que ele já
soubesse de Volontov? Será que era
tã o bom a ponto de nã o esboçar
qualquerreação?
— Bem, parece que nó s dois
temos problemas no trabalho.
Podemos nos solidarizar um com o
outro.
— O que signi ica “solidarizar”?
—perguntouDominika,encarando-o.
— Signi ica que a gente pode
chorar no ombro um do outro —
explicouNate.
Tranquilo, caloroso, com a aura
roxa.
Dominika nã o sabia se ria ou
gritava.
Tentou
manter
o
pro issionalismo. — Chorar a gente
pode deixar pra depois. Estou
morrendodefome.Vamospedir?
***
Era uma manhã de segundafeira quando um cabograma de
circulaçã o restrita foi repassado a
Nate. O time de Washington
informava à estaçã o que Marble
entrara em contato para dizer que
chegaria a Helsinque dali a duas
semanas como integrante da
delegaçã o russa que participaria de
uma conferê ncia de dois dias sobre
as economias escandinava e bá ltica.
Marble avisava ainda que usaria a
delegaçã o como disfarce para a
viagem:estarianacidadeparatentar
encontrar “por acaso” um membro
sê nior da delegaçã o canadense,
Anthony Trunk, assistente do
ministrodoComé rcio,queaosolhos
do
SVR
representava
uma
oportunidade
vá lida
de
recrutamento: o homem tinha uma
predileçã oespecialporrapazesde20
epoucosanos.
Umaltofuncioná riodogoverno
canadenseeaindaporcimaumpidor,
um veadinho. O Departamento das
Amé ricas tinha primazia sobre a
operaçã o, e Marble era o candidato
maisindicadoparairaté Helsinquee
rondar Trunk. A viagem já fora
aprovada pela central. Tal como
Marble sabia que aconteceria,
instruçõ es haviam sido despachadas
nosentidodeexcluirarezidenturade
Helsinque tanto da conferê ncia
quantodaoperaçã oderecrutamento.
Nasuatransmissã ointermitentepor
saté lite, Marble informava aos
americanosquepoderiaseencontrar
comalgumoperadordaCIAtardeda
noite, apó s os trabalhos e coqueté is
previstos para cada dia. Arriscado,
maspossível.
UmanalistadoQGespecializado
naRú ssiachegariadoisdiasantesdo
inı́cio da conferê ncia para ajudar na
preparaçã o dos encontros secretos.
Uma longa lista de perguntas de
acompanhamento do caso, gerada
pelosrelató riosanterioresdeMarble,
foienviadaporcabogramaà estaçã o.
Ao im dessa relaçã o, como sempre,
vinham
os
questionamentos
protocolares de contrainteligê ncia,
perguntas bobas e super iciais:
“Você s tê m conhecimento de algum
informante no governo norteamericano? Da divulgaçã o nã o
autorizada de qualquer material
con idencial norte-americano? De
alguma operaçã o de inteligê ncia
direcionada contra cidadã os ou
sistemasdosEstadosUnidos?”
Eles repassaram cada item da
lista de afazeres. Renovar o estoque
deequipamentosdecomunicaçã odo
informante seria impossı́vel, porque
Marbleteriadepassarpelaalfâ ndega
ao voltar à Rú ssia. Um plano de
contato universal teria de ser
atualizado.Forsythvetouapresença
de dois o iciais seniores do QG nos
encontrossecretoscomorusso.Nate
eraooperadordeMarbleefariatodo
otrabalhosozinho.
Depois vieram os preparativos
de que apenas Nate poderia cuidar:
ele desapareceu de vista durante o
diae,à noite,iaaté asimediaçõ esdo
Kä mp Hotel, onde seria realizada a
conferê ncia e seriam alojados os
participantes, para vasculhar a á rea
em busca de lugares possı́veis para
um breve encontro secreto: becos,
portõ es,dequesdecarregamentoetc.
Passavadiantedecafés,restaurantes,
museus—queseriamoslocaispara
os esbarrõ es de entrega —, e ia
contando
passos,
medindo
distâ ncias, determinando luxos e
padrões.
Por im, durante uma noite de
chuva forte em que a fachada da
estaçã oferroviá riamaispareciauma
cachoeira,Nateentrounosaguã odo
prédio,sedirigiuàescadalaterallogo
apó s a entrada e dali a pouco sentiu
uma mã o colocando em seu bolso
umapesadachavedequartodehotel.
Um homem com cara de rato, um
agentedeinteligê nciaeuropeu,usara
um nome falso e alugara um quarto
noHotelGLOporumasemana.Todas
as noites, até o im da conferê ncia,
Nate esperaria nesse quarto para se
encontrar com Marble sempre que o
russo conseguisse escapar. Fecharia
janelasecortinas,ligariaatelevisã oe
enfrentaria o calor até ouvir o
discretobaternaporta,já antevendo
as longas conversas que avançariam
madrugada afora enquanto a cidade
dormia e as luzes dos semá foros
brilhavam sem parar nas ruas
molhadasevazias.
QuandoMarbledesceudoaviã o
em Helsinque, a estaçã o já estava
totalmente preparada para passar
com ele tanto tempo quanto fosse
possı́velesegurosemqueummı́sero
io de cabelo do americano pudesse
serencontradopelocaminho.
Anoitecia, e mais uma vez
Dominika montava guarda no
mezanino do Torni Hotel, esperando
Nate chegar à piscina. Eles agora
nadavam pelo menos trê s vezes por
semana, mas fazia seis dias que ele
nã odavaascaras.Elavinhaachando
aquiloestranhoeestavasesentindo
um pouco esnobada. Uma semana
antes, num domingo ventoso de
primavera,
eles
tinham
se
encontrado à beira d’á gua em
Ullanlinna,noCarusel Café . No porto
agora se viam inú meros mastros e
adriças balançando de um lado a
outro, obedecendo aos caprichos do
vento assim como as nuvens que
zanzavam no alto, nos raros dias de
céuazul.
Para chegar à marina Dominika
pegara um ô nibus, depois o metrô ,
depois dois tá xis. Caminhando pela
Havsstranden, ela pensara por um
tempo até vencer a pró pria
resistê ncia e passar um pouquinho
de perfume atrá s das orelhas. Nate
apareceuapé eatravessouaruaum
pouco agitado. Charmoso como
sempre, mas um tanto diferente. O
halovioletaapareciagranulado,mais
pá lido que de costume. Sem dú vida
ele estava preocupado com algo. Ao
contrá rio das outras vezes, em que
geralmente passavam quatro, cinco,
seis horas juntos, Nate disse, apó s
uma hora, que precisava ir. Tinha
outro compromisso. Coisa de
trabalho.Elesaindacaminharampor
algumtempoàbeirad’água,equando
Dominika sugeriu que no im de
semana seguinte eles tomassem a
balsaparaSuomenlinnaepassassem
odiaexplorandooantigoforte,Nate
respondeu que adoraria, mas que
seria melhor deixar o passeio para
daliaduassemanas.
As á rvores já começavam a
lorescer e eles já podiam sentir o
calor do sol no rosto. Numa esquina
mais tranquila, pararam e se
encararam. Dominika iria para um
lado, ele para o outro. Ela ainda
sentia a energia nervosa que ele
irradiava.Semdúvidaestavaàespera
dealgumacontecimentoimportante.
— Desculpe — disse ele. — Sei
que nã o fui boa companhia, mas é
que... ando meio atarefado no
trabalho.Entã ovamosaofortedaqui
aduassemanas?
— Claro — retrucou Dominika.
—Agentesevê napiscinaecombina
melhor.
Eles se despediram e ela se
virou para atravessar a rua,
perguntando-se onde estava com a
cabeçaquandodecidiraseperfumar.
Nate icou parado no lugar,
observando-a se afastar em meio à s
folhas
varridas
pelo
vento,
admirando as panturrilhas de
bailarina, as mã os que balançavam
levemente
junto
à s
pernas
compridas. Só entã o notou que ela
mancavaumpoucoaocaminhar.
Em seguida ele se foi també m,
agorapensandonachegadaiminente
de Marble. Ainda faltava estabelecer
um procedimento qualquer para
sinalizar ao russo que estava tudo
bem e que ele podia subir ao quarto
doHotelGLO.
STRAPATSADA — OVOS À MODA
GREGA
No azeite quente, refogar
tomates sem pele e picados, cebolas,
açúcar, sal e pimenta até formar um
molho espesso. Acrescentar os ovos
ba dos e mexer vigorosamente até
chegar à consistência de omelete.
Servir com fa as de pão quente
regadas com azeite.
CAPÍTULO 13
JA HAVIA SE PASSADO TEMPO
demais. Por onde ele andaria? Teria
encontrado outro alvo? Outra
mulher? Teria sumido só porque ela
entregara o nome de Volontov? Era
nisso que Dominika pensava
enquanto esperava Nate no
mezanino do Torni Hotel. Sabia que,
maisumavez,elenãoapareceria.
Tentounã opensarnotioVanya
em Moscou, tampouco naquele
rezident suarento que nã o tirava os
olhos dela. Na manhã seguinte ela
teriadeentregarumrelatório.
Voltando a pé para o
apartamento, ela mal reparava nas
ruas ou nas luzes das janelas.
Imaginava o que aconteceria na
rezidentura no dia seguinte. Seu
relató rio sobre o sumiço de uma
semanadeNateseriaimediatamente
encaminhado via cabograma para
Vanya. Na Linha KR, uma solicitaçã o
urgente ao setor administrativo
levaria à produçã o de uma lista de
todos os russos que haviam viajado
paraaEscandiná vianosú ltimosseis
meses,bemcomoosquepretendiam
viajar nos seis meses seguintes.
Diplomatas,
empresá rios,
professores e alunos universitá rios,
funcioná rios pú blicos, até mesmo
pilotos e comissá rios. Em seguida,
com toda a paciê ncia do mundo, os
lobos da KR eliminariam nomes
baseando-se em idade, pro issã o,
histó rico e, sobretudo, acesso a
segredos de Estado. A lista reduzida
de suspeitos poderia chegar a uma
dezena ou uma centena de nomes.
Issonã ofariaamenordiferençapara
o SVR, que começaria a vigiá -los em
tempointegral,interceptandocartas,
grampeando telefones, vasculhando
residê ncias edachas, despachando
operadoresparainvestigá-los.
A busca certamente se
estenderiaaHelsinquetambé m.Uma
equipe de vigilâ ncia da Diretoria K
seria orientada a seguir Nate por
duas ou trê s semanas, um mê s que
fosse, e observar as atividades dele.
Inventivos e invisı́veis (os vigilantes
da Diretoria K eram sempre
mencionados
num
tom
de
admiraçã o), eles passariam suas
observaçõ esaMoscoueentã oteriam
inı́cio as in indá veis investigaçõ es.
Era inevitá vel. Ao im do processo,
caso o informante fosse mesmo
russo, seria preso, julgado e
executado. As eminê ncias pardas
colocariam suas garras de fora mais
umavez.
Os
passos
de
Dominika
ressoavam no silê ncio da noite. As
ruas estavam vazias. Ela se
perguntavaquemseriaoinformante
de Nate. Que motivos ele teria para
trair seu paı́s? Que tipo de pessoa
seria? Decente? Corrupta? Nobre?
Louca? Dominika queria ver o rosto
desse informante, ouvir sua voz.
Talvez se identi icasse com seus
motivos. Talvez fosse capaz de
entender sua traiçã o. Pensou na
pró pria pequena transgressã o.Você
não teve a menor di iculdade para
racionalizar a situação, não é, sua
conspiradorademeia-tigela?
Dominika se recostou na
fachada de um pré dio e fechou os
olhos. Até aquele momento era a
ú nica pessoa a suspeitar, ou melhor,
asaberqueNateseencontrariacom
seu informante. Chegou a icar um
pouco tonta ao se dar conta disso. E
seelanã odissessenada?Seriacapaz
de tamanha deslealdade? Nada a
impedia
de
sonegar
aquela
informaçãoesabotarojogodeles.
De repente ela se lembrou
daquela putinha, Sonya, que
conspirara com o namorado para
arruinar sua carreira de bailarina.
Lembrou-se do brutamontes que
tentara agarrá -la no chuveiro da
academia,dogritodeagoniaqueele
deraaoteroolhoperfuradoporuma
torneira. Lembrou-se do francê s
Delon, que nada pudera fazer contra
os capangas do SVR. Lembrou-se do
gosto do sangue de Ustinov que
sentiranapró priaboca.Eselembrou
do rosto de Anya, roxo pelo
sufocamento.
Eles que esperem, ela en im
decidiu, já bem mais con iante.
Aquilo
seria
perigosı́ssimo,
potencialmente fatal. O plano era
frá gileproibido,masextraordiná rio.
O poder que ela exerceria sobre
VolontoveVanyaseriareal.Suamã e
sempre lhe dizia para controlar o
mau gê nio, mas agora era delicioso
sentir na garganta aquele friozinho
datransgressão.
Dominika voltou a caminhar, os
sapatos ecoando na calçada. Havia
algo mais, uma constataçã o que a
deixava um tanto surpresa. Ela
conhecia o jogo o su iciente para
saber que a reputaçã o de Nate seria
irremediavelmente arruinada caso
ele perdesse seu informante. Nã o
faria isso com ele. Gostava do
americano. Via nele algo do pró prio
pai.
Na manhã seguinte, com um
peso no estô mago, Dominika
mostrou seucrachá na portaria da
embaixada, atravessou o pá tio e
subiu os degraus de má rmore que
levavam ao só tã o, já gastos pelos
incontá veis o iciais que haviam
servidoantesdela.SluzhbaVneshney
Razvedki,SVR,ServiçodeInteligê ncia
Externa. No topo da escadaria havia
uma porta de metal pesada, nã o
muitodiferentedaportadeumcofre.
Dooutrolado,umasegundaportade
tranca criptografada e uma espé cie
dealambradocomcó digodealarme.
Dominika deixou a bolsa em sua
mesa e acenou para uma colega.
Volontov estava na entrada de seu
escritório,chamando-a.
Parada na frente da mesa dele,
ela nã o conseguia tirar os olhos das
mãosgordasdochefe.
— Entã o, alguma novidade? —
perguntou Volontov, limpando as
unhascomumabridordecartas.
Dominika sentiu o coraçã o dar
cambalhotas no peito, a cabeça
martelar incessantemente. Receou
que o coronel percebesse, que já
soubesse de alguma coisa. Quando
en im conseguiu falar, teve a
impressã odequeaspalavrasvinham
dabocadeoutrapessoa.
— Coronel, descobri que o
americano gosta de museus —
começou ela, desajeitada. —
Convidei-o para uma visita ao
Kiasma nos pró ximos dias. Minha
intençãoélevá-loparajantardepois...
nomeuapartamento.
Malacreditounoqueacabarade
dizer.AquiloeratudooqueVolontov
queria ouvir. O homem desviou o
olhar das unhas, ixou-o nos seios
delaegrunhiu:
— Já nã o era sem tempo.
Capriche nesse jantar, hein? Pra que
ele queira voltar mais vezes. Fora
isso,nenhumaoutranovidade?Nada
foradocomum?
Bastariacontarqueoamericano
estariaocupadopelaspró ximasduas
semanas para que a engrenagem se
colocasse em movimento e ela,
Dominika, icasse isenta de toda a
responsabilidade. As marteladas
icaram ainda mais ruidosas em sua
cabeça.Avisã operifé ricaseturvoue
ela mal conseguia discernir o porco
sentado do outro lado da mesa,
envolto no laranja asqueroso da
pró pria aura. A garganta se fechava
ao mesmo tempo que as pernas
tremiam a ponto de um joelho bater
no outro, algo que nunca lhe
acontecera. Ela precisou resistir ao
impulso de se apoiar na mesa para
nã o cair. Volontov continuava a
encarar os seios dela, uma mecha
escapandodoscabelosengomadose
apontandoparaoladocomarigidez
deumaantena.
Noú ltimomilé simodesegundo,
Dominikasedecidiu.
— Nã o, coronel, por enquanto
nenhuma outra novidade — falou,
comocoraçãonaboca.
Acabara de cruzar o limite que
separava uma simples infraçã o da
traiçã o cometida contra o Estado.
Cedooutardeelesdescobririamtudo
e mandariam homens para matá -la
comtrituradoresdegelo,assimcomo
haviamfeitocomTrotsky.Jogariama
mã e dela dentro de uma fornalha
qualquer. Volontov ainda a itou por
alguns instantes, grunhiu mais uma
vez e por im a dispensou com um
acenodemã o.Dominikalogoviuque
ele nã o descon iara de nada. No
entanto,mesmotendocertezadesua
intuiçã o, sentiu o sangue formigar
geladonasveias.
Voltouparasuamesaedesabou
na cadeira. Todos à sua volta
trabalhavamcomacabeçabaixa,uns
lendo,
outros
digitando
ou
escrevendo algo. Exceto Marta
Yelenova, que se sentava a duas
mesas de distâ ncia. Ela empunhava
um cigarro, olhando na sua direçã o.
Dominika abriu um pequeno sorriso
edesviouoolhar.
Marta era a principal assistente
administrativadarezidentura,omais
pró ximoqueDominikatinhadeuma
amiga na embaixada. Elas já haviam
conversadoalgumasvezesedividido
a mesa durante um jantar de
despedida oferecido a um diplomata
qualquer. Numa tarde chuvosa de
domingo as duas se encontraram
para um passeio no mercado do
porto, parando aqui e ali para
beliscar
alguma
coisa
nas
barraquinhas de comida fresca. Uma
mulher elegante, de traços nobres,
Marta tinha cerca de 50 anos e uma
fartacabeleiraqueiaaté osombros.
As sobrancelhas grossas encimavam
seus lindos olhos castanhos. Os
lá bios inos estavam sempre um
pouco curvados para cima em um
permanente sorriso de sarcasmo,
talvez por conta da visã o cı́nica que
parecia ter do mundo. Era uma
daquelas pessoas que tinham uma
auradecorforteemtornodacabeça
e do corpo, um vermelho-rubi que
denotava paixã o, ardor, o mesmo
tom que Dominika via sempre que
ouviamúsica.
Sem dú vida a mulher fora uma
beldadenajuventude.Quaserosnava
sempre que algum colega do sexo
masculino se aproximava para fazer
qualquer comentá rio, por mais
inocente que fosse, sobre seu corpo
imponenteevistoso,agoraumpouco
arredondado demais na regiã o da
cintura. Ela colocava o infeliz para
correr. Tampouco se deixava
intimidar quando Volontov vinha
exigir algum voucher, prestaçã o de
contas ou relató rio mensal. Falava
sem nenhum pudor que os papé is
seriamentreguesassimque icassem
prontos. Era Volontov quem parecia
seintimidarcomoporteolı́mpicoda
funcionária.
***
Dominika nã o sabia nada a
respeito do passado de Marta, mas,
se soubesse, sem dú vida icaria
surpresa pelo fato de a mulher ter
sido recrutada pela KGB, em 1983,
parasematricular na Escola Federal
Quatro, a Escola de Pardais que se
escondianocoraçã odeuma loresta
nos arredores de Kazan. Tinha 20
anosà é poca.OpailutaranaGrande
GuerraPatrió tica,depoisseintegrara
à s forças do NKVD em Leningrado
como membro do partido, um iel
vassalo do Estado. A beleza
extraordiná ria de Marta fora notada
por um major da KGB durante uma
ronda
de
inspeçã o
e
ele
providenciara para que ela fosse
contratada pelo SVR como sua
secretá ria. O pai de Marta, que
conhecia a má quina do governo a
fundomasaindaassimesperavaque
a menina tivesse uma vida melhor,
assentiraemsilê ncioedespacharaa
ú nica ilha para morar com a irmã
dele em Moscou, a im de que ela
pudessecomeçaratrabalharnaSDG,
a Segunda Diretoria-Geral da KGB
(segurança
interna),
Sé timo
Departamento (operaçõ es contra
turistas), Terceira Seçã o (hoté is e
restaurantes). Sozinho, o Sé timo
Departamento empregava duzentos
o iciais e 1.600 informantes e
agentesemmeioexpediente.
Uma vez em Moscou, Marta foi
notada por um coronel da SDG,
patente superior à de major, e
convocada a integrar a equipe dele.
Depois de um tempo, chamou a
atençã o de um general da SDG, de
patente superior à do coronel, e
chamada para trabalhar como
auxiliar dele, mesmo sem fazer a
menor ideia do que era esperado do
cargo.Descobriucertatarde,quando
otalgeneralaempurrouparaosofá
deseugabineteepassouamã osoba
saia do uniforme dela. Marta o
golpeou na cabeça com a garrafa de
á gua a seu lado, uma garrafa
tipicamente sovié tica, de metal. O
escâ ndalo abalou os alicerces da
puritana KGB, sobretudo porque a
mulher do general era irmã de certo
membrodoPolitburo.LogoMartafoi
transferida para a Escola Federal
Quatro.Nãotinhaescolha.Teriadese
tornarumpardal.
Marta apresentava a rara
combinaçã o
de
uma
beleza
estonteante com uma inteligê ncia
acima da mé dia. Enquanto a beleza
lhe ajudava a atrair diplomatas
estrangeiros,
jornalistas
e
empresá rios, a inteligê ncia lhe
conferia um talento especial para
conquistaramigosin luentes.Ao im
deumacarreiradequasevinteanos,
Marta era conhecida como Koroleva
Vorobey,arainhadospardais.Havia
participado de dezenas de arapucas
orquestradas pela SDG, as quais
permitiram à KGB recrutar, entre
outros, um bilioná rio japonê s
ninfomanı́aco,umembaixadoringlê s
adú ltero e um abjeto ministro de
Defesaindiano.Noaugedatrajetó ria,
fora a isca sexual do lendá rio
recrutamento de uma criptó grafa
alemã , funcioná ria da embaixada,
cujosubornotornara possı́vel à KGB
ler todo o trá fego cifrado entre a
AlemanhaeaONUduranteseteanos
ininterruptos.Essafoiaú nicavezem
que ela trabalhou contra outra
mulher, mas o recrutamento ainda
era citado como uma operaçã o
clá ssica nas escolas superiores da
KGB.
Aolongodosanos,osromances
nã ooperacionaisdeMartaincluı́ram
dois membros do Politburo, um
generaldaPrimeiraDiretoria-Gerale
diversos ilhos de o iciais in luentes
na alta direçã o da KGB. Inú meros
exchefes de sobrancelhas grossas
ainda se lembravam dela com
carinho. Graças a esses “mentores”
velhos de guerra, Marta era uma
mulherà provadequalquerataquee
seaposentaradavidadepardalcom
uma pensã o equivalente à de um
major do SVR. Decidira aproveitar a
vidaeverumpoucodomundo,entã o
solicitara uma transferê ncia para o
exterioreforaprontamenteatendida
comumpostoemHelsinque.
***
Aprincı́pioMartanã osabiaseo
trabalhodeDominikaeradenatureza
operacional
ou
apenas
administrativa. Uma coisa era certa:
amocinhaerajovemdemaisparater
recebido um posto fora do paı́s. O
sobrenome explicava muita coisa,
mas o fato de ela nã o ter nenhuma
tarefa regular narezidentura, nã o
obedecer a horá rios ixos e falar
direto, sempre em particular, com o
rezident,tudoissosugeriaqueestava
em Helsinque para alguma missã o
especial.Asroupaseramnovas:sem
dú vida tinham lhe dado um guardaroupa completo. Os rumores
aumentaram ainda mais quando se
soube que a recé m-chegada fora
alojada num apartamento fora da
á rea reservada a todos os
funcioná rios da embaixada. Marta já
viraessefilme.
N arezidentura, Dominika era
correta,reservada,faziaseutrabalho
com rapidez e e iciê ncia, alé m de
uma intensidade incomum. Em
campo ela estava sempre avaliando
pessoas e lugares, examinando
portas
e
calçadas,
usando
movimentos do dia a dia para
disfarçar olhadelas. Marta percebia
tudo isso, e quando estava com
Dominika a uma mesa qualquer
tomando um café , notava també m
que, quase inconscientemente, ela
usava sua beleza — os olhos, o
sorriso, o corpo — para seduzir os
interlocutores,domesmomodoque,
durante um papo informal, lançava
mã o de seu conhecimento das
té cnicasdeconversaçã oparaextrair
umainformaçãoououtra.
Marta nã o podia deixar de icar
encantada.Amoçatinhatudo:beleza,
inteligê ncia, habilidade té cnica. Sem
falar na incandescê ncia daqueles
olhosazuis.Nã ohaviadú vidadeque
elasabiaoqueestavafazendo,deque
amavaseupaı́s,massobasuperfı́cie
parecia haver algo borbulhando
secretamente como um lençol
freá tico.
Orgulho,
raiva,
desobediê ncia. E mais alguma outra
coisa, difı́cil de de inir. Um lado
secreto, certa inclinaçã o à rebeldia.
Eracomoseela lertassecomorisco
comacompulsã odeumvı́cio.Marta
se perguntava quanto tempo aquela
jovem tã o esperta e intuitiva levaria
para descobrir que o trabalho da
central nã o passava depokazukha,
algo feito apenas para constar, uma
simples encenaçã o. Volontov era um
exemplo tı́pico dos atores daquele
teatro, dos funcioná rios que haviam
povoado a KGB e o Kremlin nos
últimossetentaanos.
Acertaalturaelaspassaramase
encontrarapó sotrabalhoparabeber
umataçadevinhoemalgumbarlocal
e se deleitar com uma pecaminosa
fatia de torta de caviar comcréme
fraîche e muito queijo. Conversavam
sobre famı́lia, sobre Moscou, sobre
experiê ncias de vida. Dominika
preferia nã o mencionar sua
passagem pela Escola de Pardais.
Marta ria e a fazia rir, e no im da
noiteelassaı́amdebraçosdadospela
calçada.
Certanoite,apó selegantemente
despachar o alemã o asqueroso que
as abordara, Marta contou sua
histó riadevidaaDominika,faloude
suacarreiracomopardal.Orgulhavasedeterservidoopaı́senemsequer
pensava em toda a selvageria que
testemunhara na KGB. Nã o tinha a
menor vergonha de quem era,
tampouco do que izera. Ao ouvir
aquilo,
Dominika icou com os lá bios
trê mulos, olhou para a amiga e
começou a chorar em silê ncio. Foi
uma longa noite depois disso, mas
Martaagorasabiatudoarespeitode
Dominika. Sabia de tio Vanya, da
missã o contra Nate, da Escola de
Pardais,dofrancê sDelon,até mesmo
de Ustinov. As palavras saı́am da
boca da jovem em um turbilhã o
impossı́vel de conter, sem qualquer
intençã o de seduzir ou manipular.
DaliemdianteelaeMartapassariam
aser,simplesmente,boasamigas.
Osencontrossesucediamnoite
apó s noite, e Marta, do alto de sua
experiê ncia pessoal e pro issional,
ouvia tudo o que Dominika tinha a
dizer. Espantava-se que osvlastiteli,
oschefes,tivessemconseguidoquea
moça evoluı́sse tanto em tã o pouco
tempo. No entanto, por mais que
visse as qualidades e a força de
Dominika,suspeitavaqueoconvı́vio
com o descontraı́do americano, o
agente da CIA, estivesse lhe
provocando alguma reaçã o mais
profunda. A irmar isso seria sugerir
que ela nã o era capaz de operar de
maneira correta, entã o preferiu
guardarassuspeitasparasi.
— Sei lá — disse Dominika. —
Eleé meioarroganteefazpiadacom
tudo. Nã o gosta muito da Rú ssia, ou
pelo menos nã o dá o devido cré dito
ao nosso paı́s. Tio Vanya está
convencido de que ele é um agente
desesperado.
—
Parece
uma
pessoa
desagradá vel — comentou Marta. —
Masissosófacilitaascoisaspravocê,
nã o é ? Trabalhar contra ele, até
mesmo ir pra cama com ele pra
conseguiroquequer.
Ela acendeu um cigarro e olhou
para Dominika. Elas estavam na
terceirataçadevinho.
— Eu nã o diria “desagradá vel”.
Até queé umcaralegal.—Dominika
suspirou, depois acrescentou: —
Devocontarpro Volontov assim que
eleparecermeiodistraı́do,assimque
descon iarqueele está vulnerá vel. O
objetivo é pegá -lo com a boca na
botijacomoinformantedele.
Ovinhocomeçavaafazerefeito.
— E você o conhece bem o
bastante pra saber? — perguntou
Marta.Dominikaafastouumamecha
decabelodatestaedisse:
—Naverdadeeu...eujásei.
— Entã o foi lá e contou pro
coronelVolontov,nãocontou?
Marta já sabia o que estava
acontecendo.
— Nã o exatamente — retrucou
Dominika. — Falei que continuaria
observando.
—Nã ofalouquesuspeitavaque
o seu jovem americano estava
entrandoemação?
— Ele nã o é “meu jovem
americano” — respondeu Dominika,
deolhosfechados.
—Masvocê achaqueeleestá no
ponto de ser lagrado e, quando
Volontovperguntou,você nã ocontou
nada pra ele? E isso? — quis saber
Marta,inclinando-senadireçã odela.
—Abraosolhos.Olhepramim.
Dominikaobedeceuefalou:
—E,é isso.Nã oconteinada.—
Evoltouafecharosolhos.
Marta deu um gole no vinho e
constatoucomalgumdistanciamento
que Dominika nã o só cometera uma
traiçã o contra o Estado (dizer
“contraaDuma”seriaridı́culoà quela
altura), como izera dela, Marta, sua
cú mplice nessa traiçã o, ainda que
apenas na qualidade de ouvinte. Ela
apertouamãodeDominikaealertou:
—Vocêprecisatomarcuidado.
Martadedicaraumavidainteira
ao Estado; por anos ignorara os
excessos cometidos por ele e
contribuı́ra pessoalmente para
arruinar a vida de indivı́duos cujo
ú nico pecado fora sucumbir aos
prazeres da carne. Em seu ı́ntimo,
poré m, fazia tempo que ela cortara
todos os laços com aqueles animais
ilhos da puta. Podia muito bem
entender a situaçã o de Dominika.
Sabia que aqueles monstros
sugariam tudo o que aquela menina
tã o linda e inteligente tinha a
oferecer e depois a descartariam
como a um objeto. No entanto,
Dominikacorreriaumriscomortalse
dealgumamaneira,pormaisindireta
que fosse, sua atitude viesse a
frustrar os planos de Vladimir Putin.
As informaçõ es que ela tinha a
respeitodoamericanoeraminó cuas,
desdequeninguémasdescobrisse.
***
A rá pida visita de Marble a
Helsinquefoiumsucessoemmuitos
aspectos. Em primeiro lugar, foi
apresentado a Trunk, o ministro
canadense, e fez um progresso
signi icativo com ele; dali em diante
teria uma base mais só lida para
continuar no encalço da exuberante
igura. Em segundo lugar, trê s
madrugadas de encontros com Nate
noHotelGLOhaviamproduzidooito
relató rios de inteligê ncia altamente
graduados
(com
anotaçõ es
su icientes para outros quase
quarenta)sobreoperaçõ esdoSVRna
Europa e na Amé rica do Norte. Em
terceiro, Marble forneceu o nome de
um o icial da Diretoria de
Planejamento Estraté gico da Real
Polı́ciaMontadadoCanadá quevinha
se encontrando com uma imigrante
ilegal russa (que durante o dia
trabalhavacomostrippernoBareFax
de Ottawa). Por im, o agente
veterano repetiu de memó ria (em
geral nã o tinha acesso aos
cabogramasquevinhamdaChina)os
pontos mais importantes de trê s
relató rios extraordiná rios do SVR,
enviados de Pequim, detalhando as
rixasdepoderqueaindaaconteciam
dentro do Comitê Permanente do
Politburo dois anos apó s a remoçã o
de Bo Xilai, no inı́cio de 2012. As
informaçõ es privilegiadas que ele
tinha sobre o interesse, ou
“obsessã o”, do presidente Putin no
Partido Comunista Chinê s eram
bastantevaliosasparaosanalistas.
Tudo isso era fruto exclusivo
das iniciativas de inteligê ncia de
Marble.Oitemmaisexplosivoeraum
comentá rio que ele ouvira nos
corredores do SVR, segundo o qual
uma missã o vinha sendo conduzida
diretamente no quarto andar de
Yasenevo, uma “missã o de diretor”,
algum informante tã o importante
que os lı́deres do Serviço haviam
achado
melhor
operá -lo
pessoalmente.Algumgovernoestava
com um grande problema nas mã os,
uma enorme fonte de vazamento de
informaçõ es, e os agentes de
contrainteligê ncia
americanos
andavamcomapulgaatrá sdaorelha:
seria possı́vel que esse informante
estivesse em Washington? Essa
informaçã o palpitante por parte de
Marbleseriatratadaemseparadodas
outrasqueelefornecera.
Ningué m precisava dizer ao
velho espiã o como agir em relaçã o
à quilo. Ele mesmo se adiantou e
avisou o que pretendia fazer. Era
experiente o bastante para saber
apertar os botõ es certos só com a
pontinha do dedo, para se fazer de
morto à espera de alguma
movimentaçã o a seu redor.
Continuaria coletando informaçõ es
comadiscriçã odesempre.Enquanto
isso, as palavras “informante do
SVR”, “missã o de diretoria” e
“Yasenevo”seriamescritasinú meras
vezes nos quadros dos analistas de
contrainteligê ncia em Washington,
os quais esperariam o tempo que
fossenecessá rio,meses ou anos, até
conseguiremmaispeçasparaaquele
quebra-cabeça.
Naú ltimanoite,Marblecontoua
Nate que nos pró ximos seis meses
Anthony Trunk estaria presente
numa conferê ncia de economia em
RomaenaAssembleiaGeraldaONU,
mais dois pretextos para que o
informanterussopudessesairdeseu
paíssemlevantarsuspeitas.
Dessa vez o time em
Washington icara especialmente
satisfeito com as informaçõ es de
MarbleecomodesempenhodeNate.
Um bô nus foi depositado na conta
secreta do russo, e o americano foi
recompensado com um aumento
salariallíquidodeUS$153.
— Uau — disse Gable ao
informaraNatesobreoaumento.—
Cento e cinquenta e trê s pratas.
Vamos rezar pra que a porra da
in laçã o nã o coma isso em dois
meses. Ah, e você també m ganhou
seisvalespralavarseucarronolavajatodaesquina.
Ao im da rodada de encontros,
antesqueMarble voltasse a Moscou,
Nate trouxe à tona um assunto
delicado: a segurança do general.
Com absoluta tranquilidade, Marble
admitiu que, desde a ú ltima vez que
osdoisseviramnasruasgeladasde
Moscou,quepareciatersidosé culos
antes e na qual eles quase haviam
sido capturados, tivera inı́cio uma
sé riacaçaà sbruxasemYasenevo.O
primeiro vice-diretor Egorov, velho
companheiro de Marble, estava
convencidodequealgumfuncioná rio
de alta patente no SVR andava
espionandoparaaCIA.
—Emoutraspalavras...pramim
— disse Nate com uma risada, mas
visivelmentepreocupado.
— Olhe — retrucou Marble —,
estouacostumadoaorisco.Seicomo
funciona o SVR. Sei como funciona a
cabeçadaquelezhulik,daquelepateta
chamadoEgorov.Nã ohá motivopara
alarme.
Lembrou-se entã o dos catorze
anos que já completara como
informante da CIA, das noites que
passara em claro enquanto esperava
ouvir passos na escada, dos apertos
no peito quando era chamado de
volta a Moscou para alguma
“consulta”, do alı́vio que sentia ao
entrarnumasaladereuniã oedefato
se deparara com a reuniã o para a
qual fora convocado. Porque outros
antesdelejá haviamencontradouma
salavaziaeosubijca,oscapangasdo
SVR,esperandoatrásdaporta.
Marble
en im
conseguiu
tranquilizar seu jovem e intenso
operadoreelesrepassaramjuntosos
planosdecontingê nciaquejá haviam
concebido para o cená rio mais
extremo possı́vel no mundo da
espionagem: a ex iltraçã o, como era
chamada a operaçã o em que os
informantes com a cabeça a prê mio
eramretiradosdopaı́scomafamı́lia
ouaamante,fossenoporta-malasde
um carro, fosse numa arriscada
manobra com documentos falsos
numaeroportoqualquer.
Aocabodequarentaminutosde
conversa, Marble ergueu a mã o e
disse: — Por hoje chega, Nathaniel.
Vocêédetalhistademais.
Natecoroudevergonhaeelesse
despediram.
***
Marble voltou em toda a
segurançaparaMoscou,eNate icou
felizcomaenxurradadeelogiosque
obteve do QG, sobretudo com o
cabograma segundo o qual seus
relató rios haviam sido muito bem
recebidos “nas mais altas esferas”,
jargã o interno para a presidê ncia da
Repú blica e o Conselho Nacional de
Segurança.
Forsyth o cumprimentou com
tapinhasnoombroeGablelhetrouxe
umacerveja.
— Você recebeu esses elogios
todos — disse —, mas nã o tem
ningué m
pensando
no
seu
informante.Eobrigaçã osuanã otirá lodacabeça.Nãoseesqueçadisso.
Apesar do clima de festa, Nate
ainda se preocupava com seu
problema mais premente: Dominika.
Paraondeaquelecasocaminhava?O
quesigni icavaacon issã odequeela
trabalhava para orezident? Caso nã o
houvessealgumprogressoembreve,
as reclamaçõ es nã o tardariam a
chegardoQG.
— Foda-se o QG — decretou
Gable, e abriu mais uma cerveja. —
Procure esfriar a cabeça nas
pró ximassemanas,cara.Aproveitea
maré boa que está rolando pro seu
lado.Depoisagentevêoquefaz.
AquelaalturaNatejá conheciao
chefebemosuficiente.
— O que você quis dizer é :
“Levanta a bunda dessa cadeira e vá
praruaantesqueeuteexpulsedaqui
nabasedaporrada”,éounãoé?
— Exatamente — respondeu
Gable. — Vá já para aquela piscina
encontrarasuarussinha.Leve lores
praela.Digaqueestavamorrendode
saudades.Convide-aprajantar.
—Prafalaraverdade,Marty,eu
iqueimesmo com um pouquinho de
saudade da garota — retrucou Nate,
baixandoosolhosparaocarpete.
—Nã odiga—ironizouGable,e
saiudasala.
TORTA DE CAVIAR
Refogar cebolinhas e depois
batê-las no liquidificador com crème
fraîche e queijo Neufchâtel ralado.
Despejar a mistura sobre uma forma
de fundo removível e jogar ovos
cozidos e picados por cima. Espalhar
uma fina camada de caviar Ossetra ou
Sevruga e levar à geladeira.
Desenformar e servir com blinis ou
torradinhas.
CAPÍTULO 14
MARTA CONSPIRAVA COM
DOMINIKA nas pequenas coisas.
Ajudava-a a rechear os relató rios
diárioscomatividadesinventadasea
fabricar documentos de contato que
mostrassem certo progresso com o
americano,masquefossembanaiso
su iciente para nã o despertar o urso
dormente de Moscou. Dominika
informava
sobre
encontros
agradá veisporé minconclusivoscom
seu alvo, ora num museu, ora num
restaurante ou café , sempre fazendo
referê ncias veladas a uma apatia
quasepreguiçosaporpartedele.
—IssofazNateparecerhorrı́vel
— comentou ela certa vez. — E eu
també m. Vamos terminar nossos
dias como duas solteironas, eu e
você!
— Acha mesmo? — retrucou
Marta, acendendo um cigarro. —
Vamos ser aquelas duas mulheres
que vã o ao açougue pra comprar
linguiça e o açougueiro diz que está
sem troco, entã o dá a elas uma
linguiça extra. “O que a gente vai
fazer com uma terceira linguiça?”,
uma das moças cochicha pra outra.
“Nã o tem problema”, diz a segunda.
“Essaaíagentecome.”
Dominika
irrompeu
numa
gargalhada.
Volontov andava sempre por
perto,repassandotodaapressã oque
sofria de Moscou. Já notara a
proximidadeentreasduasmulheres,
a expardal de meia-idade e sua
coleguinha mais jovem. Nã o havia
dú vida de que Yelenova andava
fazendo a cabeça de Egorova. A
veterana icava cada vez mais mais
insubordinadaeindisciplinada.
Era um dia de temporal, uma
chuva forte que vinha da Estô nia e
desabava sobre a cidade. Dominika
estava fora da embaixada quando
Marta foi chamada ao gabinete de
Volontov. Sentou-se por iniciativa
pró pria, empertigou os ombros e
disse:
—Poisnão,coronel.
Volontovaencarouemsilê ncio.
Correu os olhos do rosto para as
pernas dela, e daı́ para o rosto mais
umavez.
Sem ao menos piscar, Marta
falou:
—Porquemechamouatéaqui?
— Tenho reparado na sua
amizaderecentecomocaboEgorova
— começou Volontov a inal. — Você
e ela tê m passado um bom tempo
juntas,aoqueparece.
— Algum problema, coronel? —
retrucou Marta, depois acendeu um
cigarro, ergueu a cabeça e soprou a
fumaçaparaoalto.
Volontov agora a itava como
umgarotinhocaipira.
— O que você tem falado pra
ela?
—Nãoseiseentendiapergunta,
coronel — respondeu Marta. — As
vezes saı́mos pra tomar um vinho e
conversamos sobre famı́lia, viagens,
restaurantes...
— O que mais? — quis saber
Volontov. — Falam de homens
também?Namorados?
As lâ mpadas luorescentes da
salare letiamobrilhodaslapelasde
seupaletóbúlgaro.
— Desculpe, coronel, mas nã o
vejo motivo pra essa pergunta de
naturezaestritamentepessoal.
—Sookinsyn!—rugiuVolontov,
esmurrando a mesa. — Nã o preciso
lhe dar motivo algum! Seja lá o que
você anda dizendo pra Egorova,
quero que pare! Esse seu cinismo,
essasuavisã odeturpadadascoisas...
Sua companhia nã o tem feito nada
bemaela.Aprodutividadedelacaiu.
Otrabalhotemsidonegligenciado.Os
relató rios nã o estã o satisfató rios.
Deixe a moça em paz, ou serei
obrigadoatomarprovidências.
Habituada aos ataques de raiva
dos altos o iciais sovié ticos, aos
quais era imune, Marta se inclinou
para a frente com toda a calma e
apagou seu cigarro no cinzeiro de
Volontov. Vendo que os olhos dele
haviambaixadoparaodecotedesua
blusa, plantou as mã os na mesa e se
inclinou ainda mais para que ele
tivesseumavisãomelhor.
— Coronel, eu preciso lhe dizer
umacoisa—falou.—Osenhoré um
homem repulsivo. E o senhor quem
devedeixarEgorovaempaz.Parede
constranger a menina com seus
modos asquerosos. Ela nã o fez nada
deerrado.
—Comquemvocê achaqueestá
falando, hã ? — berrou Volontov. —
Você nã opassadeumaputavelhade
guerra,blyadischa! Posso mandá -la
devoltapracasahojemesmo,botá -la
pra correr como a cadela sarnenta
que é ! Vai terminar seus dias
pilotando uma agê ncia de turismo
em
Magnitogorsk,
carimbando
permissõ es de viagem o dia todo,
depoisusandosuabocabanguelapra
chupar o pau dos jogadores de
hóqueidoMetallurganoiteinteira!
— Ah, claro, as ameaças de
sempre — retrucou Marta. Conhecia
pelo avesso aquele tipo de animal
covarde. — Mas... ameaça por
ameaça... que tal esta aqui? Posso
fazerdasuavidauminferno,coronel
Volontov. Posso criar tantos
problemas em Moscou que vai sero
senhor quem vai terminar osseus
dias de joelhos em Magnitogorsk.
VanyaEgorovnã ovaigostarnemum
pouco de saber que esta sua
rezidenturaé umasvlaka,umpoçode
incompetê ncia,queosenhornã otem
resultado algum pra mostrar. E ele
també m vai adorar saber das
punhetas que o senhor bate
pensandonasobrinhadele,sonhando
com o dia em que vai cair de boca
entreaspernasdela.Mudak!
Tratava-se
de
uma
insubordinaçã o sem precedentes.
Aquiloeratraiçã o. Volontov icou de
péeesperneou:
— Arrume suas coisas agora
mesmo!Você tematé amanhã à noite
pra sumir daqui. De trem, barco,
aviã o, nã o quero nem saber! Se
depoisdeamanhã você aindaestiver
aqui...
—Zhopa!Filhodaputa!
Marta deu as costas para
Volontov e seguiu na direçã o da
porta.
Ofegando de raiva, Volontov
abriuagavetaepegouumapequena
Makarov automá tica, a pistola que o
acompanhava desde o inı́cio da
carreira. Jamais a disparara a
trabalho, muito menos num
momentodefú ria.Agora,comamã o
trê mula, ele abriu o ferrolho para
alojarumabala.Aporta,Martaouviu
obarulhoevirouorosto,deparandosecomapistolaviradadiretocontra
ela.
— Nã o sou Dimitri Ustinov,
coronelVolontov.Você esuaraçanã o
podem simplesmente destruir tudo
aquiloquenãoconseguemcontrolar.
Ela sentia o coraçã o dar
cambalhotas no peito, sem saber ao
certo se o coronel teria coragem de
atirar.
Ustinov?
O
oligarca
assassinado? Esquartejado em sua
pró pria cobertura, baldes de sangue
numa suposta vingança da Má ia?
Volontov nã o fazia ideia do que
aquela cadela dizia, mas na sua
cabeça os circuitos sovié ticos da
dé cada de 1950 estavam prestes a
ferver.Seusinstintosoalertavamde
algo sob a superfı́cie daquele lago,
talvez algo muito importante. Ele
baixouapistola.Martaen imabriua
portaesaiu.Colegassejuntavamno
corredor depois de terem ouvido a
gritaria.
Sozinho em sua sala,
Volontov acendeu um cigarro e
procurou se acalmar. Dali a pouco
pegouotelefonedealtafrequê nciae
pediu à telefonista uma ligaçã o para
Moscou. Meia hora depois estava
falando com o primeiro vice-diretor
Egorov. Bastaram dois minutos para
que ele recebesse suas instruçõ es:
ignorar o que Yelenova dissera, nã o
contar uma palavra a ningué m, nã o
fazer absolutamente nada. Volontov
estava prestes a argumentar que
aquele tipo de insubordinaçã o
minava sua autoridade quando, em
meio à está tica da ligaçã o, Egorov
mandou que ele prestasse atençã o e
decretou:
—
Yest’
chelovek,
yest’
problema. Nyet cheloveka, nyet
problemy.
Volontov sentiu um frio na
espinha.Conheciamuitobemaquele
aforismo, um dos prediletos do
camarada Stalin: “Se existe uma
pessoa, existe um problema. Se nã o
existe uma pessoa, entã o nã o existe
nenhumproblema.”
***
Nate e Dominika conversavam
nosofá doapartamentodele.Asluzes
do porto entravam pela janela e o
apitogravedeumnavioressoavana
escuridãoparaalémdasilhasdabaía.
Umaequipedevarreduraexaminara
o apartamento de modo que ele
pudesse convidar Dominika para
jantar. Aquela altura nenhum dos
dois sabia qual deles estava em
vantagem operacional, como suas
iniciativas de desenvolvimento se
desenrolariam ou o que estava em
jogo na situaçã o. Só tinham certeza
de que queriam estar na companhia
um do outro. Dois abajures eram
responsá veis por uma iluminaçã o
suave na pequena sala de Nate. A
mú sica tocava baixinho, baladas de
BenyMoré.
Nate havia cozinhado:vitello
picatta, escalopinho de vitela com
molho de limã o e alcaparras.
Dominika esperara junto à mesa da
cozinhaenquantoele fritava os ilé s,
ininhos como hó stias, no ó leo
quente com manteiga, e depois os
reservava.Elaseaproximoudofogã o
quandoelederramouvinhocomsuco
de limã o para deglaçar a frigideira,
em seguida acrescentou duas fatias
de limã o, as alcaparras e alguns
cubinhos de manteiga fria. Só entã o
retornou os ilé s à panela para
reaquecê -los. Eles comeram no sofá
comospratossobreocolo.Dominika
terminou seu vinho e serviu-se de
maisumataça.
Eles haviam retomado os
encontros apó s o afastamento de
algumassemanasevinhamsevendo
com alguma regularidade desde
entã o.
Naquele
domingo
especialmentefriovisitaramoantigo
forte naval de Suomenlinna, e
durante o passeio reacenderam a
velhadiscussão.
— Você morou um ano em
Moscou — disse Dominika —, mas
nã o conhece os russos. Tem uma
visã o cartesiana das coisas. Nã o
aprendeunada.
Nate sorriu e ofereceu a mã o
para que ela passasse por cima de
umabalaustrada,partedosmurosda
fortaleza.Dominikaignorouogestoe
subiuporcontaprópria.
—Ouça—retrucouNate—,nã o
vejo nenhum problema com o
patriotismo.Você stê mmuitodoque
se orgulhar. Mas o mundo nã o está
povoado apenas de inimigos. Acho
que a Rú ssia devia se concentrar
mais em resolver os problemas do
própriopovo.
—Estamosindomuitobem,nã o
precisasepreocupar.
A discussã o prosseguiu mais
tarde no apartamento de Nate
enquantoeleslavavamalouçaapó so
jantar.
— O que quero dizer é que
fundamentalmente a Rú ssia nã o
mudou muito desde os velhos
tempos e nã o sabe aproveitar as
oportunidades maravilhosas que
estã oseabrindoparaopaı́s.Osmaus
há bitosdopassado...elesestã otodos
aídenovo.
—Eque“maushá bitos”seriam
esses?
—
Corrupçã o,
repressã o,
truculê ncia.
O
comportamento
sovié tico é como um vı́cio difı́cil de
largar,umvı́cioqueaospoucosestá
matandoademocraciarussa.
— Você parece ter prazer em
dizer isso — observou Dominika. —
Suponho que nã o exista nada
parecidonosEstadosUnidos.
— Claro que temos nossos
pró prios problemas, mas nã o
mandamos os dissidentes pra
apodrecer
na
cadeia,
nem
assassinamos nossos adversá rios
polı́ticos. — Nate viu a expressã o
dela mudar. — Há aqueles que
prezam a vida humana, que
acreditam que todas as pessoas tê m
direitos, nã o importa de onde
venham. E há aqueles que
aparentemente nã o ligam a mı́nima
pra nada disso, que nã o tê m
nenhumaconsciê ncia,assimcomoas
pessoas eram na ex-Uniã o Sovié tica,
na antiga KGB. Algumas dessas
pessoasaindaestãoporaí.
Dominika mal podia acreditar
no rumo da conversa deles. Em
primeirolugar,porqueerainsultante
estar ali naquela cozinha recebendo
um sermã o do americano. Em
segundo porque ela sabia que boa
partedoqueeledisseraeraverdade,
masnemsequercogitavadarobraço
atorcer.
— Quer dizer agora que você é
especialistaemKGB—comentouela,
pousando um prato e pegando o
outroparasecar.
— Cheguei a conhecer um ou
doisagentesdelá—observouNate.
Sem interromper o que estava
fazendo,Dominikaretrucou:
—Você conheciagentedaKGB?
Impossı́vel. Quem? — quis saber, e
pensou:O que você vai fazer se ele
responder?
— Ningué m que você conheça
— falou Nate. — Mas, em
comparaçã o,é bemmelhorconhecer
as pessoas do SVR. Sã o bem mais
agradáveis.
Omesmosorriso,omesmohalo
violeta.
Dominika nã o respondeu, mas
icouindignada.Conferiuashorasno
reló gio e disse que já estava icando
tarde.Nateajudou-aavestirocasaco
e soltou os cabelos que icaram
presosnagola.Elasentiuoroçardos
dedosdelenanuca.
—Muitoobrigadapelojantar—
disse.
Sua fú ria ainda estava sob
controle, mas ameaçava escapar a
qualquermomento.
— Posso acompanhar você até
emcasa?—falouNate.
—Nã oprecisa—respondeuela,
efoinadireçãodaporta.
Virou-se com a mã o estendida
para que Nate a apertasse, mas ele
estavalogoatrá sdelaejá pousavaa
mã o em seu ombro para lhe dar um
beijinhorápidonaboca.
—Boanoite—disseDominika,
eseguiupelocorredorcomoslá bios
formigando.
PICATTA DE VITELA DO NATE
Bater pequenos medalhões de
vitela até obter filés bem finos.
Temperá-los e dourá-los rapidamente
na manteiga. Reservar e cobrir.
Deglaçar a panela com vinho branco
seco e suco de limão, depois ferver até
reduzir. Baixar o fogo, adicionar fa as
finas de limão siciliano, alcaparras e
pequenos cubos de manteiga gelada.
Cozinhar em fogo brando até
engrossar o molho (não deixe ferver de
novo). Voltar os filés à panela para
aquecê-los
CAPÍTULO 15
A PRIMAVERA CHEGAVA A
HELSINQUEeanevejá deralugarà s
chuvasqueagoracaı́amnascalçadas,
fustigavamasjanelasepingavamdas
á rvoressemfolhas.Passavademeianoite,eNateaindarolavadeumlado
para outro na cama. A doze
quarteirõ es dali, també m acordada,
Dominika ouvia a chuva cair
enquanto relembrava o beijo
roubado por Nate, aliviada por ter
salvadoapeledeleedecididaafazê lonovamente.
Graças a Marta. O apoio da
amigaforafundamentalparaqueela
tomasse sua decisã o. Alé m disso, a
visã o singular que Marta tinha da
vida a ajudara a formar as pró prias
ideias, sobretudo as que diziam
respeito à possibilidade de ocultar
informaçõ es do SVR. Marta nã o
acreditava em devoçã o cega. Com
frequê ncia a aconselhava a ser iel a
si mesma antes de a qualquer outra
coisa; caso sobrasse espaço, que
fosse ielà Rú ssiatambé m.Dominika
rolounacama.
Cinco quarteirõ es a leste, Marta
Yelenova abriu a porta de seu
apartamento na á rea residencial
reservada a funcioná rios da
embaixada russa. O corredor tinha
um odor forte de carne e repolho
cozidos,eissoalembroudospré dios
residenciais de Moscou. Espanou a
chuva do casaco e o pendurou num
ganchopertodaporta.
Oapartamentoerapequeno:um
quarto, uma cozinha minú scula, um
banheiro menor ainda. Diversas
geraçõ es de funcioná rios já haviam
passado por ali. As paredes eram
encardidas; os mó veis, arranhados e
bambos.Martatropeçouaodescalçar
ossapatosmolhadoseriu.Estavaum
pouco tonta apó s uma longa noite
sozinha num pequeno café . A certa
altura, pedira umpytt i panna, o
famoso picadinho escandinavo de
carne, batata e cebola. Voltara para
casa a pé , alheia à chuva que a
ensopava.Jáfaziaalgumtempodesde
o confronto com Volontov, e a
esperada convocaçã o para Moscou,
as reprimendas, a demissã o do
Serviço, nada disso acontecera. O
rezident a ignorava solenemente,
mas, fora isso, tudo permanecia
comoantes.
Marta percebera que nos
ú ltimos dias Dominika vinha
tentando agendar mais encontros
com o americano Nathaniel, em
primeiro lugar porque isso deixava
Volontov feliz, mas també m porque
elaqueriaestaraoladodorapaz.
—Volontovestavacalmo,quase
solı́cito — contara a jovem certa
noiteduranteoencontroqueasduas
costumavam ter depois do trabalho
para beber uma taça de vinho. —
Pediu
que
eu
continuasse
trabalhando,quetentasseaceleraras
coisasnamedidadopossível.
— Nã o con io nem um pouco
naquele peçonhento — comentara
Marta. — Meu conselho, Domi, é o
seguinte:continuefalandoqueainda
está nopé doamericano,queapesar
do progresso lento você permanece
otimista. Isso vai deixar Volontov
tranquilo.Todomundosó quersaber
desucessosprarelataràcentral.
Mais tarde naquela noite,
voltando para casa já um tanto
alterada pelo vinho, ela dissera à
amiga que, se tivessem algum juı́zo,
ambas já teriam desertado muito
tempoantes.Issoeraalgoquesoava
escandaloso aos ouvidos de
Dominika.
Martafoiparaoquarto.Desabou
sentada na cama, tirou as roupas
molhadas e as largou numa pilha no
chã o. Em seguida vestiu a camisa
curta e esvoaçante de um pijama de
seda. Era uma peça indiana begeclara, bordada com ios verdes e
dourados e com nó s no mesmo tom
de verde que faziam as vezes de
botõ es. Presente de um general do
GRU,oserviçomilitardeinteligê ncia,
que havia sido despachado para a
embaixada sovié tica em Nova Dé li.
Ele e Marta se conheceram durante
uma operaçã o de arapuca sexual
contraoministrodeDefesaindianoe
tiveram um tó rrido affair de oito
semanas,interrompidoporiniciativa
dele. Ter a rainha dos pardais como
uma diversã o em Moscou era uma
coisa, ele dissera, mas casar com
“algué m como você ” era outra bem
diferente.
Alguém como eu, pensou Marta,
olhando-se no espelho. Ela abriu a
camisa de seda e examinou o corpo
nu. Cinquenta e tantos anos e ela
ainda estava em forma. Os quadris
estavammaislargosehaviaalgumas
ruguinhas nos olhos, mas os seios
ainda nã o tinham despencado por
completo. Ao se virar de lado,
constatou que as ná degas ainda
tinham algo do volume e das curvas
que em 1984 haviam sido
responsá veis, em grande parte, por
fazer com que um jovem agente
francê sesquecessesuasobrigaçõ ese
passassecomelaosquatrodomingos
de um mê s num quarto de hotel em
Leningrado. Vez ou outra ela se
lembrava dele, sem nenhum motivo
especial.
Descalça, Marta foi beber um
copo d’á gua na cozinha. Precisava
clarearacabeçaantesdedormir.Ao
voltar para o quarto, no entanto, foi
detida por uma chave de braço em
torno do pescoço. Nã o tinha ouvido
nada nem ningué m. O homem
apertava sua garganta, e ela tentou
afastá -lousandoasmã os.Oagressor
nã o parecia ser muito grande. Na
verdade, dava a impressã o de ser
magro. Respirava com regularidade:
nã o sentia medo. Tampouco tentava
estrangulá -la, apenas imobilizá -la.
Marta cogitou que talvez fosse um
tarado qualquer, uma tentativa de
estupro. Preparou-se para alcançar
os testı́culos do ilho da puta e
esmagá-losentreosdedos.
Só quandofoiempurradaparaa
frente do espelho ela viu que nã o se
tratavadeumrapazote inlandê s,um
entregador de pizza com a cueca
melada. Sentiu o cheiro de amô nia e
suor. Em seguida, ouviu uma voz
rascante que mais parecia um
besouro se arrastando sobre uma
folha de papel. Apenas uma palavra
emrusso:
—Molchat.—“Silêncio.”
Num segundo de terror, ela
soube:erameles.
As suas costas, uma criatura a
encarava pelo espelho com o ú nico
olho que tinha; o outro, um globo
esbranquiçado
parecido
com
má rmore, itava o nada. Na
penumbra do quarto Marta nã o
conseguia ver o corpo dele, apenas
aquele braço que parecia ter vida
pró pria e o rosto esburacado de
cicatrizes pairando acima do ombro
dela.
—Boanoite,camaradaYelenova
— disse o caolho. — Ou será que
posso chamá -la de Marta? Ou quem
sabede...“meupardalzinho”?
Marta tinha a camisa do pijama
ligeiramente aberta. Os bordados
dourados vibravam no mesmo
compassodostremoresdocorpoea
barra mal cobria o triâ ngulo dos
pelos pubianos. O homem deu um
solavancocomobraçoparacima,por
pouco nã o tirando os pé s dela do
chão.
— Por onde você tem andado,
hein,meupardalzinho?—sussurrou,
depois a empurrou para mais perto
do espelho. Marta viu nos pró prios
olhosoterrorquesentia.—Você vai
pracamacomigo,nã ovai?Puxa,vim
detãolongesópratever...
Nesseinstanteelebrandiuafaca
quetrazianaoutramã o,umalâ mina
curva de pouco mais de 50
centı́metros. Com a ponta do objeto
ele foi afastando a camisa de Marta
até deixar à mostra o seio dela, que
arfavademedo.Emseguida,comum
sorriso estampado no rosto, ele
aninhou oqueixo no ombro dela e
apertouachavedebraço.
A visã o de Marta já começava a
seturvar.Emsuamenteelaouviaum
ruı́do que lembrava o correr das
á guas de um rio. Mesmo assim,
escutouocapetadizer:
—Pokazatgderakizimuyut.
Marta conhecia a expressã o, a
ameaça mortal que as palavras
escondiam:Vou lhe mostrar onde os
lagostins passam o inverno. O ruı́do
em sua cabeça icou mais alto e ela
desmaiou. Quando en im recobrou a
consciê ncia, estava deitada em sua
cama estreita, com uma ita adesiva
tapando-lhe a boca, as mã os
amarradas à s costas. Na mesa de
cabeceira,oabajur de cú pula porosa
e rosada irradiava uma luz suave
sobreascobertas.Aspernasestavam
amarradas també m. Ela tentou se
desvencilhar, mas as cordas nã o
cederamnemummilímetrosequer.
Ao ouvir um barulho, ergueu a
cabeça e por pouco nã o voltou a
desmaiarcomoqueviu.Umacenade
meter medo em qualquer um. O
homemvestiraacamisaindianadela
e agora dançava pelo quarto,
rodopiando de um lado para outro
comofacã oerguidoacimadacabeça.
Martacomeçouachorarbaixinho.
Sergei Matorin pensava estar a
4.500quilô metrosdali,nointeriordo
bunkerqueseugrupoalfaconstruı́ra
com sacos de areia no vale de
Panjshir. Em vez da luz rosada do
abajur de Marta ele via a iluminaçã o
esverdeada do lampiã o a gá s que
sibilava num canto qualquer. No
lugardocorpoamarradodeMartaele
visualizava o corpo da mulher do
chefe do povoado, capturada como
refé m durante o ataque daquela
madrugada, uma puniçã o merecida
pelo acolhimento de insurgentes. A
chuva inlandesa que açoitava a
janeladoquartoeraoruidosoVento
das Cem Noites que soprava em
nuvens de poeira e sacudia a
portinha de metal corrugado do
bunker.Khyber,seufacã o,estavaem
casanovamente.
A mulher afegã morrera em
algum momento no inı́cio da noite,
talvez de pavor, talvez pela
manipulaçã oabusiva,talvezsufocada
pelo cinto de muniçã o que a cingia
pelopescoço,grampeadoà paredede
compensado. Recostada a essa
parede,elaprojetavaoqueixoparaa
frentecomoumgestoderebeldia,os
olhosvidradosre letindoaluzverde
do lampiã o. Estava ali para lhe fazer
companhia. Sentado no chã o, ele
balançava o corpo ao ritmo da
mú sica afegã que vinha do pequeno
gravadoraseulado.
As pilhas do aparelho estavam
fracas, e os zumbidos metá licos da
mú sica icavam ora mais lentos, ora
maisrápidos.
Martasedebatianatentativade
soltar um dos braços ou uma das
pernas para depois se defender.
Percebendo a movimentaçã o dela,
Matorinfoiparaacamaeengatinhou
até se postar sobre o corpo dela, a
camisadeseda pendendo do tronco.
Martaaindatentavasedesvencilhar;
os mú sculos do pescoço pulsavam,
tamanho era o esforço que fazia.
Matorin baixou a cabeça a poucos
centı́metros do rosto dela e icou
assim por um tempo, encarando-a,
ouvindo-aofegar.Emseguidaretirou
a itaadesivaqueacalavaeteveum
prazer especial ao ouvi-la sussurrar,
chamandoporDeus:
—Bohze.
Sem ao menos desviar o olhar,
elecravouseufacã opoucoabaixodo
diafragma dela e num gesto brusco
foi rasgando peito, coraçã o e
garganta. Marta arqueou as costas
em convulsã o. A boca aberta nã o
emitiasomalgum.Ocorposedebatia
contraascordaseMatorincontinuou
em cima dela enquanto observava
sua respiraçã o icar cada vez mais
ofegante,osolhosiremgradualmente
perdendo o brilho até sumirem por
detrá s das pá lpebras. Fiapos de
sangueescorriamdonarizedocanto
da boca. Marta levou trê s minutos
para morrer. Nã o ouviu quando
Matorinsussurrou:
— Bohze? Nã o, hoje nã o tem
nenhumDeusporaqui.
***
Dominika chegou à rezidentura
namanhã seguinte,procurouMartae
viu apenas sua mesa vazia.
Provavelmente icou bebendo a noite
inteira,pensou.
No meio da manhã , ela ainda
nã o chegara. Volontov colocou a
cabeça para fora do gabinete e
berrou:
— Algué m viu Yelenova hoje?
Poracasoelaligoupraavisarquenã o
vem?Ninguémsabiadenada.
— Cabo Egorova, ligue agora
mesmoproapartamentodela.Vejase
descobreondeelaestá.
Dominika telefonou diversas
vezes, mas ningué m atendeu.
Volontov chamou o o icial de
segurança e ordenou que ele fosse
pessoalmente à casa dela. Se Marta
nã o atendesse, ele deveria entrar
com a chave sobressalente que eles
mantinham na embaixada. O o icial
voltou dali a uma hora informando
queoapartamentoestavavazio,mas
parecia normal. Roupas no armá rio,
louçanapia,camaarrumada.
— Redija um cabograma
bastante sucinto para a central —
disse Volontov ao homem da
segurança,queolhavaparaelecomo
umRottweillerà esperadecomando.
— Informe que a assistente
administrativa Marta Yelenova nã o
apareceupratrabalhar,nã otelefonou
dizendoporquê ,equeningué msabe
ondeelaestá.Expliquequeestamosà
procura dela e que vamos solicitar
uma busca junto à Polı́cia Federal
inlandesa. Depois, ligue pro seu
contato na polı́cia pra falar que a
embaixada
exige
providê ncias
imediatas,bemcomoamaisabsoluta
discrição.Agoravá.
Volontov
convocou
seu
consultor de contrainteligê ncia e
conversoucomeleaportasfechadas.
— Estamos com um problema
— falou. — Marta Yelenova nã o
apareceu pra trabalhar. — Ele
conferiu as horas no reló gio de
parede que pertencia ao patrimô nio
do SVR. — Já faz quase cinco horas
quedeviaterchegado.
SeuhomemnaLinhaKReraum
ex-diretordaGuardadeFronteirada
KGB, um burro de carga sem
nenhumaimaginaçã o.Eleolhoupara
o pró prio reló gio como se quisesse
con irmaraestimativadetempoque
Volontovacabaradedar.
—ProcureoSupoemarqueuma
hora pra falar com o Sundqvist. —
Supoeraoserviçosecreto inlandê s.
— Diga que Yelenova sumiu e que
suspeitamos de sequestro. Peça que
veri iquem todos os terminais
aéreos,ferroviáriosehidroviários.
— Sequestro? — perguntou o
homem da contrainteligê ncia. —
QuemiriasequestrarYelenova?
— Nã o vamos falar pro serviço
secreto inlandê squeachamosquea
mulher desertou, seu imbecil. Só
queremosquefaçamabusca.Elesjá
tê m a foto do visto dela. Deixe claro
queadiscriçã oé fundamental.Evocê,
bicocalado.
Seishorassepassaramsemque
a polı́cia izesse qualquer progresso,
mas os o iciais do serviço secreto
detectaram a foto de uma mulher
vagamenteparecidacomYelenovana
estaçã o de controle de Haaparanta,
no golfo de Bó tnia, fronteira com a
Sué cia.Amulher usava uma echarpe
e
ó culos escuros que escondiam
boa parte do rosto, mas o nariz e o
queixo eram condizentes. Segundo
haviam informado, ela passara pelo
controle com um passaporte
inlandê s sob o nome de Rita Viren,
que agora estava sendo rastreado. A
mulher estava na companhia de um
homem nã o identi icado de ó culos
escuroseboné.
—Issocon irmatudo—disseo
homem da contrainteligê ncia. —
Foram os americanos. Ela debandou
proladodaCIA.
— Imbecil. Como foi que você
chegou a essa conclusã o? —
perguntouVolontov.
—Bastaolharproboné ,coronel
— retrucou o outro, apontando para
umadasfotosenviadasporfaxpelos
inlandeses. — Está escrito Nova
York. Volontov ordenou que ele
saísse.
Os boatos corriam à solta.
Assassinato?Sequestro?Eahipó tese
que ningué m ousava dizer em voz
alta: deserçã o? Todos sabiam que
MartaeVolontovnã osedavambem,
quehaviamtidoumasé riadiscussã o
algumas semanas antes. Mas... fugir?
Dominika estava perplexa. Marta
jamaisdesertaria,e,aindaquefizesse
isso, nunca iria embora sem se
despedir. Estava apenasbrincando
quando sugerira que ambas
desertassem. Nã o. Algo muito grave
havia acontecido. De repente
Dominika icougelada.Seriapossı́vel
que de algum modoeles soubessem
queelaandavafalsi icandorelató rios
sobre o caso de Nate, que estava
protegendo o americano? Será que
seu sumiço tinha sido uma
advertê ncia? Nã o. Devia haver uma
explicaçã o mais plausı́vel. Marta
devia ter escapulido para uma
semaninha na Lapô nia com seu
instrutor de ioga. Qualquer coisa
nessesentido.Noentanto...Dominika
ainda nã o tinha se convencido por
completo.
AbuscaporYelenovacontinuou
por mais alguns dias sem resultado.
Volontov arrancava os pró prios
cabelos, receando que o sumiço de
uma subordinada pudesse macular
sua icha na central — o que era
ridı́culo, considerando que má culas
eram o que nã o faltava em sua
trajetó riadetrintaanos:negligê ncia,
desatençã o,
carreirismo...
A
embaixada
formalizou
uma
reclamaçã o junto ao Ministé rio de
Relaçõ es Exteriores e ao Ministé rio
do Interior, informando o sequestro
de uma de suas funcioná rias e
lembrando, para constrangimento
geral, que a segurança dos corpos
diplomá ticos era de inteira
responsabilidade
do
governo
inlandê s. Um investigador especial
chegou da Diretoria K de Moscou
para interrogar os funcioná rios da
embaixada e orezident, bem como
para interpelar os investigadores
locais. Partiu ao im de quatro dias,
concluindo que Marta Yelenova
desaparecera.
Dominika
descon iava
da
verdade enquanto chorava pela
amiga, deitada de bruços em sua
cama. Marta fora uma amiga de
verdade, a irmã mais velha que ela
nunca tivera, e era monstruoso,
inconcebı́vel, queeles a tivessem
matado. Por que diabo teriam feito
algo assim? Enquanto tentava
organizarospensamentos,elasentiu
um frio na espinha ao lembrar que
contara sobre Ustinov para Marta.
Seria possı́vel queeles soubessem
disso? Será que Marta havia
comentado com algué m? Teria um
descuido dela, Dominika, resultado
no desaparecimento de uma colega,
de uma o icial do serviço secreto?
Será que tal absurdo poderia
acontecer na pacı́ ica Helsinque em
pleno sé culo XXI, num mundo
supostamente civilizado? Dominika
fechou os olhos e sentiu a cama
rodar.Lá estavaelamaisumavezno
ninho de amor de Ustinov, na cama
girató ria ensanguentada. Pensando
bem, ela se lembrava de ter visto
medo no rosto de Volontov, no
laranjadohalodele.
Ela se levantou, foi até a janela,
ergueuosolhosparaocé unoturnoe
riudesimesma.Umao icialtreinada
do serviço de inteligê ncia. Uma
operadoradeverdade.Umasedutora
implacá vel. Eles a haviam usado,
ainda estavam usando, como uma
peça de xadrez, um mero joguete.
Fosselá quemfosseoinformantede
Nate, ela agora entendia melhor os
motivosdele,oó dioquesemdú vida
alimentavasuasações.
Agora Dominika estava mais
irme do que nunca em sua decisã o
denã odelatarNate.Eracomoseuma
corrente de ar frio a tivesse
atravessadodacabeçaaospé s.Até o
momento seu jogo havia sido
estritamente passivo, mas isso teria
de mudar. Vendo o rosto de Marta
re letidonavidraça,elacogitoucomo
poderia agir para fazê -lospagar por
todososseusatos,paradestruirtoda
aquela corja de aproveitadores.
Volontov,Vanya,todoseles.
As lá grimas rolavam por seu
rosto.ElachoravaporMarta,pelopai,
talvez por si mesma també m.
Chorava pela Rú ssia, mas sabia que
nã o era a mesma cré dula de antes.
Algo se quebrara em sua alma. De
repente ela deu as costas para a
janela e num gesto de raiva, com os
olhosfechadoseosdentescerrados,
desferiu um golpe contra o vaso de
cerâ mica da mesinha lateral,
fazendo-o se espatifar no chã o. Fora
Marta quem lhe dera o objeto de
presente durante um de seus
passeiosnafeirinhadedomingo.
Enquanto isso, narezidentura,
Volontov se remoı́a com a
expectativa de algum tipo de
reprimenda o icial. No entanto, em
vez de um puxã o de orelha, ele
recebeu uma simpá tica ligaçã o em
seu telefone de alta frequê ncia: era
VanyaEgorovdizendoqueavidanas
trincheiras era assim mesmo, cheia
de imprevistos e riscos, sempre
perigosa. Outras pessoas já haviam
desertado antes, e algumas ainda
desertariam no futuro. Pessoas
deplorá veis, claro. Por maior que
fosseavigilâ nciasobreelas,à svezes
nã o havia o que fazer. Por im,
orientou-o a se concentrar na
segurança das operaçõ es e,
sobretudo,
naquela
“missã o
especial”, a de sua sobrinha com o
jovemamericano.
— E claro, general — disse
Volontov, aliviado. — Creio que
estamos fazendo muitos progressos
nessafrente.
Chush’ sobach’ya. Progressos
porra nenhuma, pensou Egorov, e
desligou.SabiaqueDominikacontara
pelo menos parte da histó ria de
Ustinov à tal Marta Yelenova, uma
falta grave, mas para a qual ele teria
de fazer vista grossa, ao menos por
enquanto.Naverdade,foraumgolpe
desortequeYelenovativessesoltado
os cachorros para cima do
apalermado Volontov e que ele
tivesse tido o juı́zo de telefonar.
Depois disso, bastara despachar
Matorin e articular umakonspiritsia
nã omuitocomplexaparalimpartoda
aquela bagunça. Por Deus, se o
presidente icasse sabendo daquilo...
Eramelhornempensar.
Apó saSegundaGuerraMundial,
na fronteira da Finlâ ndia com a
Rú ssia, 3 quilô metros a oeste da
cidadezinha russa de Vyartsilya, os
sovié ticos haviam estabelecido uma
rota de in iltraçã o atravé s de um
inó spito trecho de muitas colinas e
bosques de pinheiros, levando à s
terras cultivadas do outro lado das
torres e cercas de arame farpado. O
lado inlandê s era invariavelmente
malpatrulhado.Pordé cadas,guardas
da KGB vinham sendo designados
paratrabalharnospostosdecontrole
locais a im de ajudar os agentes do
serviço a atravessar a fronteira sem
maiores problemas. Quanto mais
mudavam as té cnicas, mais elas
permaneciam as mesmas: em 1953,
rotas atravé s dos campos minados
eram demarcadas por estacas
incadasnanevecomtraposdepano
amarrados na ponta. Desde 2010 o
caminho
de
Vyartsilya
era
demarcado com torres de plá stico
equipadascomluzesestroboscópicas
de infravermelho, visı́veis apenas
comóculosdevisãonoturna.
Uma semana antes, Matorin se
in iltrara na Finlâ ndia por essa
mesma rota. Fora recebido por um
agente de apoio da Diretoria S na
Rota 70 e seguira com ele de carro
até aRotaRural6,naqualpercorreu
400 quilô metros até alcançar a E75,
que o levara até a cidade. O facı́nora
o icial do SVR fora direto ao
apartamento de Yelenova, a
assassinara à meia-noite e colocara
seu corpo num saco mortuá rio de
borracha do exé rcito russo. Depois,
limpara o apartamento e se
comunicara com o agente de apoio,
que naquela mesma madrugada o
levaradevolta,juntocomocorpode
Marta, até o escoadouro de
Vyartsilya. Em seguida, o agente
voltara para Helsinque e na outra
manhã ,
usando
documentos
inlandeses, ele e a esposa,
ligeiramente disfarçada, saı́ram do
paı́s em Haarparanta, para supostas
fé rias de uma semana na Sué cia. Os
dois jamais voltariam à Finlâ ndia,
complicando
ainda
mais
a
investigaçã odocasoMartaYelenova.
A operaçã o inteira nã o consumira
maisquequarentahoras.
O sol nascia entre os pinheiros
de Vyartsilya, projetando longas e
delicadas sombras sobre a neve que
cobria as colinas. Empoleirados na
torredeobservaçã oB30,guardasdo
Serviço de Segurança Federal
vigiavam os bosques munidos de
binó culos.Quandoosoljá estavaalto
no cé u, um deles en im divisou o
vultomodestodeumhomemsaindo
de entre as á rvores e seguindo
pacientemente contra o vento,
vestindo um macacã o com capuz e
calçando raquetes de neve. Ele
puxavaumtrenó sobreoqualsevia
umvolumearredondado,cobertopor
uma capa de ná ilon branco. Marta
Yelenova en im voltara para sua
Rodina.
PYTT I PANNA — A ÚLTIMA
REFEIÇÃO DE MARTA
Na
manteiga
bem
quente,
refogar separadamente cubinhos de
carne, batatas e cebolas. Juntar os
ingredientes na mesma frigideira,
acrescentar um pouco mais de
manteiga e temperar. Abrir um furo no
meio da mistura e quebrar um ovo cru
dentro. Mexer tudo antes de servir.
CAPÍTULO 16
NATE JANTAVA COM GABLE
NUM restaurante indiano em Kallio,
umlugarchamadoIndiaPrankkari.O
salã o estava praticamente vazio e
elesocupavamumamesanosfundos,
junto à s janelas. Gable insistira em
p e d i rrogan josh, um cozido de
cordeiro oleoso demais, apimentado
demaiseperfumadodemais,queeles
agora consumiam com nacos de pã o
de leite, um acompanhamento de
tomatesegengibreevá riascervejas.
Gable comparou sua primeira
colherada aorogan josh que comera
junto a uma fogueira no campo de
pouso de Dhahran, sé culos antes, ao
lado do monomotor Pilatus com o
qual ele in iltrara quatros tibetanos
naChina.
—Essesmalditosescandinavos
nã o sabem fazer comida indiana —
reclamou ele, mastigando. — Só
querem saber de rena, de creme de
amoras silvestres, de batata cozida.
Se o chef ameaça colocar um
pouquinhodesalsa,só faltamterum
ataquedocoração.
Como sempre, ele devorava a
comida a um ritmo impressionante,
comoummonstro.
— Eram quatro nepaleses
baixinhos, fortes como touros.
Treinei-osduranteummê s.Foiuma
operaçã o relâ mpago, só pra plantar
um
relé ,
um
interruptor
eletromagné tico, na principal linha
de comunicaçã o do Exé rcito de
Libertaçã o Popular, que corria ao
longo da fronteira, literalmente à
sombra do Everest e do
Kanchenchunga. O cu do mundo.
Deixei os quatro de aviã o do outro
lado das montanhas, e depois eles
deveriam ter voltado a pé , mas...
nuncaapareceram.Omaisprová velé
que tenham sido capturados pela
patrulhadaTelecomchinesa.
Ele se calou por um instante,
depois acenou para o garçom,
pedindo mais uma porçã o de
tomates.
Em seguida eles conversaram
sobre Dominika, pensando em
maneirasdefazerocasoDivaevoluir.
Nate nã o sabia muito bem o que
pensardarussa,tampoucocomoagir
paraavançarnorelacionamentocom
ela. Dominika nã o amolecia, e tudo
indicavaqueeleestavaperdendoseu
precioso tempo. Gable parou de
mastigar e o encarou assim que ele
disse que aprendera a gostar da
moça.
— Ela está sempre disponı́vel
pra sair, a gente discute alguns
assuntos, mas nã o me dá muito
espaço—comentouNate.
— Já lhe ocorreu que ela esteja
manipulandovocê ,enã oocontrá rio?
— sugeriu Gable, voltando a
mastigar.
— Nã o é impossı́vel. Mas até
agoraelanã ojogounenhumaiscapra
tentar me recrutar. Nenhuma
promessa
de
dinheiro,
ou
oportunidade de carreira, nenhuma
merdaassim.
—Poisé ,mas...esedeumahora
pra outra ela aparecer nuazinha em
pelodebaixodeumacapadechuva?
Você vai morder a isca ou nã o vai?
NateolhouparaGable,irritado.
— Ela nunca recorreria a esse
tipo de abordagem. Sei lá , é só um
palpite.
— Você é que acha. Bem, de
qualquer modo, parece que você s
estã o num beco sem saı́da. Sugiro
quefaçaalgumacoisapraagitaressa
histó ria. De repente dar uma
sacudida
nessa
moça,
uma
desestabilizada.
Gable bebeu o resto de sua
cervejaepediumaisduas.
—Elanã ovaicairnessetipode
tá tica-padrã o,Marty—a irmouNate.
— Tenho tentado fazê -la falar da
Rú ssia, dos problemas do paı́s, mas
sem forçar nenhuma barra, apenas
trazendo o assunto à tona. Percebo
algumacoisanoolhardela,masainda
nãoseidireitooqueé.
—Vocêprecisatentaroutrotipo
de atrativo. A vida boa no Ocidente.
Artigosdeluxo.Contasbancárias.
—Nã oé apraiadela—retrucou
Nate. — Dominika é outro tipo de
pessoa. E idealista, patriota etc. Mas
sem aquele ranço sovié tico. Cresceu
com balé , mú sica, livros, lı́nguas
estrangeiras.
—Você sjá conversaramsobreo
Kremlin?Sobreessamerdatodaque
rolapordebaixodospanos?
—Claroquejá .Maselaé dotipo
ufanista. Sempre vê as coisas pelo
prismadaRodina.
—Rodinha?Queporraéessa?
—Rodina.Apá tria mã e e todos
osmitosquegiramemtornodela.A
terra,oshinos,acaçadaaosnazistas
nasestepes...
— Ah, sei. Puxa, algumas
daquelas russinhas do Exé rcito
Vermelhoaté queerambemgostosas
— comentou Gable, olhando para o
teto. — Aquelas tú nicas, aquelas
botas,elasatépareciam...
— E essa a sua ideia de
orientaçã o
operacional?
—
interrompeuNate.—Aindaestamos
falandodocasoDiva?
— Bem, você vai ter de
encontrar um jeito de tirar essa
garota da posiçã o defensiva em que
ela se colocou. — Ele se recostou na
cadeira e começou a balançá -la de
leve com as mã os cruzadas na nuca.
—Nã odescarteahipó tesedequeela
sinta alguma coisa por você . De que
estejaquerendoajudá -lonacarreira,
seilá ,qualquercoisaquenã opareça
um ato de traiçã o. També m é
possı́vel que ela goste de emoçõ es
fortes. Nesse ramo tem gente quese
alimentadeadrenalina.
Naquela mesma noite, a
campainhatocounoapartamentode
Nate.
Dominika
encontrava-se
paradaà portacomorostocrispado,
os olhos vermelhos. Nã o estava
chorando, mas os lá bios tremiam e
elacobriaabocacomoseparaconter
os soluços. Nate deu uma olhada
rá pida no corredor antes de puxá -la
para dentro. Ela nã o ofereceu
nenhuma resistê ncia. Ele tirou o
casaco da jovem, conduziu-a
delicadamente para o sofá e ela se
sentou na beira da almofada,
abaixando a cabeça para itar as
pró priasmã os.Natenã osabiaoque
acontecera, tampouco o que fazer.
Imaginou que ela tivesse sido
dispensada do SVR, que tivesse
cometido alguma besteira e agora
estivesseemapuros.Semdú vidaisto
seriainé dito:mandarumaagentedo
SVR para o arquivo mortoantes de
recrutá-la.
Preciso acalmá-la, ele pensou.
Sejaláoquetenhaacontecido,elaestá
chateada, vulnerável. Ofereço o quê?
Vinho,uísque,vodca?
Batendo os dentes no cristal da
taça,Dominikadeuumgolenovinho
e,emrusso,começouadizer:
— Sei que você fala a minha
lı́ngua. — Parecia exausta. Ainda
estavacomacabeçabaixa,oscabelos
caindo dos lados. — Você é a ú nica
pessoa com quem eu posso
conversar. Um cara da CIA. Muito
doido,nãoacha?
Um cara da CIA?, pensou Nate.
Que diabo está acontecendo? Ele
preferiu nã o dizer nada e Dominika
deumaisumgolenabebida.
Ela começou falando baixinho,
medindo as palavras. Contou sobre
Marta e o sumiço dela. Nate quis
saber o que estava por trá s daquele
desaparecimento repentino, e ela
falou sobre Ustinov. Ele pediu
detalhes, e ela contou sobre o
treinamentoquerecebera.Entãonão
eram apenas boatos, pensou Nate,
perplexo.AfamosaEscolaQuatrodos
russos.
Só entã o Dominika ergueu os
olhos,tentandoavaliarareaçã odele
aosaberqueelapassarapelaEscola
dePardais.Nã oviupenanosolhosdo
americano, tampouco desprezo. Ele
apenas a encarava de volta. Sempre
agia assim. O manto violeta pulsava
em torno de sua cabeça. Dominika
queria muito con iar nele. Ele lhe
serviuumasegundataçae,eminglê s,
disse:
— Como posso ajudar você ? Do
queprecisa?
Elaignorouaperguntaemudou
paraoinglês:
— Sei que você nã o é um
diplomata trabalhando no setor
econô micodaembaixadaamericana.
Sei que é um agente da CIA. E você
sabe muito bem que eu trabalho
como o icial de segurança na
rezidentura da minha embaixada.
Pelo menos deve ter deduzido
quando contei que meu chefe é
Volontov. Suponho que també m
saiba que meu tio Vanya Egorov é o
primeirovice-diretordoserviço.
Natenemsequerpiscava.
— Em Moscou, depois da
Academia de Inteligê ncia Externa —
prosseguiu ela —, trabalhei para o
Quinto
Departamento
numa
operaçã o contra um diplomata
francê s.Amissã onã odeucerto,efoi
aíquememandarampracá.
Elaergueuorostoinchadopara
Nate em busca de consolo. Ele lhe
estendeuamãoesentiuqueosdedos
delaestavamgelados.
— Marta era minha amiga. Foi
uma servidora exemplar, ganhou
medalhas, uma pensã o, um posto no
exterior. Era uma mulher forte,
independente. Nã o se arrependia de
nada, procurava sempre ver o lado
bom de tudo. Durante o tempo que
convivemos, ela me fez ver quem eu
realmente sou. — Aqui ela deu um
leveapertã onamã odeNate.—Nã o
sei o que aconteceu, mas ela sumiu
sem deixar nenhum bilhete nem
nada,eeutenhocertezaabsolutade
que ela morreu. Nunca fez nada
contraeles.Meutioestavamorrendo
demedodequeseusegredoviesseà
tona, e achou que precisava se
proteger. Tem um homem, um
koshmar, um pesadelo em forma de
gente, que trabalha pra ele. E bem
possı́vel que esteja envolvido no
sumiçodeMarta.
— Você está correndo algum
perigo? — perguntou Nate. Sua
cabeça fervilhava. Ela estava falando
de operaçõ es passadas, de um
assassinatopolítico,daexterminação
de uma colega, de um escâ ndalo nas
altas esferas do SVR. Estava ditando
pelo menos uma meia dú zia de
relató riosdeinteligê nciabemali,no
sofá dele. Nate nem sequer ousava
fazer alguma anotaçã o, precisava
deixar que ela continuasse. — Você
estava envolvida no caso Ustinov,
entã otalvezseutioestejaapreensivo
emrelaçãoavocê.
Elabalançouacabeçaedisse:
— Meu tio sabe que nã o posso
fazernadacontraele.Minhamã eestá
em Moscou. Ele a usa como uma
zalozhnica, uma refé m, como nos
velhos tempos. Alé m disso, foi ele
quemmetreinou, quem me mandou
à quela escola, quem me despachou
pra Helsinque. Pertenço a ele tanto
quanto aquele monstro que ele usa
pra fazer seus trabalhos sujos. Vim
paracá comamissã odemeenvolver
com você . Meu tio a irma que me
considera parte integrante de sua
equipe de operadores, mas olha pra
mim como se eu fosse apenas um
pardalzinho a seu serviço, como se
ainda estivé ssemos em 1960. Eles
estã oimpacientescomalentidã odo
meu progresso. Querem ouvir que
leveivocêpracama.
—Quantoaissoeupossoajudar
—retrucouNate.
Dominika o encarou, fungou
baixinho,depoisrespondeu:
—Você eassuaspiadas.Nã ovai
acharmuitagraçaquandosouberque
minha missã o é descobrir sobre seu
passado em Moscou, sobre o
informante que você coordena. Tio
Vanya me mandou a Helsinque pra
icar de olho em você , pra avisar
quandoestivesseativo,operandoseu
contato, como icou por duas
semanasnomêspassado.
O informante que eu coordeno?
Natesesentiacomoumacriançaque
ica ao lado dos trilhos enquanto o
trempassaatodaavelocidadeà sua
frente,apoucoscentímetrosdonariz.
Tentava nã o esboçar nenhuma
reaçã o, mas sabia que Dominika era
capazdelersuaexpressão.
— Nã o contei nada à quele
nojento do Volontov — disse ela. —
Marta ainda estava viva nesse
período.Sabiadaminhadecisão.
Nate tentava se concentrar nas
palavras dela ao mesmo tempo em
que pensava no perigo que correra
comMarble.Elesnã ofaziamamenor
ideia de que poderiam ter sido
detectados.Aodecidirnã orelatarao
chefe o que sabia, Dominika
provavelmentesalvarasuavida.
— Desde que nos conhecemos
na piscina, tentei estabelecer uma
amizadecomvocê —prosseguiuela.
— Em muitos aspectos, nó s dois
está vamos fazendo a mesma coisa
umcomooutro.Seiqueseuobjetivo
inicial
eraidenti icar minhas
fraquezas, minhas... Como é mesmo
que se diz? Minhas vulnerabilidades.
Como você precisava se aproximar
de mim també m, nossos encontros
começaram a icar cada vez mais
frequentes. Talvez fosse isso mesmo
quetioVanya havia planejado. Mas...
o que me surpreendeu foi que eu
deixavavocê memanipular.Euqueria
que você continuasse me operando.
De repente me dei conta de que
gostavadeestarcomvocê.
Nate permanecia tã o imó vel
quanto antes, apenas segurando a
mã o dela e pensando:Putz. Gable
tinha razão o tempo todo. A garota
estava mesmo me operando. E o SVR
está caçando Marble. Ainda bem que
ela decidiu me ajudar. E essa Marta...
Deusaabençoe,sejaláondeestiver!
Eletinhaplenanoçã odequese
tratavadeummomentocrı́tico.Sabia
que Dominika seguira um caminho
semvolta.Otommonocó rdioqueela
usavaparafalareraconsequê nciade
vá rios sentimentos: medo, raiva,
desejo de vingança. O que ela já
contara bastaria para que a
esfolassem viva trê s vezes. E agora
viria aquele momento delicado em
que ela recuaria e iria embora ou
tomaria a decisã o de se tornar uma
informantedaCIA.
— Dominika — disse ele. — Já
falei que estou disposto a ajudar
você .Já pergunteiseestá precisando
de alguma coisa. O que pretende
fazer?
Ela recolheu a mã o que ele
segurava.
—Nã omearrependodenada—
afirmou,comasbochechascoradas.
—Seiquenã o—retrucouNate.
Ficouemsilê ncioporummomentoe
depois insistiu: — O que você quer
fazer?
Foi como se ela pudesse ler os
pensamentosdele.
— Você é muito esperto, nã o é ,
Sr.Nash?Vimaté aquiprachorarno
seu ombro, pra contar sobre minha
missã o, pra dizer que salvei o seu
pescoço...
—Soumuitogratoportudoisso
— interrompeu Nate, tentando nã o
deixartransparecertodooalı́vioque
sentia.
Noentanto,Dominikapodiaver
essealívioestampadonatestadele.
— Mas você nã o está pedindo
queeutrabalhecomvocê pravingar
Marta,oupradarotrocoemmeutio
Vanya,emVolontoveemtodaaquela
gente, ou pra emplacar alguma
reformanopaísqueeuamotanto.
— Nã o preciso lhe dizer nada
disso.
— Claro que nã o. Você é
cauteloso demais pra isso —
devolveu ela, e Nate a encarou em
silê ncio.—Bastaperguntaroqueeu
querofazer.
—Exatamente—concordouele.
—Emvezdisso,quetalmedizer
oquevocêquerqueeufaça?
— Acho que deverı́amos
começar a trabalhar juntos.
Roubandosegredos
— falou Nate sem hesitar, o
coraçãobatendoamil.
—Porvingança,porMarta,pela
Rodina,por...
— Por nada disso —
interrompeuele.AspalavrasdeGable
zuniam em sua cabeça. — Você vai
passarpronossoladoporqueprecisa,
Dominika
Egorova. Precisa de algo pra
alimentar esse seu temperamento.
Precisa ter alguma coisa que seja só
sua,pelaprimeiraveznavida.
Ele agora a itava com uma
expressãoserena.
Dominika, por sua vez, o
encarava com os olhos bem abertos,
vendoohalovioletaseesparramarà
voltadelefeitoaluzdoamanhecer.
—Eumjeitointeressantedever
ascoisas—retrucou.
***
“Osmelhoresrecrutamentossão
aquelesemqueosagentesrecrutam
asimesmos”,seuinstrutordisserae
repetira na fazenda durante o
treinamento. “Lembrem-se disso.
Nada de surpresas, apenas uma
evoluçã onatural.”Bem,ocasoalinã o
eraexatamenteodaevoluçã onatural
de um recrutamento. Nate tinha a
impressãodequeforaatropeladopor
umaavalanchedeacontecimentos.
Umahorajá sepassarasemque
Dominika
pronunciasse
um
inequı́voco “sim”. Esse tipo de
decisã o jamais era selado com um
aperto de mã o e um contrato
assinado. Nate achou que devia
incitá-laasoltaralíngua.
— Seja qual for sua decisã o —
falou —, prometo que vamos
trabalharcomsegurança.
Esse era o discurso-padrã o no
recrutamento de informantes. No
entanto, ainda que as palavras
fossemditascomsinceridade,ambas
aspartessabiamquenolongoprazo
a sobrevivê ncia de um agente,
sobretudo num paı́s como a Rú ssia,
era bastante imprová vel. Mas ela
mordeuaisca.
—Prafazerumtrabalhodesses
corretamente,nã ohá comoevitaros
riscos—falou.—Nó sdoissabemos
disso.
Ela disse “nós dois”, observou
Nate.
—Vamoscomeçardevagar,com
todoocuidado...—garantiuele.—Se
équevamoscomeçaralgumacoisa.
—Exatamente.Secomeçarmos.
— Depois vamos seguir o seu
ritmo, do jeito que você achar
melhor.
— Seu pessoal pode avaliar
minhas motivaçõ es quando quiser.
Caso nossa colaboraçã o se revele
insatisfató ria, eu aviso e a gente dá
umfimaestarelação.
Tudo indicava que SVR e CIA
seguiamomesmomanualnoquese
referia
ao
recrutamento
de
informantes.
Dominika havia passado pelo
primeiro está gio. Estava icando
tarde.Elaselevantoudosofá epegou
ocasaco.Enquantoaajudavaavestilo, Nate discretamente observou os
olhos dela, os cantos da boca, as
mã os.Nã osabiaaocertoaondetudo
aquilo levaria. Eles se entreolharam
por um momento. A porta, ela se
virou e estendeu a mã o. Nate
apertou-aedisse:
—Spokoinoinoci.—Boanoite.
Dominika saiu e desceu as
escadasquasesemfazerbarulho.
***
Assim que ela foi embora, Nate
começou a fazer suas anotaçõ es,
tentando se lembrar de tudo o que
ouvira. Precisou resistir ao impulso
idiota de ir a pé até a embaixada,
acordarosplantonistas da estaçã o e
começararedigircabogramasparao
Q G .Recrutamento. Agente do SVR,
equipedepardais,otiocomandatoda
a
operação,
assassinatos.
Praticamenteumfilmedeespionagem!
Elemalpodiaesperarparachegarao
trabalhonamanhãseguinte.
Depois de um tempo o
entusiasmo se dissipou. Nate rolou
na cama, jogando as cobertas para o
chã o.Eleaindaprecisavacon irmaro
recrutamento,
assegurar
o
compromisso de Dominika. Ela
poderia recuar: muitos informantes
faziam isso. Assim que ele colocasse
asré deasnela,Washingtonviriacom
tudo para cima dele. Qual era a
motivaçã o da informante? O salá rio
pretendido?Onı́veldeacesso?Como
assim, ela nã o tinha assinado um
termo de con idencialidade? Tudo
aquilo era repentino demais. Nã o
seriaumaarmadilha?
També m tinha que pensar em
termosdeprodutividade.Semdú vida
elesexigiriamresultados,erá pido.A
princı́pio pediriam a melhor
informaçãoqueelativesseparadar,e
isso seria perigoso. Os o iciaizinhos
estú pidos de terceiro escalã o
exigiriam que ela fosse submetida a
uma prova de boa-fé . Tudo seria um
teste, e eles nã o icariam satisfeitos
até que as informaçõ es dela fossem
con irmadas, até que ela fosse
submetidaaopolı́grafo.Seforçassem
alguma barra, ou se pisassem nos
calosdela,acabariamcolocandotudo
a perder, disso ele tinha certeza. E
caso ele viesse a perdê -la depois de
ter comunicado o recrutamento,
certamente haveria algué m no QG
paracolocaremdú vidaasuapalavra,
averacidadedorecrutamentoemsi.
Aquilo era apenas o começo. Se
descobrissem o que ela izera,
Dominika nã o teria a menor chance:
serialiquidadapeloSVR.Poderiaser
desmascarada
de
inú meras
maneiras:
algum
informante
plantado no QG em Washington,
algum erro operacional, alguma
missã o de vigilâ ncia mais agressiva,
um mero azar, luzes se acendendo
justonomomentoemqueelaestaria
fotografando documentos secretos
com uma câ mera secreta. Nate se
revirounacama.
Haveriauminterrogató rioeum
julgamento, mas eles nã o dariam a
menor importâ ncia aos fatos.
Nenhum tio Vanya seria capaz de
salvá -la. Descalça e vestida com um
uniforme de presidiá rio, ela seria
conduzida aos porõ es de Lubyanka,
ou Lefortovo ou Butyrka, e
empurradapeloscorredoresaté uma
cela de piso inclinado e ganchos
pendurados nas vigas do teto. Num
dos cantos ela veria um caixã o de
papelã oà suaespera.Bastariamdois
passos cela adentro para que ela
fosse abatida, sem nenhuma
advertê ncia, com um tiro atrá s da
orelha direita. Os carrascos
permaneceriamolhandoparaocorpo
caı́doaté venceremapró priainé rcia
e se dignarem a acomodá -lo no
caixã o vagabundo. Simples e
definitivo.
ROGAN JOSH
Num pilão, triturar cebola,
gengibre, pimenta, cardamomo, cravo,
coentro, páprica, cominho e sal até
formar uma pasta homogênea.
Acrescentar louro e canela. Despejar
manteiga clarificada previamente
aquecida por cima da mistura e
esperar até que os aromas se libertem.
Juntar cubos de carne de cordeiro e,
sempre mexendo, acrescentar iogurte,
água quente e pimenta. Assar em
forno médio por duas horas. Salpicar
com coentro e servir.
CAPÍTULO 17
O
RECRUTAMENTO
DE
DOMINIKA
NAO
foi
um
acontecimento normal em nenhum
sentido. A moça era uma o icial de
inteligê ncia, mas agora precisaria
aprender a ser espiã . Nã o se tratava
de uma transformaçã o natural.
“Fortalecer o vı́nculo”, Forsyth
dissera.
O primeiro passo da estaçã o,
portanto, foi fazer uma sé ria
investigaçã o
sobre
o
desaparecimento de Marta, de modo
a provar sua consideraçã o. Gable
providenciou uma reuniã o com um
colaborador do serviço secreto
inlandê s. Nenhum sinal da russa. O
vı́deo da câ mera de segurança, que
sugeria uma possı́vel travessia em
Haaparanta, era absolutamente
inconclusivo.
AlistaBigot,istoé ,arelaçã ode
pessoas autorizadas a ler os
documentosdocaso,foireduzidaao
menornú merodenomespossı́velna
Finlâ ndia, ainda que nada pudesse
ser feito a esse respeito no QG em
Washington. O caso já estava nos
canais de manuseio restrito, o que
segundo Gable era uma enganaçã o,
pois apenas umas cem pessoas liam
os cabogramas trocados de parte a
parte. Ainda assim, eles tentariam
limitaradistribuição.ForsytheGable
já haviam feito isso antes; sabiam
que,quantomaioracautelanoinı́cio
do caso, mais longe ele iria. Nate
sentia-secadavezmaisdeterminado
a proteger Dominika, custasse o que
custasse. Nã o se permitiria falhar.
Nãosepermitiriafalharcomela.
Ele encontrou um apartamento
de dois quartos no distrito de
Munkkiniemi, pró ximo à marina, e o
agente nã o o icial com cara de rato
voltou para alugá -lo por um ano,
fazendo-se
passar
por
um
empresá rio dinamarquê s que usaria
o imó vel apenas ocasionalmente,
quando estivesse na cidade a
trabalho. O que nã o fazia nenhuma
diferença para o proprietá rio, feliz
porterfechadoonegócio.
Numa noite chuvosa de
primavera, Dominika desceu do
bonde 4 em Tiilimaki, apenas uma
silhuetacontraosfaró isquevinham
no sentido oposto e re letiam no
asfaltomolhado.Nateaalcançoudois
quarteirõ esà frenteelhedeuobraço
sem nem mesmo dizer “olá ”. Estava
em pleno modo operacional, com o
tronco ereto, nervoso. Para
Dominika, aquele seria seu primeiro
encontroclandestinonaqualidadede
informante;estava nervosa també m,
atrapalhada mais pela vergonha do
que pelo medo. Em silê ncio,
caminharam pelas ruas secundá rias,
margeando os pré dios residenciais,
cujos apartamentos pareciam ter a
televisã o sintonizada no mesmo
canal. Por im alcançaram o pré dio
que
procuravam,
passaram
tranquilos pela portaria e subiram
dois lanços de escada em meio aos
odores de rena cozida e molho
cremoso que vinham de algum
vizinho.
A primeira noite do resto de
suas vidas. Alguns abajures se
acenderam e Gable, que já os
esperava, levantou-se para ajudar
Dominika a tirar o casaco. Ela nã o
pô de deixar de notar os cabelos
espetados dele, que lembravam as
cerdas de uma escova. Gostou do
aspectodoamericano,deseusolhos,
do violeta por trá s deles. Forsyth
apareceu vindo da cozinha com os
ó culosnoaltodacabeça,lutandocom
a rolha de uma garrafa de vinho.
Elegante, calmo, ar de sabedoria.
Aura azul-celeste. Sem dú vida, um
homem sensı́vel. Dominika se
acomodou no sofá e
icou
observando os trê s homens que
andavamdeumladoparaoutroà sua
frente.Agiamcomnaturalidade,sem
nenhuma afetaçã o, mas volta e meia
olhavam para ela, que lembrava que
estavasendoavaliada.
Sabia que a conversa ali seria
paravaler.Nateeraumo icialjovem,
tudo o que ela conhecia da CIA até
aquelemomento,masosoutrosdois
eram homens maduros, sé rios,
calmos, visivelmente experientes,
nã o muito diferentes do general
Korchnoi, de Moscou. De repente
Gableergueusuataçaebrindoucom
um equivocadozdorov’e. Dominika
quisrir,masconseguiuseconter.
Nesseprimeiroencontronã ose
falou de negó cios. A conversa se
limitouainformalidades,oquedava
uma boa ideia de quã o pro issionais
eles eram. Os dois veteranos
deixaram que Nate conduzisse os
assuntos e ouviram mais do que
falaram, outra prova de sua
experiê ncia. No im da noite
Dominikafoiaprimeiraasair:erao
procedimento-padrã o també m para
os americanos, ela constatou. Apó s
deixaropré dio,seguiupelamarinae
notou que, apesar de chegada a
primavera, a maioria dos barcos
continuava nas docas. Nã o se sentia
tã oenvergonhadaquantoantes.Eles
erammesmomuitobons.
No segundo encontro, ela teve
tempo de observar os detalhes. A
cozinhaconjugadatinhaumfogã ode
duasbocas,osu icienteparacolocar
u m apanela de á gua para ferver, e
uma geladeira com bandejas de gelo
feitas de plá stico. Assim como na
maioria
dos
apartamentos
clandestinos, alugados já com a
mobı́lia, o sofá , as cadeiras e as
mesas eram de pé ssima qualidade e
de um mau gosto notá vel. Os
estofados eram verde-abacate com
detalhes dourados, o que, segundo
Gable, ainda era a ú ltima moda na
decoraçã o escandinava. Os quadros
nas paredes mostravam mares
revoltos e alces ao luar. Os tapetes
pareciam
recé m-chegados
da
Lapô nia. Um dos quartos contava
comumacamadecasalqueocupava
quase todo o espaço do cô modo, na
qual era possı́vel subir apenas pelo
pé.Ooutroabrigavanãomaisqueum
extravagante lustre de vidro
vermelho. O banheiro tinha, alé m de
uma velha banheira, o indefectı́vel
bidê dos escandinavos, que certa
noite Gable tivera a capacidade de
confundir com o vaso sanitá rio.
Dominika chorou de tanto rir ao
ouvi-lo contar a façanha e dali em
diante passou a chamá -lo de Gable
Bratok,meuqueridoirmão.
Operar
uma
o icial
de
inteligê ncia devidamente treinada
seria bem mais difı́cil do que operar
umbanqueirodesesperadoporeuros
porqueprecisasustentarumaesposa
e uma amante perdulá rias e tem um
BMW na garagem. Dominika se
formara na AVR, a academia do
serviço secreto russo. Volta e meia
elaeNateentravamemumacalorado
bate-boca sobre a adequaçã o deste
ou
daquele
procedimento
operacional (“Nã o posso acreditar
que você ache este lugar aceitá vel
como ponto de encontro!”), ou
procedimento de segurança (“Nã o,
Domi,otapetenoparapeitodajanela
indica que é seguro subir. Será que
você nã oaprendeunadasobresinais
positivosnasua academia?”). Nate já
havia perdido a conta das vezes que
dissera “Vamos fazer do meu jeito”
apenasparaseirritarprofundamente
aoouvirdevolta:“Eaminhacabeça
quevairolarsevocêestivererrado.”
Os americanos nã o tardaram a
perceber que Dominika tinha uma
intuiçã o
fora
do
comum.
Espantavam-se
quando
ela
terminava as frases por eles, ou
quando assentia no meio de alguma
sugestã o, ou quando se calava no
momento exato em que era melhor
ouvir. Uma mulher inteligente,
treinadacomoo icialdeinteligê ncia,
pensava Forsyth, mas havia algo
naquela moça que até entã o ele nã o
tinhavistoemningué m.Clarividência
nãoeraapalavracerta,masquase.
Dominika, por sua vez,
observava o processo deles com
distanciamento.
Via
que
a
respeitavam, que valorizavam sua
formaçã o, mas apesar disso nã o
davam nada por certo. Sabia que a
testavam nas menores coisas. As
vezes cediam à s opiniõ es dela, e em
outrasocasiõ esinsistiamemfazera
coisaaomodoamericano.Naopiniã o
dela,erammuitocompetentes.
Os encontros semanais no
esconderijo,otrabalhoqueelavinha
fazendo para os americanos, tudo
isso começou a de inir sua vida. A
angú stiadaindecisã ojá havia icado
paratrá s,eagoraelanã opensavaem
outracoisaquenã ofosseseuvı́nculo
com a CIA. Saboreava-o a todo
instante, sobretudo quando estava
com Volontov. Você nem imagina o
que eu estou fazendo agora, ela
pensavaaomesmotempoqueouvia
o suarentorezident urrar sobre o
trabalho dela. Nate tinha toda a
razã o. Aquilo era algo que lhe
pertencia, que era dela e de mais
ninguém.
Forsyth reapareceu assim que
chegouomomentodede inir,como
má ximo de cautela, quais seriam os
segredos que Dominika roubaria da
rezidentura. Juntos eles foram
construindo o plano, focando nas
peças maiores primeiro: os
documentos aos quais ela tinha
acesso direto. Depois pensariam nas
informaçõ es que ela conseguiria
roubar com facilidade e em seguida
nos tesouros que ela sabia existir
mas nos quais nã o podia tocar.
Dominika foi orientada a agir com
calma. Agentes que se tornavam
informantes geralmente tentavam
darpassosmaioresqueaspernasno
inı́cio. A certa altura da conversa ela
quissaberseeleslhecon iariamuma
câ mera
e
equipamentos
de
comunicaçã o. Queria mostrar que
tinha sangue-frio, que era ousada,
masissosó deixouosamericanosda
CIA assustados. Ao ver que o halo
deles mudara de cor, Dominika logo
percebeu que havia se precipitado.
“Vamosdeixarosequipamentospara
mais tarde”, disse Forsyth, e no dia
seguinte enviou um cabograma
solicitando a presença de um
examinador. Era melhor cuidar logo
daquilo.
O polı́grafo. O detector de
mentiras. Nate esperou num dos
quartos do apartamento enquanto
ouvia os sons abafados que vinham
da sala: uma voz grave e outra
delicada,feminina.Sentadanumadas
cadeiras pró ximas da mesa,
Dominika respondia sim ou nã o ao
examinadorqueGablejá conheciade
outras sessõ es semelhantes, um
bigodudo pelo qual ele nã o tinha a
menor simpatia. “Esse aı́ chegou ao
fundo do poço vinte anos atrá s e
continuou cavando”, era o que ele
diziasobreohomem.Dominikasabia
queaqueleeraumtesteimportantee
fez um esforço especial para nã o
decodi icar o sujeito, para nã o
brincar com as fraquezas dele.
Procurava
se
concentrar
exclusivamente nas perguntas que
passavamcoloridasaseulado.
Apó sumahoradecon inamento
no quarto abafado, Nate ouviu
quando o teste chegou ao im e
voltouparaasala.Dominikameneou
acabeçaparaele,masohomemnem
sequer piscou. Temerosos feito uma
virgem na noite de nú pcias, os
examinadores
jamais
davam
qualquer pista dos resultados antes
de“avaliarosgrá icos”,comosempre
diziam. Forsyth voltou com ele à
estaçã o, mandou-o se sentar e falou
quenã oestavanemaı́,queprecisava
saber dos resultados já , pelo menos
uma preliminar. O caso era
importantedemais,nã ohaviatempo
a perder. Contrafeito, o examinador
sedeclarousatisfeitocomoquevira
e ouvira. A moça era mesmo quem
dizia ser, um cabo do SVR. Mais
importante de tudo, nã o era uma
agente dupla despachada pelo
serviçocomointuitodeconfundira
CIA, identi icar informantes russos
ou descobrir quais eram as
demandas atuais da inteligê ncia
americana.
Apó s essa primeira con idê ncia,
o examinador se sentiu à vontade
para contar també m que os grá icos
mostravam um ligeiro pico sempre
que a moça respondia a alguma
pergunta com o nome de seu
recrutador, Nathaniel Nash. Fora
necessá rio
reformular
essas
questõ es de diversas maneiras até
queeletivessecertezadequeelanã o
estava usando as clá ssicas té cnicas
cubanas e tchecas para ludibriar o
polı́grafo. Alé m disso, ele nã o
percebera nenhum dos sinais da
linguagem corporal que geralmente
delatavam segundas intençõ es:
respiraçã o
controlada,
mã os
fechadasempunhoetc.
Mais tarde Forsyth contou a
Gablesobreareaçã odeDominikaao
nomedeNate.
— Orgaespasmos — limitou-se
acomentarGableantesdeselevantar
esairdasala.
Com a aprovaçã o de Dominika
no teste, nada impedia que o caso
seguisse em frente. Agora eles
tinham que de inir pontos como a
segurançadela,odisfarce,omodode
secomportar,oritmodasações.
— Você precisa aparentar a
mais absoluta normalidade —
orientou Forsyth. — Continue
relatandoosseuscontatoscomNate
à central, sempre com algum
progresso. Uma vez por mê s talvez
seja pouco. A cada quinze dias, ou
uma vez por semana, é melhor. Isso
lhedaráliberdadeparaagir.
—Eraissomesmoqueeutinha
em mente — retrucou Dominika. —
Os cabogramas já estã o todos
redigidos na minha cabeça. Até o
inverno.
— Você deve redigi-los sozinha
—disseForsyth.—Podemosajudar,
masotextotemquesaircomassuas
palavras,osseusdetalhes.
Dominika assentiu.Ela conhece
o jogo,
pensou
Forsyth.Está
completamenteàvontadecomele.
— Vou retratar Nate como um
cara... convencido, orgulhoso, mas
precavido. Fá cil de manipular,
distraído,masdesconfiado.
ElasevirouparaNateearqueou
umadassobrancelhas.
— Difı́cil acreditar que você vai
demoraraté oinvernopradescobrir
isso — implicou Gable, sentado no
sofá ao lado de Nate, que respondeu
levantandoodedomédioparaele.
— Nã o sei até onde a gente vai
conseguirlevaressahistória.Cedoou
tardeopessoaldeMoscouvaiperder
a paciê ncia — observou Forsyth, já
antevendo o dia em que Dominika
seriaconvocadadevoltaaYasenevo.
Será queelajá estariaprontaaté
lá paracomeçarotrabalho?Será que
conseguiriam prepará -la a tempo? O
problema era o calendá rio, nã o ela,
pensouele.
—Há umamaneiradeprolongar
o contato, de me dar mais liberdade
de açã o — comentou Dominika. —
Algo que certamente deixará a
central disposta a investir mais
temponaoperaçã o.Algoquemeutio
Vanyaesperaqueeufaça.
—Oquê?—perguntouForsyth.
— Daqui a um tempo, eles vã o
adorar receber um relató rio dizendo
queNateeeunostornamosamantes.
Isso vai atender à s expectativas
deles.Eissoqueesperamdealgué m
quepassoupelaEscolaQuatro.
Gable se levantou do sofá . Com
umacareta,disse:
—Amantes?PorDeus,eujamais
pediria a algué m pra fazer isso com
Nate.Émuitosacrifício.
***
Era um domingo movimentado.
Esquifes e veleiros encontravam-se
parados nos ancoradouros na baı́a.
No esconderijo, Dominika falara um
pouco sobre Marta mas decidira
parar e contar a Nate sua novidade
mais
recente:
Volontov,
o
protozoá rio, subitamente havia se
dado conta de que estava sem
assistente administrativa e, solı́cito,
pedira que ela assumisse algumas
das funçõ es de Marta. Seu primeiro
impulso fora dizer nã o, para
desacreditar o ogro aos olhos da
central,mas,numsegundomomento,
pensando neles (Nate, Forsyth e
Bratok),decidiraceder.Seuprecioso
segredo era o que mais importava
agora, e ela vinha aprendendo a
identi icar oportunidades para
alimentar seu crescente apetite por
vingança.
Entã oelestinhamlhepassadoa
responsabilidade pelo controle dos
cartõ es de ponto dos o iciais da
rezidentura, bem como pelo
arquivamento dos documentos da
controladoria operacional. Essa
ú ltimatarefavinhacomumbenefı́cio
extra: cada despesa precisava ser
vinculada ao relató rio de uma
operaçã o especı́ ica ou a um
cabograma
operacional
que
descrevesseaorigemdadespesa.
— Volontov e sua equipe
deveriam fazer tudo isso por conta
pró pria, mas eles simplesmente
jogam a papelada na minha mesa —
contou Dominika. — Ningué m,
exceto orezident, tem permissã o
para ler os cabogramas dos outros.
As informaçõ es obedecem a um
rı́gido
sistema
de
compartimentagem.—Aquiosolhos
delabrilharam.— Acontece que eles
precisam de mim pra fazer o
casamento das despesas com os
relató riosetelegramas.Trocandoem
miú dos, Volontov me deu acesso a
todootráfegooperacional.
Depois disso as informaçõ es
começaram a chegar em pequenas
doses e intervalos irregulares. Tudo
era examinado com cuidado,
primeiro por Forsyth, depois pelos
invertebrados de Washington, todos
à procura de alguma nota falsa,
alguma esperteza velada, alguma
informaçã o
excessivamente
conveniente. Dominika tinha uma
memó ria prodigiosa para os
detalhes,
lembrando-se
com
facilidade de algum fato que
desencadearaoutro,queporsuavez
levara a um terceiro. A certa altura
ela começara a fazer anotaçõ es
codi icadas, e por mais que a
interpelassem, nã o conseguiam
detectarnenhumainconsistência.
Dominika decorara o texto
quase completo do relató rio mensal
de atividades de apoio do referente
daLinhaN.Apartirdele,descobriraa
existê ncia de trê s agentes ilegais da
Linha S em Helsinque, pessoas que
moravamnaFinlâ ndiahaviadé cadas
comocidadãosfinlandeseslegítimos.
Uma delas já deixara o paı́s
atravé s de Haaparanta como uma
cortina de fumaça apó s o
desaparecimento de Marta e as
outras duas moravam nos arredores
de Espoo, mas seriam deixadas em
paz para que ningué m descon iasse
deDominika.
***
No encontro seguinte ela
assustou a todos ao apresentar um
documentooriginal surrupiado do
gabinete de Volontov. Ela havia
embolado as folhas e guardado no
bolso em vez de levá -las para a
fragmentadora de papel junto com o
resto
do
entulho.Sovershenno
Sekretno,
Absolutamente
Con idencial,diziaocarimbo.Eraum
relató riodequatropá ginasdaLinha
PRsobreosparlamentosdaEstô niae
da Letô nia, paı́ses que agora
integravam a ONU. As informaçõ es
seriam passadas ao QG em
Washington e, de lá , encaminhadas
ao Conselho de Segurança e à
Presidê ncia da Repú blica. Gable, no
entanto, deu uma bronca em
Dominika, exigindo que ela jamais
voltasseafazertamanhabesteira.
Washington pensava da mesma
forma: o roubo de documentos
fı́sicos era arriscado demais e, por
isso, uma câ mera seria enviada à
informante russa. A princı́pio Nate
icou preocupado, mas Forsyth logo
tratoudeapaziguá -lo,a irmandoque
Dominika precisava se habituar a
essetipoderecurso,quesemdú vida
sesairiamuitobem.
— Nã o acho que ela esteja
pronta—falouNate.
Qualquer
instrumento
de
espionagemtriplicavaosriscos,eele
nã o queria ver sua operaçã o em
risco, muito menos Dominika em
apuros.
—Entã oé melhorvocê acelerar
a preparaçã o da garota — disse
Gable.—Porqueseaconvocaremde
volta amanhã , vamos ter que dar
adeusàoperaçãoDiva.
— Talvez já seja hora de você
dar a ela umas aulinhas sobre as
operaçõ es internas de Moscou —
emendou
Forsyth.
—
Sua
especialidade.
***
O treinamento operacional de
Dominikaen imcomeçou.Overã ojá
haviachegadoeaescuridã odanoite
de Helsinque fora substituı́da por
uma luz crepuscular que parecia
permanente.
Na estaçã o de metrô , os
habitantesdacidadeandavamdeum
ladoaoutronasplataformas,subiam
e desciam as escadas rolantes,
conduzidos pela monotonia de suas
respectivas rotinas. Dominika de
echarpe, Dominika de boina,
Dominika de casaco. Contando
passos, afunilando-se junto com a
multidã o nas roletas. Atravessou
para o outro lado e a certa altura
passou por Nate num corredor.
Roçou-o de leve na manga do sué ter
aomesmotempoqueviaderelanceo
violetadesuaaura,sentiaseucheiro
e repassava para ele, com toda a
discriçã o, um maço de cigarros que
vinha segurando irmemente entre
dois dedos, na altura da cintura. Foi
uma manobra de esbarrã o perfeita:
cada um seguiu para seu lado e em
seguida misturou-se ao rebanho de
passageiros.
Em outra ocasiã o caı́a uma
chuva de verã o leve e fresca. O
trâ nsitoestavalento,faró isre letiam
no asfalto. Dominika conferiu as
horas no reló gio sob a luz de uma
vitrine. Nenhum espiã o na sua cola.
Aliviada,viuqueconseguiriacumprir
ajaneladetempo.AoouvirdeNateo
queelesiriamfazer,elagargalharae
dissera:
— Nó s, os russos,
recorremos a estraté gias
dramáticas.
nã o
tã o
Aoqueelerespondera:
— Isso porque o SVR opera em
paísesdemocráticos.
Ela bufara, mas ouvira com
atençã o as instruçõ es que ele ainda
tinhaadar.
Agora Dominika caminhava
rente à s fachadas de granito, os
carrospassandoaseuladonarua,os
pneus sibilando no chã o molhado.
Maisà frenteeladobrouaesquinae
parou à sombra de um andaime na
passarela reservada aos pedestres.
Aostrintaeoitominutosapó sahora
marcada, o carro de Nate dobrou a
mesma esquina, um entre tantos
outros,eparoujuntoaoandaimesem
estacionar, sem desligar o motor.
Dominika rapidamente se adiantou
até ajanelaaberta,deixoucairosaco
plá sticosobreobancoerecebeuem
trocaopendrive.Emseguidavoltou
à passarela e viu o carro seguir
adiante.Natenemsequerolharapara
ela, tampouco pisara no freio para
nã o acender os faró is traseiros. A
manobra do carro passante.Quanto
drama,elapensou.
Elesprosseguiamcomcautela,e
como era de se esperar os
apressadinhos do QG começaram a
dar as caras. Dominika era um ativo
controlado, bem posicionada numa
rezidentura do SVR, eles escreveram,
sugerindo em seguida que “outras
possibilidades” fossem exploradas.
Forsyth ainda conseguiu enrolá -los
por mais algumas semanas, mas a
certa altura a sugestã o se
transformou em uma determinaçã o
curtaegrossa.AvontadedeGableera
entrarnumaviã oparaWashingtone
en iaraquelaordemnorabodequem
adera,masForsythtratoudeacalmálo.
A loucura começou. Os
engenheirosdaDiretoriadeCiê nciae
Tecnologia queriam que Diva
baixasse todo o conteú do dos
computadores darezidentura, que
atacasseossistemasdecriptogra ia,
queplantasseengenhocasdeá udioe
vı́deo nas instalaçõ es russas. Os
té cnicos admitiam que algumas de
suas engenhocas poderiam causar
picos de energia em toda a zona sul
de Helsinque, e para uma delas em
particular seria necessá ria a
instalaçã o de uma “fonte radioativa”
no telhado da embaixada russa. No
entanto, o centro de operaçõ es
advertiaqueainstalaçã odequalquer
equipamento em campo seria
atrasadaemrazã oda“regradosseis”
que de modo geral regia o
desenvolvimento de qualquer nova
tecnologia:
maisseis
anos
consumidos no departamento de
pesquisa e desenvolvimento, mais
seismilhõ esdedó laresdecusto,mais
deseiscentaslibrasdepeso,talcomo
já acontecera com determinada
engenhoca,abortadaaindanafasede
testes.Umaloucura.
Enquanto o lado clandestino da
operaçã o se desenrolava, Nate e
Dominika davam continuidade à
farsa dos encontros pú blicos,
encenada apenas para os olhos de
Volontovcomointuitodecozinhá -lo.
Jantares, shows, passeios no campo.
Nate sempre fornecia algum detalhe
desuavidapessoal(informaçõ esque
maistardeacentralpoderiaveri icar
por conta pró pria) para que
Dominika pudesse dar provas do
progresso que vinha fazendo no
relacionamentocomoamericano.No
entanto, tal como Forsyth previra,
Volontov passara a exigir dela mais
avançosemaisrapideznaoperaçã o,
de modo que, para ganhar tempo,
decidiu-se que já era o momento de
enviar o tã o aguardado cabograma
relatando que ela começara uma
relaçã ofı́sicacomNate.Gablelogose
ofereceu para ajudar no rascunho,
sugerindo que certa “disfunçã o
eré til” fosse acrescentada à histó ria
comoumbom pretexto para futuros
atrasos. Forsyth vetou a sugestã o
imediatamente,eNatemaisumavez
teveaoportunidade de presentear o
companheirocomumgestododedo
médio.
Dominika começou a fotografar
documentosconfidenciaisnointerior
d arezidentura com diferentes
câ meras instaladas em bolsas,
chaveiros
e
batons.
Tinha
discernimento
su iciente
para
fotografar apenas os papé is mais
importanteseera lexı́velobastante
para saber quando deveria esperar.
Gable sempre a elogiava, mas Nate
continuavapreocupado,ranzinzaaté ,
comosriscosqueelavinhacorrendo.
Numa tarde de domingo, no
esconderijo, Dominika perdeu a
paciê ncia e resolveu encostá -lo na
parede:
— Você se preocupacomigo ou
com o sucesso do caso, do qual
dependeasuareputação?
Seguiu-se um pesado silê ncio.
Gablepigarreou.
Constrangido e irritado, Nate
virou-selentamenteeretrucou:
—Minhaprioridadeé preservar
ofluxodeinformações.
Quando viu a expressã o dela
endurecer,acrescentou:
—Só achoquevocê deviairum
poucomaisdevagar.
— Se é isso que você acha —
interveio Gable —, vai adorar a
próximarodada.
***
O cabograma de Washington
tinhacincopáginas.Elesqueriamque
Dominika inserisse um pen drive
especialmente preparado num dos
computadores darezidentura, de
preferê ncia o que icava na sala de
arquivo, mas o de Volontov també m
serviria.Bastariamcatorzesegundos
de download para que Washington
tivesse acesso ao texto original de
todos os cabogramas criptografados
que fossem transmitidos entre
Yasenevo e Helsinque por meio de
linhas telefô nicas comerciais. Ler
mensagens em linguagem nã o
codi icada era muito mais fá cil do
que tentar decifrar algoritmos
periodicamente alterados. Mas
aquele seria o passo mais arriscado
até entã o.Lendooquesepassavana
cabeçadeNate,Forsythorientou-oa
nã o comparecer ao encontro
seguinte no esconderijo. Gable se
encarregariadeprepararDominika.
Dois dias depois Dominika
entrou na sala de arquivo
empurrando seu carrinho metá lico,
como sempre apinhado de pastas,
envelopes, livros de contabilidade e
documentos avulsos. Por sorte ela
conseguia icardepé ,poisaspernas
estavambambasetrê mulas,tantoou
mais que as rodas docarrinho. O
zeladordasalaeraSvets,umhomem
demeia-idadeeó culosenormesque
com frequê ncia usava uma gravata
larga e curta demais, quase sempre
de lã . Ele logo se animou ao vê -la
chegar. Aquela era a melhor hora do
seu dia: o momento em que
Dominikaprecisavaseespicharpara
guardar os documentos nos
escaninhosmaisaltos.Seusolhosde
besouro só faltavam saltar das
órbitas.
Ela já havia ensaiado toda a
representaçã o com Gable no
esconderijo.
Empurrando
seu
carrinho
sala
adentro,
distraidamente deixou que ele
batessenaquinadamesadeSvetsde
tal modo que boa parte da papelada
escorregasse para o chã o. O homem
se levantou na mesma hora para
ajudá -la a recolher a bagunça. Ao se
ajoelhar ao lado da mesa, Dominika
avistou a luzinha verde que piscava
no computador, junto da porta em
que deveria inserir o pen drive.
Tentandoserdiscreta, veri icou se o
dispositivo estava do lado certo,
encaixou-o e começou a contar os
segundosenquantojuntavaospapé is
à sua volta. Nove, dez, onze... Svets
ameaçouvoltarà mesaeelaapontou
para outra pasta caı́da num canto
mais à frente. Doze, treze,catorze.
Pronto. Quando ela inalmente pô de
recolocar o pen drive no bolso da
saia, teve a impressã o de que ele
pulsava feito um coraçã o. Ficou de
pé , ajeitou os cabelos atrá s das
orelhas e começou a guardar o
material nas devidas gavetas,
demorando-se nas mais altas em
consideraçã o a Svets, levantando o
pezinhoatítulodeefeito.
A duas horas do im do
expediente, todos pareciam olhar
para ela como se soubessem o que
tinha feito. Depois, já no lobby do
pré dio, Dominika se deparou com
uma ila de descontentes junto à s
portas duplas da saı́da, reclamando
deumadasinspeçõ essurpresaquea
embaixadaimpunhacomonormade
segurança. Justo naquele dia. Dois
brutamontes
que
lembravam
estivadores do Volga, ambos com
umaauraescuraemtornodacabeça,
vasculhavam bolsas, bolsos e pastas.
Dominika sentiu uma gota de suor
escorrer pelas costas. Estava presa
naquela ila:semdú vidaserianotada
se tentasse recuar. Só lhe restava
esconder o pen drive. Usando o
casaco que levava pendurado ao
braço como escudo, tirou o
dispositivo do bolso, passou-o pelo
có s da saia e o empurrou calcinha
adentro. Minutos depois ela estava
diante de um dos seguranças. O
homemfediaavodcaetinhaosolhos
injetados. Dominika podia jurar que
ele sabia de tudo, mas, terminada a
inspeçã o
da
bolsa,
recebeu
permissãoparairembora.
Mais tarde naquela mesma
noite, contou toda a aventura aos
americanos, a adrenalina ainda
correndo nas veias. Nate estava um
pouco afastado, parado à porta da
minú sculacozinha,eForsythouviao
relato com atençã o, com os ó culos
erguidosàalturadatesta.Gableabriu
uma cerveja e a bebeu praticamente
deumsógole.
—Achoqueagorasabemospor
que esses dispositivos sã o tã o
pequenos — comentou ele, depois
quase atropelou Nate para entrar na
cozinhaecomeçouafazerumfondue
dequeijo.
Dominikanuncahaviacomidoo
prato de origem suı́ça, nem sequer
sabia o que era. Assim que icou
pronto,elesseacomodaramà mesae
começaram a conversar e rir
enquanto comiam, molhando o pã o
no queijo derretido, sentindo o
perfumedovinhomisturadonele.
Forsyth e Gable foram embora
depois do jantar. Nate serviu mais
duastaçasdevinhoefoiparaosofá
comDominika.
—Oquevocê fezhojefoimuito
arriscado — disse. — Eu nunca
deveria ter permitido uma loucura
dessas.
— No inal deu tudo certo —
retrucou ela, virando-se para ele. —
Nó s dois sabemos que os riscos
existem.
— Alguns riscos sã o aceitá veis,
outrossã oinevitá veis,masamaioria
éumaburrice.
—Burrice? — cuspiu Dominika.
— Fique tranquilo, Nate, nã o vou
deixar que você perca sua medalha
deespiãodoano.
A palavra “burrice” havia sido
difı́cil de engolir. De sua parte, Nate
també m já estava com o â nimo
acirrado.
— Só acho que você deveria
arranjar outro vı́cio que nã o fosse a
adrenalina—retrucouele.
— Vinho, talvez? — perguntou
ela,eemseguidaarremessoucontra
a parede a taça que tinha nas mã os.
— Nã o, muito obrigada. Pre iro
adrenalina.
Osdois icaram em silê ncio por
um momento. Dali a pouco, Nate se
aproximouea agarrou pelos braços,
dizendo:
—Qualéoseuproblema,hein?
Eles fulminavam um ao outro
com o olhar, separados apenas por
algunscentímetros.
— Qual é o seu problema? —
devolveu Dominika, quase num
sussurro. A sala estava desfocada à
sua volta. Ela via Nate roxo,
granulado. Baixou os olhos para a
boca dele, desa iando-o, querendo
queelechegassemaisperto.Apósum
segundo o momento passou. — Me
solta—exigiu.
Natelargouosbraçosdela.Sem
nem ao menos olhar para ele,
Dominika pegou o casaco, abriu a
porta e, como de praxe, deu uma
olhada rá pida no corredor e no vã o
da escada. Só entã o saiu e
delicadamentefechouaportaà ssuas
costas.
Ele icou olhando para a porta
fechada com a boca seca, o coraçã o
retumbandonopeito.PorDeus,tudo
o que ele queria era que a operaçã o
transcorressesemproblemas.Tudoo
que queria era a segurança de
Dominika.Tudooquequeriaera…
FONDUE DE QUEIJO DO GABLE
Preparar uma redução de vinho
branco com alho, adicionar queijo
Gruyère e Emmental ralado e ir
misturando em fogo médio até
derreter. Engrossar com amido de
milho e água, acrescentar mais vinho
(opcional) e reaquecer (sem deixar
ferver) até que ofondue esteja
cremoso. Servir com pedaços de pão
de campanha ligeiramente tostados.
CAPÍTULO 18
O VERAO JA PEDIA MANGAS
CURTAS. Nas calçadas, enquanto
esperavam o sinal abrir para
atravessar a rua, os pedestres
fechavamosolhoseerguiamorosto
nadireçã odosolcomogirassó is.Na
horadoalmoço,osamplosgramados
e inú meros bancos do parque de
Kaivopuisto
se
enchiam
de
secretá rias aproveitando o calor do
dia.
Nateencontrouobilhetecolado
à sua porta, foi direto para a sala de
Forsythesesentouà frentedele.Viu
que Gable já tinha se acomodado no
sofá . Forsyth lhe mostrou o
cabograma em que o pessoal de
Washington informava sobre a
intençã o do novo diretor da CIA,
recé m-con irmado no cargo, de ir
incó gnito de Copenhague até
Helsinque e icar na cidade por
apenas seis horas, durante as quais
se encontraria com Diva e
expressaria formalmente a gratidã o
da agê ncia pelos serviços que ela já
prestara até o momento. Nate leu o
texto e olhou para Forsyth, depois
paraGable.
— Como ele pretende viajar
incógnito?—perguntou.—Ohomem
está comacaraestampadaemtodos
osjornais.
— Ele vai a Copenhague por
conta daquela histó ria da ONU —
explicou Forsyth. — Como vai
escapulir dos dinamarqueses, aı́ já
nã o faço a menor ideia. Allen Dulles
costumava fazer isso. Angleton
també m. Entrar num aviã o sem
contar nada a ningué m e aparecer
noslugaresdonada.
— Em 1951, porra — retrucou
Gable. — E esses caras viajavam
sozinhos. O sujeito descia do aviã o,
pegava um tá xi pro hotel e até
assinavaa ichanocheck-in.Falando
em aviã o, aquele chapeuzinho das
aeromoças,hum...
Forsythignorou-o.
— Ontem à noite respondi
dizendo “Nã o, muito obrigado”, mas
nã o deu meia hora e o chefã o da
Europa ligou na linha verde pra me
dar um esporro e falar que nã o era
um pedido, que o diretor quer estar
pordentrodocaso.
—Esseaı́é outroquetemoego
do tamanho de um balã o —
comentouGable.—Achaqueestá no
comando de um navio em Trafalgar.
Por acaso você s já leram as bê nçã os
natalinas que ele manda todo ano
prastropas?
Forsythcontinuouaignorá-lo.
— Só vamos poder controlar
as coisas a partir do momento
que eledescer do aviã o — falou. —
Assim que ele passar pelo portã o da
sala VIP, eu o coloco no meu carro,
faço a contravigilâ ncia de praxe,
deixo os capangas dele esperando
numavannaruaenquantosubocom
eleaté oapartamentoparaeletrocar
umapertodemã ocomelaevoltarno
mesmo pé em que veio. Só
precisamosrezarpraqueaFapsinã o
intercepteoplanodevoodohomem.
— A Fapsi era a agê ncia federal de
comunicaçõ es e informaçã o do
governorusso.—Forsytholhoumais
uma vez para o cabograma recebido
de Washington. — Sem dú vida
algué m o colocou a par da operaçã o
Divarecentemente.Bem,pelomenos
é um marketing bacana pro nosso
caso.
— Marketing? — rugiu Nate. —
O cara vai acabar matando a
Dominika!Naminhaopiniã oagente
tinha era que colocá -la no portamalasdeumcarroedespachá -lapra
um im de semana prolongado na
Sué cia. Você nã o pode dizer que ela
nãoestádisponível?
—Não—respondeuForsyth.
—Queelanã oquerseencontrar
comele,então.
— Nã o. Prepare a garota,
mande-a sorrir. Aqueles olhos azuis
vã o cuidar do resto. Vamos mandar
umas comidinhas pra lá , umas
bebidas també m. — Um carro na
esquina,prontoprabateremretirada
—disseGable.
— Mas e a Dominika? —
perguntouNate.—Quemvaipagaro
patosederumamerda?
—Você —responderamGablee
Forsythaomesmotempo.
***
Apó salgunspassosnocorredor,
aportaseabriueDominika icoude
pé parareceberodiretordaCIA.Ele
tirou o casaco, atravessou a sala,
apertou a mã o dela e disse que era
um prazer conhecê -la. Em seguida
apertouamã odeNate,falouqueele
vinha fazendo um ó timo trabalho
com aquela moça adorá vel e abriu
umsorrisoradianteparaela.Por im,
a irmou que ambos podiam se
orgulhar muito do serviço que
estavam prestando aos Estados
Unidos, ao que Dominika torceu o
nariz discretamente. Entã o ela e
todo-poderoso da agê ncia se
acomodaram no sofá e ele des iou a
coleçã odegalanteiosqueherdarade
seusdiascomosenador,pousandoa
mã o no joelho dela de tempos em
tempos para pontuar o que dizia, à s
vezes deixando-a lá mais que o
necessá rio, há bito adquirido nos
gabinetesesalõesdoCapitólio.
Ele era alto e magro, com olhos
afastados, faces encovadas e cabelos
muito brilhantes, pintados de preto.
Dominika decidiu que ele se parecia
com Koschei, o vilã o da mitologia
eslavacujashistó riaselaouviadopai
quando menina. Precisou apertar as
pá lpebrasparavermelhoradiscreta
aura esverdeada que o envolvia na
altura das orelhas. O verde lhe dizia
que ele era sentimental, e també m
quenã oeraoqueaparentavaser.Um
ator.Tão diferente de tio Vanya , ela
pensou,mas ao mesmo tempo tão
parecido com ele. Ambos eram
ratazanas.
Ele perguntou a Forsyth como
era o “ambiente operacional” na
Escandiná via. Todos sabiam que
aquela nã o era pergunta que se
izessenafrentedeumainformante,
entã oDominikasaiuparaacozinhae
voltoudaliapoucocomumpratode
pelmeni, trouxinhas fumegantes
recheadas com carne moı́da e ervas
aromá ticas e cobertas de creme
azedo. Ela insistira em preparar
alguma coisa, seguindo o costume
russo de prestigiar os convidados e
contrariando Nate, que nã o achava
nadadaquilonecessário.
—Delicioso—elogiouodiretor,
comum iodecremeescorrendopelo
cantodaboca.
Ele se limpou com o
guardanapo, depois deu um tapinha
no estofado, sinalizando que
Dominikavoltasseasesentaraoseu
lado. Nate, Gable e Forsyth puxaram
suas respectivas cadeiras para perto
de modo que pudessem socorrê -la
quando preciso. Como se ela fosse
uma possı́vel eleitora, o diretor
perguntou de onde ela era e Gable
pensou nas inú meras noites que
passara em hoté is fedorentos diante
deinformantesnervosos,suandoem
bicas, pobres coitados que se
dispunham
a
correr
riscos
inimaginá veis para estarem ali
compartilhando dados secretos e
ouvindo as orientaçõ es dele com
atençã o, buscando na vodca ou em
qualquer outra bebida alcoó lica a
coragemdequeprecisavamparasair
novamente à s ruas. Mas isso fora
sé culos antes. O que se passava ali,
naquele ensolarado apartamento em
Helsinque, era uma animada
reuniãozinhadeagentes.
Para os russos, falar sobre
sucessos futuros atraı́a o azar. Para
eles,eramelhor icardebicofechado.
OdiretorseaproximoudeDominika
e ela nem sequer ameaçou recuar.
Muitobem,pensouNate,certodeque
Dominika saberia se defender
sozinha. O homem dizia que a CIA
aplaudia os esforços dela, que ele
tinha um interessepessoal em suas
atividadesequeelanãohesitasseem
contatá -lodiretamente a qualquer
hora do dia ou da noite sempre que
precisasse.Nate icoumuitotentado
apedironú merodotelefonedeleem
Bethesda. Lendo os pensamentos de
seu subordinado, Forsyth franziu a
testa, sinalizando que ele icasse
quieto.
Envolvido em sua aura verde, o
falante diretor Koschei agora dizia
algo sobre uma conta bancá ria
secreta.Umaquantiaforadepositada
em nome de Dominika como um
“bô nus de recrutamento”, e outros
valores seriam depositadostodomês
dali em diante. Claro, ela poderia
fazer o que bem entendesse com
aquele dinheiro, mas saques muito
frequentes ou muito altos nã o eram
recomendá veis. Valores maiores
passariam a ser depositados depois
que ela começasse a trabalhar em
Moscou, continuou ele. Dominika
olhouparaNate,depoisparaForsyth.
Ambosestavamimpassı́veis.Koschei
continuava
seu
discurso
interminável.
Aocabodedoisanosdeserviço
interno em Moscou, ele prosseguiu,
um bô nus adicional no valor de 250
mildó laresseriadepositadonaconta
dela. Por im, na data de seu
afastamento, a ser de inidaem
comum acordo entre as partes, a
agê ncia a alocaria no Ocidente, em
lugarescolhidosobretudoemfunçã o
dos parâ metros de segurança, e lhe
providenciaria uma casa de no
mínimo300metrosquadrados.
Osilê nciobaixousobreasala.A
expressã o de Dominika tinha
mudado. Ela correu os olhos por
todos, depois encarou o visitante e
abriu seu sorriso luminoso.Fodeu,
pensouNate.
—Ficomuitogrataqueosenhor
tenha vindo de tã o longe só pra me
conhecer. Já disse ao Sr. Forsyth, ao
Sr. Gable e ao Sr. Nash — falou ela,
apontandoparacadaumdostrê s—
que estou disposta a ajudá -los do
modo que puder. No entanto, minha
prioridadeé ajudarmeupró priopaı́s,
a Rú ssia. Agradeço tudo o que o
senhor me ofereceu, mas, desculpe,
nãoestoufazendoissopordinheiro.
Olhava
calmamente.
para
o
diretor
—Ah,claroquenã o—retrucou
Koschei, e deu mais tapinhas no
joelho dela. — Mas todos nó s
sabemos como o dinheiro pode ser
útil,nãoé?
— Sim, o senhor tem razã o —
concordouDominika.
Nate podia ver que ela estava
irritada. Forsyth també m. Gable
começou a zanzar pela sala,
recolhendocasacos.
— Sr. diretor, infelizmente
precisamos ir — disse Forsyth. —
Temosumaviagemdemeiahoraaté
oaeroporto.
— Muito bem, entã o —
respondeu o homem. — Foi um
grande
prazer
conhecê -la,
Dominique. Você é uma mulher
muito corajosa por correr esses
riscosterríveis.
Meu Deus, só falta ele dizer
quanto tempo ela ainda tem de vida,
Natepensou.
—Nã oseesqueça—prosseguiu
odiretor,levantando-separaabraçar
Dominika. — Se precisar, é só me
ligar.
Ah,claro,assimelepodepegarna
sua mão para te ajudar a pular a
cerca de arame farpado lá na
fronteira, depois correr dos cachorros
com você através do campo minado,
pensouGable.
Forsythajudouosujeitoavestir
o casaco e entregou-lhe o chapé u
enquantoGabledesciaparaalertaro
destacamento de seguranças. Alguns
instantesdepoisodiretorsaiuparao
corredoreForsyth,antesdesegui-lo,
parou à porta, deu uma piscadela
paraDominikaeNateedisse:
—Falocomvocêsdepois.
DominikaeNatetambé mforam
paraaportae icaramalifeitorecé mcasados despedindo-se do tio
rabugento que havia aparecido para
ojantardedomingo.
Natefechouaportadevagareo
apartamento clandestino voltou à
calma de antes. Dali eles podiam
ouvir os barulhos lá de baixo: as
portas dos carros se fechando e os
veículosarrancandonarua.
— Entã o — falou Nate —,
gostoudodiretor?
***
A luz lançada na baı́a pelo sol
que se punha no horizonte dava-lhe
um aspecto sobrenatural. Vozes
alegres entravam no apartamento
pela janela aberta. Dominika e Nate
estavam sentados quase no escuro,
elanosofá,eleemumacadeira.Havia
duas taças de vinho intocadas na
mesa de centro. A luz ambiente
incidiasobreoscabelosdelaesobre
oscı́liosdoolhodireito.Elausavaum
vestido justo com sapatos de salto
alto, algo perfeitamente adequado
també m para uma entrevista de
emprego.Nã oestavacomvontadede
conversar,eNatenã osabiaaocerto
o que dizer, receando que suas
discussõ esanteriores,eagoraaquela
visita,ativessemdesgastadoaponto
de fazê -la desistir de tudo. Era ele o
operador daquela agente. Era
responsabilidade sua manter o caso
emandamento.
Merda,
ele
pensou.Muitos
agentes são perdidos por causa da
contrainteligência, ou por falta de
sorte,ouporummautiming,tipovocê
se atrasa meia hora, perde o trem e
depois disso tudo muda. Mas quem já
ouviufalardeumoperadorqueperde
a informante porque ela acha que
todososamericanossãobabacas?Ele
já podia imaginar o falató rio em
Washington, na cafeteria do QG:
“Isso, o Nash, em Helsinque. O
mesmo cara que pisou na bola em
Moscou.Osboatostinhamumfundo
deverdade,a inal.Sempretê m.”Cedo
ou tarde ele receberia o fatı́dico
telegrama: “Hora de voltar pra casa,
Nate. Ficar de molho por um tempo,
conversar sobre seu futuro.” Seu pai
escreveria: “O bom ilho à casa
torna!” Ele começaria a descer a
ladeira ı́ngreme e escura rumo ao
fundo do poço. Em meio a esses
pensamentos, de repente notou que
Dominika se levantara e ia em sua
direção.
A escuridã o do cô modo a
afetava de um modo estranho, era
como se ela se encontrasse no
interior de um casulo invisı́vel.
Dominikaparounafrentedelee icou
olhando-odecima.Ohalovioletaera
o mesmo de sempre, mas parecia
emanarumestranho calor. Ela sabia
que ele estava sofrendo, o
pro issional exemplar que se
preocupava com o rumo da carreira,
mashaviacertavulnerabilidadesoba
capa da seriedade pro issional.
Independente do que ele sentia por
ela (por enquanto uma incó gnita),
toda aquela preocupaçã o a respeito
desuasegurançanã odeixavadeser
afetuosa. Ela mesma já começava a
sentirapressã odevivercomaquele
segredo inconfessá vel. A princı́pio
motivada pela raiva, ela se colocara
naquele novo papel, um papel
diferente. Passara para o lado dos
americanos porque con iava neles. E
eles
cuidavam
dela,
eram
profissionais.
Mas izera isso principalmente
por Nate. Caso ele houvesse
perguntado, ela teria dito que nã o
tinha a menor intençã o de recuar e
desistir.
Estava
determinada,
convicta.
No entanto, naquele momento
Dominikaprecisavadealgomaisque
a
adrenalina
dos
segredos
inconfessá veis, que a consciê ncia de
quesuadeterminaçã oeramaiorque
a de todos os demais, de que estava
dando uma bela rasteira nas forças
do Sr. Putin. Precisava que algué m
precisasse dela. Precisava queele
precisasse dela. Podia sentir seu eu
interiorabriraportaedarumpasso
parafora,juntocomumatorrentede
sentimentos. Ela se abaixou, apoiou
as mã os nos braços da cadeira de
Nateebeijou-onaboca.
Nã o previra isso. (Sabia queele
nã o previra.) Tanto no serviço
americano quanto no russo era
estritamente
proibido
o
envolvimento fı́sico entre dois
agentes. Complicaçõ es emocionais
eram fatais para uma operaçã o
clandestina. Nã o era à toa que as
mulheres que agiam como pardais
eramtiradasdecirculaçã ologoapó s
as
arapucas
sexuais,
sendo
substituı́das por um homem que
assumia o comando dos trabalhos.
Ningué mchegaalugaralgumquando
aspaixõ essemisturamaosnegó cios,
quando um agente começa a pensar
com a cabeça de seukhuy, tal como
os velhinhos que ela tivera como
instrutores em Moscou gostavam de
dizersóparafazê-lacorar.
Agoraelaestavanosbraçosdele,
beijando-o nã o sofregamente, mas
devagar e com delicadeza. Os lá bios
do americano eram quentes, e ela
queriasorvê -los.Sentiaumapressã o
crescer em seu corpo, dentro do
crâ nio,nosseios,entreaspernas.As
mã os dele estavam pressionadas
contra suas costas e ela gostava
disso, sentia-se à vontade, tinha a
impressã o de que os dois eram
velhos amigos de infâ ncia que agora
haviam se descoberto adultos. O
há lito quente e violeta dele entrava
por sua orelha e ela o sentia
percorrersuaespinha.
— Dominika — disse ele,
ameaçandoparar.
Diasanteseleshaviamtidouma
discussã o sé ria, era loucura se
envolverdaquelejeito,aestabilidade
docasodependiade...
—Zamolchi.Calado,seubobo—
sussurrou ela em resposta, roçando
oslábiosnorostodele.
A mente de Nate girava num
misto de indecisã o, medo e desejo.
Nã o havia dú vida de que ele queria
aquelamulher,maseraumaloucura,
uma
irresponsabilidade.
proibido.
Era
Ele mal soube o que aconteceu
depois. Quando viu, os dois estavam
a caminho do quarto, nus e
explodindo de desejo. Dominika
passava as unhas de leve entre as
pernas dele, pensando que podia ter
acabado de descobrir uma nova
té cnica de alcova. Segundos depois
eles estavam subindo naquela cama
ridı́cula, espremida entre duas
paredes.Aindausandoasunhaspara
excitá -lo, agora com um pouco mais
deforça,Dominikaria,abocasecade
desejo. Estava inebriada, achando
irrealsentirapeledoamericanopela
primeiravez,tantonasmã osquanto
nos lá bios, que agora passava pela
barriga dele. Nate olhou para
Dominika surpreso quando ela
plantouambasasmã osemseupeito
eoempurroucontraacama.Fogosa
e doce, tı́mida e devassa, ela
continuava a saboreá -lo, e era como
se eles fossem amantes desde
sempre. Em nenhum momento ela
pensou no que aprendera na Escola
de Pardais, em té cnicas numeradas.
Simplesmenteoqueria.
Aquela altura o desejo já se
tornava incontrolá vel. Dominika
sentia seu eu secreto se expandir
sem nenhum controle, invadir sua
mente, comprimir sua garganta. No
ú ltimo instante Nate a jogou de
costas sobre a cama e ela ergueu as
pernas trê mulas para recebê -lo. O
luar transbordava para dentro do
quarto, ofuscando a visã o de
Dominika, que só via a silhueta de
Nate acima dela, depois nem isso,
apenas sentia o peso dele
subjugando-a. De repente ela sentiu
seu corpo se expandir, uma
experiê nciaa litivamentedeliciosa.O
luar parecia saltitar sob suas
pá lpebras fechadas, e só lhe restava
esperar que seu corpo frá gil e
vulnerá vel nã o se desmanchasse
comoumafolhadepapel.Logoelafoi
invadida por uma onda de urgê ncia,
seguida por uma torrente vinda das
profundezas de seu ser, muito mais
intensa que todas as demais, que a
envolveuemumturbilhão.
— Bohze moj — foi o que lhe
escapou da boca enquanto ela
revirava os olhos num estado de
graça.
Depois eles icaram deitados
lado a lado sob o luar. Dominika
esperouqueascoxasseacalmassem
antes de se virar para Nate,
encharcado de suor, e soprar no
ouvidodele:
—Dushka,você realmentesabe
comooperarumainformante.
O ar noturno ainda nã o havia
secado seus corpos quando eles
ouviramumachavegirarnaportado
esconderijo. Os dois saltaram da
cama no mesmo instante. Nate
correu para a sala, recolheu suas
roupas e se vestiu no quarto o mais
rá pido que pô de. Dominika també m
pegou as pró prias peças e entrou
rá pido no banheiro. Ao voltar à sala,
Nate encontrou Gable na cozinha,
vasculhandoageladeira.
— Depois daquele tour de force
dodiretor,acheiquedeviavoltarpra
tentar minimizar o estrago — disse
ele. — Nã o sobrou trouxinha
nenhuma?
— Na prateleira de baixo —
falouNate.—Poisé .Converseicoma
Dominika sobre aquela merda toda.
Acho que ela consegue ver a
diferençaentreagenteeos igurõ es
daagência.
—Quasememijeiderirquando
ela soltou os cachorros pra cima do
pavã o — comentou Gable, apoiando
sobre a bancada a travessa com os
restos da comida. — Mas você
conseguiuacalmá-la,certo?
— Conseguiu, sim,Bratok —
respondeu a pró pria Dominika,
saindo do banheiro. — Já estou bem
mais tranquila agora. — Estava
completamente vestida, com os
cabelos penteados e as feiçõ es
compostas. Assim como Nate,
percebia muito bem o ar de
curiosidadedeGable.—Podedeixar
que eu esquento isso aı́. Fica bem
mais gostoso da segunda vez,
sobretudo quando a gente frita. —
Ela acendeu o fogã o, colocou uma
frigideirasobreofogoedespejouas
trouxinhas para dourá -las na
manteiga.—Masagoraelasvã o icar
melhorescomvinagre—disse.
A conversa
iada ainda
prosseguiu por mais um tempo, e
depois eles começaram a comer
calados, junto à bancada da cozinha,
cadaumcomsuatigelanasmã os.De
vezemquandoGablerelanceavaNate
e Dominika. Nate fazia questã o de
manterosolhos ixosnacomida,mas
Dominika o
itava de volta
tranquilamente,lendoascoresdesua
aura.Terminadaarefeiçã o,Gablefoi
paraapiaearrumoualouçaládentro
para lavá -la mais tarde. Dominika
vestiuseucasacoesedespediu,mas
nemsequerolhou para Nate quando
eleaacompanhouatéaporta.
Agora que ele estava sozinho
comGable,nã oteriacomoevitá -lo.O
homem veio da cozinha com dois
coposnumadasmã oseumagarrafa
de uı́sque na outra. Deixou os copos
namesadecentroedisse:
—Espereuminstante,DonJuan,
queeuvoubuscarogelo.
TROUXINHAS PELMENI
Preparar a massa com farinha,
ovos, leite e sal, depois abri-la e cortar
rodelas de 6 cen metros de diâmetro.
Fazer o recheio com três pos de
carne moída (vaca, porco e frango) e
temperá-lo com cebola ralada e alho
amassado. Colocar um pouco de
recheio no centro de cada rodela,
erguer as bordas e amassá-las para
fechar. Cozinhar em água fervente até
que as trouxinhas subam à super cie.
Servir com creme azedo.
CAPÍTULO 19
— VOCE NAO SEGUROU A
ONDA? — perguntou Forsyth,
debruçando-se sobre sua mesa. —
Aosolhosda Diretoria de Operaçõ es
você está coordenando uma das
informantes
russas
mais
promissoras da ú ltima dé cada e nã o
t e ma disciplina de manter o pinto
dentrodascalças?
— Chefe, sei que foi um erro,
masnãoplanejeinada.Aconteceu.Ela
estava puta com o diretor. O cara
chamou ela de Dominique. Ela já
vinhasofrendocomtudoisso,coma
pressã o e tal. Estava precisando de
umombroamigo.
— De umombro amigo? —
retrucou Gable, sentado como
semprenosofá à scostasdeNate.—
E assim que você s chamam isso
agora?
Forsyth, normalmente afá vel e
gentil,estavasé rio.EncarouNateaté
fazeromaisjovemdesviaroolhar.
— Nesse caso, o que você
deveriaterfeitoerabemdiferente—
falou.—Conversarcomela,oferecer
apoio,masnão...
—Nã opularemcimadelafeito
umcoelhonocio—completouGable.
— Feito um coelho no cio,
exatamente—concordouForsyth.—
O que acha que pode acontecer se
essarelaçã odevocê sforprobrejo?E
se daqui a quatro meses você s
brigaremeelanã oquisermaisvera
suacara?
— Algo bem fá cil de acontecer
—observouGable.
—Elavaicontinuartrabalhando
pra CIA? Ou será que está fazendo
tudo isso só porque está encantada
comoseu...
— Seu mastro de macho —
concluiuGable,esparramadonosofá.
— Mastro de macho? — rugiu
Forsyth, e se virou para Nate, que
aindariadocomentá riodeGable.—
Presteatençã o,Nate.Apesardetodas
asinformaçõesqueelanostrouxeaté
agora,eapesardejá terpassadopelo
detectordementiras,essaDivaainda
é um ativo novo. Precisamos vê -la
operando
produtivamente
até
termos certeza absoluta de que o
recrutamento deu certo. Isso
signi ica que nã o con iamos nela?
Sim e nã o. Nunca dá pra con iar por
completo num informante. Tenho
experiê ncia com os russos. A certa
alturaelescomeçamaenrolar,afazer
drama, a dizer que estã o com
saudades de casa. Muitos piram de
vez. Lembra do Yurchenko dando
tchaudaescadadoaviã odaAero lot?
Divapareceserforte,mastambé mé
temperamental, impulsiva. — Aqui
ele ergueu a mã o antes que Gable
pudesse fazer mais um de seus
comentá rios infantis. — Sua
responsabilidade como operador é
coletar
as
informaçõ es
de
inteligê ncia, garantir a segurança da
suainformante,sublimarasemoçõ es
e fazer dessa moça a melhor agente
quevocêpuder.
—Sublimar—repetiuGable.—
Issoquerdizer:nãotrepar.
— Quando você chegou aqui
viviachorandopeloscantos,dizendo
queprecisavafazerumrecrutamento
importante,depoisconseguiufisgara
russinha e só queria saber de
proteger o caso, proteger sua
reputaçã o de agente... Porra, Nate.
Está na hora de começar a operar
essa moça como um pro issional.
Pensarcomacabeçafriae...
—Acabeçaqueestá emcimado
ombro—interrompeuGable.
—...enuncaesqueceroestrago
que uma relaçã o amorosa pode
trazer,tantoparaocasoquantopara
a moça. Precisamos começar a
pensar no retorno dela pra Moscou.
Nã otemosnenhumaideiadetiming.
Talvez ela se recuse a trabalhar nas
internas, entã o sugiro que você
comece a plantar a ideia na cabeça
dela, a prepará -la para quando esse
diachegar.
— Sim, senhor — disse Nate,
inalmente erguendo os olhos para
Forsyth.
— Estamos entendidos? —
perguntouele,dando a conversa por
encerrada.
—Estamos,estamos,estamos—
retrucouNate.—Foimal.Valeupelo
toque,chefe.Pode icar tranquilo, eu
voumeemendar.
— Otimo — falou Gable. —
Agora posso mandar tirar aquelas
quatro câ meras escondidas no
apartamento.
Natearregalouosolhosparaele.
Forsythpermaneceusério.
— Estou brincando, Romeu —
disseGable.—Só estouzoando.Nã o
tiveestômagopraverasfitas.
Forsyth e Gable teriam
continuado tripudiando de Nate nã o
fosse o sinal que ele recebeu de
Dominika no dia seguinte. Quando
entrounocarro,elenotouquehavia
vaselina sob a maçaneta do lado de
dentrodaportaeteveasensatezde
nã orecolheramã oapressadamente.
Sabia que se tratava de um sinal de
emergê ncia deixado por Dominika,
que signi icava que eles deviam se
encontrardaliadozehoras.Ooutono
já chegara, e a noite estava fria. O
climadeixavaopara-brisadoscarros
embaçado e fazia com que ondas de
vapor escapassem pela ventilaçã o.
Forsyth, Gable e Nate já esperavam
no esconderijo e repassavam as
orientaçõ es de emergê ncia. Talvez
elaestivessefugindodealgué moude
alguma situaçã o. Nate já checara a
programaçã o de voos e balsas. O
contato de Gable no serviço secreto
inlandê s estava em alerta. Archie e
Veronica faziam plantã o junto ao
telefone. Logo, só restava aos trê s
o iciais da CIA esperar. Todos eram
experientes o bastante para nã o
conferir o reló gio a cada cinco
minutos.
Nate se levantou assim que
ouviu a chave girar na fechadura e
eleslogoviramqueestavatudobem,
poisosolhosdeDominikabrilhavam
mais que de costume e as faces
estavamcoradas,nã osó emrazã odo
esforço realizado para despistar
possı́veisvigilantes,masporalguma
outracoisatambém.
Gablelhedeuumaxı́caradechá
bemquenteeelacomeçouasopraro
lı́quido ao mesmo tempo que
relatava sua histó ria, indo direto ao
ponto, tal como era ensinado em
todas as escolas de espionagem.
Queria impressioná -los. Na vé spera,
um homem nã o identi icado
aparecera na embaixada russa e
entregaraaosegurançaumenvelope
no qual estava escrito em letra de
imprensa:ENCAMINHARFECHADOA
M.VOLONTOV.Entregaraoenvelope
e saı́ra antes mesmo que o asno à
portaria perguntasse o nome dele. O
segurança subira imediatamente
para fazer a entrega aorezident
Volontov, que encontrara um
segundo envelope no interior do
primeiro. Entã o ele pedira que ela,
Dominika, fosse à sua sala e
traduzisseobilheteeminglê squelhe
fora mandado. O texto, també m em
letra de imprensa, dizia que o
remetente oferecia ao SVR um
manual té cnico americano pela
quantia de 500 mil dó lares e
propunha um encontro no Hotel
Kämpdaliacincodias.
Dominika olhou para Nate,
depois para Forsyth e Gable, bebeu
um gole do chá e só aı́ prosseguiu
com sua histó ria. Dentro do tal
envelope havia uma segunda pá gina
com trê s furos na margem que
parecia ter sido arrancada dos aros
de um ichá rio. No alto e embaixo
vinha
o
carimbo:
CONFIDENCIAL/UMBRA. Em negrito,
otítulo:USNationalCommunications
Grid.Umadasorelhasforacortadana
diagonal. Volontov estava nervoso,
quasepá lido.Pediraqueelarepetisse
duas vezes as advertê ncias que
vinham logo abaixo do tı́tulo:
“Distribuiçã o nã o autorizada”, “Se
encontrado,devolveraoEscritóriode
Coordenaçã o”, “Uso indevido sujeito
aprocessopenal”.
Volontov icara pá lido, em
seguida rugira para que ela izesse
umacó piadodocumento,já que, iel
ao espı́rito bajulador sovié tico, ele
fa zi aquestão que o original fosse
encaminhado diretamente ao vicediretor Egorov, por malote e em
caráterprioritário.
ForsytholhouparaGable,quejá
estavadepé vestindoocasaco.Nesse
momento Dominika levantou o
sué teretiroudocó sdasaiaumpapel
dobradoparaentregaraForsyth.Ela
izera uma segunda có pia, e os
americanos se juntaram para
examiná -la. Ao ver a orelha cortada,
Gabledisse:
— O ilho da puta cortou o
nú mero de sé rie. — Depois se virou
para Dominika. — Pensei que já
tivesse dito pra você nunca mais
fazerumabesteiradessas.
Em seguida, curvou-se para dar
um beijinho na cabeça dela e saiu. O
cabograma que pretendia redigir
seriarecebidoemWashingtondalia
meia hora. Gostava de mandar
comunicaçõ es à noite só para
infernizaravidadaquelescomedores
derosquinhas.
Dominika
informou
que
Volontov permanecera agitado o
resto do dia. Chamara-a até sua sala
um monte de vezes. Mesmo um
patetacomoeleeracapazdeverque
aquilo era um presente caı́do dos
cé us. Pró ximo ao im do expediente,
ele decidira ligar direto para Vanya
Egorov, nã o só para relatar os
ú ltimos
acontecimentos,
mas
també m para realçar todo o seu
potencial e avisar do malote que ele
receberia.Omotivoprincipal,poré m,
era mostrar ao vice-diretor queele,
Volontov,
estava
cuidando
pessoalmentedetodaaoperação.
O rezident pedira que ela o
deixassesozinhoparafazeraligaçã o,
mas Dominika conseguira ouvir
todas as gargalhadas desnecessá rias
e todo o servilismo. Era mesmo um
l’stets, um puxa-saco. Terminada a
ligaçã o, Volontov a chamara pela
ené sima vez para informar que o
vice-diretor, naturalmente, acatara a
sugestã o de que ela, e apenas ela, o
ajudassenanovaoperaçã o.Caberiaa
Dominika preparar os fundos. O
primeirosaqueseriadeapenas5mil.
Ela també m icaria responsá vel por
reservar o quarto no hotel e, mais
tarde, servir de inté rprete na
conversacomoamericano.
Semqueelasoubesse,Volontov
també m telefonara para o o icial da
Linha KR, o tal que operava na
fronteiracomaRússia.
— Quero que você faça a
contravigilâ nciadeumencontroque
tereineste imdesemana.Nosaguã o
do Hotel Kä mp. Vá pra lá e ique de
olho.
—Umencontro?—perguntouo
sujeito. — De quantos homens
precisaremos?Vamosestararmados,
claro.
— Nã o, imbecil. E só você . Sem
arma nenhuma. Basta icar sentado
nosaguã odohoteldeolhoemtudo.
Depois que eu subir com ele pro
quarto, você continua esperando até
a gente voltar, até me ver sair,
entendeu?
O homem da KR disse que sim,
masficoudesapontado.
Nate saiu com Dominika do
apartamento depois de uma hora.
Dali em diante, seguiriam as regras
de Moscou: nada de encontros
desnecessá rios, sobretudo à luz do
dia. Redobrar a atençã o a esquemas
de vigilâ ncia: sempre partir do
princı́pio de quehá um em
andamento. Evitar os encontros
ostensivamentesociais.Procurarnã o
sair das imediaçõ es da embaixada
até queoencontronoHotelKä mpse
realizasse. Sem dú vida Volontov
estariacomasantenasempé,deolho
em todo mundo. Nã o correria
nenhumtipoderisco.
Naestação,Gabledisse:
— Tem coelho nesse mato, eu
aposto. Precisamos agir com muita
cautela. Se algué m resolver melar
esse encontro no hotel, o imbecil do
americanovaipreso,oSVR icasemo
manual e... e Dominika é a ú nica
pessoa do SVR, fora o coronel, que
sabedaoperação.
Forsyth enviou um cabograma
de circulaçã o restrita ao QG,
alertando sobre os riscos que
cercavamDiva.O chefe europeu, por
sua vez, icou chocado,chocado, ao
ler a sugestã o da estaçã o inlandesa
de
que
eles
simplesmente
identificassemotraidor,poisoFBIse
responsabilizaria pelo caso assim
que o homem voltasse para os
EstadosUnidos.Paraochefenã oera
aceitá vel nem sequerpensar num
plano que resultasse no vazamento
deinformaçõ escruciaisrelacionadas
à segurança nacional — pelo menos
nã o enquanto fosseele quem
e s t i v e s s eno leme da divisã o
europeia.
Quando Elwood Maratos, 52
anos, adido jurı́dico da embaixada
norte-americana, agente especial do
FBI,irrompeunasaladeForsythpara
“coordenar a detençã o”, eles logo
viramqueahistó riajá foraespalhada
pelos quatro cantos de Washington.
Maratos se destacara numa carreira
de 25 anos como investigador de
assaltos a banco no Meio-Oeste
americano.Agora,sentadoàfrentede
ForsytheGablecomospé semcima
da mesa, ele dizia que se tratava de
um caso de espionagem perpetrado
porumcidadã oamericanoequepor
isso nã o havia dú vida: a jurisdiçã o
eradoFBI.
— No cu dele — disse Gable
assimqueoadidosaiu.
Aquestã oeraque,senadafosse
feito,umadú ziadeagentesespeciais
do FBI invadiria Helsinque como se
estivesseemcasaeaú nicacoisaque
a estaçã o poderia fazer seriatentar
manterosbrutamontessobcontrole.
ForsythnamesmahorainstruiuNate
a preparar um plano de ex iltraçã o
paraDiva.Erabempossı́velqueeles
tivessem de tirá -la do paı́s caso
acontecesse alguma merda e os
russos começassem a se perguntar
porquê.
Entã o, algo ocorreu no QG, sem
dú vida uma reuniã o importante
entre os chefõ es, pois de uma hora
paraoutraeles perceberam o perigo
que a operaçã o representava para
Diva.Maistardealgué mcontariaque
foi Simon Benford, chefe da
contrainteligê ncia,quemderaumde
seus famosos ataques histé ricos,
dizendoquequalquerdescuidocoma
informante russa poderia resultar
numa “lambança sem precedentes”.
Isso explicava os dois cabogramas
que chegaram no terceiro dia, dois
antes do encontro no Hotel Kä mp. O
cabeçalho do primeiro dizia “Chefe
da Europa, direto para chefe de
estaçã o”.Osegundoforaredigidopor
Benford, com sua habitual economia
depalavrasquebeiravaagrosseria,e
propunha uma jogada operacional
que chegava a eriçar os pelos até
mesmo de Marty Gable, um macaco
velho que tinha na sua sala um
cinzeiro feito de um crâ nio humano
provenientedoCambojaoudeMiami
—elenãoselembravamuitobem.
Aprimeiracomunicaçãodizia:
Favor confinar a este
canal todo o trânsito
futuro de informações
sobre o ref. caso. QG
confere prioridade
máxima sempre que há
risco iminente da
venda ilícita de
material confidencial
para o SVR. Estação
instruída a coordenar
com o representante
do FB I na embaixada,
já devidamente
orientado por seus
superiores em
Washington. QG
confirma à estação que
FB I possui prioridade
nos procedimentos
inves gatórios e
operacionais em todos
os casos que envolvam
ameaça à segurança
nacional e cidadãos
americanossuspeitos de
algum crime federal,
segundo rezam o artigo II
da Lei de Reforma dos
Serviços de Inteligência
de 2004, o Decreto
Legislativo 12.333 e a
Declaração de Intenções
50 USC 401.
Solicitamos que a estação
dê apoio total às
investigações do FBI
sempre que necessário.
QG naturalmente
preocupado com a
segurança do ativo Diva
na hipótese de prisão do
cidadão americano.
Reiteramos que a estação
deve implementar todas
as medidas cabíveis que
garantam a segurança
operacional do ref. ativo.
Favor reportar avanços
por meio de cabogramas
de precedência imediata,
incluindo mensagens
noturnas de caráter
emergencial. QG sempre
às ordens. Bons ventos e
boa proa.
Asegundadizia:
Relatório ref. Diva
recebido. Diva tornandose excelente fonte.
Parabéns.
Concordo que qualquer
passo em falso na manip.
do voluntário americano
poderá colocar Diva sob
suspeita. Nesse caso,
plano de exfil. deverá
estar pronto e operante.
QG preparado para
processamento de
defecção e acomodação.
A despeito das ações que
se façam necessárias,
nossos objetivos são
identificar o voluntário,
efetuar sua prisão sem
alertar o SVR e permitir,
repito, permitir que o
SVR receba o manual de
modo que suspeitas não
sejam levantadas na
contrainteligência russa.
O FBI será orientado
sobre oportunidade de
ação secreta e obedecerá
às instruções da estação
no sentido de atingir as
metas da administração
central.
Para informação da
estação, no ano passado
o Departamento de
Defesa produziu um
manual modificado
(SOLAR) idêntico à cópia
oferecida para venda em
Helsinque. Essas
modificações, de
natureza confidencial,
foram incluídas de forma
deliberada para produzir
confusão e
desinformação.
Manual SOLAR será
levado pessoalmente por
um pesquisador do
OSWR, que sairá de
Washington na noite do
dia 17 e chegará a
Helsinque na manhã do
dia 18. Favor receber e
acomodar.
Assim que possível,
submeter proposta
operacional para a
substituição dos
manuais.
Desconsiderar as
instruções do cabograma
anterior.
Toda a preparaçã o foi feita, os
té cnicos, chamados, houve uma
ú ltima reuniã o com Diva na vé spera
do contato. Eles mostraram a ela
todos os desenhos, izeram uma
có pia da chave de hotel con iada a
ela,repassaramtodasasinstruções.
— Está tudo sob controle, Nate
—afirmouela,umpouconervosa.
Nate ainda tentou ressaltar os
riscoseperigosdaoperaçã o,masela
nã o quis ouvir. Ele abriu o mapa
sobre a mesa e marcou a esquina
onde um carro estaria esperando na
hipó tese de fuga. Dominika percebia
a preocupaçã o dele, mas se
perguntava a que exatamente os
temores se referiam: a ela ou ao
sucesso da operaçã o. Nate, o
operador, estava de volta, a mesma
auradesempre.
A conversa icara sé ria demais,
entã o eles interromperam os
trabalhosparaumjantartardio.Foia
vez de Forsyth ir para a cozinha. Ele
nã o era nenhum exı́mio cozinheiro,
mas ainda assim Dominika icou
encantadaaovê -lodeaventaleluvas,
cercado de sua perene aura celeste,
tirando um recipiente quente do
forno. Na verdade, ele sabia fazer
apenas um prato:um a soubise,
espé cie de arroz ao forno com
cebolascaramelizadas.
Antevendo o desastre, Gable
levara kebabs de cordeiro que
comprara na rua. Eles comeram em
silêncio.
Dali a pouco, Dominika olhou
paraoreló gioeviuqueprecisavair.
Antesdeabriraporta,ergueuagola
docasacoedisse:
—Boasorteamanhã.
Nate icou admirado. De todos
que estavam ali, ningué m precisaria
desortemaisdoqueelamesma.
—Pravocê també m—retrucou.
—Vaidartudocerto.
—Agentesevê daquiaunsdias
—falouDominika,calçandoasluvas,
prestes a abrir a porta.
Esperando. Ouvindo os ruı́ d os de
louça sendo lavada na cozinha.
Olhando para Nate com seu sorriso
deMonaLisa.
— Quero que você tome muito
cuidado—falouele.
Ela olhou por cima do ombro
dele na direçã o do quartinho
banhado peloluar, mas Nate nem
piscou e ela icou um tanto
desapontada.
— Spokoinoi nochi, Nate. Boa
noite—disse,esaiu.
Jamais fazia barulho ao descer
aquelaescada.
Eles começaram a apagar as
luzesdoapartamento,preparando-se
para sair també m. Já passava de
meia-noite.Forsythfalavaaomesmo
tempoquefechavaumajanela:
—Nã oquerosaberdeningué m
bancando o heró i logo mais,
entendido? Ningué m rondando
aquele hotel, dando bandeira nas
ruas.
—Entendido—retrucouNate.
—Querodizer,nocasodealgum
contratempo amanhã , ningué m
precisa entrar no modo operaçõ es
especiais.
—Certo,chefe.
Nate sabia muito bem o que
fazer, mas nã o queria afrontar seu
superior.
— Se der algum problema, a
primeira medida é avaliá -lo, para só
depois decidirmos como agir. Mas o
desempenho de Dominika nesse
encontro de logo mais será
fundamental.Elavaiprecisarefetuar
atrocadosmanuais.Senã oforcapaz,
seja lá por que motivo, a operaçã o
teráidoprobrejo.
Gablevoltouàsalaedisse:
— Amanhã a esta altura o
pessoal do SVR já vai estar
comemorando,
pensando
que
levaram o material autê ntico. Em
Moscou,nenhumasuspeita,sófesta.
Os trê s começaram a pegar os
casacos para ir embora. O que
precisasse ser dito teria de ser dito
naqueleexatomomento,já que,uma
vez na rua, cada um tomaria o
pró prio caminho, sem abraços, sem
despedidas.
— Resumindo — disse Nate —,
agenteamandasemeternumninho
de marimbondo pra ajudar nessa
fraude.
— Fraude? Isto aqui nã o é Las
Vegas, Nate — retrucou Gable. —
Vamos tentar protegê -la de todas as
maneiras. Mas você vai ter de
cooperar, meu chapa. Esfria essa
cabecinhaaí,senão...
Ao saı́rem do pré dio, os trê s se
separaramnofrio da madrugada. Os
bondesjá haviamparadodecircular,
e Nate precisou fazer uma longa
caminhada até o carro. Ainda sentiu
um pouco da vaselina na maçaneta.
Sentou-seaovolantee icouolhando
para o painel do carro enquanto a
mentevagava.Viuasimesmodiante
do apartamento de Dominika,
esmurrando a porta, ela numa
camisolinha diá fana jogando-se nos
braçosdele,cobrindo-o de beijos... E
foi entã o que ele recobrou o juı́zo,
balançouacabeçaesaiucomocarro,
sempreatentoaosretrovisores.
A SOUBISE DE FORSYTH
Cozinhar uma porção de arroz
por cinco minutos em água com sal.
Numa panela pequena, caramelizar
ligeiramente as cebolas na manteiga,
despejar o arroz já cozido, cobrir e
levar ao forno em temperatura média,
mexendo de vez em quando até
dourar. Antes de servir, misturar
creme de leite e queijo Gruyère ralado.
CAPÍTULO 20
FORSYTH,NATEEUMTECNICO
chamadoGinsburgestavamsentados
em cadeiras imperiais estofadas de
veludovermelhonumdosquartosdo
elegante Hotel Kä mp. Olhavam com
ceticismoparaopapeldeparedeem
seda locadaeparaodosseldecetim
sobre a cama. O barulho do trâ nsito
na Norra Esplanaden vazava
discretamentepelasportasfrancesas
davaranda.Ostrê sestavamemvolta
de uma das mesinhas douradas ao
lado da cama, sobre a qual se viam
dois laptops, um celular, um
minirreceptor de sinais e um
Motorola SB5100 criptografado (os
rá dios, apesar do tamanho, seriam
mais seguros que os celulares,
sobretudo se os russos estivessem
monitorandotodososcanaisdurante
o encontro com o voluntá rio
americano). Os laptops exibiam
imagens diferentes: o primeiro
mostrava o quarto vizinho, onde
estava Dominika, quase idê ntico ao
deles.Osegundoexibiaointeriordo
banheiro dos aposentos dela. Ambas
as imagens eram capturadas do alto
comumaamplitudede270graus.
Obedecendo à s instruçõ es de
Volontov, Dominika reservara o
quarto no Kä mp com alguns dias de
antecedê ncia, tempo su iciente para
que os té cnicos da CIA pudessem
prepará -lo. Da noite para o dia eles
haviam instalado duas câ meras sem
io, uma no teto entre os elaborados
ornamentos de gesso e a outra no
banheiro, no interior de um duto de
ventilaçã o.Osaparelhostransmitiam
sinais criptografados para o
minirreceptor no quarto vizinho; as
imagens eram exibidas e gravadas
pelos laptops. Do tamanho de um
isqueirocomum,ascâ merastambé m
abrigavamumminimicrofonedigital.
Gable estava numa van
estacionada diante do hotel,
acompanhado de Maratos e trê s
outrosagentesespeciaisdosetorde
contraespionagem de Washington.
Para
desgosto
de
Maratos
(sentimento que ele mal conseguia
disfarçarebeiravaasraiasdafú ria),
Forsythvetaraapresençadeagentes
do FBI no quarto, em parte para
contê -los e controlá -los, mas
sobretudo para evitar que vissem
Dominika. Nã o queriam expor um
ativodaCIAaoFBI.
Os FEEBs, como os agentes do
FBI eram conhecidos, haviam feito
jogoduroemWashington.Tinhamse
recusado a aceitar que o voluntá rio
americano, independentemente de
quem fosse, tivesse permissã o para
voltar aos Estados Unidos antes de
ser preso. Muitas coisas poderiam
dar errado, argumentaram. Mas o
motivorealdetantapreocupaçã oera
o alto preço polı́tico que teriam de
pagar
caso
o
desconhecido
conseguisse fugir. Por isso, os
almofadinhas de Washington en im
haviam aprovado uma soluçã o
conciliató ria: avançariam sobre o
americano apenas quando ele já
estivesse bem longe dos russos.
“Claro,claro”,disseramquandoaCIA
insistira que Forsyth, e apenas
Forsyth, desse o sinal verde para a
prisão.
— Todo mundo está ciente da
sequê ncia de eventos, certo? —
perguntara Forsyth em sua sala na
véspera.
— Claro que sim — retrucara
Maratos. — Ningué m aqui é
marinheiro de primeira viagem.
Bastavocê ligarpragenteassimque
descobrironomedofilhodaputa.
— Elwood, vou repetir: é
fundamental que você espere pelo
meusinal.Vaicolocaravidadomeu
ativoemriscoseagircedodemais,se
pegarpesadodemais.
Maratosfulminou-ocomoolhar
erespondeu:
—Jáfaleiqueentendi,porra.
GabledisseraaNatequeopapel
dele naquela operaçã o seria apenas
icardebocafechadaeouvidosbem
abertos, mas o jovem agente nã o se
conteve.Olhandodiretamenteparao
homemdoFBI,ameaçou:
— E melhor você s tomarem
muito cuidado pra nã o fazerem
nenhuma merda, ou vã o se
arrepender.
Umagrandeafrontaàetiqueta.
— Será que entendi direito? —
retrucou Maratos. — Esse merdinha
acabou de ameaçar um agente
federal?
Nate já ia responder quando
Forsythinterveio:
—Caladosaí,vocêsdois!
Maratos ainda cogitou dizer
algo,masaquiesceu.
O rá dio sobre a mesinha apitou
duas vezes, o que signi icava que
Volontov e Dominika haviam
acabado de entrar no saguã o do
hotel.Daliatrê sminutos,oprimeiro
laptop mostrou os dois russos
chegando ao quarto vizinho com o
voluntá rio americano. Dominika
carregava uma maleta. Baixo e
relativamente jovem, o voluntá rio
tinhaapelemorena,cabelosnegrose
sobrancelhas grossas. Usava um
casacocorta-ventoazulelevavauma
sacola preta no ombro. O que a
câ meranã omostravaeraalgoquesó
Dominikapodiaver.Aauraemtorno
do americano era de um amarelo
sujo,comoodocé unosminutosque
antecedem um furacã o. Ela sabia
muitobemoqueVolontovpretendia
fazer com ele. Nã o haveria
escapató ria
para
o
traidor
americano. Eles se acomodaram em
torno de uma mesa baixa. Volontov
falavaemrusso,eDominikatraduzia.
Para Nate era estranho ouvir a voz
delapeloáudiodeumlaptop.
Por insistê ncia de Volontov, o
rapaz se identi icou como John Paul
Bullard,umanalistademé dioescalã o
do
Serviço
Nacional
de
Comunicaçõ es. Contou de seu
trabalho, disse que precisava de
dinheiro. Dando tapinhas na sacola,
repetiu que Volontov teria de pagar
meio milhã o de dó lares se quisesse
pô r as mã os naquele manual cujo
frontispı́cio já tivera a oportunidade
de ver. Volontov falou novamente, e
Dominika perguntou como eles
poderiam ter certeza de que se
tratavadeumdocumentolegítimo.
Bullardabriuozı́perdasacolae
entregou a Dominika um manual
encadernado, mais ou menos do
tamanhodeumalistatelefô nica ina.
Ela o passou a Volontov, que o
folheouantesdedevolvê -lonã opara
o americano, mas para Dominika.
Disse,eelatraduziu,queelesteriam
de
examinar
o
documento
isoladamente antes de determinar
quantovalia.
— Podem con iar — garantiu
Bullard.—Élegítimo.
Ao sinal de Volontov, Dominika
saiuparaobanheirocomsuamaleta
e o manual. Na vé spera fora
orientada pelorezident a guardar o
documentonofundofalsodamaleta,
apenas uma medida preventiva na
eventualidadedequetudoaquilonã o
passasse de uma provocaçã o, uma
armadilha. O banheiro sem janelas
eraomelhorlugarparafazerisso.
Forsythsussurroupelorádio:
— Tudo bem até agora...
Ninguémsemova.
O segundo laptop mostrava
Dominika no banheiro. Ela fechou a
porta, acomodou a maleta em cima
da pia e, agindo com rapidez,
agachou-se para empurrar a aba de
alumı́nio da bancada, que se abria
para dentro por meio de dobradiças
tipo piano. Desse esconderijo ela
tirou outro manual, uma ré plica
perfeita do primeiro, devidamente
adulterado por um grupo de gê nios
emWashingtoncomoauxı́liodeum
microscó pio, e deixou no lugar o
original recebido do americano. Em
seguidaelaselevantou,abriuofundo
falso da maleta e acomodou nele a
ré plica modi icada que acabara de
pegar do esconderijo. Recolocou o
forro,fechouamaleta.
Antesdesair,ajeitouoscabelos
diante do espelho. Nate já tinha lhe
avisado, na noite anterior, que eles
estariam monitorando a troca para
garantir que nada saı́sse errado.
Entã oolhouparaacâ meraescondida
nodutodeventilaçã o,botoualı́ngua
para fora e só aı́, com uma ú ltima
espiadela na direçã o do espelho,
voltouparaoquarto.
— Meu Deus... — disse Forsyth.
— Inacreditá vel. Que tipo de
operaçã ovocê está coordenando?—
perguntou,virando-separaNate.
— Algué m pode me dar o
telefone dela? — pediu Ginsburg, o
técnico.
— Cale essa boca — ordenou
Forsyth.
Dominika voltou a se sentar.
Volontovtirouumenvelopegordodo
bolso interno do paletó , colocou-o
sobre a mesa e o empurrou na
direçã o de Bullard. Dominika
informou ao americano que eles
pagariam apenas 5 mil dó lares até
poderemveri icaraautenticidadedo
documento. Bullard icou perplexo,
paralisado diante do russo, que nã o
fezmaisqueencará -locomasolidez
deumarocha.
No quarto vizinho, Ginsburg
comentou:
—Oqueelepodefazer?Chamar
apolícia?
Calou-se assim que viu a
expressãodeForsyth.
Dominika disse a Bullard que
eles sairiam primeiro e instruiu que
ele esperasse no quarto por cinco
minutos antes de deixar o hotel. O
jovem americano estava recostado
na cadeira, em choque. Volontov se
levantou, abotoou o casaco e saiu
paraocorredor com Dominika atrá s
dele. Abandonado no quarto, Bullard
seinclinouparaafrenteeseguroua
cabeçacomasduasmãos.
Forsyth sussurrava no rá dio,
falandoduasvezesonomedeBullard
edepoisdizendo:
— A festa acabou. Voluntá rio
ainda no quarto. Ningué m se mexa.
Nenhummovimento.
Dois cliques sinalizaram a
recepçã o da mensagem. De repente,
Bullardseendireitoueficoudepé.
—Sentaaı́,seu ilhodaputa—
falou Forsyth para a tela do laptop à
suafrente.—Nã ová fazernenhuma
besteira,porra.
Bullard caminhou até a porta e
saiu. Forsyth avisou pelo rá dio no
mesmoinstante:
— Voluntá rio saindo. Casaco
corta-vento azul, sacola preta. De
novo:ninguémsemova.
Volontov e Dominika saı́ram à
rua e entraram no carro da
embaixadaqueosesperavadiantedo
hotel.Assimqueosviram,oshomens
doFBIameaçaramsaltardavan.
— Fiquem sentados, rapazes —
orientou Gable. — Ainda nã o
recebemososinalverdeládecima.
— Foda-se — retrucou um dos
agentes dos FBI. — Os russos já
foram embora. Vamos lá pegar esse
filhodaputa.
Gable pegou-o pelo braço e
decretou:
—Ningué mvaialugarnenhum
atéreceberook.
— Nã o vai ser você que vai me
prender aqui — falou Maratos, e
abriuaportalateraldavan.
OsagentesdoFBIsaltarampara
a rua e irromperam no hotel no
momento em que Bullard saı́a do
elevador. Correram na direçã o dele,
jogaram-noaochão,imobilizaram-no
com uma chave de braço e o
algemaram. Turistas e curiosos
olharam com espanto quando eles
começaram a empurrá -lo na direçã o
darua.Emmeioà confusã o,ningué m
percebeu a presença do vigilante
russo que també m acompanhava a
cena junto com a multidã o, o KR da
embaixada que Volontov convocara
por conta pró pria. Pouco depois ele
també m deixou o hotel por uma
portalateral.
Forsythrecolheuoequipamento
enquanto Nate foi buscar no quarto
vizinho o manual escondido por
Dominika. O té cnico rapidamente
retirou as câ meras do quarto e do
banheiro.
Elesvoltarama se encontrar na
estação.
— Caralho! — exclamou
Forsyth, espumando. — Vou ter de
cortar fora o saco daquele Maratos.
Era cedo demais, porra! Eles agiram
cedodemais!
— Pra cortar o saco dele você
vai
precisar
esperar
outra
oportunidade — comentou Gable. —
Do hotel eles foram direto pro
aeroporto. Um jatinho estava de
prontidã opralevaroscarasdevolta
a Washington. Sei lá . Os imbecis
deviam estar até de pau duro,
tamanha a excitaçã o deles com a
histó riatoda.Comcertezajá estavam
pensandonapromoção.
— Você acha que os russos
tinham algué m cobrindo o
saguã o?–perguntouNate.
Fez o possı́vel para mascarar o
pavorqueoconsumia.
— Nã o dá pra saber —
respondeu Gable. — Tinha muita
gente assistindo à prisã o. No lugar
deles eu teria, sim, algué m de olho
naquelesaguão.
— Bem, entã o vou lá pro
apartamento esperar Dominika —
falouNate.–
Me liguem se icarem sabendo
demaisalgumacoisa.
Eleselevantouparasair.
— Espera um instante — disse
Forsyth.—Sentaaíumpouco.
Nateobedeceu.
— Quero que você mantenha a
calma, está entendendo? —
prosseguiuochefe.—Nempenseem
ir até o apartamento dela. Nem em
telefonar, nem em deixar sinais por
aı́,nememrondaroslugaresqueela
costumafrequentar.Seeupegarvocê
a menos de cinco quarteirõ es da
embaixada russa, vou cortar o seu
saco logo depois de cortar o do
Maratos. — Ele encarou Nate por
alguns segundos. — Ouviu o que eu
disse,Nate?
—Ouvi.Vou icaresperandono
esconderijo,sóisso.
— Esse é o tipo de situaçã o
sobre a qual falamos antes. Nã o
sabemosexatamenteoqueosrussos
viram, se é que viram alguma coisa.
Vou mandar um cabograma agora
mesmo pra Washington, relatando a
cagada toda. Espero que despachem
esse Maratos pra Topeka e que ele
apodreça por lá , fazendo trabalho
burocráticoprorestodavida.
Nate mais uma vez se levantou
para sair, estampando no rosto o
misto de raiva e apreensã o que o
atormentava.
— Senta aı́. Nã o terminei —
ordenou Forsyth. — Agora vem a
parte mais difı́cil: esperar que o seu
informante dê algum sinal de vida
dizendo que está bem. Se você se
precipitar com a Dominika, poderá
colocá -la em maus lençó is, mesmo
que eles nã o descon iem de nada.
Agorasótemosumacoisaafazer:dar
tempoaotempo.
— Que tal a gente mandar o
Archie e a Veronica pra vigiar o
apartamento dela? — sugeriu Gable,
maisporcamaradagemaNatedoque
qualqueroutracoisa.
—Nã o—retrucouForsythsem
hesitar. — Nem isso eu quero
arriscar. Mas, Marty, quero que você
mandeseuhomemdaSupodaruma
olhada na rua Tehtaankatu. Diga pra
ele icar atento aos russos e ligar se
algumacoisaestranhaentrarousair
daquela embaixada. Pode prometer
umbônusdefimdeano.
Pela terceira vez, Nate se
levantouparasair.
— Cabeça fria, rapaz — falou
Forsyth.
Assim que colocou os pé s no
apartamento clandestino, Nate
farejou o perfume de Dominika, um
cheirodesabonete misturado a algo
mais forte e amadeirado. Chegou a
pensar que ela já tivesse chegado,
masoapartamentoestavavazio.Ela
fora instruı́da a icar afastada pelo
perı́odo de um dia e uma noite.
Volontov estaria a mil por hora,
despachando cabogramas e fazendo
telefonemas. Precisaria dela por
perto. Nate foi para o quarto e se
deitou.Dormiusemtrocarderoupae
acordou no meio da noite para se
cobrir.Oslençó isrecendiamaoodor
deDominika.
Eleacordoucomosoldamanhã .
Gableestavanacozinha,fazendocafé.
— Tudo dentro dos conformes
—foilogodizendoGable.—Nadade
estranho, nada fora do normal. Só
uma coisa: nã o comente nada com
Forsyth, mas mandei Veronica bater
no apartamento de Dominika ontem
à noite.Ningué matendeu.Pelojeito,
ela nã o dormiu em casa. E bem
prová vel que os russos tenham
viradoanoitetrabalhando.
Nate abriu a torneira da pia e
jogou um pouco de á gua no rosto.
Sentiaumapertonopeito.Aoabrira
geladeira,encontrouatravessacoma
ú ltima das trouxinhas que Dominika
izera no outro dia. Gable preparava
uma omelete, mas Nate estava
agitadodemaisparacomer.
— Ningué m sabe fazer omelete
direito — observou Gable. — Nã o é
só baterosovosedobrar,comotodo
mundopensa.Você temdesacudira
frigideira, assim, pra que a massa
ique bem lisinha. Está me ouvindo?
Depoisvocêformaaomeletenaparte
dianteira da panela. Assim. — Com
um garfo, ele soltou as bordas da
omelete com todo o cuidado e só
entã oavirousobreumprato.—Eno
imdetudoelatemdeestarmolinha
nomeio,sacou?—concluiu,partindo
umpedaço.—Querumamordida?
— Porra, Marty — respondeu
Nate.
—Olha,tudooqueagentepode
fazer agora é esperar. Nã o dar nem
um pio. Nã o fazer nenhum
movimento.—Elelevouumagarfada
à boca. — Vou lhe fazer uma
pergunta: pra você , qual é o aspecto
maisimportantedetodoessecirco?
— Que circo? A troca dos
manuais? — quis saber Nate. —
Foda-se o manual. E a segurança do
nosso ativo? E bem possı́vel que
neste exato momento Dominika
esteja amarrada numa cadeira num
porã o qualquer, e você aı́, comendo
omelete.
— També m quero que a
Dominika esteja em segurança —
a irmouGable.—Tantoquantovocê .
Mas agora a gente tem de esperar e
rezar pra que os russos estejam
comemorando o roubo daquele
manual, distribuindo tapinhas nas
costas uns dos outros. O pessoal de
Washington está monitorando em
tempo real todo o trâ nsito de
informaçõ es
darezidentura. O
download que a Dominika fez com
aquele pen drive funcionou
direitinho, e a Agê ncia de Segurança
Nacional está lendo tudo. Por
enquanto, silê ncio total nos rá dios,
mas isso pode signi icar que eles
estã o sendo mais cautelosos que de
costume.
— E se a gente perder nossa
informante?Terávalidoapena?
— Me diga você . A gente faz os
comunas perderem sete anos
planejando ataques ciberné ticos
contraoqueelespensamseranossa
infraestrutura. Pra nada. E aı́? O que
temmaisimportância?
NateergueuosolhosparaGable,
queoencarava.
— Aproveite
omelete—falou.
sua
maldita
***
Forsyth ergueu o rosto de sua
mesa. Gable acabara de ter notı́cias
do sujeito que passara a manhã
vigiando os portõ es da embaixada
russa.Natenã ogostoudaexpressã o
dele.Pelojeito,anotı́ciaquerecebera
nãoeralámuitoboa.
—Umavandeixouaembaixada
à snovehoras.Divaemaisdoiscaras.
Estavam levando uma mala
diplomá tica, indo pro aeroporto. A
Aero lot tem um voo diá rio pra
Moscou,quesaiaomeio-dia.—Gable
conferiuorelógio.—Sãodezemeia.
— E aı́? — indagou Nate. — O
queagentefazagora?
— Nada — respondeu Forsyth.
— Uma van indo pro aeroporto está
completamente dentro do normal. E
bem prová vel que eles tenham
passado a noite copiando aquele
manual e preparando o malote pra
enviarnovoodomeio-dia.Dominika
comumaescoltadeduaspessoas.Ea
cara do Volontov fazer uma coisa
dessas, mandar a garota só pra
mostrar
serviço
e
ganhar
reconhecimentoemMoscou.
— Nã o temos como saber —
observou Nate. — E se eles a
estiveremlevandodevoltapracasa?
Eseelaestiveremapuros?
—Mesmoquesejaesseocaso,o
que a gente pode fazer? — devolveu
Forsyth.—Aquelemanualvaichegar
aMoscou.
—Medeixemiraoaeroporto—
pediu Nate. — Nã o vou fazer
nenhumamerda.Só darumaolhadae
ter uma ideia melhor do que está
acontecendo. A gente vai ter de
mandar
um
relató rio
Washington,nãovai?Então.
pra
— Nem pensar — respondeu
Forsyth. — Você naquele aeroporto
vaiserquenemRomeugritandopra
Julietaaparecernavaranda.
Nate virou-se para Gable com
umolhardesúplica.
—Porra,eunãoaguentomais—
disse Gable. — Daqui a pouco esse
veadinhovaicomeçarachorar.Tom,
euvoucomelepraimpedi-lodefazer
qualquer coisa pensando com a
cabeça de baixo. De repente a gente
conseguevercomquemagarotaestá
viajando, tem alguma pista do que
estárolando.
Ele meneou a cabeça para
Forsyth como se dissesse:Pode icar
tranquilo,eleestácomigo.
Tomandoosilê nciodochefepor
um consentimento, Nate e Gable
imediatamente
vestiram
seus
casacosecorreramparaocarro.Com
Nate ao volante, chegaram ao
aeroportonumpiscardeolhos,foram
direto para o mezanino que dava
para a sala de embarque e
esquadrinharam a multidã o de
passageiros à procura de Dominika.
Foi Gable quem a localizou perto do
portã odaAero lot,entredoiso iciais
da embaixada. Ela usava o mesmo
terninhoazul-marinhodavé spera,os
cabelos presos com um elá stico. A
mala diplomá tica (na verdade um
sacodelonaamarelo)estavanochão,
entre os joelhos de um dos russos.
Dominika parecia pequena e
tranquila, vestida como uma boa
funcioná riaacaminhodacentralem
Moscou.
GablepegouNatepelocolarinho,
empurrou-oparatrá sdeumacoluna
eordenou:
— Quero que você ique aqui
mesmo.Nadadeadeuzinho,nenhum
movimento, nada. A gente nã o sabe
como ela vai reagir se vir você . E se
você izeralguma merda, vai colocar
avidadelaemrisco.
Dominika sentava-se entre o
segurança da rezidentura e um
burocrata da embaixada que, ao
saber do passeio sú bito e gratuito,
encheraamalacomlatasdesalmã oe
CDs para vender aos vizinhos e
amigos de Moscou. Nã o fazia nem
ideiadequemeraajovemsentadaa
seuladoetampoucoqueriasaber.O
segurança, por outro lado, recebera
algumasinstruçõ essussurradaspara
a viagem: sabia que o cabo Egorova
seria recebido por o iciais no
aeroporto de Moscou e que a mala
diplomá ticadeveriaserentreguenas
mã osdessesmesmoso iciais.Como
protocolo devidamente assinado,
poderiatirardoisdiasdefolgaantes
devoltaraHelsinque.Pontofinal.
Imprensada entre os dois
homens, Dominika sofria com o
cheiro deles: de um lado, o perfume
forte e vagabundo do segurança; do
outro, o odor de repolho cozido do
burocrata. De repente, algo chamou
sua atençã o e ela ergueu os olhos
para o mezanino. Lá estava Nate, do
outro lado do vidro, perto de uma
coluna. Ele olhava para ela com os
braços caı́dos ao lado do corpo, as
vidraças tingidas do violeta de sua
aura. Dominika precisou se conter
para icar quieta; mal conseguia
respirar. Os olhos deles se
encontrarameelabalançouacabeça
de um modo quase imperceptı́vel.
Não, dushka, eu preciso ir, foi o
pensamento que tentou transmitir a
ele.Nateassentiucomummeneioda
cabeça.
A OMELETE PERFEITA DE GABLE
Bater os ovos com sal e pimenta.
Derreter um pouco de manteiga em
uma frigideira em fogo alto e, assim
que parar de espumar, despejar os
ovos, sacudindo a frigideira com força
para que eles se espalhem melhor.
Inclinar a panela de modo que os ovos
se acumulem na parte dianteira. Usar
um garfo para soltar a omelete das
bordas e deslizá-la para um prato. A
omelete deve estar levemente
dourada por fora e molhadinha por
dentro.
CAPÍTULO 21
VOLONTOV NEM SEQUER
OLHOU para ela quando disse que
queria um resumo do manual
americano, mas uma nuvem laranja
pairava em torno dele, o laranjaescuro
da
dissimulaçã o,
da
descon iança e do perigo. Dominika
podia sentir tudo isso. Teria de
passar a noite na embaixada. Se
quisesse, poderia dormir no sofá da
pequena sala de convivê ncia ao lado
dosarquivos.Ogâ ngsterquefaziaas
vezes de KR darezidentura nã o saı́a
doladodela.Dominikanã osabiaque
eletestemunharaosacontecimentos
no saguã o do Hotel Kä mp, mas sua
intuiçã o dizia que havia algo muito
errado.
Volontovaobservavadelonge,e
Dominikapodiasentirnoolhardelea
acidezdosvelhostempos;aqueleera
o mesmo olhar de Dzerzhinsky,
YezhoveBeria,oscarrascosdeStalin,
um olhar mortiço que despachava
homens e mulheres para o sumiço
eterno nos porõ es do Partido.
Dominikasabiaquealgoacontecerae
precisousecontrolarparanã oentrar
empâ nico.Elespareciamdistantes,o
que era sempre um mau sinal: a
má quinadadescon iançasemdú vida
foraacionada.Restava-lheentã oagir
com naturalidade e transparecer
inocê ncia. Em dado momento ela
pensou no apartamento clandestino
dos americanos, em Nate e em
Bratok. Para o pró prio bem, achou
melhorafastartudoaquilodamente
e se preparar para o que estava por
vir. No mesmo instante começou a
erguer um muro em torno dos
pensamentos, procurando enterrar
os segredos nos con ins da
consciê ncia. Eles jamais teriam
acesso à queles segredos, por mais
fundoqueescavassem.
No aeroporto de Sheremetyevo,
dois homens de pele cinzenta
esperavam lado a lado na á rea de
desembarque.Elesreceberamamala
diplomá ticaeosegurançapartiucom
oburocratanumcarroseparado.Um
dos cinzentos disse que ela estava
sendoaguardadaparaumareuniã oe
a conduziu, junto com o outro, ao
carro que os esperava no
estacionamento. A luz vespertina os
trê s seguiram no mais absoluto
silê ncio até um pré dio de aspecto
comum na zona leste de Moscou.
Dominika só conseguiu ver que era
pró ximo à estaçã o Ryazanskiy
Prospektdometrô .Entraramemum
elevador barulhento, seguiram por
umlongocorredorpintadodeverdee
ali estava ela, vestindo as mesmas
roupas de dois dias antes, sem nada
no estô mago. Um homem de ó culos
abriuaportaesinalizouparaqueela
entrassenumasalaquetinhatodoo
aspecto de um escritó rio particular,
mas que nã o passava de um cená rio
cujos objetos de cena incluı́am até
umvasoderosasnabancada.
O homem tinha os dedos inos
de um pianista. Calvo, parecia ter
sido submetido a uma cirurgia de
trepanaçã o, pois havia um buraco
numdosladosdesuacabeça,fundoo
bastante para distorcer o contorno
da aura amarela que o cercava.
Zheltyj, o conhecido amarelo da
deslealdade e da traiçã o. Ele deu as
boas-vindasaDominika,dizendoque
erasemprebomvoltaraMoscou,blá ,
blá , blá . Em seguida falou que eles
estavam muito satisfeitos com o
desempenho dela na Escandiná via,
sobretudo na operaçã o com o
voluntá rio americano. Na verdade
nã o era só a aura dele que
apresentava a cor amarela: todo ele
era dessa coloraçã o. Dominika
farejava perigo no ar. Um perigo
mortal.
Precisava se comportar da
maneira correta. Mostrar-se curiosa,
cansada da viagem, um tanto
intrigadaportersidochamadaali.O
maisimportante,noentanto,eranã o
demonstrar medo, muito menos
desespero. Ela perguntou se havia
algum problema, se podia saber
como ele se chamava, qual era seu
posto,paraqualdiretoriatrabalhava.
Supunha que fosse um colega de
serviço. Ele disse que era o coronel
Digtyar, da diretoria K. Digtyar.
Ucraniano, concluiu Dominika. A luz
que vinha do alto projetava uma
sombranoburaconocrâniodele.
Ela relatou a sequê ncia dos
acontecimentosemHelsinque,desde
achegadaaohotel.Nã o,elanã otinha
conhecimento de nenhum incidente,
nã o sabia nada a respeito de uma
supostaprisã orealizadaapó sasaı́da
dela com orezident. Volontov nã o
mencionara nenhum contratempo.
Digtyarnã oestavafazendonenhuma
anotaçã o, nã o recorria a nenhuma
pasta de arquivo. Eles estavam
ilmando a conversa, observando o
rosto dela, as mã os. Dominika
precisou conter o impulso de
procurar as câ meras.Não olhe, não
pense, disse a si mesma.Ninguém
podeajudá-la,vocêterádefazertudo
sozinha.Estajornadaésuaedemais
ninguém.
Eles icaram com o passaporte
delaeadeixaramir.
Em casa, Dominika foi recebida
pela mã e, que surgiu à porta de
camisola.Ninaaprincı́pioaparentou
surpresaaovera ilha,masmenosde
umsegundodepoisobrilhonoolhar
dela sumiu e seu rosto icou
inexpressivo.
— Dominushka, que surpresa.
Venhacá,deixe-meolharpravocê.Eu
nã o sabia que você vinha — disse
Nina,massemgrandeentusiasmo.
Cuidado.
— Foi uma viagem inesperada
— explicou Dominika, fazendo o
possı́vel para nã o trair na voz a
descon iançaquearondava.—Etã o
bomestaremcasaoutravez,mama.
Tãobomreverasenhora...
Perigo.
Elas se abraçaram, trocaram os
trê s beijinhos de praxe e voltaram a
se abraçar. Dominika nã o ousou
prolongar o abraço, receando
desmanchar-seemlá grimas.Erabem
possı́vel que algué m as estivesse
observando, ouvindo o que diziam.
As duas foram conversar no sofá .
Dominika falou um pouco dos
inlandeses, da vida em Helsinque,
masdaliapoucodissequeprecisava
irdormir,quetinhadelevantarcedo
para trabalhar. Um ú ltimo beijo e
Nina acariciou a ilha no rosto antes
deirparaoquarto.Elasabia.
Eles foram buscá -la na manhã
seguinte e a deixaram no mesmo
lugar em Ryazanskiy. Mais uma vez
Dominika contou sua histó ria, agora
paratrê shomenssentadosemtorno
deumvaso de rosas, provavelmente
com um microfone escondido entre
as lores. Nenhum deles dizia nada,
mastodosiamvirandoaspá ginasde
umapastadearquivonã oetiquetada.
Seria possı́vel que o rato Volontov
tivesse enviado um relató rio com
tamanharapidez?Lápelastantaseles
saı́ram da sala, deixaram-na sozinha
por um tempo e en im voltaram,
pedindo que ela repetisse tudo. Sem
dú vida estavam à procura de
mudanças,
de
contradiçõ es.
Dominikanuncareceberaolharestã o
irmes,nemmesmonaescoladebalé ,
nemmesmoporpartedoshomensna
Escola de Pardais. Sentia um aperto
nagarganta,umafú riaqueameaçava
eclodir a qualquer momento, mas
ainda tinha forças para represá -la, e
sustentava o olhar deles com igual
irmeza.Nã odeixariaquechegassem
perto de seus segredos mais
recônditos.
A entrevista avançou até o im
do expediente, e só entã o ela teve
permissã o para ir embora. Em casa,
sua mã e assava umshchi, um cozido
decarneque perfumava o ambiente,
despertandolembrançasdopassado,
nevascas matinais e almoços de
domingo.Amã odeDominikatremia
durante o jantar. Nina nã o comia,
apenasadmiravaa ilhadooutrolado
damesa.Elasabia.
Fazia mais de quinze anos que
Nina nã o tocava pro issionalmente,
masmesmoassimfoiaté oquartoe
voltou dali a pouco com seu violino
em punho, um instrumento comum,
nem de longe parecido com o
Guarnieri de outros tempos. Sentouse ao lado da ilha e começou a
dedilhar. Schumann ou Schubert,
Dominika nã o sabia ao certo. O
violino vibrava com notas gordas,
lindas e roxas, assim como no
passado, quandoBatushka ainda
estavavivoparaouvirtambém.
— Seu pai sempre teve muito
orgulho de você — disse Nina
enquantotocava.Dominikachegoua
pensarqueaquilonã opassavadeum
truque para ludibriar os microfones.
Será ?Nã o,impossı́vel.—Elesonhava
com que um dia você pudesse viver
do seu senso de dever, do seu
patriotismo. — Ela falava com os
olhos fechados. — Queria muito
contar a você o que ele pensava na
qualidade de um homem bemsucedidonosistema,oqueelepodia
ver nos bastidores. Mas nã o ousava.
Nã o falava nada porque queria
protegê -la.—Elaabriuosolhosmas
continuou tocando como em um
transe,osdedosfirmesnascordas.—
Seupaidriblavaosistema,mastenho
certeza de que contaria tudo a você ,
agora que a ilhinha dele está em
apuros.
Comoelapoderia saber de uma
coisadessas?
— Ele sempre quis abrir o jogo
com você . A vida inteira —
prosseguiuNina,esussurrou:—Pois
agorasoueuquemvaidizer:resista,
minha ilha. Lute contra eles.
Sobreviva.
Só entã o ela parou de tocar.
Deixou o violino sobre a mesa,
levantou-se e beijou a ilha na testa
antes de se retirar para o quarto. A
mú sicapairavanoar,oviolinoainda
quentedotoquedeNina.
No dia seguinte, Dominika
passou por uma sucessã o de
gabinetes, com um, ou dois, ou trê s
homens, ou uma mulher de terno e
coque no cabelo, a aura preta de um
demô nio,quecontornouamesapara
sesentarpertodela,ouoamarelado
coronel Digtyar com seu crâ nio
furado, pedindo que ela descrevesse
os desenhos do tapete no quarto do
Hotel Kä mp, algué m abrindo e
fechando a porta à s costas dela, por
vezes batendo-a ruidosamente,
fazendo o cô modo tremer.Não, nós
não acreditamos em você. Depois
disso o inacreditá vel, o monstruoso,
oimpossível,oinevitável.
Uma sinuosa e torturante
viagem no interior de uma van
escura, os ecos de uma garagem de
subsolo, e agora eles estavam numa
prisã o que só podia ser Lefortovo,
nã o Butyrka, pois o delito tinha sido
de naturezapolı́tica. Dominika foi
empurrada ao longo de um corredor
mal iluminado até uma antessala
fé tida. Um homem e uma mulher a
observaram enquanto ela se despia,
tirava os sapatos, desabotoava o
sutiã . Sem dú vida acharam que ela
fossebaixaracabeça,desviaroolhar,
tapar os mamilos e o pú bis, mas
Dominika era um pardal diplomado,
treinado pela AVR, eles que fossem
para o inferno. Nua em pelo, com
troncoereto,elasustentouoolharde
ambos até que a mulher lhe
arremessou
um
uniforme
penitenciá rio encardido. Na cela,
nenhuma janela e dois catres
vagabundos. Dominika pensou na
mã e, que a estaria esperando com o
jantar
pronto;
chamou
silenciosamente pelo pai e, depois,
paraaprópriasurpresa,porNate.
Quando a conduziam pelos
corredores, nã o a deixavam ver
outros prisioneiros; queriam fazer
seu espı́rito de inhar. Os guardas
emitiam sinais sonoros que
lembravam os ruı́dos de um grilo, e
quando outros guardas respondiam
com barulhos semelhantes, levavam
Dominika para o armá rio mais
pró ximo—haviaumno imdecada
corredor,cravadonasparedes—ea
trancavam no breu absoluto dentro
dele, imersa no fedor dos muitos
prisioneiros que já haviam passado
porali.Semprequepassavaporuma
claraboia Dominika erguia os olhos
paraocé uacimadela,oranegro,ora
claro,oquesigni icavaqueasnoites
ainda sucediam os dias, mas as
lâ mpadasdesuacelajamaisparavam
de zumbir, e uma sirene uivava a
intervalosregulares.
Dominika via o pai caminhando
a seu lado, via um sorridente Nate à
sua espera sempre que ela entrava
numa sala qualquer, algumas
quentes, outras frias, algumas
escuras, outras muito claras. Vez ou
outra a amarravam aos braços de
uma cadeira, jogavam baldes d’á gua
sobre ela, depois ligavam os
ventiladores, e Nate icava ali a seu
lado, segurando sua mã o enquanto
ela tremia de medo e frio. Nem ele
nem o pai diziam nada, mas bastava
saber que estavam com ela, bastava
sentirotoquedeles.
Os investigadores berravam ou
gargalhavam a poucos centı́metros
do rosto dela, perguntando sobre os
contatos estrangeiros, o francê s
DeloneoamericanoNash.Elaestava
trabalhando para os americanos?
Bobagem.Naquelestemposissonem
era tã o grave assim. Falavam que
queriamouvirsuaversã odahistó ria,
depois a esbofeteavam, mandando
quecalasseaboca.DiziamqueMarta
Yelenovaestavamorta,eporculpade
quem?Porculpa dela, Dominika. Era
comoseelamesmativessematadoa
amiga,eeraesseodestinoquemuito
em breve sua mã e teria també m.
Estapeavam-na, e o rosto dela já
estava vermelho, dolorido. Frescura.
Ospardaisaté quegostavamdeuma
pegadamaisviolenta,nãogostavam?
Os interrogató rios eram feitos
ora de dia, ora de noite, mas
invariavelmente aos berros e com
crueldade. Por vezes a amarravam
deitada numa mesa metá lica, com a
cabeça caindo da borda. Dominika
resistia com bravura, mas nã o
buscava forças no ó dio, pois isso
seria frá gil demais. Em vez disso,
procurava cultivar o mais profundo
desprezo por aqueles desgraçados:
jamais sucumbiria à vontade deles,
jamaissedeixariadobrar.
Emboranã ofosseminteligentes
o bastante para localizar os
principais feixes nervosos (na base
docó ccix,acimadocotovelo,nasola
dos pé s), seus dedos á geis sempre
acabavamencontrandoalgumacoisa,
e Dominika estremecia de dor, uma
dor que percorria o corpo inteiro,
fazendo-a se sacudir sobre a mesa
enquantoouviaospró priosberrose
grunhidos.
A dor que vinha de seus nervos
eradiferentedaoutraquevinhados
tendõ es, que por sua vez era
diferente da que vinha do cabo que
agoralheapertavaacabeçanaaltura
da boca. Dominika descobriu que a
antevisão da dor, a expectativa do
que vinha depois, era muito pior do
que a dor propriamente dita, fosse
ela qual fosse. A lanolina condutora
que haviam passado entre suas
ná degas assustara-a mais do que a
primeira estocada do pino de
alumı́nio que depois inseriram em
seu â nus, mais do que os efeitos da
corrente elé trica, mais do que a dor
fria e pulsante que a obrigava a
arquear as costas e que a deixaria
murcha e inerte assim que
desligassemacorrente.
Uma das carcereiras nã o se
furtou de buscar um pouquinho de
diversã o durante o trabalho. Tinha
mã osfortes,pintalgadaspelovitiligo.
Amarrada a uma cadeira de lona,
Dominika viu essas mã os correrem
sem nenhum pudor por todas as
partes de seu corpo, ora apalpando,
ora apertando e beliscando. A certa
altura,comosolhosfelinoscravados
nosdeDominika,amatronadeixoua
mã o rosada descer em direçã o à
virilha dela e entreabriu os lá bios
num inconsciente gesto de prazer.
Com a cabeça a poucos centı́metros
de distâ ncia, começou a procurar no
rosto de Dominika algum sinal de
repulsa,terroroupânico.
Semaomenospiscar,Dominika
abriuaspernasedisse:
— Vá em frente, bruxa velha.
Divirta-se.
A
matrona
se
afastou
imediatamente para estapeá -la.
Desculpe por ter atrapalhado sua
brincadeirinha
sórdida,
pensou
Dominika.
Osgrilosestalaramalı́nguaelá
foi ela mais uma vez para dentro do
armá riono imdocorredor.Asluzes
nã o se apagavam nunca, e a certa
altura parecia que havia areia sob
suas pá lpebras, e a sirene lembrava
algumacomposiçã odeSchumannou
Schubert—elasempreconfundiaos
dois. De repente empurraram para
dentro da cela uma garota
esverdeada, com hematomas nas
pernas e cascas de uma ferida no
cantodaboca.Amoçacaiudecarano
chã o, depois quis conversar a noite
inteira, assustada, choramingando
enquanto falava do ó dio que sentia
por eles, protestando sua inocê ncia,
dizendo que nã o izera nada de
errado.
Umakanarejka, uma
canarinha de asas amarelas que
precisavadeumaamiga.Acanarinha
lambeuaferidanaboca,depoisolhou
para Dominika e estendeu as mã os,
dizendoquesesentiamuitosozinha.
Deitadaemseucatre,Dominikavirou
o rosto para a parede e ignorou a
súplicadanovacompanheiradecela.
Eles nã o sabiam de nada.
Tentavam
induzir
alguma
contradiçã o
para
depois
se
agarrarem a ela, mas Dominika
defendia seu segredo a ferro e fogo.
Eles agora repisavam a relaçã o dela
com os americanos, queriam saber
emquepé estavaamissã odeseduzir
otalNash,seelajá foraparaacama
comoianque,sejá usaraobicodoce
de pardal pra fazer um boquete
gostoso nele. Todos os dias as
torturas eram interrompidas por
duas horas para dar lugar a esses
interrogató rios, mas certo dia ela se
deparou com um coronel que nunca
vira antes. Ele estava devidamente
uniformizado,easdragonastinhamo
mesmotomdesuaaura:oazul-claro
das pessoas sensı́veis, dos artistas,
assimcomoForsyth.Dominikasabia
queprecisavatercuidadocomele.
O homem falava com calma,
devagar, e sempre começava a
conversa perguntando por que ela
traı́raseupaı́s.Elarespondiaquenã o
izera isso e ele prosseguia como se
nã o
tivesse
ouvido
nada,
perguntando educadamente que
motivos a tinham levado a fazer
aquilo,emquemomentoelatomaraa
decisão.
Suas perguntas partiam de uma
premissa — a culpa de Dominika —
quecomeçavaasetornarrealidade.A
vida era um poço de decepçõ es, ele
dizia, manso como sempre, e essas
desilusõ es nos levavam a fazer
coisas.Aló gica,afantasiaeasfalsas
declaraçõ es, tudo aquilo começava a
abrir uma brecha na mente exausta
de Dominika. A certa altura ele
perguntou se ela queria ler as
transcriçõ es do julgamento de
Sinyavsky, e ela disse que nã o sabia
dequemsetratava.Umdissidentede
1966,eleexplicou.“Leiaeverá como
a negaçã o se transforma em
aceitaçã o, como pode ser uma
experiê ncia libertadora.” Dominika
tinhaaimpressã odequeaauradele
começavaaencobri-latambé m.Mais
do que nunca, ela precisava icar
alerta.
O coronel leu trechos das tais
transcriçõ esdopassado,eDominika
icouperplexa.Eracomoseestivesse
presentenaquelejulgamento.Sentiase prestes a ceder. Já nã o aguentava
maisterdenegarcadaumadaquelas
acusaçõ es; faltava pouco para que
desistisse e corroborasse todas as
suspeitasdocoronel.Tudoeramuito
simples,eledizia,bastavadeterminar
comoeladeraseumaupasso,quando,
eatéondehaviaidocomele.
Por muito pouco o homem nã o
conseguiu vencê -la, aquele coronel
tã o sereno e educado, com seu
uniforme impecá vel, mas ela se
recusava a ser tragada por aquele
buraco negro. Chamava-se Dominika
Egorova. Era uma bailarina, uma
o icial do SVR, um pardal treinado
para confundir a cabeça dos outros.
Amava um homem e era amada por
ele.Fechouosolhosealçouvoopelos
cé us de Moscou. Sobrevoou o rio, os
campos, as lorestas, até que se viu
acima de Butovo, da vala que
abrigava o corpo de Marta Yelenova,
do chã o duro e congelado que a
soterrava.
Foi a imagem de Marta que
renovou suas forças, e por im ela
conseguiu tirar os pensamentos do
abismo para o qual eles tinham
resvalado. Dominika buscou abrigo
em si mesma e decidiu usar tudo
aquilo que vinha deles como uma
arma a seu favor, inclusive as
alucinaçõ es. Agora, deitada em sua
cela, era como se seu catre fosse a
cama de Helsinque, a lâ mpada que
lhe queimava os olhos, a lua
inlandesa, e de repente ela sentiu o
peso do corpo dele sobre o seu. A
febre e os calafrios vinham das
carı́cias dele. Suas lá grimas eram
lá grimasdeamorqueelesecavacom
beijos. Ela se virou no colchã o, os
punhos fechados sob a barriga para
aliviarador.
Apesar dos braços que
formigavam por causa das alças
que os prendiam, Dominika
começava a se sentir bem mais
forte. Invocou o segredo que
despachara para os recô nditos
mais profundos daconsciê ncia.Ele
ainda vivia em sua alma, aquele
segredo que ela tanto precisara
esconder de seus algozes. Bastara
soprarumpoucoparaquesuachama
voltasse a arder. Ela podia pensar
nele à vontade, consciente de que
eles nã o tinham como colocar as
mã os nele. Sua mã e lhe dissera para
resistir, lutar e sobreviver. Eles
estavam icando mais fracos à
medidaqueelasetornavamaisforte.
Ascoresdesuasaurascomeçavama
falhar, como se tivessem um fusı́vel
queimado.
Pelamilioné simavezelarepetiu
quenã o izeranadadeerrado.Senã o
confessaraaté entã o,eraporquenã o
havianadaa confessar. Quanto mais
alto eles berravam, mais feliz ela
icava. Sim, feliz. Dominika adorava
aqueles homens e mulheres que a
atormentavam, amava o coronel de
aura azul-turquesa. Eles sabiam que
nã o poderiam continuar com aquilo
inde inidamente. Estavam correndo
contra o tempo. A menos que
forçassemumacon issã o,nã oteriam
nada.
***
Muito acima dos telhados de
Lefortovo, Lubyanka e Yasenevo, a
atmosfera estava congestionada de
mensagens
criptografadas,
indagaçõ eserespostas,precedê ncias
e prazos. Informaçõ es sobre o caso
BullardirradiavamdeWashington.A
rezidentura de Washington estava
com todas as antenas em pé :
contatoseramlevadosparaalmoçar,
informantes
americanos
eram
interpelados no subsolo de uma
garagem qualquer, nas trilhas do
canalChesapeakeeOhioounasruas
escurasdeGeorgetowneAlexandria.
Um boato com origem no
Departamento de Justiça dizia que
Bullardjá estavasobsuspeitaumano
antesdesuainiciativadeprocurara
inteligê ncia russa em Helsinque. A
prisã o dele em Washington nã o fora
planejada, mas a sú bita viagem para
oexteriorosforçaraaagir.
Fontes o iciais americanas
tentavam minimizar a gravidade da
perda do manual. Pouco havia
chegado aos ouvidos da mı́dia, mas,
considerando o que um funcioná rio
de alto escalã o do governo deixara
vazar, tratava-se de fato de “uma
perdasubstancialdeinformaçõ esde
segurança”.DepoisdissooCongresso
passou a exigir uma investigaçã o
para
a
atribuiçã o
de
responsabilidades. Todo esse circo,
no entanto, toda essa troca de
acusaçõ eserecriminaçõ es,tudoisso
era resultado de uma ampla
estraté gia de despiste, disseminada
por
fontes
involuntá rias
e
fofoqueiros em geral e orquestrada
por ningué m menos que Simon
Benford, chefe da contrainteligê ncia,
com o ú nico objetivo de fazer com
que os russos acreditassem ter em
mãosummanuallegítimo.
As Diretorias R (aná lise) e X
(ciê ncia)doSVRjá haviamdadoseus
respectivos pareceres. Uma aná lise
preliminar do manual vendido por
Bullard terminava com a a irmaçã o
de que o documento era
absolutamente autê ntico. O iciais da
Diretoria T, especialistas em
comunicaçõ es da Fapsi e cientistas
da Universidade de Tecnologia da
Informaçã o de Sã o Petersburgo
começaramaestudaromanualsoba
orientaçã o do Ministé rio de Defesa
no
sentido
de
identi icar
vulnerabilidades que pudessem ser
exploradas na vasta rede de
comunicaçõ es
norte-americana.
Verbas do orçamento da defesa
haviam sido pleiteadas para o
desenvolvimento de softwares e
dispositivos que pudessem ser
usados contra os pontos de maior
vulnerabilidadenosistema.
Como estavam dispostas a
acreditar, as altas rodas do Kremlin
acabaramchegandoaumconsenso:o
material era autê ntico, um presente
caı́do dos cé us, ainda que os
americanos soubessem do roubo.
Obter o contrabando de Bullard
debaixo do nariz da inteligê ncia
americana fora um triunfo tá tico,
uma clara demonstraçã o da
superioridade operacional russa. O
fato de o homem ter sido preso era
problema dele, resultado da pró pria
burrice, de seu desleixo e ambiçã o.
Para o Kremlin, pouco importava o
destinodoinfeliz.Osamericanosque
izessem dele o que bem
entendessem.
OsesforçosdorezidentVolontov
e darezidentura de Helsinque foram
devidamente reconhecidos pela
Duma. Vanya Egorov, primeiro vicediretor do SVR, recebeu a segunda
estrela de tenente-general numa
cerimô nia vespertina no salã o
principal do Grande Palá cio do
Kremlin, onde agora á guias duplas
substituı́amasestrelasvermelhasdo
passado sobre as portas. Foi o
presidentePutinempessoaquemlhe
entregou o estojo de feltro com a
nova patente. Beijou-o trê s vezes no
rosto e abriu seu sorriso de
crocodilo,que,vindodequemvinha,
era um exuberante sinal de
aprovaçã o. A cerimô nia coincidira
como imdesemana,eissoatrasara
em dois dias a libertaçã o de
Dominika.
Nasegunda-feira,logodepoisdo
café ,VanyaEgorov inalmentedeuos
telefonemas que precisava dar:
primeiro para a KR, depois para a
DiretoriadeInvestigaçõ esInternase
en im para os carrascos do FSIN, o
Serviço de Execuçã o de Penas,
parente nã o muito distante do
famigerado gulag de outrora.
Identi icando-se como tenentegeneralEgorov,disseaelesquejá era
horadepuxarofreiodemã o.Aquilo
já estavapegandomal,a inalagarota
era ilha do irmã o dele, porra. Nã o,
elenã oqueriaquepassassemparao
nı́vel 2. Nã o, ele nã o autorizava a
utilizaçã o de drogas, tampouco a
administraçã o de uma seçã o de
privaçã o sensorial e muito menos a
administraçã o de choques elé tricos.
Estavam doidos, todos eles? Aquelas
medidas
eram
reservadas
exclusivamente para os traidores,
comooinformantequeaindaandava
à solta por aı́. Se ela ainda nã o
confessara era porque nã o tinha
mesmonadaaconfessar.Noentanto,
ele pensou com seus botõ es, só o
diabosabiaoquedefatoacontecera
em Helsinque, sobretudo levando-se
em conta a lesma que estava no
comando das coisas por lá e atendia
pelo nome de Volontov. “Limpem a
garota e mandem-na para mim.
Quero vê -la de volta ao trabalho. A
mã e já está preocupada”, ele disse
numtompaternal.
O coronel Digtyar foi à cela de
Dominikaparalevar-lheumacaixade
papelã o com suas roupas. Enquanto
esperava que ela se despisse para
devolverouniforme,propriedadedo
Estado, viu os hematomas em suas
coxas e canelas, as unhas roxas, as
costelasqueseprojetavamsobapele
alva. Tudo aquilo em tã o pouco
tempo. Eles a acompanharam até os
portõ esdopresı́dio e Dominika saiu
para a rua coberta de neve,
misturando-se à barulheira dos
carros, à fumaça dos ô nibus. Deu
alguns passos incertos no gelo,
exalandojatosdevapor.Omanquejar
agora estava bem mais pronunciado
e os pé s latejavam, mas ela fazia um
esforço consciente para balançar os
braços e endireitar as costas. As
marcasnospulsospodiamservistas
sobospunhosdocasaco.
***
Dominikasonhavacomaprisã o
até mesmo quando cochilava na
poltrona da sala. Sua mã e precisava
trocaroslençó istodahoraporcausa
dos venenos que o corpo dela
expurgava. As vezes ela entrava no
armá rio docorredor e se fechava ali
parareviveroquepassaranaprisã o,
só pelo prazer de saber que poderia
sair quando quisesse. Pelo mesmo
motivo, em outras ocasiõ es,
amarrava os punhos com meias de
ná ilon, usando a boca para dar o nó .
Passados esses impulsos esquisitos,
ela simplesmente chorava baixinho,
aslá grimasencharcando-lheorosto.
Nina agora tocava violino todos os
dias,meiahoradecadavez,enquanto
a ilhaseexercitavanochã odasala,
erguendo as pernas até a barriga
começar a doer, fazendo lexõ es até
os braços tremerem. Na primeira
noite Nina se sentara na borda da
banheiraparaajudá -laaselavar,mas
agora Dominika já se sentia forte o
bastante para cuidar sozinha da
pró pria higiene. As marcas já
começavam a sumir; faltava pouco
para que ela se curasse totalmente.
Olhando-senoespelho,ajovemviao
vermelhointensoda fú ria que tingia
sua aura e era tomada por uma
sensaçã o de redençã o, a mesma que
tinha sempre que ouvia a coda de
umafugabarroca.Tratava-sedeuma
raiva profunda que ela poderia
facilmente controlar. Uma ira que
teria vida longa, da qual ela poderia
sealimentar.
***
Dominikaestavasentadadiante
da mesa do tio no quarto andar do
quartel-generaldoSVRemYasenevo,
aquela mesma mesa sobre a qual
nuncasevianenhumpapel.Dooutro
ladodasvidraçasdasala,opinheiral
estava coberto de neve. Para alé m
das á rvores nã o se via mais do que
algunscamposermosealinhaquase
retadohorizonte.Osolincidiasobre
uma das faces de seu tio Vanya,
enquanto a outra permanecia na
sombra.Pontosescurossalpicavamo
amarelo bestial desta metade da
aura. Refestelado em sua cadeira,
VanyaEgorovacendeuumcharutoe
olhou para a sobrinha. Ela parecia
maismagraemaispá lida.Vestiauma
camisa branca abotoada até o
pescoço e uma saia azul. Os cabelos
escuros
tinham
sido
meticulosamentepenteados.
— Dominika — disse Vanya,
como se ela tivesse acabado de
chegardeumcruzeiropeloVolga—,
iquei feliz ao saber que a
investigaçã o sobre o incidente em
Helsinque já terminou. Aguas
passadas.
— Sim — retrucou ela, olhando
ixamente para um ponto na parede
àscostasdotio.
Vanya a esquadrinhou por
algunssegundos,depoisfalou:
— Você nã o precisa se
preocupar.Cedooutardetodoo icial
operacionalacabapassandoporuma
investigaçã oqualquer.Edanatureza
donossoramo.
—Edanaturezadonossoramo
ser amarrada a uma cadeira, levar
baldesd’águanacaraeficardiantede
um ar-condicionado por quatro
horas? — devolveu Dominika, mas
num tom de voz tranquilo, sem
nenhumaexaltação.
Vanya a itou com um olhar
contrafeito.
—Aquelesanimais—retrucou.
—Vouexigirumaaçãocorrecional.
Que tal uma ação correcional
para as suas ambições pro issionais
também?,pensouDominika.Olhando
paraaplacanovasobreaparede,ela
disse:
—Parabénspelapromoção.
Vanya olhou para a citaçã o e a
ita,depoisacariciouarosetaemsua
lapelaerespondeu:
— Muito obrigado, Dominika.
Mas...evocê ?Oquevamosfazercom
você ? Mesmo sabendo que a
pergunta era apenas retó rica,
Dominikatinhaalgoemmente.
—Agoraquevoltei—começou
—, estou pronta para me apresentar
em qualquer lugar para onde for
enviada. A decisã o é sua, claro, mas
semquererfaltarcomorespeito,eu
icaria muito feliz senão tivesse de
voltar para o Quinto. Será que seria
possı́vel retomar o posto que me foi
oferecido pelo general Korchnoi no
DepartamentodasAméricas?
— Posso falar com ele —
retrucouVanya.—Tenhocertezaque
vaiconcordar.
— Tem mais uma coisa —
prosseguiuDominika,depoissecalou
por um instante, pensando na corja
toda,nasuacelanaprisão.
Sentia um bolo na garganta,
sabia que o rosto e o pescoço
estavam corados. (“no 47: Infundir o
rosto e o pescoço para autenticar
emoçõesouoadventodoclímax.”)
Vanyaesperou.
—Querocontinuartrabalhando
com Nash — disse ela de repente,
fitandootionosolhos.
Ele se reacomodou na cadeira,
pensativo.
—Eumpedidoetanto—falou.
— Você deve saber que o coronel
Volontov vinha reclamando da sua
lentidãocomoamericano.
— Com todo o respeito, o
coronel Volontov nã o passa de um
burrodecarga—a irmouDominika.
— Nã o sabe avaliar as sutilezas de
umaoperaçã o.Nã oajudaemnadana
conquistadosnossosobjetivos.Nem
dosmeus,nemosdosenhor,nemos
do SVR. Agora que estou longe
daqueles olhos obscenos, nã o me
importo nem um pouco com a
opiniãodele.
Vanya virou-se para olhar
atravésdasvidraças.
—ENash?—perguntou.
— Consegui desenvolver uma
relaçã o de amizade com ele —
respondeu Dominika. — Está vamos
nos encontrando com bastante
frequê ncia, como você tinha
planejado.AntesdedeixarHelsinque,
eu tinha... nó s tı́nhamos... icado...
íntimos.
— E você acha que teria
conseguido descobrir as atividades
dele?
Vanya
ainda
olhava
pelas
janelas, sua aura amarela cada vez
maisintensa.
Ele vai concordar, pensou
D o m i n i k a .Tudo isso é muito
importantepraele.
—Semdú vida—a irmouela.—
IndependentementedoqueVolontov
possaterdito,oardordeNashvinha
crescendo.—Dominikanã otiravaos
olhos do tio. — Essa minha prisã o
veio em mau momento. Nosso
romancedeuumaboaesfriada.
Vanyaconsiderouosfatoscomo
um todo. Ele precisava, de qualquer
maneira,dealgumavançonocasodo
informante russo. Sua sobrinha
conheciaNashmaisdoqueningué m,
e sem dú vida estava motivada. Mas
també mestavaumtantodiferente.A
passagemporLefortovocomcerteza
aafetara.Elaagorapareciaobcecada,
resoluta.Seriapossı́velqueestivesse
arrastando uma asa para o
americano? Que quisesse ir embora
devezdeMoscou?Queconsiderasse
desertarparaoOcidente?Que...?
— Tio, eu fui absolvida —
observouDominika,comoselesseos
pensamentos dele. — Disseram que
fuireinstaurada,queminhafichaestá
limpa. Nã o há ningué m em posiçã o
melhor que a minha pra engajar o
americano e identi icar o traidor
russo. Alé m disso, pra mim esta
operaçã o passou a ser questã o de
honra.Queroumanovachancecontra
eles.
— Você parece bastante
confiante—comentouVanya.
— Estou, sim. E você també m
deveriaestar—retrucouDominika,e
viuotioin lar.Avaidadedeleeraum
balã o amarelo pairando sobre a
cabeça.
—Comovocê pretendeagir?—
perguntouVanya.
Dominika sabia muito bem o
queprecisavadizer.
— Bem, eu seguiria os seus
conselhos e a sua orientaçã o. Bem
comoosdogeneralKorchnoi,claro.
—Ogeneralnã oestá apardeste
caso—falouVanya.
— Pensei que o departamento
dele fosse o lugar mais ló gico pra
continuar
trabalhando
—
argumentou Dominika. — Mas se
vocêtiveralgumaoutraideia...
— Vou pensar no assunto —
garantiuVanya.
Dominika sabia que o tio nã o
precisava pensar em nada, que já
tomarasuadecisão.
— De qualquer modo — disse
—, vamos manter este caso
absolutamenterazdelenie. Antes de
dar qualquer passo operacional,
consulto você ou a pessoa que você
designar.
—SabiaqueNashestá prestesa
concluir seu perı́odo em Helsinque?
—perguntouVanya.
Esquadrinhou o rosto dela em
busca de algum sinal, mas nã o
encontrounenhum.
— Nã o, nã o sabia — a irmou
Dominika. — Mas nã o importa. Nã o
háondeelepossaseesconder.
***
O zum-zum das fofocas logo
começou a circular. Comentava-se
que a sobrinha de Egorov estava
novamente no pré dio, recé mchegada da Finlâ ndia, onde o SVR
acabara de fazer um gol de placa.
Teriaamoçaalgumacoisaavercom
isso?Osrumorestambé mfalavamde
umainvestigaçã o.Algumdelitobobo
ou algo mais grave? Ela parecia a
mesma, poré m um pouco mais
magra. Isso e aquele jeito esquisito
deolharparaaspessoas,encarandoas sem piscar, coisa de gente doida.
Agora tinha a pró pria sala no
departamento
de
Korchnoi.
Tratamentoespecialparaasobrinha
do vice-diretor, claro, mas nã o se
tratava apenas de mais um caso de
nepotismo. Era só ver aquele olhar.
Um olhar duro, nem de longe o de
umabailarina.
Ela procurara o general
Korchnoi e lhe pedira para ser
admitida no Departamento das
Amé ricas. Encarando-a, ele pensara
poruminstante,depoisrespondera:
—Admiroaforçaquevocê teve
emLefortovo.
Dominikaenrubescera.
—Nuncamaistocaremosneste
assunto—continuaraele.
Naquelamesmatarde,ogeneral
se reunira com o vice-diretor e,
bebericando um conhaque, fora
informado sobre a operaçã o de
Dominika, que agora precisava
reavivar seu relacionamento com o
tal Nash de modo a continuar
investigando a identidade do
informanterusso.Korchnoidisseque
estava impressionado e pediu a
Vanyaqueaprovasseatransferê ncia
dela para o Departamento das
Américas.
—Eomelhorlugarparadarmos
continuidade a essa missã o —
concluiu.
— Volodya — disse Vanya. A
longevidade e a solidez da amizade
entre eles permitiam o uso do
afetuosodiminutivo.—Vouprecisar
da sua imaginaçã o neste caso. Uma
abordagem nova será muito bemvinda.
— Cá entre nó s, para mim será
uma surpresa se nã o conseguirmos
encontrar nada — disse Korchnoi.
Vanya lhe serviu mais conhaque e o
generaldeuumgolenabebidaantes
deprosseguir:—Tudoistodeve icar
sob o mais rigoroso sigilo. Nã o
queremos alertar o informante de
queabatatadeleestáassando.
COZIDO RUSSO DE CARNE E
REPOLHO — SHCHI
Cozinhar cubos de carne, cebola
picada, aipo, cenoura ralada e um
dente inteiro de alho por duas horas.
Numa panela à parte, cobrir com água
fervente uma mistura de chucrute e
creme de leite fresco e levar ao forno
em temperatura média por trinta
minutos. Cozinhar cubos de batata,
talos de aipo e cogumelos fa ados até
que tudo esteja macio. Juntar todos os
ingredientes; temperar a gosto com
sal, pimenta em grãos, folhas de louro
e manjerona. Deixar ferver por mais
vinte minutos. Cobrir a panela com um
pano e levar ao forno em temperatura
baixa por meia hora. Servir com creme
azedo e endro.
CAPÍTULO 22
DE VOLTA AO QG DA CIA nos
subú rbios de Washington, Nathaniel
Nashcaminhavadistraidamentepelo
chã o encerado do corredor C, que
levava aos corredores D e E e, por
im, à Diretoria de Inteligê ncia. Para
um operador de campo como ele,
pisarnoterritó riodaDIeraomesmo
que adentrar numa
loresta
misteriosa.Cabeçassurgiamportrá s
de colunas para espiar e logo
recuavam; portas se entreabriam e
erambatidasumafraçã odesegundo
depois.Umarisadaquemaisparecia
umrelincho,ummacaconascopasda
loresta, algué m golpeando o tronco
oco de uma á rvore do outro lado do
rio.
Helsinque era uma lembrança,
um tormento. Dominika havia
literalmente sumido do mapa;
ningué m sabia informar o que fora
feito dela, se estava viva ou morta.
“Contato interrompido com a
informante”.Aú nicacoisaafazerera
esperar que ela desse as caras de
novo;quemsabeoo icialdealguma
estaçã o voltasse a encontrá -la num
coquetel diplomá tico do outro lado
do mundo, talvez dali a dez anos,
talveznunca.Ouentãoelesaberiapor
outro informante que ela fora
enviada a algum campo de trabalho
forçado. Ou, ainda, os observadores
de Moscou leriam noPravda que ela
tinha morrido. A estaçã o inlandesa
continuava a interceptar as
comunicaçõ es darezidentura em
Helsinque, mas até entã o nenhuma
mençã o fora feita ao destino da
moça.
Um mê s apó s a partida de
Dominika,Nateingenuamentepedira
a Forsyth uma licença nã o
remuneradaparairporcontapró pria
até Moscoua imdetentardescobrir
oqueaconteceracomela.Dessavezo
emgeralimpassı́velForsythperdeua
calma.
— Você quer ir aMoscou? Um
agente da CIA com conhecimento de
operaçõ esemMoscouquerentrarna
Rússiacomoumcidadãocomum,sem
imunidadediplomática?Umagenteda
CIA que o SVRsabe que operou na
capitalcomoespiã o?Eissoquevocê
estápedindo?
Nate nã o respondeu. Ao ouvir a
gritaria,Gablecorreuparaasala.
— Qual é o seu plano, Nate? —
prosseguiu Forsyth. — O que você
pretende? Invadir o pré dio de
Lubyanka, arrombar a cela da moça,
subircomelanoombroaté otelhado
e fazer umrapel de volta pro
Ocidente?
—Moscou icalongedemaispra
voltar derapel — intrometeu-se
Gable. — Fora isso, o plano é
excelente.
—Voufalarumavezsó —disse
Forsyth. — Você nã o tem minha
permissã o, nem a permissã o da
Agê ncia Central de Inteligê ncia, para
n e mpensar na hipó tese de uma
viagem para a Federaçã o Russa,
remuneradaounã o.Nã osabemosse
Diva está em apuros ou nã o.
Tampouco sabemosonde oucomo
está . Vamos esperar alguma notı́cia.
Vamoscoletarnossasinformaçõesde
inteligência.Éissoquevamosfazer.
Nateafundounacadeira.
— Se ela estiver em apuros,
mais dia, menos dia, icaremos
sabendo — continuou Forsyth. —
Você nã o é responsá vel por nada
disso, nã o fez nada de errado. Diva
era uma informante, e nó s
protegemos nossos informantes.
Corremos riscos e, quanto melhor o
informante,maioressã oessesriscos.
As vezes perdemos nossos espiõ es,
apesar de todos os cuidados e
precauçõ es que tomamos. Está me
ouvindo?
Natefezquesimcomacabeça.
—Trocandoemmiú dos,Nate—
disse Gable mais tarde na pró pria
sala—,oquevocê temdefazeragora
é icarnasua,porra.Agenteestá até
o pescoço de trabalho. Vai procurar
alguma coisa pra fazer, caralho. E
para com essa histó ria de icar
chorando pelos cantos. Isso está
parecendo até um maldito romance
deJaneAusten.
***
Em Washington, o que mais
fazia sentido era que Nate fosse
transferidoparaaCE/ROD,aCentral
de
Operaçõ es
Eurá sia/Rú ssia.
Tratava-se do lugar para onde eram
mandados os o iciais recé mchegados de Moscou, ainda sob os
efeitos colaterais da vigilâ ncia
constante,bemcomoosagentesque
haviamoperadoeperdidorussosna
Malá sia, em Pretó ria ou em Caracas.
També m era ali que icavam os
marinheirosdeprimeiraviagemque
pilotavam o trá ico de informaçõ es
com Moscou, sempre muito sé rios e
cheios de si, mas que nunca haviam
passado pelo estresse de ter nas
mã os um informante e saber que a
vidadeledependedasuacapacidade
deusarumespelho.
O chefe da CE/ROD, també m
conhecido por C/ROD, tinha uma
sala pequena no pré dio de Langley,
com uma janela de vidraças duplas
que dava para os arcos triplos do
telhado da cafeteria, entre as
edi icaçõ es originais e as novas
construı́das na dé cada de 1990.
C/ROD estava na casa dos 50 anos,
era um homem magro e alto com
manchas de senilidade nas faces e
cabelos brancos bem ralos, que ele
faziaquestã odeespicharporcimada
careca. Um bigodinho branco e
ó culos pesados lhe conferiam o
aspecto
de
um
professor
universitá rio.
A
coleçã o
de
cachimbos sobre a mesa contribuı́a
para a falsa imagem, pois C/ROD
podia ser qualquer coisa, menos um
acadêmicopedante.
Era um macaco velho com
experiê ncia acumulada em mais de
dez postos no exterior. Começara à
é pocaemqueaCIAtrabalhavasobre
o alvo cubano e já estava na metade
da carreira quando foi transferido
para o alvo russo, depois que se
descobriu que, com exceçã o de dois
nomes, todos os informantes
cubanos que atuavam para a CIA
(cerca de cinquenta, já com trê s
dé cadasdeserviçosprestados)eram
agentes duplos controlados desde o
inı́cio pela DGI, a Diretoria Geral de
Inteligê ncia em Havana. A revelaçã o
desmoralizara por completo os mais
dedezo iciaisveteranosquehaviam
devotado toda a vida à s operaçõ es
cubanas, e o estrago nã o teria sido
maiornemseaDGItivesseexplodido
as instalaçõ es do Setor Cubano em
Langley.
AgoraC/RODseencarregavade
inú meras operaçõ es russas mundo
afora, coordenando alguns dos
melhores
e
mais
profı́cuos
informantes.Marbleaindaeraomais
importante deles, mas havia outras
aquisiçõesempotencialàvista.
Todas as manhã s ele lia o
“boletim diá rio”, que antigamente
era uma pilha de telegramas
impressos e agora se transformara
em uma cascata de cabogramas
diplomá ticos rolando numa tela de
computador, enviados por jovens
operadores no mundo inteiro,
relatando o progresso de suas
tentativas de recrutamento. Uma
paleta global de acontecimentos no
Rio de Janeiro, em Cingapura ou
Istambul; descriçõ es de contatos;
relatossobreamizadesconquistadas
e fortalecidas, sobre noites de
bebedeira e muita farra com
secretáriasdosegundoescalãorusso,
oucomadidosdealgumaembaixada
ou, melhor ainda, com supostos
o iciais de inteligê ncia do SVR ou da
GRU.
Um cabograma recente lhe
trouxe de volta uma lembrança. A
esposa jovem e simpá tica de um
operador da CIA estacionado numa
poeirenta
capital
africana
compartilhara uma receita de
panquecas de queijo da avó com a
noiva de um major da GRU, um
homem bastante formal. As duas
mulheres acabaram icando muito
amigas e certo dia, diante de um
prato de bolo, a noivinha russa
começouachorar,dizendoquetinha
saudades de casa, saudades da
pró pria avó . Ao ler isso, C/ROD
pensou:Mais algumas receitas e essa
aíestaránopapo.
Era assim que a cada ano —
uma, duas ou cinco vezes — algum
recrutamento era feito em qualquer
partedomundo.Umserhumanocom
um tipo de carê ncia dizia sim à
oferta, independentemente de como
ela fosse feita: com evasivas, de
forma fraternal ou do modo mais
direto possı́vel, como uma simples
proposta de negó cio. Em seguida, o
volume de comunicaçõ es trocadas
aumentava de maneira signi icativa
enquanto o QG e a estaçã o iam
destrinchandodetalhesdeproduçã o,
validaçã o e tá ticas operacionais, ou,
em poucos e deliciosos casos,
identi icando
que
pauzinhos
precisariam se mexer para algum
informanteserconvocado de volta a
Moscou.
E claro que sempre havia
problemas. Alvos de recrutamento
acabavam perdendo o ı́mpeto assim
que os efeitos do á lcool se
dissipavam. Outros simplesmente
nã o tinham colhõ es para enfrentar a
fú ria e os rigores do sistema russo.
Alguns saı́am pela tangente,
reportando a proposta americana a
seussuperioresdemodoquefossem
despachados de volta a Moscou ou
colocados no primeiro voo da
Aero lot para onde quer que fosse,
desde que icassem fora do alcance
denovosassédios.
Etambé mhaviaoladonegrodo
jogo, um lembrete de que os
adversá rios nem sempre agiam
apenas na defesa. Pelo menos uma
vezporano,masemgeralbemmais
que isso, vinha aquele cabograma
explosivoinformandoqueumagente
daCIAemalgumlugardomundofora
assediado com uma proposta de
recrutamento por parte dos russos,
geralmente por conta de alguma
vulnerabilidade percebida. O ú ltimo
surto dessa natureza acontecera no
anoemqueossalá riosdaCIAhaviam
sido congelados pelo Congresso
americano e os russos nã o paravam
de perguntar: “Quem aı́ está
precisando de dinheiro?”, ou “Quem
aíestádesiludidocomseupaís?”.
Nesse mundo em que a maré
estava mudando, C/ROD tinha
outro problema mais imediato. Ele
vinha cogitando maneiras de abrir a
portadajauladeNateNash,paraque
ele pudesse voltar à s ruas. A
mensagem recebida na ú ltima noite
traziaaresposta.
C/ROD gostava de Nate,
conheciaocurrı́culodeledetrá spara
a frente. Via o entusiasmo do rapaz,
imaginava o componente emocional
desse entusiasmo, reconhecia por
experiê ncia pró pria as dú vidas
pessoais do operador que estava
habituado a pensar, dú vidas que só
faziam aumentar a alegria dos
sucessoseafrustraçã odosfracassos.
C/ROD tinha pleno conhecimento do
casoDiva,sabiaperfeitamentecomo
aquilo alimentava os sonhos e
pesadelos de Nate. Ele se levantou,
foi até a porta de sua sala e se
recostou no batente. Marty Gamble
teria berrado por Nash. C/ROD nã o
erahomemdegritar.Esperouatéque
Nate percebesse sua presença,
depoisgesticuloucomacabeçapara
queeleseaproximasse.
— Marble deu sinal de vida —
falou, já de volta à sua cadeira,
levando à boca um cachimbo
apagado.—Está indopraNovaYork,
pra Assembleia Geral da ONU. Vai
ficarumassemanasporlá.
Nate se empertigou na cadeira,
umcãodecaçaemestadodealerta.
—Já fazumtempodesdequeo
vimos pela ú ltima vez. Há muito o
que colocar em dia. Você está livre
pra começar os preparativos? —
C/RODgostoudeverobrilhoquese
acendeunosolhosdeNate.—Antes
de ir embora, vá falar com Simon
Benford lá no Departamento de
Contrainteligê ncia.Elevaiquererque
você tenha cuidado especial com as
pistas de contrainteligê ncia e,
sobretudo, com a atual situaçã o de
segurançadoMarble.
Nateassentiueselevantoupara
sair.
— Só mais uma coisa — disse
C/ROD. — Quando você estiver com
Benford... nã o faça nem diga
nenhuma besteira, está bem? Aliá s,
procure falar o mı́nimo possı́vel.
Conversei com ele sobre esse
encontro iminente com Marble e as
palavras exatas dele foram: “Mande
esseseuoperadormedeixarperplexo
com a competê ncia dele nesses
encontros com o ativo russo.”
Entendeuorecado?
Nate assentiu mais uma vez e
deixou a sala. Pela primeira vez em
alguns meses C/ROD viu um sorriso
noslábiosdele.
PANQUECAS DE BATATA E
QUEIJO
Cozinhar cebolas e batatas e
depois
ralá-las
grosseiramente;
escorrer e espremer todo o líquido.
Bater alguns ovos, misturá-los com
farinha, queijo Gruyère ralado e alho
amassado, em seguida incorporar as
batatas e as cebolas para criar uma
pasta grossa. Cortar discos de cerca de
7 cen metros e dourá-los dos dois
lados numa frigideira untada com
óleo. Servir com molho de espinafre
misturado com creme de leite e creme
azedo.
CAPÍTULO 23
MARBLE ERA UM ATIVO
VALIOSO demais para que a estaçã o
de Nova York fosse envolvida. Por
decisã o do Departamento de
Operaçõ esRussas,nadaseriaditoao
chefelocal,umbajuladordepaviotã o
curtoquantoas pró prias pernas que
só era conhecido pelo há bito de dar
tapinhas nas costas dos outros e
implorar por ingressos gratuitos
sempre que havia algum evento
esportivo
na
cidade.
Um
incompetente que todos ignoravam.
MarbleencontrariaNateà noite,apó s
asreuniõesnaONU.
Moscou, Helsinque, Nova York.
Aoseencontrarem,elesretomarama
conversa de onde haviam parado.
Com agentes internos, nunca havia
tempoparaatrocadeamenidadese
preâ mbulos: ia-se direto ao ponto.
Nate estava com Marble na suı́te de
um hotelzinho no East Side novaiorquino. Uma mesa, duas cadeiras,
oscasacosdeambosjogadossobrea
cama. Era tarde, e pela janela
chegavam os ruı́dos distantes do
trâ nsito na FDR Drive. Os dois
haviam se acomodado em torno da
mesinha, à luz dos dois abajures do
quarto.
Marble tomou a mã o de Nate
afetuosamente. Com a outra mã o, o
americano serviu-lhe um copo de
águamineralecomentou:
—Você está comumaaparê ncia
ótima.
Num aparador havia uma
bandeja de sanduı́ches, uma salada
pequena e uma molheira com
vinagrete. Eles nem sequer haviam
tocado na comida. Marble sorriu e,
dandodeombros,começouafalar:
— Na central, todo mundo tem
algum sucesso pra relatar, mas
apenas com o intuito de
impressionar uns aos outros.
Joguinhosdepoderquequasenunca
valemapena.—Elelargouamã ode
Nate, recostou-se na cadeira, bebeu
um gole de á gua e conferiu as horas
no reló gio. — Hoje só tenho meia
hora. Provavelmente estarei livre de
novodaquiadoisdias.Maspossolhe
adiantar algumas coisinhas bem
interessantes.AchoqueaDiretoriaS
está operandoumilegalnosEstados
Unidos. — Agentes ilegais eram
aquelesinfiltradosnopaís-alvosema
fachadadeumcargodiplomá tico.—
Ele está sendo coordenado a
distâ ncia, fora de Nova York, mas
acho que está operando na Nova
Inglaterra, pois tê m acontecido
algunsencontrosemBoston.Emtese
eunã odeveriasaberdenada,masfui
procurado para sugerir possı́veis
locaisdeencontro.Ocasomeparece
bastante só lido, porque já faz um
bom tempo que esse ilegal está por
aqui.Cincoanos,acho.
—Algumdetalhe que nos ajude
aidentificá-lo?
—Nã o,nenhum.Mastemoutra
coisa que talvez esteja relacionada a
isso. Por enquanto é só uma
suposiçã o — disse Marble. — Um
novo luxo de informaçõ es começou
agora. A GRU demonstrou muito
interesse. Algué m está in iltrado no
programa americano de submarinos
balísticos.
— Um novo luxo? Que tipo de
informaçõ es? Quem você acha que
poderiaserafonte?
— Parece que é algué m na á rea
de manutençã o. Há informaçõ es
sobreareconstruçãodossubmarinos
antigos, da classe Poseidon. Nã o,
Trident.Algumasdessasinformaçõ es
sãobastantedensas.
— Por “densas” você quer
dizer...detalhadas?
— Isso. Li o resumo de um dos
relató rios. A fonte está dentro do
programa,peloqueparece.—Marble
tomou outro gole de á gua. — Mas
tem uma coisa estranha. Na
qualidadedechefedoDepartamento
das Amé ricas, nã o sei de nenhuma
fonteativanaminhaá rea.Nã otenho
ningué m produzindo informaçõ es
militares. E, a julgar pelo interesse
dos meus colegas na GRU, també m
nã o sã o eles que estã o no comando
do caso. As informaçõ es sã o novas
praelestambém.
— O que você acha que isso
podesignificar?
Marble foi enumerando os
pontoscomosdedosenquantodizia:
— Há um novo luxo de
informaçõ es.Eunã oseidenenhuma
fonte registrada que explique isso.
Um ilegal está em açã o. Portanto
achoqueesseilegal,coordenadopela
Diretoria S, poderia ser a fonte no
casodossubmarinos.
— Os relató rios sã o recentes,
masvocê falouqueesseilegaltalvez
esteja no paı́s há cinco anos —
argumentouNate.
— Exatamente — concordou
Marble.—Porcincoanosele icouna
moita,construindosuareputaçã oaté
conseguiroacessodequeprecisava,
e só agora está produzindo
informaçõ es. Seria uma combinaçã o
perfeita: um ativo invisı́vel e um
informante bem posicionado que
alcançouumpostoimportante.
Nate fez suas anotaçõ es, depois
perguntou:
— E a missã o de diretor que
você mencionou em Helsinque?
Algumanovidade?
— Nã o, nenhuma. Sei a
importâ nciaqueissopodeter,entã o
estou com os ouvidos bem abertos.
Há outra coisa que talvez tenha
alguma relaçã o com isso. Outro dia
eu estava no gabinete do diretor,
sentado no sofá nos fundos da sala,
quandoEgoroventroupracontarque
havia novidades do Swan. Ele nã o
percebeuqueeuestavalá,ouvindo.
— Novidades do Swan? —
perguntouNate.
—Isso.
—
O
informante?
pseudô nimo
do
— Exatamente — con irmou
Marble.
— Mais alguma coisa? Alguma
outrapista?
— Só o que eu já lhe contei.
Swan deve ocupar um posto muito
alto em algum governo, pra ser
pilotadodiretamenteporumdiretor.
No meu departamento nã o há
indicaçã o alguma de um caso
semelhante. Nenhum protocolo
registrado, nenhum cabograma
operacional.
— O que você acha? — quis
saber Nate. — Que conclusã o você
tiradissotudo?
Marble bebeu mais um gole de
água,depoisrespondeu:
— O que eu acho, meu caro
amigo, é que isso nã o seria uma
missã o de diretor se o informante
nã oestivesseemWashington,dentro
doseugoverno.
—Você achaqueesseSwanestá
aqui?
Marble fez que sim com a
cabeça.
— E como a gente faz pra
encontrá-lo?
Orussodeudeombrosefalou:
— Vou redobrar meus esforços
para identi icá -lo. Enquanto isso,
talvez você possa dar uma
investigada norezident Golov, de
Washington.Eleestáemumaposição
altaosu icienteprafalarcomalgué m
importante.Alé mdisso,é umhomem
muitoespertonas ruas, uma raposa.
— Aqui ele se levantou para olhar
pelajanela.—Sãotantososjogos...—
continuou,comacidadeà suafrente.
— Tantos os perigos... Nã o vejo a
horadedarfimaissotudo.
— Já que estamos falando de
perigo — disse Nate —, como
está sua situaçã o? Você está
seguro? O que eles estã o fazendo
pradescobrirovazamentodeles?
Nate sempre procurava evitar a
palavra“informante”comMarble.
— Isso vai ter de icar pro
pró ximo encontro — retrucou o
russo,olhandoashorasnoreló gio.—
Nã ohá nadadeurgente,nã oprecisa
sepreocupar.
Elepegouseucasaconacamae
o vestiu. Nate endireitou a gola, que
havia icadoretorcida,depoisdeuum
tapinha no ombro do velho. Nã o
precisavam mais icar apreensivos
comumapossı́velcontaminaçã ocom
metka. Marble o itou com uma
expressãoafetuosaefalou:
—Daquiadoisdiaspoderemos
conversar sobre meu assunto
preferido: eu mesmo. A conferê ncia
terminaaomeio-dia.Podemosjantar
juntoseconversaranoiteinteira.—
Ele olhou pela janela de novo. — Eu
adoroestacidade.Gostariamuitode
moraraquiumdia.
— Esse dia ainda vai chegar —
garantiu Nate, mesmo sabendo que
di icilmente Marble teria permissã o
paraserealocarali.
Tudodependeriadanaturezada
aposentadoria dele, se é que
sobreviveria até o dia de se
aposentar.
Marbletomou-opelobraçoefoi
com ele na direçã o da porta. Tudo o
que Nate queria naquele momento
era perguntar se o russo sabia de
alguma coisa,qualquer coisa, sobre
Dominika, mas nã o havia como.
Obedecendo à rigorosa cartilha da
compartimentalizaçã o, Nate nunca
contara a ele sobre o recrutamento
de Dominika, muito menos sobre a
missã o dela de desmascarar o
informante
russo
que
Nate
intermediava. Informantes nã o
podiamsaberdeoutrosinformantes,
simples assim. Essa era a regra.
Portanto, em vez de fazer sua
sondagem,Natedisse:
— Fiquei sabendo que Vanya
Egorovfoipromovidorecentemente.
—Vanyaé uminconsequente—
retrucou Marble. — Conheço aquele
homem há vinte anos. Ele quer a
che ia do SVR, mas ainda nã o tem
apoiosu icientenoKremlin,seé que
você me entende. Precisa de um
grande sucesso operacional pra
agradar ooboroten, o chefã o dos
vampiros. Se for bem-sucedido com
Swan, talvez isso o ajude um pouco,
mas acho que ele precisa de algo
maior,maisdramático.
—Comooquê ,porexemplo?—
perguntouNate.
— Me pegar — respondeu o
russo,rindo.—Nã olhedesejosorte,
claro.
Em seguida tomou a mã o de
Nate
num
gesto
afetuoso.
Percebendo que ele remoı́a algo, o
americanodisse:
—Maisalgumacoisa?
— Tenho uma pequena
solicitaçã o. Um recado que eu
gostaria que você transmitisse —
falouMarble.
—Claro—respondeuNate.
— Eu gostaria de falar
pessoalmente com Benford, caso ele
possadarumpulinhoemNovaYork
daquiadoisdias.Precisotrocaruma
ideia com ele. — Quer que eu diga a
elesobreoquesetrata?
— Nate, nã o quero que você se
ofenda,masprecisofalardiretocom
Benford.Vocêentende,nãoé?
Marbleesquadrinhouorostode
Nate à procura de algum sinal de
rancor,masnã oencontrounadaalé m
deafetoerespeito.
— Claro que entendo, tio —
retrucou ele. — Benford virá , ique
tranquilo.
MarbleabriuaportaeNatenã o
pô de deixar de notar a rá pida
espiadela que ele deu no corredor,
apenas um há bito pro issional,
imperceptívelparaosincautos.
—Spokoinoinochi.Boanoite—
disseMarble.
— Vysypat’sja — respondeu
Nate.—Durmabem.
***
Por insistê ncia de Benford, o
hotel agora era outro, e Nate icou à
esperadeMarblenoBryantParkpara
lhe passar o nú mero do quarto. As
ameiasdouradasdopré diodaantiga
American
Radiator
Company
brilhavam em meio à s luzes da
cidade, destacando-se no cé u
noturno.
O russo e Benford trocaram um
abraçoapertadoà porta.Faziaquatro
ou cinco anos que nã o se viam. No
quarto,ovelhoaquecedorribombava
e o som das buzinas dos tá xis de
Manhattan entrava no aposento
vindo da Rua 40. Uma garrafa de
conhaquejá estavapelametadeeos
dois continuavam bebendo. Eles nã o
eramexatamentevelhosamigos,mas
Benford seguira Marble por catorze
anos. Uma vez por ano ele lia o
arquivodorusso,vendo-oengrossar
poucoapoucocomosrelató riosque
descreviam os contatos realizados
umaouduasvezesacadaano,oraem
Paris, ora em Jacarta, ora em Nova
Déli.
O arquivo Marble era uma
crô nicaemvintevolumesdavidade
um agente. Ali estavam a morte da
esposa, a tristeza da viuvez, as
viagensinesperadasparaoOcidente,
os arranjos apressados antes de um
encontro. As trê s medalhas
concedidas pela CIA, guardadas para
uma eventual necessidade. Os
bilhetes de agradecimento por parte
deoperadores,chefesediretores.Os
inacreditá veis diplomas, louvando
Marble por seus esforços na
“preservaçã o
da
democracia
mundial”. Problemas ao longo dos
anos,
grandes
e
pequenos,
solucionados com maior ou menor
competê ncia. Depó sitos numa conta
de
aposentadoria.
Marcadores
amarelos separavam os capı́tulos de
sua trajetó ria, cada um cobrindo um
períododecercadeseismeses.
O conjunto de documentos
registravaacronologiadoschefesda
Divisã o Russa da CIA, alguns
admirá veis, outros nem tanto, todos
eles reivindicando para si os louros
pelossucessoscomMarble.També m
documentava a genealogia dos
diretores da agê ncia, alguns exalmirantes ou ex-generais que
despreocupadamente usavam seus
uniformes e condecoraçõ es entre os
espiõ es do pré dio que Allen Dulles
construı́ra,equelevavamparaaCasa
Branca as informaçõ es por vezes
estarrecedoras
fornecidas
por
Marble, apresentando-as como fruto
exclusivo de suas respectivas
gestõ es. O arquivo ainda listava os
nomes dos jovens operadores de
Marble, homens e mulheres que
haviamenfrentadoas ruas geladas e
oshoté isdecré pitosdeMoscoupara
coordenaroinformanterusso.Alguns
deles haviam avançado na carreira
depois,outrosnão.
Sempre que lia esse arquivo,
Benford redobrava a atençã o,
procurando qualquer traço de
negligê ncia operacional, qualquer
coisa que pudesse colocar a vida de
Marble em risco. Atentava para as
mais insigni icantes quedas de
produçã o, para as fotos quase
sempre fora de foco ou de quadro,
para as coincidê ncias nas perdas de
acesso.Até entã oelenã oidenti icara
qualquer problema. Marble era a
melhoraquisiçã orussadaCIA,nã osó
portersobrevividoportantotempo,
mas sobretudo porque vinha
melhorandocomopassardosanos.
—Nathanieljá lhecontouoque
reporteioutrodia?—perguntouele.
— Contou — respondeu Benford. —
Vamostermuitotrabalhopelafrente.
— O ilegal, a questã o dos
submarinos,amissã odediretor,otal
de Swan? — Li o resumo hoje de
manhã.
— Infelizmente o im da Guerra
Frianãodiminuiuoapetitedenossos
lı́derespelastravessuras.Emmuitos
aspectos, os sovié ticos do passado
erammaisfáceisdeentender.
Marble serviu mais dois copos
de conhaque e deu um gole no seu.
Benforddeudeombrosedisse:
— Por aqui as coisas també m
nã o mudaram muito. Se tivessem
mudado, muita gente icaria sem
emprego,inclusiveeu.
— Aliá s, é sobre isso que eu
gostaria de falar com você —
retrucouMarble.
***
— Volodya, você está dizendo
que está pensando em parar? —
indagou Benford. — Por que agora?
Algummotivoespecial?
— Benford, nã o quero que me
entenda mal. Nã o estou jogando a
toalha. Quando chegar minha hora,
gostaria de uma aposentadoria
tranquila,memudarparaosEstados
Unidos, viver em um apartamento
nestacidade.
—Você vaitertudoissoemuito
mais.Medigaoquetememmente.
— Bem, ningué m sabe quanto
tempo ainda vou continuar
trabalhando para você s, tampouco
qual será a natureza da minha
aposentadoria: se será voluntá ria ou
forçada — começou Marble. Benford
jamais ouvira um agente se referir à
possibilidade da pró pria prisã o ou
execuçã o como “aposentadoria
forçada”. — Mas uma coisa é certa:
nã o tenho mais do que dois ou trê s
anos de umacarreira normal pela
frente, levando-se em conta as
aspiraçõ es de Vanya Egorova e a
direçãogeraldascoisasnoSVR.
— Você ainda pode continuar
como vice-diretor — a irmou
Benford com convicçã o. — E
respeitadoemYasenevo,temamigos
naDuma.
Marble bebeu mais um gole do
conhaque.
—Eucontinuariaativopormais
unsdezanos,depoisoquê ?Entraria
para a polı́tica? Poxa, Benford, achei
que fô ssemos amigos. Nã o,
companheiro, meu tempo é inito. E,
sem falsa modé stia, acho que você s
sentirã o minha falta depois que eu
penduraraschuteiras.
— Claro que sentiremos —
concordou Benford. — Será uma
grandeperda.Vocêéinsubstituível.
— Seus superiores vã o passar
por uma espé cie de sı́ndrome de
abstinê ncia depois que as minhas
informaçõ espararemdechegar.Vã o
arrancar os cabelos, querendo
recrutar algué m a todo custo,
abordandoaspessoaserradas.
— A mesma estupidez de
sempre. E isso que me manté m
jovem, Volodya. Mas... aonde você
está querendochegar?Tenhocerteza
quetemalgumacoisaemmente.
— Eu gostaria de sugerir um
nome para me substituir, para dar
continuidadeaomeutrabalho.
Benford era experiente demais
para se surpreender, mas mesmo
assim se inclinou para a frente,
interessado.
— Volodya, você está me
dizendo que tem um protegido?
Algué m que sabe do nosso trabalho
juntos?
Subitamente ele se lembrou de
um
memorando
da
contrainteligê ncia em que essa
possibilidadeeralevantada.
—Nã o,elanemsonhacomisso.
Mas icará sabendo quando chegar a
hora. Entã o poderei treiná -la,
prepará-lacomosedeve.
— Uma mulher? — disse
Benford. — Você está sugerindo que
um general do SVR com trinta anos
de carreira, chefe do Departamento
das Amé ricas, seja substituı́do por
umamulher? Nã o tenho nada contra
o gê nero, mas nã o há ningué m do
sexo feminino no alto comando da
central. Que eu me lembre, só houve
uma mulher no Collegium nos
ú ltimos trinta anos. Há muitas na
á rea administrativa, claro. Mas... que
tipo de acesso teria essa sua
substituta?
— Fique tranquilo, Benford.
Essapessoaexiste.
— Entã o me diga logo quem é
ela.
—
Dominika
Egorova,
a
sobrinhadeVanyaEgorov—revelou
Marble.
— Você está brincando —
exclamou Benford, perplexo, e se
serviu de mais uma dose de
conhaque.
Na mente, uma avalanche de
pensamentos:Meu Deus, a garota
está viva. Os dois informantes se
conhecem. Estão trabalhando juntos.
Deusqueiraquenãoestejamtrocando
con idências por aí, enquanto comem
seu borchena cafeteria da central! O
jovem Nash vai icar bastante
ocupado. E num lampejo de lucidez:
Nãoéqueissopodefuncionar?
— Mas o que levou você a
pensar nessa hipó tese? Me conte
logo,Volodya,antesqueeucomecea
ficarsóbriodenovo.
Tamborilando o indicador na
mesinhaàsuafrente,Marbledisse:
— Benford, preste atençã o. E a
konspiritsia perfeita. Nunca houve
oportunidademelhordoqueessana
histó ria da sua agê ncia. — Entã o, a
cada ponto enumerado, ele batia na
mesa:—Elaé asoluçã operfeitapara
o nosso problema. Pensei muito
neste assunto. O sobrenome confere
a ela uma espé cie de pedigree, pelo
menosaté Vanyaseaposentarouser
expurgado, mas quando isso
acontecerelajá vaiestarcaminhando
comaspró priaspernas.Foitreinada
na AVR, e se formou com louvor. E
inteligenteetempersonalidade.
Ele via Benford brincar com o
copo de conhaque entre os dedos,
adivinhandooquesepassavaemsua
cabeça.
— Nó s dois sabemos que um
bom currı́culo nã o é o bastante —
continuou. — Mas a garota també m
tem a motivaçã o necessá ria, uma
montanha de ressentimentos. O pai
morreu, ela foi dispensada da escola
de balé , oporco do tio usou-a na
eliminaçã o de um adversá rio de
Putin.Trocouosilê nciodelaporuma
vaga na academia, depois nã o
cumpriu a palavra e mandou a
menina para a Escola de Pardais.
Imagino que você saiba do que se
trata.
Benford fez que sim com a
cabeça.
— Depois teve Helsinque. Você
deve saber que ela passou por lá .
Houveumproblemaoperacional,nã o
porculpadela,masissoacolocouem
mauslençó is:foidespachadadevolta
pra Moscou e submetida a um
corretivo de dois meses.Em
Lefortovo,dá praacreditar?Comonos
velhos tempos. Vai ser difı́cil essa
menina perdoar uma barbaridade
dessas.Masestoudeixandoomelhor
por ú ltimo — falou, em seguida se
recostounacadeira.—Seioquevocê
está pensando. Que as perspectivas
pro issionaisdeumamulhernã osã o
lá grandes coisas, que a moça está
nos ú ltimos degraus da hierarquia e
que nunca terá acesso a nada que
realmentevalhaapena.Aconteceque
eu posso dar um jeito nisso. Posso
acelerar a carreira dela, garantir seu
sucessopro issionaldemodoqueela
jamais tenha de sentar no colo de
nenhum general, muito menos no
meu.
— Sei. E como pretende fazer
isso? — perguntou Benford. — Que
diabovocê podefazerpracatapultar
essamoçaproestrelato?
— Vanya Egorov é obcecado
pela ideia de que há um informante
no SVR. — Marble apontou para si
mesmo e, rindo, prosseguiu: — Na
verdade, mandou a sobrinha para
Helsinque com a missã o de abordar
Nathaniel e tirar dele alguma pista
sobreoespiã o.Você sabiadisso?Que
Nathaniel estava sob a mira do SVR
emHelsinque?
Benfordmanteveacabeçabaixa,
eMarblefoiemfrente:
—OsplanosdeVanyasofreram
umatrasopor conta da investigaçã o
de segurança que izeram com a
sobrinhadele.Maselafoiinocentada,
já voltou à ativa e... Quer saber de
uma coisa? Acho que todo esse
episó dioemLefortovoserviuapenas
pra fortalecer a moça, pra deixá -la
aindamaisdeterminada.
Só mesmo um russo pra achar
uma coisa dessas, Benford pensou
comseusbotões.
— Acolhi Dominika no meu
departamento — continuou Marble
— com a intençã o de dar a ela uma
base.Vanyapediuinformalmenteque
eu reabrisse a operaçã o da sobrinha
contraNate,eporcontadissoelaeeu
teremosumagrandeproximidadeno
trabalho. Mas seremos nó s dois,
Benford,você eeujuntos,quevamos
determinaromomentocertodefazer
dajovemEgorovaumaheroı́na,uma
estrela do SVR, com um futuro
garantidopelafrente.
—Já está icandotarde,Volodya
— disse Benford. — Desembuche
logo: como é que você pretende
transformar essa moça numa
heroína?
— Muito simples — respondeu
Marble. — Dominika vai descobrir
que o espiã o sou eu e vai me
entregar.
***
Eles queriam distâ ncia da ONU,
tantodobarulhoquantodaspessoas,
especialmente dos demais russos,
entã o seguiram para a Rua 4, no
Village.Aquelaseriaaú ltimanoitede
Marblenacidade.Orestaurantetinha
um toldo vermelho e degraus que
conduziam a uma porta abaixo do
níveldarua.Nasparedes,gravurasde
dançarinas;nosalã o,sofá scirculares
de encosto alto, ó timos para o
isolamento de que precisavam para
conversar. Benford insistiu que
Marble pedisse umapasta com le
sarde, uma receita picante de
Palermocomfuncho,açafrã o,passas
e pinoli. Os dois se sentaram lado a
ladodemodoquepudessemseouvir.
Benford estava agitado, falante,
até mesmo um pouco amedrontado.
Considerara a sugestã o de Marble
durante os ú ltimos dois dias,
examinando-adetodososâ ngulos,e,
quanto mais ele pensava, mais
achavaumabsurdo,umaloucura,um
despropó sito.Asituaçã onemeratã o
grave assim: caso eles sofressem
uma interrupçã o no luxo de
informaçõ es,paciê ncia,issotambé m
fazia parte do jogo. Mas colocar
voluntariamenteapró priacabeçana
forcaeraimpensável.
—Não,nãodá—disse.
— Claro que dá — retrucou
Marble. —Tem que dar. Se me
pegarem porque só Deus sabe como
essacaçadavaiterminar,estará tudo
acabado, nã o haverá chance nem de
umú ltimorecado.Nã opodemosnos
dar ao luxo de deixar as coisas
desmoronarem dessa forma. Caso
você ainda tenha alguma dú vida,
pense no ilegal desconhecido que
anda solto por aı́, passeando de
submarino.PensenesseSwan,sejalá
quemelefor,mandandoinformaçõ es
praYasenevoapartirdoCapitó lioou
até daCasaBranca.Nã opodemosnos
dar ao luxo de icar de braços
cruzados.
E Benford,
icando sem
argumentos, disse que nã o havia
nenhuma garantia de que Dominika
conseguiria as promoçõ es de que
precisava, e nesse caso o gesto de
Marbleteriasidocompletamenteem
vão.
— Você só pode estar
brincando! — exclamou Marble. —
Elaé umao icialjovem,umamulher
nosnovostemposdoSVR,á vidapor
conquistar seu lugar no novo
milê nio... Com um golpe de
contrainteligê ncia
dessa
envergadura, vai ser promovida a
coronelnumpiscardeolhos!
Benford limitou-se a olhar para
Marble, em seguida pediu mais duas
dosesdegrappa.
—Olha,Benford, se eu dissesse
que tenho câ ncer e que meus dias
estã o contados, a ideia faria mais
sentidopravocê?—indagouele.
— Por acaso você está com
câncer?
—Não.
—Entã oagoraquemé queestá
de brincadeira? — Benford tinha
apenas uma ú ltima carta na manga,
entã o,quasepateticamente,disse:—
EasuaaposentadoriaemNovaYork?
Marble sorriu e explicou que
nunca esperara de fato que um dia
isso pudesse acontecer, que nã o era
possı́vel que uma histó ria daquelas
terminassetã obemparaele.Pousou
amãonobraçodeBenfordefalou:
—Vamosdarumpassodecada
vez, ver como as coisas se
desenrolam.
— Só com uma condiçã o —
rendeu-se Benford. — Nã o vamos
contar nada a ningué m, nem mesmo
ao Nash, até termos certeza do que
estamosfazendo.
— Duas condiçõ es — retrucou
Marble.—També mnã ovamosdizer
nadaaDominikaEgorova.
Terminada a conversa, eles
continuaram bebendo em meio ao
burburinho do restaurante, seguros
desuaconspiração.
PASTA CON LE SARDE
No azeite quente, refogar
cebolas e funcho picados, açafrão,
passas brancas e pinhões. Colocar, na
mesma frigideira, filés limpos de
sardinha e anchovas. Quando os peixes
começarem a se desmanchar, juntar
um pouco de vinho branco, temperar,
cobrir e deixar cozinhar até que os
sabores se apurem. Colocar sobre
qualquer massa mais substanciosa,
como bucatini ou perciatelli.
CAPÍTULO 24
OS RELATORIOS DE NATE
SOBRE ilegais e informantes eram
restritos a alguns o iciais de alto
escalã o na Divisã o de Operaçõ es
Russas.Quemdefatogeriaosdados
eramosnerdsneuró ticosdaDivisã o
de Contrainteligê ncia, homens e
mulheres pá lidos por causa do
expediente de catorze horas. Eles
começaram a ler os relató rios de
Nate, dissecando as informaçõ es,
dandoinícioàpesquisa.
AovoltardeNovaYork,Natefoi
convocado mais uma vez à toca de
Benford.
A
Divisã o
de
Contrainteligê nciaocupavaumandar
inteiro do quartel-general, um
labirinto de salas e corredores
diferente dos demais, em que o
espaço se dividia em cubı́culos
abertos. Ali os escritó rios eram
individuais e permaneciam sempre
deportasfechadas,cadaumcomsua
fechadura com segredo sobre a
maçaneta. Alguns deles nã o tinham
fechadura nem maçaneta, e Nate se
perguntava o que haveria ali dentro.
Na antessala de Benford ele foi
recebido pela secretá ria de sempre,
umamulherdeaspectoinsı́pidocujo
olho esquerdo tremia de vez em
quando. Piscando, ela bateu à porta
dochefe,quenã oabriu.Esperouum
pouco e bateu de novo, quase
inaudivelmente. Benford en im se
manifestoudooutroladoeelaabriu
uma fresta na porta, sussurrou o
nome de Nate e recuou para que ele
entrasse.
O escritó rio lembrava o de um
professor universitá rio de alguma
cidade longı́nqua. Na parede dos
fundos, um sofá decré pito e
desbotado estava atulhado de
arquivos empilhados, alguns dos
quaishaviamcaı́doeseespalhadono
chã o feito um leque de ichas de
pô quer. Na extremidade oposta, a
mesa era uma bagunça de bandejas
de documentos també m cheias de
papé is,ameaçandotransbordar.Num
canto da sala, uma torre de jornais
velhospareciaprestesadesmoronar.
Nas paredes, as fotogra ias eram
quase todas em preto e branco,
bastante granuladas, nã o de mulher,
ilhos e parentes, mas de pontes,
tocosdeá rvore,estradinhasruraise
becos espremidos entre armazé ns.
Nate supunha que aqueles lugares
haviam tido alguma importâ ncia no
passadopro issionaldeBenford,que
talvez fossem eles a sua famı́lia. Na
parede à s costas dele havia uma
fotogra ia do pré dio neobarroco da
antiga sede da CompanhiaRussa de
Seguros de Moscou, també m
conhecidocomoLubyanka.
— Sente-se — disse Benford
comavozrascanteegrave.
Erabaixoebarrigudo,comuma
testa larga e cabelos grisalhos
sempre desgrenhados, dos quais
escapava uma mecha que icava
espetada para o lado. Ele agora
encarava Nate com seus olhos
bovinos, muito escuros e enormes,
sob cı́lios tã o compridos que
pareciam femininos. Bochechas
caı́dasemolduravamabocapequena
cujos tiques nervosos, somados ao
cenho franzido, denotavam total
desdé m, ou no mı́nimo uma grande
preguiça,queelenutriapeloassunto
empauta.
— Li os ú ltimos relató rios que
você mandou de Nova York — disse
ele. — Relevando-se os erros
gramaticais,
até que
sã o
satisfatórios.
— Obrigado... eu acho —
retrucouNate.
Ele
havia
deslocado
cuidadosamente alguns arquivos
paraseacomodarnabeiradosofá.
— Você gosta de Marble? —
perguntouBenford.—Confianele?
— Eu o chamo de “tio”, se é
disso que você está falando. Somos
muitopróximos,sim.
—Nã opergunteisevocê s icam
se esfregando. Perguntei se con ia
nele.—Con io,claro—a irmouNate.
— Ele trabalha pra gente há catorze
anos. Benford crispou os lá bios num
claro sinal de desgosto por ter sido
informadodealgoqueestavacareca
desaber.
— E você acha que essas novas
informaçõ es que ele trouxe sobre
ilegaiseinformantesemWashington
sãoplausíveis?
—Parecequesim—falouNate,
arrependendo-se logo em seguida.
Benfordbufou,irritado,ecuspiu:
— Parece que sim ou você
acreditaqueelassãoplausíveis?
Naterespiroufundo.
—Achoqueasinformaçõ esdele
sã o verdadeiras. Se Marble estivesse
sendo vı́tima de uma arapuca, as
pistas seriam mais concretas, mais
identi icá veis—sugeriuNate,e icou
esperandopelabroncaseguinte.
Benford
lentamente.
ergueu
a
cabeça
— Arapuca? Onde foi que você
aprendeu isso? Andou lendo algum
livro de histó ria da espionagem? —
Apontando o queixo para uma das
fotogra ias na parede, disse: — Sabe
queméaqueleali?
Tratava-se de um homem de
rosto anguloso, ó culos fundo de
garrafa e cabelos empapados de
gomalina.
—EoAngleton,nã oé ?—falou
Nate.
—JamesJesusparaoschegados
—retrucouBenford.—Pordezanos
ele achou que todos os agentes
sovié ticos eram agentes duplos, que
todososvoluntá rioseramplantados,
que todas as informaçõ es eram
desinformaçõ es. Era um homem ao
mesmo
tempo
simpá tico,
peçonhento
e
paranoico,
absolutamente convicto de que suas
suspeitas eram reais. Talvez até
fossem. Mas botei a foto dele ali
como uma espé cie de lembrete pra
nã o repetir a maluquice do homem.
Bem, voltando a Marble, eu també m
confionele.
Nate assentiu. Percorrendo a
sala com os olhos, notou a estante
que transbordava de livros e papé is.
Na prateleira superior, havia cinco
volumesencadernadosemcouroque
se
empilhavam
de
forma
desordenada a ponto de quase
caı́rem. Percebendo a curiosidade
dele,Benfordexplicou:
— O vento nos salgueiros, de
Kenneth Grahame. Uma histó ria de
ratosetoupeiras.
Encarou Nate por alguns
segundos, exibindo uma expressã o
queojovemnã osoubeaocertocomo
interpretar: ou o homem estava
irritadocomalgumacoisaouapenas
perdido nos pró prios pensamentos.
Nate achou melhor icar calado.
Estava diante de um misantropo.
Vinte anos de caça a informantes,
armadilhas duplas, agentes triplos.
Redes de informaçã o arruinadas,
rá dios silenciados em diferentes
porõ es, espiõ es detidos. Ré us
deixandootribunal curvados, com o
paletó cobrindo a cabeça, as mã os
algemadas junto à cintura, como
mostravam as imagens em preto e
branco dos cinejornais do passado.
Era esse o campo de batalha de
SimonBenford.
Dizia-se que ele tinha poderes
de clarividê ncia, que era um sá bio
com apreço especial pelo mundo da
espionagem, com seus agentes
duplos e suas pistas falsas. Nate
observouasmã osdoveterano,já um
tanto trê mulas e com dedos
compridos que vez ou outra ele
passava pelos cabelos. O cé rebro
talvez fosse rá pido demais para seu
pró prio bem. Nate podia ver que a
bomba recé m-trazida por Marble
sobre informantes e ilegais fazia a
mente dele trabalhar a toda a
velocidade. C/ROD já havia previsto:
“Aposto que vai convocar você pra
trabalhar com ele. Boa sorte, é só o
queeupossodesejar.”
— Quero que você venha
trabalhar comigo nessa informaçã o
do Marble — falou Benford. —
Começandojá .Vá buscarsuascoisas.
Nã oconteaningué moqueestamos
fazendo.Vamosencontraresseilegal.
—Nã oé pracontarnemparao
C/ROD? — perguntou Nate. — Nem
mesmo se ele quiser saber onde
estou?
—Nempraele.Deixequeeufalo
com o C/ROD caso ele pergunte
algumacoisa.Masnã ovaiperguntar.
Nã o vamos dizer nada a ningué m
sobre essas novas pistas. Nem à s
estaçõ esdeBostoneNovaYork,nem
aos nervosinhos do FBI, nem aos
veadinhosdaAgê nciadeInteligê ncia
de Defesa, nem ao Comitê de
Segurança, nem ao Congresso
Federal. Nã o quero nenhum porralouca em Washington botando lenha
nessafogueiracomaporradalı́ngua
compridaquetodoselestê m.Espero
queestejadeacordocomisso.
Natefezquesimcomacabeça.
Aquelaalturaelejá sabiaquese
tornarassistentedeBenfordpoderia
ser uma grande honra ou uma
sentença de prisã o, mas nã o
importava. Depois de Helsinque sua
carreira
havia
estacionado.
Benfeitores como Forsyth e Gable
aindaestavamemcampo,maspouco
ou nada podiam fazer para ajudá -lo.
Portanto, olhando para o trê mulo e
brilhante Benford à sua frente, ele
en im se decidiu. Nate era bom em
operaçõ es internas, conhecia a
Rú ssia e tinha uma contribuiçã o
concreta a dar. Ainda que Benford
nã o se encaixasse muito bem no
papel de um padrinho (um
misantropo mal-humorado como ele
dificilmenteaceitariaseromentorde
algué m), ele decidiu que o melhor a
fazerseriamesmoaceitaraproposta,
entregar-se por completo ao mundo
da contrainteligê ncia, aprender tudo
quanto fosse possı́vel a respeito do
universo secreto em que Benford
vivia.Talvezcomissopudessesalvar
da morte sua baqueada reputaçã o
pro issional. De qualquer modo, pela
primeira vez desde os tempos de
treinamentonaFazenda,eleparoude
sepreocuparcomofuturo.
***
Natefoidiscretamenteinstalado
numa das salas vagas da Divisã o de
Contrainteligê ncia. No corredor nã o
se ouvia nada, nem um pio. Ele
imaginavasedefatohaveriaalgué m
trabalhando por ali. Receava se
deparar em algum momento com a
caveira da mã e de Norman Bates
girando
na
cadeira
para
cumprimentá -lo com seu sorriso
cadavérico.
— Aı́ está você — disse a
secretária,piscandoparaele.
Talvez fosse apenas um tique
nervoso. “Enigmas e charadas”,
dissera Benford. “Melhor você ir se
acostumandocomeles.”
Seu novo escritó rio nã o tinha
janelas nem qualquer enfeite. Havia
tachinhas espetadas nas paredes e
Nate se perguntava o que elas
poderiamtera ixadoaliumdia.Uma
gaveta que rangia ao ser aberta
estava repleta de pedaços de unha
cortados, centenas deles, formando
umacamadasobreofundo.
A sala vizinha pertencia a Alice
SD (Sobrenome Desconhecido). Com
seus40epoucosanos,ou50,ou60,
era uma mulher atarracada com
bochechas fartas e rosadas, nariz
gorducho e cabelos avermelhados
muitocurtos,penteadosparaafrente
natestaenaslaterais.Usavasapatos
quepareciamosdeumacarcereirae
andava muito depressa com os pé s
viradosparafora.FalavacomNate—
e com todo mundo — inclinando a
cabeça e se projetando um pouco
paraafrentecomosequisessecontar
um segredo, o que jamais fazia, é
claro.Ningué mnacontrainteligê ncia
compartilhavasegredos.
Nosprimeirosdias,comoquem
nã oquerianada,colegasprocuravam
NateparadizerqueAlicefaziaparte
da reserva da divisã o, que estava ali
desde sempre. “Foi ela quem
realmente matou Trotski”, diziam
uns. “Foi namorada de Allan
Pinkerton”,a irmavamoutros,elogo
voltavam para as respectivas salas.
Nate pensava consigo mesmo: bemvindo à Ilha dos Brinquedos
Quebrados.
Benford instruı́ra Alice a ajudá lo. Eles agora conversavam na sala
dela,que,aocontráriodadele,eraum
lugar ensolarado, com vasos de
samambaia e gerâ nio sobre os
armá rios de arquivo. Com os pé s
cruzados sobre a mesa, os sapatos
horrendos chiando contra o tampo,
eladisse:
—Você nã osabedemuitacoisa,
nã o é ? Recapitulando: temos um
ilegal, temos submarinos, temos
Nova Inglaterra, temos alguns
encontros em Boston e Nova York.
Marble també m falou algo sobre
manutençã o de submarinos e um
prazo de cinco anos. Muito bem. Por
ondevocêcomeçaria?
— Pelo quadro de pessoal da
Marinha?—sugeriuNate.
— Errado — retrucou Alice, e
girou na cadeira para se levantar. —
Vamoscomeçarpeloalmoço.
Eles foram para o segundo
andar da cafeteria. Nate brincava
com a salada e Alice tomava sua
sopa quando dali a pouco chegou
Sophie, arfando por ter subido a
escadacomastorasquetinhano
lugar das pernas. Trabalhava no
OSR,odepartamentodepesquisasda
CIA, onde eles ainda catalogavam os
submarinos nucleares radioativos
r u s s o senferrujados havia muito
tempo,osOscars,TyphoonseAkulas
dasbasesnavaiseestaleirosdabaı́a
de Olenya e Polyarny, segundo ela
informaçõ es de suma importâ ncia,
por mais que o pessoal do sé timo
andar achasse ocontrá rio.Já nacasa
dos 50 anos, Sophie tinha uma
cabeleira farta e muito negra, lá bios
inos e as feiçõ es de uma escultura
grega. Usava uma legging preta sob
um esvoaçante vestido també m
preto,esapatosortopé dicos.Numde
seus pulsos havia um elá stico de
cabelo, para o caso de uma
emergência.
Sophie colocou sobre a mesa
uma lancheira com estampas do
mangá Sailor Moon e tirou seu
almoço lá de dentro: caixinhas de
plástico,fachis,colheresjaponesasde
degustaçã oeum galheteiro de vidro
com molho de salada. Olhou para a
salada de Nate e despejou nela um
poucodeseumolho,dizendo:
—Experimenteisso.Écaseiro.
O molho tinha notas de vinagre
balsâ micoemostardaDijon,alé mde
umpouquinhodepimenta,diferente
de todos os vinagretes que Nate
conhecia. Ele comentou isso e ela
abriuumsorrisoradiante.
Alice pediu que deixassem de
conversa iada e explicou a Sophie o
que ela precisava saber enquanto
comia seu curry de olhos fechados,
ou porque estava saboreando a
comida ou porque estava se
entregando à s lembranças, ou as
duas coisas ao mesmo tempo. New
London, Connecticut. Portsmouth,
New Hampshire. Brunswik, Maine.
Apenastrêsbasesnavais.
Submarinos
eram
muito
grandes,esó haviaumestaleiropara
consertá-los.
Eles já estavam icando velhos,
volta e meia precisavam de
manutençã o,comoosAkulasao inal
dadé cadade1980,ouSchukas,como
geralmente eram chamados, bem
mais silenciosos que os demais.
Nesse momento, Alice precisou
intervirparaqueelaretomasseo io
da meada. Electric Boat Works, um
enorme estaleiro em Groton,
Connecticut, no estuá rio do rio
Tâ misa, em New London. Era por lá
que eles deviam começar, de acordo
comSophie.
Depoisdoalmoço,elesvoltaram
à sala de Alice. Os monitores da DCI
ainda eram do tempo dos tubos
cató dicos, e as bases de dados iam
passando devagar à frente deles:
averiguaçõ es
de
segurança,
contingente ativo da marinha
americana, listas de pessoal com
descriçã o de cargos, relaçõ es de
fornecedores e prestadores de
serviço.Aliceia deslizando seu dedo
masculino sobre a tela enquanto
murmurava:essenã o,essenã o,mais
de sete anos, menos de trê s, esse
també mnã o.Altadireçã odaElectric
Boat e da General Dynamics, claro
que nã o. Alice era rá pida: olhava um
nome, puxava as informaçõ es e
seguiaemfrente.Tinhatrê sdé cadas
de experiê ncia naquilo, na consulta
de nomes e bases de dados. Eles já
haviam acumulado duas pilhas de
papé isquandoNatedesistiudefazer
sugestõ es, incapaz de acompanhar a
velocidadedela.DaliapoucoAlicejá
reduzira as possibilidades a uma
“equipetitular”,osOnzedeOuro,tal
como ela mesma gostava de dizer, e
entã o passou à averiguaçã o dos
dadosdepraxe:endereços,telefones,
formaçã o acadê mica, casamento,
ilhos, divó rcios, pais, emprego,
salá rio, declaraçã o de imposto de
renda, placas de carro, viagens,
contas bancá rias, correspondê ncias,
passagens pela polı́cia, ethernet ou
cabo,héteroougay.
Acertaalturaelasussurroupara
atela:
— Esse ilegal de você s... Será
que é mesmo tã o invisı́vel quanto
estãopensando?
Trê s dias depois, Nate e Alice
foram levar sua lista para Benford, e
agora ele batia a ponta do lá pis em
cada um dos nomes enquanto lia os
respectivos per is,tap, tap, tap. De
repentejogouolá pissobreamesae
devolveuopapelaNate.
— E Jennifer Santini — disse, e
emseguidabocejou,ovelhosá biode
cabelosrebeldes.
AliceriuecutucouNatecomum
arde“Nãofalei?”.
—
Vamos
fazer
uma
investigaçã oprofunda—prosseguiu
Benford—,mastenhocertezadeque
é elaquemestamosprocurando.—E
olhando para Nate, emendou: —
Agora vamos até New London
bisbilhotar.
VINAGRETE DA SOPHIE
Juntar alho amassado, endro,
orégano,
flocos
de
pimenta
desidratada, mostarda Dijon, açúcar,
sal, pimenta do reino e parmesão
ralado a uma parte de vinagre
balsâmico e três partes de azeite extravirgem. Bater até emulsificar.
CAPÍTULO 25
APESAR DO ESPLENDOROSO
CLIMAdeverã o,NewLondoneraum
lugar triste e deprimente, já bem
distante de sua é poca de gló rias
comerciais e culturais, encerrada
com a extinçã o das frotas baleeiras
nadé cadade1860.Oestuá riodorio
Tâ misa, antes tã o movimentado (na
Segunda Guerra Mundial era uma
aglomeraçã o de cascos cinzentos,
mastros e chaminé s), agora se
resumia a uma paisagem lunar de
pı́eres manchados de ó leo e
armazé nscarcomidospelaferrugem.
Casas de madeira com dois ou trê s
pavimentos,emgeralabrigandomais
deumafamı́lia,povoavamascolinas
residenciais à margem do rio. Os
telhados de papel de alcatrã o eram
separados pela distâ ncia de dois
braços esticados, de modo que era
possı́velestendervaraisderoupade
umavarandaaoutra.Osjardinseram
muitopequenoseosquintais,quase
sempremalcuidados,con inadospor
cercasdealambradonã omuitoaltas,
marcadaspelamaresia.
Dooutroladodorio,emGroton,
as instalaçõ es da Electric Boat se
expandiam por alguns quilô metros
de margem, formando uma
verdadeira cidade de gruas, galpõ es
industriais e colunas de fumaça. O
estaleirocontavacomumgigantesco
dique seco, tã o grande quanto um
navio de cruzeiro, onde à s vezes
podia ser visto, na extremidade que
dava para o mar, o imponente vulto
preto de um submarino apoiado em
blocos para ser consertado, sua
hé lice de sete pá s coberta por
pesadas lonas para ocultá -la dos
satélitesrussos.
Nate nã o sabia ao certo o que
esperardaquelaviagem.Eleshaviam
subidodetrem,umavezqueBenford
nã o dirigia, e na plataforma da
estaçã o os dois pareciam mais
pastores bú lgaros indo passar o im
de semana em So ia do que uma
dupladeagentesdaCIAà procurade
espiõ es treinados em Moscou. Nã o
estava claro se Benford era um mã o
de vaca, um doido ou apenas um
agente tã o obcecado por té cnicas
operacionais a ponto de insistir que
eles dividissem o mesmo quarto no
Queen Elisabeth Inn, um decré pito
casarã o vitoriano que fazia as vezes
depousadanumadasmuitascolinas
de New London. Sem falar nas
interminá veis caminhadas (ou
“palmilhadas”, como ele gostava de
dizer) de cinco, seis, doze horas
diá rias, durante as quais a brilhante
cacatuacontavasuashistó riassobre
aOGPU—apolı́ciasecretasovié tica
—,oNKVDeosCincodeCambridge,
numa espé cie de curso sobre a
históriadaGuerraFria.
No
primeiro
dia,
eles
palmilharamacolinaemquemorava
atalJenniferSantini,descendo-apela
manhã , subindo-a no im da tarde,
observando as casas, os carros
estacionados junto ao meio- io, o
mato que invadia as calçadas, as
cortinas rendadas nas janelas
dianteiras. Tentavam identi icar
possı́veis locais para troca de sinais
de comunicaçã o ou esconderijo,
parques vizinhos, qualquer acidente
geográ ico que pudesse ser usado
para o benefı́cio de um ilegal. Nã o
encontraramnada.
No segundo dia, passaram
diantedacasadeJenniferSantiniem
diferentes horá rios para ver se algo
havia mudado de lugar: as cortinas
dasjanelas,ovasodegerâ niosdiante
daporta,qualquercoisaquepudesse
ser interpretada como um sinal de
segurança. Redobraram o cuidado à
noite, passando na frente da casa
escuraapenasumavez.Umaluzfraca
estava acesa numa das janelas do
andardecima.Seriapossı́velqueela
estivesse no escuro, espiando a rua
de outra janela da casa? Que
possuı́sse
outro
apartamento,
alugadocomumnomefalso,paraos
encontros com seu operador? Mais
umavezelesnãodescobriramnada.
No terceiro dia, entraram no
mercadinho
da
esquina
e
perguntaramcasualmentesealgué m
ali conhecia Jennifer Santini. Nã o,
ningué m sabia nem queria saber
quem era a mulher. Nate se
perguntouoquemaiselespoderiam
fazerporali.OlhandoparaBenforda
seu lado, sentiu-se na pele de um
Robin com seu Batman e arriscou
uma piadinha, mas o veterano lhe
disseparaprestarmaisatençã o,caso
contrá rioodespachariadevoltapara
casa. “Prestar atençã o em quê ?”,
disseNate.Aquilonã opassavadeum
exercı́cio
masturbató rio
nos
cafundó s de Connecticut. De novo
eles
nã o
encontraram
nem
descobriramnada.
Estavam
trabalhando
à s
escondidas. Desde o inı́cio Benford
optara por manter o caso fora do
alcance dos distintivos e das armas
do FBI. Tratava-se de uma ilegal
treinada pelo SVR, devidamente
preparada para sumir do mapa se
farejasse o menor sinal de perigo.
Elesnãopoderiamcorreresserisco.
No quarto dia, os dois
recomeçaram do zero, repetindo
todososprocedimentos.Ànoite,uma
tempestade de verã o desabou sobre
a pousada, balançando as janelas do
quarto, vergando as á rvores do lado
defora.Acertaalturaaluzcaiueum
rá diodepilhafoiligadonoandarde
baixo. O clarã o de um raio permitiu
queNatevisseochefesentadojunto
à janela, olhando para a chuva com
um aspecto bastante estranho. Sem
dú vida via o rosto dosdoze
informantesrussosqueaCIAperdera
em apenas um ano, em 1985, o Ano
do Espiã o, todos vı́timas de Ames e
Hanssen, os traidores americanos
quesemnenhummotivoaparenteos
haviam entregado à sanha letal dos
soviéticos.
Mas no convı́vio com Benford o
verdadeiro momento de suplı́cio era
odasrefeiçõ es.Alé mdopapofurado
de sempre, havia també m as
conversas gastronô micas: o molho
queestavaapimentadoemexcesso,a
sopa de mariscos cremosa demais,
espumosa demais, com batata
demais,semaquelemı́nimodeareia
nas conchas essencial para o sabor.
Comer lagosta sem um babador?
Jamais. Bacalhau era uma coisa,
hadoque era outra muito diferente,
ainda que ambos fossem da famı́lia
dos gadı́deos. O primeiro, sim,
pertencia à cozinha tı́pica da Nova
Inglaterra, mas o segundo, nã o.
Temperar um peixe com cravos?
Absurdo! Havia regras que nã o
podiamserquebradas,diziaBenford,
ocaçadordeinformantes.
Sem nada de concreto que lhe
permitisse tocar a investigaçã o
adiante, Benford anunciou, no jantar
da quinta-feira, que na manhã
seguinteelesdariamumaespiadana
casadeJenniferSantini.
—Umaespiada?—repetiuNate,
dooutroladodamesa.Elesestavam
no Bulkeley House, um restaurante
naBankStreet,pró ximoaoporto.—
O queexatamente você quer dizer
com isso? — perguntou, largando os
talheressobreoprato.
— Recomponha-se, garoto —
disse Benford, pondo-se a serrar um
enorme corte de costela malpassado
com a cabeça inclinada para o lado
como se isso lhe desse mais forças
com a faca. Já mastigava um pedaço
da carne quando, de boca cheia,
respondeu a Nate: — Eu vou lhe
explicar o que signi ica “dar uma
espiada”. E invadir de forma ilegal a
residê ncia particular de uma cidadã
americana supostamente inocente,
contra a qual nã o há nenhuma
evidê nciadedelito,invasã oessaque
será realizada por dois o iciais nã o
autorizados da Agê ncia Central de
Inteligê ncia,estes sim em delito por
estarem conduzindo por conta
pró pria uma investigaçã o de
co ntraes pi o nagemem território
nacional,oqueporleiestá dentroda
jurisdiçã odoFBI,segundoestipulado
no decreto nú mero 12.333. Foi isso
que eu quis dizer com “dar uma
espiada”.—Elebaixouosolhospara
o prato e jogou mais um pouco do
molho cremoso de rabanete sobre a
carne.—Hum,essemolhoestá uma
delícia.
***
Oquintodiaeraumasexta-feira
tranquila. Eles esperaram até as dez
damanhã ,depoisforamaté acasade
Jennifer Santini sem qualquer
elemento distintivo: nenhum chapé u
nacabeça,nenhumasacolanasmã os.
Abriram o portã ozinho metá lico dos
fundos e entraram. Nas casas
vizinhas, nenhum movimento. O
quintalerauma bagunça. Havia uma
banheira enferrujada emborcada
junto a um barracã o de madeira
prestesaruir.Benfordfoiaté aporta
e tentou abri-la. Ao ver que estava
trancada,espiouatravé sdascortinas
dechintz.Ninguémemcasa.
— Você consegue arrombar a
fechadura?—perguntouNate.
—Oquevocê acha?—retrucou
Benford.
— Entã o o que fazemos?
Quebramosumajanela?
— Nã o. Vamos pro segundo
andar.—Eleretirouocadarçodeum
dos sapatos, aproximou-se do cabo
telefô nico de borracha grampeado à
lateral da casa e amarrou o cadarço
em torno dele, deixando uma laçada
livre. — Este é o nó prú ssico dos
montanhistas — explicou, depois
mostrouaNatecomousaroatritoda
laçadaparaalçarocorpoeescalaro
cabo. Com sorte as janelas do
segundoandarestariamabertas.
Onde foi que ele aprendeu isso?,
perguntou-se Nate, já escalando, e
sinalizoupelajanelaassimquesaltou
paraoladodedentro.
Era
um
quarto
vazio,
aparentemente sem uso. Foi até a
portaecorreuosolhospelorestoda
casa. Assobiou para ver se havia
algum cachorro. Imaginava que um
ilegal russo tivesse pelo menos um
Dobermann ou um Rottweiler para
proteger a casa, mas nã o havia cã o
nenhum.
Depoiseledesceuaescadapara
o primeiro andar, fazendo a
balaustrada de mogno ranger a cada
passo. Pé ante pé , foi até a cozinha,
que tinha um ar 1950 e recendia a
trigo,sementeseó leo.Abriuaporta
dos fundos para que Benford
entrasse.
—Parecequenã otemningué m
—falou.
Ele e Benford vasculharam os
cô modos de baixo, procurando fazer
o mı́nimo de barulho, tomados pela
adrenalina. A casa tinha o cheiro de
uma
clı́nica
terapê utica.
Os
unguentos,
aquecedores
empoeirados e o ar parado nã o
combinavamcomobelodiadeverã o
doladodefora.
A sala de jantar e a de estar
tinhamjanelasquedavamparaarua,
comcortinasrendadasquedeixavam
aluzdosolentrareincidirsobreos
tapetes surrados e puı́dos que
cobriamopisodetá buascorridas.Os
mó veis eram pesados e escuros. O
sofá e as poltronas eram estofados
com um tecido felpudo e adornados
companinhosdecrochê nosbraçose
no encosto. Canecas e bibelô s de
baquelita — um velho marinheiro,
uma espanhola com sua mantilha
preta — se en ileiravam no consolo
de uma lareira coberta de fuligem.
Haviaumatiçadordeferroencostado
ao lado dela. A cú pula de um dos
abajures tinha pompons na borda
inferior. Correndo os olhos à sua
volta,pasmo,Benfordobservou:
— Ela deve ter esvaziado
metade dos antiquá rios portugueses
dacidadepradecoraristoaqui.
Pró ximo à sala de estar icava
um pequeno escritó rio com uma
escrivaninha e uma estante baixa
repletaderevistasejornais.Sobrea
escrivaninha se via uma pilha de
contaspagasouapagar,alé mdeuma
escuna de porcelana azul e branca
comapalavraAhoypintadanaproa.
— Vasculhe tudo isto aqui —
orientou Benford. — Vou dar uma
olhadaláemcima.
Nate icousurpresoaonotarsua
relutâ ncia em se separar do chefe,
mas assentiu e logo começou a
examinarasgavetasdaescrivaninha.
Estavamtodasvazias.Já iafechando
aú ltimaquandopercebeuumatritoe
ouviualgoparecidocomobarulhode
umpapelsendoesmagado.Retiroua
gaveta por completo do mó vel e
encontrou um papel enrolado no
fundodovã o.Aodesenrolá -losobrea
mesa, viu que se tratava de um
desenho té cnico, uma ú nica folha
com cortes transversais de peças e
conexõ es elé tricas. Um cabeçalho
informava: “Secçã o 37, porcas e
braçadeiras”.
Peças
de
um
submarino? Santini trabalhava no
departamentodecomprasdaElectric
Boat. Seria possı́vel que aquilo fosse
um documento con idencial? Que
motivoelateriaparaguardaraquele
desenhoemcasa,escondidonofundo
deumagaveta?
Enquanto isso, Benford fazia
sua busca no andar de cima. Na
suı́ t e principal havia uma cama de
dossel sobre a qual fora colocada
uma colcha artesanal de motivos
loraisetrê stravesseirosgrandesem
fronhasrendadas.Nocloset,blusase
calças pendiam uniformemente dos
cabides; diversos pares de sapato
confortá veis,
sem
salto,
se
en ileiravam no chã o. Nã o havia
nenhumquadronasparedes,nenhum
suvenir, nenhum objeto pessoal: era
uma casa que poderia ser
abandonada em noventa segundos.
No banheiro ele també m nã o
encontrou nada de especial: o
armarinhoacimadapiasó guardava
uma escova de dente, um frasco de
aspirinas e outro de soluçã o salina
para lavagem intestinal. Ali o cheiro
deunguentostambémeraforte.
Voltando ao quarto, Benford
abriu a ú nica gaveta existente na
mesinhadecabeceira.Nenhumlivro,
nenhuma revista pornográ ica,
nenhum
vibrador,
nenhum
lubri icante.Sobumretalhodefeltro
ele encontrou um papel com uma
longa lista escrita à mã o com
diferentes datas e horá rios — 5 de
junho: 21h; 10 de junho: 22h; 30 de
junho: 21h30. Era uma programaçã o
detransmissõ es.Omaisprová velera
que ela carregasse consigo o laptop
comochipdecriptogra ia.Encontros
marcados com um operador do
ConsuladoRussoemNovaYork.Uma
entradadoprogramadesubmarinos.
Benford fechou a gaveta e saiu do
quartoparacontaraNate.
O jovem ainda estava no
escritó rio,enrolandoodesenhopara
subir e mostrar ao chefe. Já
examinara pela segunda vez o fundo
de todas as gavetas da escrivaninha,
poré mnã oencontraramaisnada.No
entanto,aosairemdireçã oà escada,
deparou-se com ningué m menos do
queJenniferSantini,olhandoparaele
nomeiodasala,umabolsaesportiva
caı́da aos pé s. Nate se deu conta de
queelesnuncahaviamvistoumafoto
da mulher. Ali estava uma
isiculturista que sem dú vida se
entupia de bombas. Aparentemente
tinha acabado de chegar da
academia. Por que nã o estava
trabalhando?
Jennifertinhaquase40anos.De
estaturamediana,vestiaumshortde
lycra esticado ao má ximo sobre
coxas descomunais que pareciam
troncosdeá rvore.Otopjustocobria
nã o um par de seios femininos, mas
doispeitoraisdotamanhodepratos.
As panturrilhas, os braços e o
pescoçoseestufavamcomodesenho
dos mú sculos. Os olhos eram de um
verdecintilante,eobrancoemtorno
daı́ristangenciavaoazul,talvezpor
excessodesaúdeevitalidade.Orosto
pareciatersidoesculpidoacinzelem
torno da boca e do nariz grande e
reto. A testa estava franzida de
espanto. Os cabelos ruivos tinham
sidopuxadosparatrá sepresosnum
pequeno rabo. A mulher era um
torpedo, um boneco de açã o, um
trator.
Nate ainda teve tempo de
observarque,aocontrá riodetodoo
resto, as mã os eram femininas e
bonitas, com unhas pintadas num
tom claro de rosa. Os pé s descalços
també m eram belos e delicados, as
unhascomamesmacordeesmalte.
Assim que ouviu os passos de
Benfordnaescada,Jenniferirrompeu
nadireçã odeNatecomumarapidez
ofuscante,agarrandoumabajurantes
dedarosdoisoutrê spassosdeque
precisou para alcançá -lo. Tentou
golpeá -lo na cabeça, mas Nate
desviou a tempo e o objeto se
espatifou na parede à s suas costas.
Aosereerguer,eleseviucaraacara
com
a
mulher-trator,
que
rapidamente o imobilizou com uma
chavedebraço,empurrando-ocontra
aparededasalaeemseguidausando
a mã o livre para esmurrá -lo no
flanco.
Nate fez o possı́vel para tentar
se desvencilhar, mas nã o conseguiu:
estavaapontodesufocarsobopoder
daquelesbraçosdeSchwarzeneggere
daquelas mã os de Grace Kelly.
Conseguiu desferir um murro contra
orostodamulher,masnã ofoicapaz
de causar estrago algum. A apenas
alguns centı́metros dele, ela
escancaravaosdentespeloesforço,e
ele receava que a mulher resolvesse
arrancarseulá biocomumamordida.
Em meio à saraivada de socos, Nate
de repente se viu tomado por uma
insanasequê nciadepensamentos:1)
Quanta sorte a dele, ser destacado
para caçar a ú nica ilegal russa no
planeta que nã o era uma
bibliotecá ria colecionadora de selos;
2)Oqueoscolegasdetrabalhodela,
sobretudooshomens,deviampensar
quandoviamaqueletratorchegarde
manhã aoescritó rio?;3)Queespé cie
de sexo devia fazer aquele ciborgue,
seé quefaziasexo?Emseguida,por
maisabsurdoquefosse,Natepensou
no que Dominika estaria fazendo
naqueleexatomomento.Imaginando
onde ela poderia estar, foi tomado
por uma tristeza acachapante ao
cogitarahipó tesedequetivessesido
morta.Suacabeçaerabatidacontraa
parede e seu pescoço estava sendo
esmagado,masoquedefatodoı́aera
saber que aquela aberraçã o fazia
parte da má quina que assassinara
Dominika.
Benfordsurgiuaopé daescadae
icou imobilizado pela perplexidade.
Jenniferolhouderelanceparaovulto
pançudo e amarfanhado: seria a
sobremesaqueela comeria a seguir.
Nate aproveitou esse momento de
descuidoparadesferirumfortechute
nacaneladelaeesmagarumdospé s
deunhasrosadas,fazendocomquea
chave de braço relaxasse um pouco.
Foi o que bastou para que ele
conseguisse acertar uma joelhada
entre as pernas da mulher. Jennifer
grunhiu feito um homem, levou as
duasmã osà virilhaecambaleouaté
cair,encolhidadedor.
BenfordolhouparaNate,depois
para a besta-fera dobrada no chã o.
Jamaistinhavistocoisaigualemseus
trinta anos de caçador de espiõ es.
Espantou-seaindamaisquandoviuo
trator se reerguer feito um serial
killer de cinema e caminhar até a
mesa de centro da sala, depois
levantá -la acima da cabeça e
arremessá -la em sua direçã o.
Precisou buscar suas ú ltimas
reservas de energia (talvez oriundas
dos dois anos como gerente de
equipamentos
do
time
de
haltero ilismo de Princeton na
dé cada de 1960) para correr escada
acima a tempo de desviar da mesa
voadora e vê -la bater contra os
balaú stres do corrimã o, derrubando
dois deles antes de se espatifar no
chã o. Benford continuou em
disparada até sumir no andar de
cima.
Jennifer voltou-se entã o para
Nate, que agora estava no meio da
sala com o atiçador que conseguira
alcançar perto da lareira. Mais uma
vez a mulher arremeteu na direçã o
dele, martelando o piso com os pé s
descalços. Nesse mesmo instante,
Nate lembrou-se do nome de seu
instrutor de corpo a corpo, Carl,
enquanto irmava as pernas para
erguer o ferro e desferir um golpe
certeironopescoçodeJennifer,bem
no plexo braquial, tal como
aprendera nas aulas de combate a
curta distâ ncia. Foi como se ele
tivesse acertado o tronco de um
carvalho centená rio. Nate chegou a
sentir reverberaçõ es no pró prio
antebraço.
Jennifer, por sua vez, deixou
escapar
um
grito
surpreendentemente feminino antes
de se esborrachar no sofá . O mó vel
virou para trá s e os paninhos de
crochê voaramlonge.Amulherrolou
pelochã oaté baternaparedecomo
rosto virado para o rodapé . Ainda
empunhando o atiçador e com o
braço um pouco dormente, Nate
contornouosofá caı́doeseajoelhou
aoladodela,arfando.Umadaspernas
deJeniffertremialigeiramente,assim
como as ná degas de gorila. Nate
virou-a de frente e constatou que a
boca estava aberta, mas nã o havia
nenhumsinalderespiraçã o.Asunhas
rosa faziam um estranho contraste
com o piso escuro. Um dos pé s
delicados jazia sobre um dos
paninhos.
A escada começou a ranger e
dali a pouco Benford surgiu ao lado
de Nate. A sala estava destruı́da,
cheia de mó veis quebrados e cacos
decerâmica.
— Caramba... — exclamou
Benford ao ver o rosto de Jennifer
tombadoparaolado.
—Amulherpareceumavilã dos
ilmes de James Bond — comentou
Nate. — Onde será que eles acham
essa gente? Acho que o atiçador até
entortou.
Tentou medir a frequê ncia
cardı́aca de Jennifer, mas, ao
endireitá -la, assustou-se ao ver a
cabeça tombar mole para o outro
lado.
— Nem se dê ao trabalho —
disse Benford. — Os mú sculos
lexoresdopescoçojá eram.Ogolpe
lesionouaespinhadorsal.Avulsão.
— De que diabo você está
falando? — perguntou Nate, com as
mãoscomeçandoatremer.
— Avulsã o. Você seccionou o
pescoçodela.
Secando o suor do rosto, Nate
falou:
— Meu Deus. Acabei de matar
umapessoa.
—Você está bem?—perguntou
Benford.
— Estou. Obrigado pela ajuda.
Só pude reagir depois que você a
distraiu, aparecendo na escada. —
Nate icou de pé e largou o atiçador
nochão.—Eagora,oqueagentefaz?
— Encontrei uma programaçã o
de transmissõ es lá em cima —
contouBenford.—Precisamosachar
olaptopdelaeochipdecriptogra ia.
Deve estar naquela bolsa ali.
Provavelmente ela usava uma linha
segura de internet pra se comunicar
com os russos. Achei també m uma
lista de encontros pessoais. E você ,
viualgumacoisaquenosinteresse?
— Encontrei o diagrama
industrialdeumaspeçasnofundode
uma gaveta. Acho que a gente devia
virarestelugarpeloavesso.
— Nada disso — retrucou
Benford. — Vamos levar só o que
achamos.Agorajápodemoschamaro
FBI. Eles que revirem isto aqui com
suas pinças e saquinhos de perı́cia.
Vã o ter de explicar direitinho como
deixaram um ilegal operar bem
debaixodonarizdeles.Equeen iem
ajurisdiçãonorabo.
O MOLHO DE RABANETE DE
BENFORD
Preparar um molho bechamel;
incorporar manteiga, mostarda Dijon e
rabanete fresco ralado a gosto.
Temperar com pimenta moída na hora
e vinagre de vinho nto. Deixar na
geladeira por algumas horas e servir.
CAPÍTULO 26
OVERAOESTAVACHEGANDOE
Dominikajá podiasentirnorostoum
poucodocalordosol.Elacomeçaraa
trabalhar num “projeto especial” no
Departamento
das
Amé ricas,
che iado pelo general Korchnoi.
Pouco depois de sua transferê ncia,
foi informada pelo pró prio superior
de que eles tinham uma viagem
operacional pela frente. Dali a uma
hora,deveriamestarnasaladovicediretorparadiscutiroassunto.
Dominika sabia que estava
enganando Korchnoi, usando a
operaçã ocomopretextoparasairdo
paı́s e retomar o contato com os
americanos. Gostava do general, via
neleumprofissionalsempredisposto
aajudar,eagorapercebiaqueestava
se aproveitando de uma pessoa
decente do mesmo modo como
haviam feito com ela. Chafurdava no
mesmo mar de lama que seus
inimigos. Mas nã o tinha outro jeito.
Ela teria de continuar traindo a
confiançadele.
Avisitaiminenteà saladotioa
deixava cheia de â nimo. Como seria
bomolharnacaradele...Nemmesmo
ostorturadoresdeLefortovotinham
conseguido arrancar dela o seu
segredo. Dominika Egorova era uma
in iltrada da CIA no SVR, e nenhum
deles sabia disso. Ela manipulara
Vanyademodoqueeleacolocassede
voltanocasodeNate.Agorabastava
continuar reportando sucessos,
agendando contatos, fazendo mais
viagens. A agente clandestina
novamenteemação.
Que anseio seria aquele que
ardiaemseupeito?Osamericanosa
compreendiam.
Logo
haviam
percebido suazhazhdat, a sede por
um segredo apenas seu para
acalentar, pelo poder que isso lhe
conferia. A aura violeta de Nate, que
eradamesmacorqueadeBratok,ea
aura azul-celeste de Forsyth eram
todasmuitointensas e muito lindas.
Aqueles homens a entendiam muito
mais do que seus pró prios
compatriotas.
Dominika nã o sabia ao certo o
quesentiaporNate.Pensarnelefora
muito ú til durante o martı́rio em
Lefortovo, sobretudo quando a
prendiam nos malditos armá rios.
Masagoraela icavainsegurasempre
quepensavanaquelaú nicanoiteque
eles haviam passado juntos. Nate a
viaemprimeirolugarcomoumativo,
como um bem da CIA. Seria possı́vel
que nunca a tivesse visto como
mulher? Que nã o sentisse nada por
ela,Dominika?
Ela precisava vê -los — todos
eles,
os
americanos,
mas
principalmente Nate. Enviar uma
mensagem de Moscou seria uma
temeridade. Era bastante prová vel
que a Diretoria K ainda estivesse
vigiando os passos dela, pelo menos
de vez em quando. Sempre faziam
isso com os reabilitados. Mas com
aquela viagem para o exterior se
aproximando,elapoderiaesperar.
Quando chegou a hora da
reuniã onavice-diretoria,Dominikae
Korchnoi foram juntos para o
elevador e subiram em silê ncio. Ela
gostou da companhia do espiã o de
cabelosbrancos,oroxodaauradele
preenchendo todo o espaço, um
espı́rito reconfortante, equilibrado.
Sabia que sob a superfı́cie daquele
sorriso paternal havia um o icial
brilhante, de raciocı́nio a iado e
patriotismo in lexı́vel. Como era
possı́velqueumhomemtã odecente
e esclarecido tivesse perdurado por
tanto tempo no SVR? O que o
mantinha ali? Dominika nã o nutria
nenhuma ilusã o de que aquele
pro issionaltã oexperientenã oseria
capaz
de
detectar
qualquer
comportamentoimpró prioporparte
dela. Sabia que precisava ter muito
cuidadocomele.
Eles foram caminhando juntos
pelo corredor acarpetado que
Dominika conhecia tã o bem,
passando ao lado da galeria de
retratos retocados dos diretores de
outrora. As Eminê ncias Pardas
pareciam olhar para ela como se
dissessem:“Dessavezvocê escapou,
garota.Mascontinuamosdeolhoem
você.”
Antes de abrir a porta do
gabinete de Vanya, Korchnoi avaliou
o rosto de Dominika e nã o pô de
deixar de notar a emoçã o no olhar
dela,ofogoqueaconsumia.Teriade
encontrar um jeito de lidar com
aquilo.ElesentraramnasalaeVanya
já osesperavajuntoà sjanelas,calvo
eamarelocomosempre,acorfeiosa
da ambiçã o e da arrogâ ncia. Para o
general,umaempolgadasucessã ode
tapinhas no ombro; para a sobrinha,
um açucarado discurso de boasvindas.Quantomais doce, maior era
o amargor que Dominika sentia na
boca.
Depois dos cumprimentos, os
trê scomeçaramafalardetrabalho.O
alvo ainda era o americano Nash, o
agente da CIA que sabia o nome do
traidorrusso.Dominikaprecisavaser
rá pidaee icaz,poisotempourgia.Se
pudessemlerospensamentosumdo
outro,KorchnoieDominika icariam
surpresosaoconstatarqueeleseram
praticamente
idê nticos.Hvastun.
Cabotino. Petulante. Pretensioso. O
estô mago de ambos se embrulhava
comavaidadedopavão.
Medindo as palavras, mas com
absoluta tranquilidade, Korchnoi
observouqueaqueleprojetoexigiria
viagens perió dicas do cabo Egorova
aoexterioreperguntouseaquilonã o
poderiaserumproblema,levando-se
em conta a investigaçã o — a
lamentávelinvestigaçã o—à qualela
fora submetida havia pouco tempo.
Vanya espalmou as mã os como se
estivesse prestes a dar uma bê nçã o.
“Claro que nã o, problema nenhum”,
garantiu. Sobretudo porque ela
estaria sob o comando exemplar de
Korchnoi.Omaisimportantenaquele
momentoeraencontraroamericano,
restabelecer contato com ele. Vanya
disse ainda que tinha absoluta
certeza de que os dois saberiam o
quefazeredeuumapiscadelaparaa
sobrinha.
Depois da reuniã o, Korchnoi e
Dominika
voltaram
a
suas
respectivas salas. O general falava
com tranquilidade, passando a
Dominikaumalistadeprovidê nciasa
tomar, instruindo-a a iniciar um
arquivo de detalhes, horá rios e
estraté gias. Dominika percebia que
ele estava satisfeito, que nã o
descon iava de nada. Que motivo
teriaparasuspeitardealgumacoisa?
Elaeraumaexcelentepupila. Traı́-lo
seria difı́cil, poré m necessá rio. Era
assimquetinhadeser.
Elesaindaestavampercorrendo
o amplo corredor do primeiro andar
quando Dominika avistou, indo na
direçã o deles, Sergei Matorin, o
carrascodaLinhaF.Desviouoolhar.
Teve a impressã o de que ele nã o a
reconheceu, mas ainda assim icou
com medo. Segundos depois se viu
tomadadeumaraivadifusaqueafez
calcularadistâ nciaentreseusdedos
eosolhosdele.Receouqueogeneral
percebessesuafú ria.Imaginouseele
també meracapazdeverorastrode
sangue que o monstro deixava atrá s
desi,anuvemescuraquepairavaem
torno de sua cabeça; se podia ouvir,
como ela, o tilintar da foice que ele
escondia à s costas. Matorin e seu
olholeitosopassaramdiretoporelae
seguiram seu caminho. Assim como
umaarraiaroçaofundodomaraose
deslocar, o homem roçava a parede
enquanto caminhava, deixando em
sua esteira uma espiral de fumaça
negra. Dominika nã o resistiu ao
impulsodeolharparatrá s.Arrepiouseaoveroscabelosqueraleavamna
nuca do monstro, os dedos que se
fechavamsobreonada,saudososdo
facã o que estavam acostumados a
segurar.
***
Eram oito horas de uma noite
chuvosa quando o Mercedes o icial
deVanyaEgorovatravessouoPortã o
de Borovitskaya, na face oeste do
Kremlin. Com os pneus crepitando
sobre os paralelepı́pedos, o
automó vel passou pelo Grande
PalácioepelaCatedraldoArcanjoSão
Miguel, depois dobrou à esquerda,
passou pelo Pré dio Catorze,
contornou a modorrenta e deserta
praça Ivanovskaya e atravessou o
estreito portã o que dava acesso ao
pá tio interno do pré dio amarelo do
Senado, por im estacionando à
penumbra de uma entrada de
veı́culos coberta. Na ú ltima vez em
queeleestiveranointeriordaqueles
murosforapararecebersuasegunda
estreladetenente-general.Agorasua
presençaalieraparaprovarquefazia
jusaela.
Um assistente bateu apenas
uma vez à porta, abriu-a e recuou
paraqueEgoroventrasse.Ogabinete
do presidente era relativamente
pequeno,comumbonitotrabalhode
boiserie nas paredes. A luz era baixa
nas arandelas. Um belo conjunto de
utilitá rios em má rmore verde era a
ú nica coisa que se via sobre a mesa
presidencial — nenhum documento,
nenhumclippingdenotı́cias,nenhum
monitor.Nafrentedessamesahavia
outra, bem menor que a primeira e
ladeada por duas cadeiras grandes.
Putin estava sentado numa delas,
comasmã oscruzadasnocolo.Vestia
um terno escuro com uma camisa
branca, sem gravata, e Egorov teve
que ingir nã o notar que ele estava
apenas de meias, os sapatos
abandonadossobacadeira.
O general sentou-se à frente
dele.
— Boa noite, presidente —
falou.
Como sempre, o rosto de Putin
era uma má scara indecifrá vel,
embora fosse possı́vel ver um
vislumbredecansaço.
—
General
Egorov
—
cumprimentouele,ebaixouosolhos
cristalinosparaoreló gioparadepois
cravá -los em Vanya, como se
dissesse: “Seja breve.” Impostando a
voz,Egorovcomeçou:
— O manual de comunicaçõ es
adquirido dos americanos continua
sendo uma rica fonte de dados
crı́ticos e oportunidades futuras. —
Putin meneou a cabeça sem nem
piscar. — Nosso principal ativo em
Washington, Swan, vem fornecendo
informaçõ es
té cnicas
bastante
abrangentes sobre os veı́culos
espaciais das Forças Armadas
americanas. Os especialistas da
nossapró priaforçaespacialatestam
que as informaçõ es sã o autê nticas e
bastante valiosas. Meurezident em
Washington...
—Meurezident,você quisdizer
—interrompeuPutin.
— Claro. Seurezident, o general
Golov, está operando Swan com o
má ximo de cuidado — prosseguiu
Egorov, agora pisando em ovos,
ciente do humor em que se
encontravaopresidente.
Um segundo assistente entrou
com uma bandeja de chá fumegante
com dois copinhos de cristal
abrigados em suportes de prata
iligranada e as respectivas
colherzinhas equilibradas na borda
doscopos,umcubodeaçú caraolado
decadaum.Deixouabandejasobrea
mesa de reuniã o, junto com uma
travessa de prata commadeleines.
Ambas estavam fora de alcance e
permaneceramintocadas.
— Prossiga — ordenou Putin,
assimqueoassistentesaiu.
— Continuamos procurando o
informante operado pela CIA,
provavelmente no SVR. E só uma
questã o de tempo até que o
encontremos.
—Eimportantequeencontrem
— disse Putin. — Isso é mais uma
prova de que os americanos ainda
estã o tentando desestabilizar nosso
governo.
— Sim, senhor presidente. E
duplamenteimportante,umavezque
esse informante coloca em risco a
segurançadosnossosativos...
— Como Swan, por exemplo.
Nada deve acontecer a ela, nenhum
komprometirovat, nenhum revé s,
nenhumescândalointernacional.
Egorovachouinteressantequeo
presidente soubesse que Swan era
uma mulher. Tinha certeza de que a
informaçãonãosaíradesuaboca.
— Já identi icamos o agente da
CIA que opera o traidor. Estou
iniciandoumaoperaçãocontraele.
— Tudo isso é muito
interessante — comentou Putin, um
ex-o icial da KGB —, mas você nã o
precisa da minha autorizaçã o pra
conduziressetipodeoperação.
— Trata-se de umakonspiratsia
complicada — explicou Egorov,
dandovoltasaoassunto.—Pretendo
despachar uma de nossas agentes
para recrutar o americano e
neutralizá -lo. Quero o nome do
traidor.
Algo mudou na expressã o do
presidente, mas Egorov nã o soube
muito bem como interpretar o que
viu. Uma espé cie de prazer por
tabela?Umacentelhadedesconforto
epreocupação?
— Quero discernimento e
moderação—dissePutin.—Nãovou
permitirosequestrodesseagenteda
CIA. Isso nã o se faz entre serviços
rivais.Asconsequê nciaspodemfugir
aonossocontrole.
Embora falasse com a voz
mansa,aliestavaumanajaprestesa
destilar seu veneno. Na mesinha
lateral, um reló gio de porcelana
Fabergé bateu a meia hora. O chá
servido já esfriara havia muito
tempo.
— Naturalmente — retrucou
Egorov.
—
Fique
tranquilo,
presidente. Estou tomando todas as
precauçõ es. Alé m da minha
supervisã o, um o icial sê nior está
acompanhandotodaaaçã odecampo
contraoamericano.
—Essajovemagentequevocê s
pretendem usar... Parece que foi
submetida a uma investigaçã o de
contrainteligência,nãofoi?
—Foi,sim,senhor.
—E,senã omefalhaamemó ria,
é sua sobrinha, certo? Filha de seu
falecidoirmão?
Putin o encarava de forma
implacável.
—Laçosdesanguesã oamaior
garantiade idelidade—foisó oque
Egorov encontrou para dizer. Sabia
muitobemoquesepassavaali:uma
demonstraçã o de onisciê ncia e
autoridade com o ú nico im de
assustar e fascinar os subordinados.
Stalinfaziaamesmacoisa.—Elavai
obedeceràsminhasordens.
—Queela recrute o americano,
massemmedidasextremas.Issoestá
foradequestão—decretouPutin.
Era ó bvio que ele sabia que a
alternativa da violê ncia fora
discutida. — Como o senhor quiser,
presidente—respondeuEgorov.
Dali a nove minutos os passos
de Egorov já ecoavam na suntuosa
escadaria do pré dio. Ele ainda
pensava nos riscos terrı́veis que
andavam de braços dados com a
ambiçã o quando se acomodou no
banco traseiro do Mercedes. Ao
atravessar os arcos da torre
Borovistskaya,nã oreparounooutro
carro o icial, menos luxuoso, que
vinhanosentidocontrá rio,indopara
o mesmo pré dio que ele acabara de
deixar. Tampouco sabia que dentro
deleiaodiminutochefedaLinhaKR
de
contrainteligê ncia,
Zyuganov.
Alexei
AS MADELEINES DO KREMLIN
Preparar uma massa genoise:
misturar ovos e sal até engrossar; aos
poucos, acrescentar açúcar e extrato
de baunilha; juntar farinha e beurre
noise e (manteiga aquecida até
começar a ficar amarronzada); formar
uma massa espessa. Verter a massa
num molde para madeleines untado e
polvilhado com farinha e assar em
forno médio até que as bordas
estejam douradas. Desenformar e
deixar esfriar.
CAPÍTULO 27
STEPHANIE
BOUCHER
(SENADORA Democrata pelo estado
daCalifó rnia)nã oestavaacostumada
a dirigir ou estacionar o pró prio
carro,nemaatravessarumcorredor
sem a presença de um sé quito, ou
mesmo abrir as pró prias portas. Na
posiçã o de vice-presidente do SSCI
(comitê especial do Senado para
assuntos de Inteligê ncia), dispunha
de uma falange de estagiá rios e
assistentes para carregá -la numa
liteira se preciso fosse. Naquele
momento em particular, qualquer
ajuda seria bem-vinda. O para-
choque dianteiro de seu carro se
colou à traseira do automó vel da
frentecomumbaqueseco.Quemfoi
o desgraçado que inventou a baliza?
Stephanie girou o volante, pisou de
levenoacelerador.Asrodastraseiras
bateram no meio- io e as dianteiras
continuaramapontandoparaomeio
darua.Elaesmurrouovolanteesaiu
da vaga para recomeçar a manobra
de um â ngulo melhor. O carro que
vinhaatrásbuzinou.
— Estaciona logo ou dá o fora!
—berrouomotorista.
A senadora baixou a janela e
gritoudevolta:
—Vásefoder!
Sabia que precisava ser mais
discreta. Era um rosto conhecido no
Capitó lio,
praticamente
uma
celebridade, mas nem por isso iria
levar uma buzinada e deixar barato.
Por im, na quarta tentativa ela
conseguiu entrar na maldita vaga.
Estava na Rua N de Washington.
Anoitecia. Ao trancar o carro, notou
que a roda traseira tinha subido no
meio- io.Paciência, pensou, e saiu
pela calçada, pisando no tapete de
folhas caı́das, margeando as
elegantes fachadas de arenito com
suasportasgeorgianaselanternasde
vidrobisotado.
Stephanietinha40anos.Baixae
magra, tinha o porte de um menino,
com pernas fortes e torneadas. Os
cabelos louros iam até os ombros,
emoldurando um penetrante par de
olhos verdes e um nariz delicado. A
boca era o ú nico traço que nã o
contribuı́a para sua imagem de
mulhervibranteepoderosa:pequena
e ina,tantopodiamorderquantose
crisparnumbeicinhodengoso.
Stephanie vinha construindo
umacarreiraascendentenapirâ mide
de poder de Washington. Era uma
senadoramuitojovem,massabiaque
izera por merecer seu lugar no
comitê especial. Preparara-se com
a inco e muitas horas de trabalho
para estar ali. Participava de outros
comitê s, mas nenhum deles era tã o
prestigioso
quanto
o
SSCI.
Conquistara a vaga de congressista
doze anos antes, apó s uma acirrada
campanha no sul da Califó rnia, um
distrito repleto de fornecedores do
setor de defesa e tecnologia
aeroespacial.Comisso,desenvolvera
um talento especial para alocar
verbasorçamentá riasesacudirsacos
dedinheirodiantedonarizdequem
lhe interessasse. Ascender ao posto
de senadora havia sido o passo
seguinte mais ló gico, e agora, no
segundo mandato, recé m-nomeada
paraavice-presidê nciadoSSCI,tinha
poder su iciente para in luenciar na
legislaçã o, na distribuiçã o de verbas
ena iscalizaçã odoDepartamentode
Defesa, do Departamento de
Segurança Interna e da Comunidade
de Inteligê ncia. Corajosa, impaciente
e impositiva nas audiê ncias do
comitê , Stephanie tolerava o
universo da Defesa Nacional apenas
emrazã odaforçaqueeleinjetavano
comé rcio em seu estado natal. Ela
també m reconhecia a blindagem
polı́tica do Departamento de
SegurançaInterna,masintimamente
viaaquilocomoumagrupamentode
joõ es-ningué m que operavam num
mundoquemalconheciam.
No entanto, era para as
dezesseisagê nciasindependentesda
Comunidade de Inteligê ncia que
Stephanie Boucher direcionava a
maior parte de seu fel. Os ó rgã os de
inteligê ncia de segurança como a
Agê nciadeInteligê nciadeDefesaea
DH nã o a preocupavam: em sua
opiniã o,eramumbandodesoldados
carreiristas muito mal preparados
para
as
complexidades
da
inteligê ncia externa. O setor de
inteligê ncia
e
pesquisa
do
Departamento de Estado, o INR, até
contava com alguns analistas
brilhantes, mas nos ú ltimos tempos
eramrarasasvezesqueconseguiam
desvendar qualquer segredo; aquela
gente precisava sair mais ao sol,
produzirumpoucomaisdevitamina
D. O FBI era a noivinha contrariada:
obrigados a exercer um papel que
nã o desejavam e tampouco
compreendiam, o da inteligê ncia
interna,
eles
inevitavelmente
resvalavam para o feijã o com arroz
de suas origens policiais, preferindo
perseguir adolescentes á rabes em
Detroit a construir uma só lida rede
defontesdelongoprazo.
Masnenhumadessasagê nciasa
incomodavatantoquantoaCIA.Nada
a irritava mais do que se ver diante
daqueles o iciais de inteligê ncia
durante as reuniõ es do comitê ,
refestelados em suas cadeiras, ora
muito sé rios, ora muito evasivos.
Stephanie sabia que estavam
mentindosemprequeabriamaboca
paradizeroquefosse,apesardetoda
a irmezaquetentavamaparentar,de
todos os sorrisos, caras e bocas.
Sabia que os papé is que traziam
tranca iados em seus malotes de
segurançasó serviamparamascarar
a verdade. “Os ié is operá rios da
inteligê ncia”, eles diziam. “O nosso
bom e velho serviço clandestino”,
enchiamabocaparafalar.“Opadrã o
ouro das operaçõ es de inteligê ncia”,
gabavam-se. Eram frases assim que
faziamStephanieBouchersubirpelas
paredes.
***
Ela ainda estava em seu
primeiromandatoquandoconhecera
Malcolm Algernon Philips, um
veterano e lobista inveterado de 75
anos, renomado an itriã o, grande
intermediador
de
postos
e
nomeaçõ es nos bastidores de
Washington. Philips conhecia a
cidade inteira. Mais importante que
isso, conhecia, em detalhes, os
segredos de todos. Seus muitos
admiradores icariamescandalizados
ao saber que aquele respeitá vel
senhor de cabelos brancos, sempre
impecavelmente vestido, era, desde
meadosdosanos1960,umtalentoso
caçador de talentos para a KGB,
recrutado como um jovem playboy
quando ainda era Krushchev quem
dava as cartas. Embora fosse pago
pelos russos a peso de ouro, Philips
sedispuseraa ajudá -los apenas pelo
gosto da fofoca, pelo prazer de
revelar segredos, de trair con ianças
e de desfrutar de todo o poder que
advinhadisso.Nã oseimportavanem
um pouco com o que os russos
pudessem
fazer
com
suas
informaçõ es. Os russos, por sua vez,
tinham uma paciê ncia sem limites
em relaçã o a ele. Jamais o
pressionavam
para
desvendar
segredos, subornar algué m ou
surrupiar algo. Contentavam-se em
deixá -lo localizar candidatos a
recrutamento nas entranhas de
Washington.Philipsjá estavanaquela
estrada havia quarenta anos, e era
muitobomnoquefazia.
Numadesuasfestasdeinverno
em sua casa em Georgetown, suas
antenas sempre ligadas detectaram
na jovem congressista da Califó rnia
algoqueiaalé mdaquelecoquetelde
ambiçã o, vaidade e ganâ ncia que se
via em quase todo mundo no
Capitó lio. Suas suspeitas foram
con irmadas seis semanas depois,
durante um almoço particular com
ela.Philipsdisseaseuoperadorque
talvez tivesse encontrado a peça
perfeita para a engrenagem da KGB.
Na sua avaliaçã o, a mulher era
desprovida
de
consciê ncia,
simplesmente nã o tinha o há bito de
se perguntar se algo estava certo ou
errado. Pá tria, Deus, famı́lia, nada
disso
importava
para
ela.
Preocupava-se apenas consigo
mesma. Se pudesse ganhar alguma
coisa espionando para a Rú ssia,
StephanieBouchernã opensariaduas
vezesantesdeaceitarumconvite.
Ela fora criada na regiã o de
South Bay, mais precisamente em
Hermosa Beach, surfando todos os
dias,fumandoeevitandoosmeninos
de ouro que gravitavam a seu redor.
Seu pai era um banana, nã o dava a
menorimportânciaàsescapadelasde
sua fogosa mulher. Stephanie nã o
tinha nenhum respeito nem por um
nem pelo outro. Mas quando estava
com 18 anos veio a surpresa: o pai,
subitamentetomadodebrios,matou
a mulher a tiros ao encontrá -la na
cama com o entregador da Fedex.
Stephanie viveu maus bocados
durante esse perı́odo, mas en im se
reergueu, cursou o bacharelado na
UniversidadedaCalifó rniadoSul,fez
mestrado, depois se envolveu na
polı́ticalocal,cadavezmaisconvicta
dequeaamizadeeraumsentimento
supervalorizado
e
que
relacionamentos só valiam a pena
quando serviam de trampolim para
algo melhor e maior. Tinha herdado
boa parte dos genes da mã e e, junto
com eles, a misantropia e o gosto
pelo sexo sem compromisso. Com o
ingresso na polı́tica ela precisou se
controlar,
mas
os
desejos
continuavam ali, logo abaixo da
superfície.
A rezidentura em Washington
pesquisou a fundo seu alvo de
recrutamento. Um quadro foi se
formandoaospoucos,etudooquese
via nele era consistente com o que
Malcom Philips já reportara. A
operaçã o de recrutamento foi
iniciada ao mesmo tempo que uma
sucessã o de agentes do SVR
continuava a vasculhar a vida da
senadora. No entanto, somente
quando foi abordada pelorezident
Anatoly Golov, com seus modos
so isticados, sua fala mansa, sua
ironiacativante,elasedispô sadara
primeiraespiadelanasaladotesouro
russo.
Os argumentos ilosó icos em
geralempregadosparaconvencerum
alvo nã o encontraram muito eco na
jovemStephanie.Elanã oestavanem
umpoucointeressadanoconceitode
amizade entre as naçõ es, muito
menos nos benefı́cios gerais de um
equilı́brio maior entre as duas
grandes
potê ncias
mundiais.
Percebendo isso, Golov viu que nã o
precisava perder seu tempo. Sabia
muito bem o que ela queria: uma
carreira,influência,poder.
Ele encomendou à central uma
sé rie de aná lises globais muito bem
fundamentadas
para
depois
compartilhá -las com a senadora
como “tó picos de discussã o”:
relaçõ es internacionais; a polı́tica
mundialdopetró leoedogá snatural;
os desenvolvimentos no sul da Asia,
noIrãenaChina.
Informada por esses relató rios
especiais, que abordavam questõ es
econô micas, militares e polı́ticas, a
senadoralogocomeçouasedestacar
com
intervençõ es
sempre
pertinentes no SSCI, e o presidente,
impressionado com o que via, nã o
hesitou em lhe oferecer a vicepresidê ncia do comitê . Para
Stephanie Boucher, aquele era
apenas o primeiro degrau da longa
escadaqueelapretendiasubir.
Sua relaçã o com os russos se
fortaleceu com o tempo, mas
Stephaniejamaisperdiaumanoitede
sono por se ver envolvida numa
operaçã odeespionagem.Comentava
sobreasaudiê nciaseosassuntosdo
SSCIduranteosjantarescomGolove
via naquilo uma simples troca,
natural na vida de qualquer polı́tico
de Washington. Quanto aos
pagamentos que recebia com
frequê nciacadavezmaior,Stephanie
tinha plena convicçã o de que eles
eram mais do que merecidos. Fazia
muitotempoqueelajáultrapassarao
ponto do qual nã o havia mais volta,
masnã oeraprecisolembrá -ladisso.
Em sua cabeça ela estava cuidando
da pró pria carreira, preparando-se
para galgar novos degraus, correndo
atrásdeseusobjetivos.
O SVR agora tinha uma
congressista
americana
como
informante:Swan.
***
Anatoly Golov aguardava a
senadora Boucher numa das mesas
dojardimdosfundosdorestaurante
Tabard Inn, na Rua N. Luzinhas
minú sculas se enroscavam nos
arbustos dos vasos espalhados por
ali.Olugareracercadoporummuro
alto,eosruı́dosdotrâ nsitodistante
podiam ser confundidos com os de
uma praia à noite. Fazia apenas um
ano que Golov era orezident de
Washington, e era ele, em pessoa,
quemoperavaSwan.Comumavasta
experiê ncia, tinha plena consciê ncia
de que ela talvez fosse a fonte de
informaçõ es mais valiosa que a
Rússiajátivera.
Apesar disso, nã o gostava da
mulher, tampouco da pró pria funçã o
de operador. Na verdade, Swan lhe
metia um pouco de medo. Ele se
lembrava de uma é poca em que os
informantes eram recrutados por
razõ es puramente ideoló gicas, pela
crença no comunismo mundial, pelo
sonho de um Estado socialista
perfeito.Agora,noentanto,tudonã o
passava de um grande circo de
horrores. Swan era uma sociopata
ambiciosaeincontrolável.
Ele endireitou os punhos do
paletó . Golov era alto, com uma
postura altiva, imperial, e usava os
cabelos ralos e grisalhos penteados
paratrá s.Onarizeragrandeereto,e
o maxilar, delicado. Tinha os traços
de um Romanov, mas isso já nã o
tinha nenhuma importâ ncia, nem
mesmo para o SVR. Ele estava
vestindoumpaletó dedoisbotõ esda
marca italiana Brioni, escuro e de
caimento perfeito, com uma camisa
branca impecavelmente engomada e
uma gravata Marinella azul-marinho
com minú sculas bolinhas vermelhas.
Ossapatoserampretos,dagrifeTod
Gommino,easmeias,cinza-chumbo.
Golov poderia muito bem ser
confundido com um conde europeu,
talvezdefé riasnosEstadosUnidos.A
ú nicanotadissonanteeraosinetede
ouro que trazia no mindinho
esquerdo. A joia lhe dava um ar
misterioso,pareciaesconderalguma
história.
Ele estava terminando seu
jantar: fricassê de cordeiro com
couve-vermelha salteada em vinagre
balsâ mico e purê de batatas com
queijo,tã osaborosoquantooquejá
comeranosuldaFrança.Emboranã o
tivesseohá bitodebeberemserviço,
precisava se fortalecer, ou se
anestesiar, com alguma coisa antes
que a senadora chegasse. Ele
terminou sua segunda taça de
Chardonnay e pediu umespresso
duplo.
Enquanto os pratos eram
recolhidos, Golov mais uma vez
lembrou a si mesmo que Swan era
um ativo importante demais para
que se perdesse tempo com
tentativas de discipliná -la, controlá laoumoldá -laaospadrõ esdoSVR.O
que Stephanie queria, o serviço
concedia. Ela vinha entregando
minutas das reuniõ es secretas do
SSCI, centenas de pá ginas digitais
com o testemunho de o iciais de
defesa e inteligê ncia sobre armas
novas, operaçõ es de inteligê ncia e
polı́ticas nacionais, coisas que a
central jamais vira antes, que nem
sequer sabia existirem. Em troca o
SVRaprovaraumsalá rioiné ditonos
anais do serviço russo, cuja avareza
eradeconhecimentogeral.
Tudo isso fazia dela algo bem
maior do que uma simples
informante. Stephanie Boucher era
uma superinformante, um agente de
in luê ncia em potencial, uma versã o
real do Candidato Manchuriano, de
RichardCondon.Golovjá começaraa
prepará -la para um signi icativo
avançonacarreirapolı́tica,oquenã o
chegavaasernovidade.Aolongodos
anos, os russos haviam feito coisas
semelhantes, ainda que de forma
indireta, por outros membros do
Congressoamericano.Infelizmente,a
maioria
desses
legisladores
depravados acabara batendo com o
carro num poste, derrapando numa
ponteparacairnasá guascaudalosas
de um estuá rio ou simplesmente se
afogando no espelho d’á gua do
Capitólio.Comparadaàquelespatetas
beberrõ es, Swan nã o tinha nenhum
tipo de vulnerabilidade. Melhor
ainda, possuı́a um potencial muito
maior do que qualquer um deles.
Moscoutinhaplenaconvicçã odeque
umdiaelapoderiaocuparumapasta
de ministé rio, uma diretoria na CIA
ou até mesmo a vice-presidê ncia da
República.
Sua
produçã o
era
impressionante, e o melhor ainda
estava por vir. Swan encontrava-se
prestes a ter acesso a um dos
programas
militares
mais
importantes e con idenciais do
Pentá gono,
dedicado
ao
desenvolvimento de um veı́culo
global orbital, conhecido pela sigla
Glov.
Algumas
informaçõ es
preliminares já repassadas por ela
haviamdeixadoosrussosdecabelos
em pé . Esse novo veı́culo seria uma
plataforma hı́brida concebida para a
interceptaçã odesinaiseletrô nicose
suporteGPS,devidamentecapacitado
para se defender em ó rbita contra
saté lites assassinos. O que mais
alarmava Moscou, no entanto, era a
capacidade de um Glov de lançar
armas do espaço contra alvos na
Terra. De forma direta. Nada de
aeronaves
militares,
reabastecimento,
radares,
tecnologiasdeinvisibilidade,mı́sseis
superfı́cie-ar, pilotos perdidos,
advertências.
Avaliado em mais de um bilhã o
de dó lares, esse novo projeto do
Pentá gono havia sido entregue
inteiramentenasmã osdaPath inder
SatelliteCorporationdeLosAngeles,
uma empresa localizada no corredor
high-tech que ia da Airport Road à
Base Aé rea de El Segundo. Por
coincidê ncia, era ali que també m
icava o antigo curral eleitoral de
StephanieBoucher.
É, pensou Golov,o melhor está
mesmoporvir.
A
senadora
atravessou
rapidamenteolobbydoTabardInne
se espremeu entre as pessoas para
passar pelo corredor estreito, cheio
de fotos nas paredes, que levava ao
restaurantedohotel.Foiaté ojardim
nos fundos. Avistou Golov numa das
mesas mais recuadas e se adiantou
na direçã o dele. Golov se levantou,
tomou a mã o dela e se curvou à
maneiraeuropeiaparaaproximaros
lá bios da pele, sem de fato chegar a
beijá -la. Lembrava-se do que lera
num dos primeiros relató rios sobre
os há bitos da mulher e sabia o que
ela gostava de fazer com aquelas
mãos.
— Boa noite, Stephanie —
cumprimentou.
Chamava-a pelo primeiro nome
a im de criar certa familiaridade,
evitandousaro“senadora”para icar
emalgumlugarentreaintimidadeea
cordialidade. Nunca sabia em que
estadodehumoraencontraria.
— Como vai, Anatoly? —
retrucouela.Emseguidasesentoue
apoiou os cotovelos na mesa. — Me
desculpe,masvoudiretoaoassunto:
você já recebeuumarespostadoseu
pessoal?
Pegou um cigarro da bolsa e
Golov se adiantou para acendê -lo
com um isqueiro Bugatti, ino como
umlápis.
— Repassei seu pedido,
Stephanie — disse o russo —, junto
com minha recomendaçã o para que
ele fosse atendido de imediato. A
resposta deve chegar nos pró ximos
dias.
As
mã os
dele
estavam
casualmente pousadas na mesa. O
garçom chegou com o café que ele
solicitara e Stephanie aproveitou
parapedirumuísquecomsoda.
— Fico muito aliviada por você
ter recomendado o pagamento,
Anatoly—falouStephanie.—Nãosei
oquefariasemoseuapoio.
Que mulherzinha insuportável,
pensouGolov.Sabia,noentanto,que
a central acataria o pedido dela sem
hesitar. Pagaria cinco vezes mais
pelas informaçõ es que tinha a dar.
Nos primeiros discos Stephanie já
repassara os relató rios entregues
pela Path inder Satellite ao SSCI, os
quais
haviam
deixado
os
pesquisadores russos de queixo
caı́do. Tanto a Path inder quanto o
Departamento
de
Defesa
continuariamsubmetendorelató rios,
manuais e software para a avaliaçã o
do SSCI, e esse material teria um
valorincalculávelparaosrussos.
— Stephanie, você sabe que
pode sempre contar com o meu
apoio. Fique tranquila, a central
aprovará o seu pedido, e com muito
prazer.
Golovresistiuaoimpulsodedar
tapinhastranquilizadoresnamã oda
senadora.
— Otimo, Anatoly, porque hoje
fomos informados de que a
Path inder está prestes a concluir a
primeira bateria de testes com
alguns dos circuitos de navegaçã o e
artilharia. Exigi que eles façam
relató riosdeprogressocomamaior
regularidade possı́vel. Pretendo
visitarasinstalaçõ esdaempresaem
Los Angeles pelo menos uma vez a
cada trê s meses. O projeto ainda
precisará derecursosorçamentá rios
por mais uma dé cada. — Stephanie
soprouumjatodefumaçaparaoalto.
—Entã o,casoosseuscamaradasem
Moscou nã o queiram pagar —
continuou um tanto alto demais, na
opiniã odeGolov—,tudobem,nosso
assuntoestá encerradoecadaumvai
proseulado.
Aosolhosdeleissoeramaisum
exemplodaarrogâ nciadamulher,do
mundo inconsequente em que ela
vivia, do fato de que na cabeça dela
nemsequerexistiaapossibilidadede
que a central nunca a deixaria
“partir”.Aescolhanã oeradela,ponto
final.Golovtentouimaginarareunião
em que ela seria informada de que
teria de continuar espionando para
Moscousobpenadeserdenunciada.
— Claro que vamos prosseguir
comanossacolaboraçã o—garantiu
ele, conciliatoriamente. — Nem
pense o contrá rio! Vamos continuar
com toda a segurança, e você
permanecerá deixandonossopessoal
boquiaberto, e nó s continuaremos a
remunerá -la pelos seus esforços, e
sua carreira continuará avançando a
pleno vapor. — Golov já descartara
muito tempo antes a tentaçã o de
acrescentar argumentos de natureza
ideoló gica. Bastava uma simples
enunciaçã o dos fatos: “Você repassa
osseussegredos,enó spagamospor
eles.”—Noentanto—prosseguiu—,
eu gostaria de retomar a conversa
quetivemosdaú ltimavezarespeito
da sua segurança. Sei que você acha
desnecessá rio, mas insisto que me
escute. Estou fazendo isso pelo seu
bem, Stephanie. E muito importante
quemedê ouvidos.—Eletomouum
gole do café ao mesmo tempo que
erguia os olhos para Stephanie, a
tempo de vê -la soprar a fumaça do
cigarro com uma expressã o de
enfado. — Você é uma igura muito
conhecida em Washington. E em
certos cı́rculos, també m sou
reconhecido como um diplomata
russo de alto escalã o. Estes nossos
encontros pú blicos sã o muito
perigosos.Opessoal de Moscou está
preocupado.Eu estou preocupado.
Precisamos dar um jeito nisso —
concluiucomfirmeza.
Eles vinham se vendo com
demasiada frequê ncia, abusando da
sorte.Stephaniedeumaisumtrago.
— Essa ladainhade novo? —
retrucou ela, batendo as cinzas do
cigarro. — Já falamos sobre isso,
penseiquetivessesidoclara.
—Eusei,Stephanie,masinsisto
que você reconsidere. Em primeiro
lugar, precisamos começar a nos
encontraremlocaismaisreservados,
longedoolhardoscuriosos.També m
temos que reduzir a frequê ncia
desses encontros e substituı́-los
pelascomunicaçõesimpessoais.
Estreitando os olhos, Stephanie
disse:
—Anatoly,presteatençã o.Eujá
falei antes e vou repetir. Nã o vou
icar rastejando debaixo de uma
á rvoreimundanumparquequalquer
à meia-noite, procurando um pacote
que você tenha deixado. Nã o vou
começar a andar por aı́ com esses
transmissoresrussosnabolsa,esses
tijolõ esjurá ssicosquecedooutarde
vã opegarfogoedispararoalarmede
incê ndio do Senado. — Erguendo a
mã o: — Nem se dê ao trabalho de
defender a tecnologia russa. Estou
careca de saber que as suas
engenhocas de espionagem nã o
chegam nem aos pé s das nossas! —
Rilhandoosdentes:—Você só pode
e s t a rdelirando se acha que vou
passar a me encontrar com algum
o icialzinho de primeira viagem
recé m-chegado de Abkhazia com as
botassujasdeesterco.Porquediabo
continuabatendonamesmatecla?
Até começar a receber os
relató rios do SVR ela nem sequer
descon iava da existê ncia de
Abkhazia,muitomenosonde icavao
lugar. Golov sabia muito bem como
operarinformantes,masaquelecaso
era diferente de qualquer outro que
já tivera nas mã os. Tinha plena
consciê ncia de que Egorov, em
Moscou, andava preocupado com as
questõ es de segurança. Ele, Golov,
també m estava a lito. Mas recuar
quandoasinformaçõ esemjogoeram
tã o espetaculares simplesmente nã o
erapossível.
— Stephanie, sei que essas
precauçõ es podem ser um tanto
maçantes, mas acho que podemos
chegarpelomenosaummeio-termo.
Quetalisto?Nó scontinuamosanos
encontrar,mas,sevocê concordar,de
agoraemdiantevouprovidenciarum
quarto de hotel fora de Washington
para que possamos conversar em
paz, sem pressa, com toda a
privacidade do mundo. També m
sugiro que passemos a nos ver com
menos frequê ncia. Será muito mais
seguro.
—ForadeWashington?—disse
Stephanie.—Ficoumaluco?Pramim
já é bastante difı́cil conseguir uma
noite livre aqui na cidade! Se está
pensando que vou abandonar meus
compromissosemeustaffprapegar
umcarroemedespencarpraalguma
espeluncadebeiradeestradasó pra
que a gente possa conversar
enquanto come um saco de
salgadinhos, está muito enganado.
Nã o vou fazer isso de jeito nenhum,
Anatoly.Semchance.
Golov itou Swan serenamente.
Nã otinhaamenorintençã odebater
o pé e continuar insistindo. O caso
era importante demais. Sorrindo,
condescendeu:
—Stephanie,você é umamulher
muitoracional.Observadora.Prá tica.
Peço que concorde apenas com uma
coisa.Vamoscontinuar, mas nã o em
pú blico.Umavezpormê s,vamosnos
reunir num hotel aqui mesmo em
Washington. Uma suı́te. O hotel que
você quiser. Pode até ser este aqui,
embora os quartos sejam muito
pequenos. Acho que podemos ser
lexı́veis. Só estamos pensando na
suasegurança.
Stephanie
assentiu
distraidamente,depoisdisse:
— Tudo bem, mas vamos
começar com um quarto aqui. Este
hotelzinho, sei lá , mexe comigo. —
Encarando Golov, ela se debruçou
sobreamesaparaqueeleacendesse
mais um cigarro. Golov precisou
recorrer a seus trinta anos de
experiê ncia para disfarçar a repulsa
quesentia.—Ah,maisumacoisa—
prosseguiuStephanie.—Aindaquero
o nú mero da minha conta em
Liechtenstein. Peça a eles que
liberem.
— Stephanie, també m já
conversamos sobre isso um milhã o
de vezes. E contra o regulamento da
centralquevocê tenhaacessoaessa
conta. Por uma mera questã o de
segurança. Asua segurança. Fique
tranquila,odinheiroestá lá .Todosos
depó sitos foram feitos. Você viu os
extratos.
—Anatoly,você é umanjo.Nã o
vai icarbravocomigoseeuderuma
d eprima donna e continuar
insistindo,vai?
Stephanieselevantou e jogou o
cigarro no copo de uı́sque. Golov
també m se levantou e desejou-lhe
umaboanoite.Antesdesair,elatirou
da bolsa um CD de capa preta e o
jogoucomdisplicê nciasobreamesa,
dizendo:
—Minutasdeumaaudiê nciado
comitê na semana passada sobre a
Path inder.Eusó ialiberá -lasquando
seusamiguinhosdeMoscou izessem
o pagamento, mas gosto muito de
você , Anatoly. Boa noite pra você
também.
Golov a viu sair com os cabelos
lourosbalançandoacadapasso.Com
todaacalma,guardouoCDnobolso
do paletó e voltou a se sentar. O
jardimestavavazioetranquilo.Pediu
um conhaque e começou a compor
mentalmente o cabograma que teria
deenviaraEgorov.
O FRICASSÊ DE CORDEIRO DE
GOLOV
Dourar cubos de cordeiro com
pedaços de bacon e cebolas picadas.
Regar com vinho branco e caldo de
carne, temperar com sal, pimenta e
noz-moscada e cozinhar por uma hora.
Re rar os cubos de carne. Bater suco
de limão, gemas de ovo e alho, depois
misturar vigorosamente ao caldo com
a ajuda de um batedor. Retemperar
com sal, pimenta e noz-moscada, jogar
sobre o cordeiro e decorar com raspas
de limão.
CAPÍTULO 28
VANYA
EGOROV
LIA
O
CABOGRAMAenviadodeWashington
pelorezident Anatoly Golov, falando
sobreateimosiadeSwanquantoaos
procedimentosdesegurança.Acerta
altura ele xingou entre dentes e
considerou
mandar
Golov
desacelerarocaso,talvezaté deixá -lo
na geladeira por um tempo. Mas
mudoudeideiaassimquecomeçoua
ler a segunda pá gina da mensagem,
naqualohomemresumiaoconteú do
do CD repassado pela informante no
ú ltimo encontro. Tratava-se de uma
transcriçã o literal de uma audiê ncia
secreta na qual representantes da
Path inderSatteliteCorporationeda
Força Aé rea americana prestavam
contas ao SSCI sobre o projeto Glov:
planilhasoperacionais,diagramasde
Gantt, crité rios de avaliaçã o,
parâ metros
de
produçã o,
necessidades de terceirizaçã o etc.
Estava tudo lá . A informaçã o era
espetacular.Osté cnicosdaLinhaTjá
estavam compondo um resumo
executivo para apresentar ao
Kremlin, ao Comitê Executivo da
Duma e ao Ministé rio de Defesa.
Egorov pretendia fazer a exibiçã o
pessoalmente, já pensando nos
pontosqueganhariacomisso.
Mas aquele presente caı́do dos
cé usvinhacorrendosé riosriscos.As
medidas de segurança eram
inadequadas, e o caso, vulnerá vel. O
imperturbá vel e experiente Golov
coordenava a megera ianque com
absolutamaestria,masnadaqueeles
izessem, nenhum conjunto de
mé todos de espionagem ou arsenal
de ferramentas té cnicas poderia
garantir a segurança de Swan por
tempo inde inido. Egorov acendeu
umcigarrocomasmãosligeiramente
trêmulas.
Havia dois pontos principais de
vulnerabilidade:primeiro,nadamais
natural que Golov, na qualidade de
rezident,fosseseguidoemonitorado
de todas as formas possı́veis. Mas o
homem era um pro issional
excelente, cauteloso demais para
deixar pistas a caminho de um
encontro qualquer. Alé m disso, ele
contava com uma equipe de
contravigilantes que o seguia do
mesmo modo que faria um grupo
adversá rio, guardando as mesmas
distâ ncias e usando as mesmas
té cnicas tanto para detectar quanto
para impedir qualquer tipo de açã o
contraochefe.Swaneraoproblema
maior.Amulherzanzavadeumlado
para outro em Washington sem
qualquer preocupaçã o com o
anonimato, correndo o risco de ser
vista na companhia de Golov ou de
chamar
atençã o
sobre
si
desnecessariamente. Nã o havia
té cnica de vigilâ ncia que desse jeito
nisso.
Na hipó tese de que algué m
percebesseumvazamento,ou izesse
uma denú ncia, os caça-informantes
americanos sairiam da toca e nã o
descansariam antes de encontrar o
que procuravam. Mas de onde
poderiasairessevazamento?Ora,do
traidor que vinha passando
informaçõ es ao agente da CIA
NathanielNash.Egorovdeuumsoco
na mesa. Só poderia ser algué m que
estava ali mesmo naquele pré dio.
Algué m que ele conhecia. Fora da
lista restrita havia cerca de meia
dú zia de o iciais graduados que
tinham conhecimento de Swan e
davam apoio ao caso. Vanya os
enumerou
mentalmente:
Yuri
Nasarenko, o homem com cara de
coruja que era o diretor da Linha T
(ciê nciaetecnologia),eoschefesdas
Linhas R (planejamento operacional
e aná lise), OT (suporte té cnico) e I
(serviços de computaçã o). Esses
o iciais sabiam que estavam dando
suporteaumcasoexcepcionalesem
dú vida podiam deduzir quem o
coordenava, e de onde. Nã o
conheciam a identidade de Swan,
mas tinham acesso ao material
repassado, e muita coisa podia ser
inferida a partir dele. Apesar das
patentesedaposiçã oqueocupavam,
todos teriam de ser investigados, e
para esta missã o tã o desagradá vel
Vanya podia contar com o anã o
AlexeiZyuganov,ochefedaLinhaKR
(contrainteligência).
Egorov sabia que a perspectiva
de uma investigaçã o interna contra
os pró prios colegas deixaria
Zyuganov num profundo estado de
ê xtase, talvez superá vel apenas pelo
prazerqueeletinhaaocumprirsuas
funçõ es nos porõ es de Lubyanka.
Vanya
convocou
Zyuganov,
autorizou-o a fazer sua devassa e o
homenzinhofoiemborafelizdavida,
acabeçafervilhandodeideias.
Egorov olhou pelas janelas da
sala, pensando em quem mais
poderia colocar em risco a operaçã o
Swan.Odiretor,claro.Talvezunsseis
ou sete na Secretaria Executiva, no
gabinete do ministro de Defesa e no
gabinete do pró prio presidente.
Quantoaessesnã ohaviaoquefazer.
Quem mais? No â mbito do SVR só
existia uma ú nica pessoa que se
enquadrava no per il: Vladimir
Korchnoi, diretor do Primeiro
Departamento (Estados Unidos e
Canadá ). Embora nã o tivesse acesso
à operaçã o Swan, ele podia intuir
tudooqueaconteciaemseupró prio
territó rio. Eles eram bons amigos,
tratavam-se
por
afetuosos
diminutivos. Volodya Korchnoi era
da velha guarda. No SVR nã o havia
quem nã o gostasse dele, quem nã o
con iasse nele. Alé m disso, o general
tinha contatos em todos os â mbitos
do serviço, o que lhe permitia ouvir
muita fofoca. E era ele quem
atualmente
supervisionava
a
operaçãocontraNash.
Egorov se deu conta de que
poucotinhavistoKorchnoioufalado
com ele nos ú ltimos tempos. Seu
amigo estava icando velho, só
faltavam alguns anos para pendurar
as chuteiras. Mas quando isso
acontecesse Egorov já estaria no
topo da pirâ mide e poderia escolher
umpupilodecon iançaparaassumir
o Departamento das Amé ricas.
Mesmo sabendo que era imprová vel
— impossı́vel, na verdade — que a
traiçã o
viesse
do
Primeiro
Departamento,
ele
decidiu
acrescentar Korchnoi à sua lista de
suspeitos. Apenas por idelidade à
arte. Primeiro ele cuidaria do SVR,
depois do americano Nash.Za
dvumya zaitsami pogonish’sya ne
odnogonepoimaesh.Quemcaçadois
coelhos ao mesmo tempo nã o pega
nenhum.
***
Yuri Nasarenko, chefe da
Diretoria T, aguardava à porta do
gabinete de Egorov feito um servo à
espera do chamado de seu senhor.
Grande e desengonçado, mesmo aos
50 anos, usava um pesado par de
ó culos de armaçã o metá lica, já
bastante deformado em razã o do
longo tempo de maus cuidados.
Tinha uma cabeça grande, a testa
protuberante, orelhas de abano e
dentes excepcionalmente ruins, até
mesmo para um russo. Era um
homem cheio de tiques nervosos.
Tinha uma verruga grande na ponta
esquerda do queixo, a qual Egorov
mirava sempre que estava à frente
dele, evitando olhar para sua
inquietude generalizada. Apesar dos
inú meros cacoetes, Nasarenko era
umté cnicobrilhante,algué mquenã o
só compreendia a ciê ncia de um
problemacomotambé meracapazde
aplicar a teoria à s necessidades
operacionais e à produçã o de
inteligência.
— Yuri, pode entrar. Obrigado
por ter atendido tã o rá pido a meu
chamado—disseEgorov,comoseo
subordinado tivesse alguma escolha
de datas e horá rios. — Por favor,
sente-se.Aceitaumcigarro?
Nasarenkoseacomodou,deude
ombros,cruzouasmã ossobreocolo
e dobrou os polegares duas vezes
comarapidezdeumraio.
— Nã o, obrigado,
Dimitrevich—retrucouele.
Ivan
As sobrancelhas começaram a
saltar, e no mesmo instante Egorov
fixouoolharnaverruga.
— Yuri, em primeiro lugar
gostaria de dizer que você vem
fazendo um trabalho exemplar com
as informaçõ es que estamos
recebendo sobre o veı́culo espacial
dos americanos. Temos sido
elogiados nos mais altos nı́veis do
governo—começouEgorov.
Mais precisamente,ele vinha
sido elogiado pelo sucesso da
operaçãoSwanatéomomento.
— Fico feliz em saber, Ivan
Dimitrevich — retrucou Nasarenko.
Ele olhava direto nos olhos de
Egorov, que o itava de volta com a
impassibilidadedeumlutador.—As
informaçõ es
sã o
realmente
excepcionais. Meus analistas e eu
estamos muito impressionados com
obrilhantismodetodooconceito.A
tecnologia espacial russa nã o ica
nadaadever,é claro,masotrabalho
dosamericanosé mesmomuitobom
—emendou,eemseguidaseupomo
deadãosaltitouduasvezes.
— Concordo — falou Egorov,
acendendo um cigarro. — Chamei-o
para dizer que continue trabalhando
nas suas aná lises e avaliaçõ es, mas
també m para avisar que o luxo de
informaçõ es será interrompido por
umtempo.Nossafonte,sobreaqual
nã o posso dar maiores informaçõ es,
está passando por um momento
difı́cil de saú de e icará ausente por
ora.
— Nada muito sé rio, eu espero
—respondeuNasarenko,inclinandosenacadeira.
A perna
ligeiramente.
direita
tremia
— Eu també m espero —
concordou Egorov, de modo
expansivo. — Uma crise de herpeszó ster pode ser bastante debilitante,
mas estou con iante de que nossa
fontevaiserecuperarlogo.
—Otimo—falouNasarenko.—
Vamosprosseguircom a aná lise dos
dados que já temos, que sã o
volumososobastantepranosmanter
ocupadosporumbomtempo.
— Perfeito — disse Egorov. —
Seiquepossocontarcomvocê .—Ele
se
levantou
e
acompanhou
Nasarenko até a porta, a mã o
pousada nos ombros trê mulos do
outro. — A aquisiçã o dessas
informaçõ es é muito importante,
Yuri, masa maneira de explorá-las
talvez seja ainda mais fundamental.
— Apertou a mã o dele e observou-o
caminhar para os elevadores. Com a
cabeça inclinada e andando meio de
lado, Nasarenko lembrava uma
marionetecomumdos iospartidos.
—Seumhomemdessesviraespiã o,
estamos ferrados — Egorov
sussurrou para si mesmo, e voltou
parasuamesa.
***
BorisAlushevsky,chefedaLinha
R, nã o era nenhum Yuri Nasarenko.
Bateu apenas uma vez à porta de
Egorov e entrou na sala com passos
tranquilos, sem nenhuma afetaçã o.
Aparentando mais do que seus 40
anos, tinha o aspecto de um homem
reservado e perigoso. Era moreno,
magro,comfacesencovadasemaçã s
salientes.
Os
olhos
eram
amendoados,asmandı́bulas,fortese
o nariz, grande. O rosto estava
perfeitamente barbeado. Com sua
densa cabeleira negra, lembrava um
membro do Comitê Central do
Quirguistã o recé m-chegado de
Bisqueque. Na realidade, era natural
deSãoPetersburgo.
O
chefe
da
Linha
R
(planejamentooperacionaleaná lise)
era responsá vel pela avaliaçã o de
todas as operaçõ es do SVR fora da
Rú ssia.Apó sanosemLondres,falava
inglê s com perfeiçã o. De volta a
Moscou, resvalara para a á rea de
planejamento e aná lise porque
combinava com ele: era inteligente,
tinha uma cabeça inquisitiva. No
entanto, aos olhos de Vanya, era um
tantoingê nuonasquestõ espolı́ticas.
Di icilmente seria o traidor. Ainda
assim,eleavaliaraosprocedimentos
d arezidentura de Washington na
operaçã o Swan, e fora ele quem
aconselharaousodeumaequipede
contravigilantes para proteger Golov
durante seus encontros mensais.
Portanto, Vanya també m colocaria
sua idelidade à prova em uma
armadilha.
— Boris, sente-se por favor —
disseEgorov.Tinhaapreçoerespeito
por Alushevsky em razã o do
pro issionalismo e da inteligê ncia
dele. — Examinei as suas
recomendaçõ es para um upgrade de
segurança em Washington e nã o
poderia estar mais de acordo com
elas.
—Obrigado,IvanDimitrevich—
retrucou ele. — O general Golov é
absolutamentepro issionalnasruas.
Quasenuncaé submetidoà vigilâ ncia
doFBI.Oraciocı́nioé que,naopiniã o
dos americanos, um o icial da
patente dele jamais coordenaria um
informante pessoalmente. O que é
umavantagemparanó s.Aequipede
contravigilâ ncia é bem meticulosa e
discreta. Vai fortalecer bastante a
segurançadorezident.
Ele pegou um cigarro da
caixinha de mogno com tampa de
tartarugaqueEgorovlheofereceu.
—Ótimo—respondeuEgorov.
— Alé m disso, os té cnicos da
rezidentura estã o monitorando com
cuidado especial as frequê ncias de
vigilâ ncia do FBI, procurando
sobretudo
anomalias
nos
procedimentos de rá dio. Uma
mudança de tá tica pode indicar um
aumento de interesse por parte da
oposiçã o — explicou Alushevsky em
termos bem simples, sem saber ao
certo se Egorov captava todas as
sutilezasdojogo.
— Boris, gostaria que você
continuasse
monitorando
as
condiçõ es de segurança e nossas
medidas de contrainteligê ncia.
Vamos ter um tempinho extra pra
avaliartodaasituação.
—
Como
assim,
Ivan
Dimitrevich?
—
perguntou
Alushevsky.
— Nã o posso discutir os
detalhes do caso do general Golov,
sinto muito, mas tenho certeza que
você entende,nã oé ?—disseEgorov.
— Nã o é uma questã o de falta de
con iança em você , isso eu posso
assegurar.
— Claro que entendo —
retrucou Alushevsky. — Segurança é
segurança. Nã o havia nenhum traço
deressentimentoemsuavoz.
—Oquepossolhedizeré quea
fontedeGolovprecisoususpenderas
atividades por um tempo. Um
problema de saú de. Bastante grave,
naverdade.
Egorov itava Alushevsky com
expressãoserena.
— De quanto tempo será esse
hiato? E importante que o general
Golovnã opareçainativoderepente.
Eprecisoqueelesimuleexatamente
o seu nı́vel anterior de atividade.
Qualquer mudança de há bito poderá
alertar a oposiçã o, e isso será
duplamente perigoso quando o
generalretomaroscontatos.
— Nã o sei quanto tempo vai
duraressasituação.Arecuperaçãode
umacirurgiadepontedesafenapode
ser muito lenta ou muito rá pida.
Vamosterdeesperarpraver.
— Com sua permissã o, eu
gostaria de rascunhar mais algumas
ideiasparaasuaavaliação.Depois,se
forocaso,repassoaogeneralGolov.
—Claro,claro.Façaisso.Mande
pra mim assim que terminar —
retrucou Egorov, levantando-se. —
Repito:estoumuito satisfeito com o
seu trabalho. Sua che ia tem sido
exemplarnaLinhaR.
ConduziuAlushevskyaté aporta
eapertouamãodele.
***
Vladimir Adreiyevich Korchnoi,
chefedoDepartamentodasAmé ricas
doSVR,chegoucomvinteminutosde
atraso à antessala do gabinete de
Egorov. Dimitri, assistente pessoal
do vice-diretor, saiu de seu cubı́culo
parasaudá -lo.Percebendooolharde
censura das duas secretá rias,
Korchnoi cumprimentou-as pelo
nome,sentou-senaquinadamesade
uma delas e contou uma histó ria, os
olhos escuros tremeluzindo sob as
sobrancelhasgrossas:
— Certa vez circulou a
estatı́sticadequeosmaioresı́ndices
de adulté rio aconteciam, em
primeiro lugar, entre os atores e
atrizesdecinema;emsegundo,entre
os atores e atrizes de teatro; em
terceiro,entreosagentesdaKGB.Ao
ouvir isso, algué m reclamou: “Faz
trintaanosqueestounaKGBejamais
traı́minhamulher!”Eooutro:“Poisé
porcausadepessoascomovocê que
estamosemterceirolugar!”
As secretá rias e Dimitri riram.
Ele encheu um copo com a á gua de
uma garrafa que icava sobre a
bancada e o entregou a Korchnoi.
Uma das secretá rias já ia contando
uma segunda piada quando o vicediretorentreabriuaportadesuasala.
As duas mulheres rapidamente
retomaram o trabalho. Dimitri
acenoucoma cabeça para Korchnoi,
depoisparaochefe,esumiudooutro
lado de seu cubı́culo. Egorov correu
osolhospelaantessalaecomentou:
— Quanta animaçã o por aqui.
Nã o é à toa que o trabalho anda
sempreatrasado.
— A culpa é toda minha —
interveio
Korchnoi,
ingindo
humildade. — Atrapalhei o trabalho
delascomumahistó riaridı́cula,uma
totalperdadetempo.
— Sem falar nos vinte minutos
de atraso — disse Egorov. — Entã o,
será que agora teria um tempinho
pramim?
Deu as costas a todos e voltou
para o interior da sala. Korchnoi
meneouacabeçaparaassecretá rias,
seguiu o homem e fechou a porta à s
suas costas. As duas mulheres
sorriramumaparaaoutraevoltaram
aoqueestavamfazendo.
Egorovseacomodounosofá de
couroclaronofundodasalaedeuum
tapinha na almofada, sinalizando
para que Korchnoi sentasse a seu
lado.
—Volodya,poracasovocê anda
lertandocomasminhassecretá rias?
— indagou. — Até posso imaginar
qualdelasvocê prefere,mastambé m
já posso adiantar que as duas sã o
muitoboasdecama.
— Vanya, já estou velho e
cansadodemaispralevarquemquer
quesejaparaacama.Alé mdisso,nã o
sou homem de comer os restos de
umbodevelhoquenemvocê .Tenho
penadaquelasduasjovens.
Korchnoi sentou-se no sofá e
desabotoouopaletó.
— Fico feliz que você esteja
envolvido na operaçã o contra o
americano Nash — disse Egorov. —
Seiquefará umbelotrabalho.Essaé
anossamelhorchancedeidenti icar
otraidor.
Ele se levantou e pegou uma
garrafa de conhaque georgiano com
duastaçasnorequintadoarmá riode
bebidas. Serviu duas doses e
entregouumadelasaKorchnoi.
—Aindaé meiocedopraisso—
comentou Korchnoi, e brindou com
Egorov,batendoabordadesuataça
nadele.
Ambos beberam tudo de um só
goleeapoiaramoscoposnamesinha
àfrente.
— Pra mim já está de bom
tamanho — disse Korchnoi quando
Egorov fez mençã o de renovar as
doses.
— Eu insisto — disse Egorov
comumafalsaseriedade.—Éoúnico
modo de fazer você icar aqui. Ando
precisando de algué m de con iança
comquemconversar.
— Somos amigos desde os
tempos da academia — falou
Korchnoi. — Algum problema com
nossaoperaçã o?Sevocê temalguma
dú vida quanto à sua sobrinha, ique
tranquilo, porque tenho a mais
absoluta...
—Nã o,nã otemnadaavercom
a operaçã o. Tenho certeza de que
tudo dará certo. O problema é outro
—disseEgorov.—Precisodesabafar
comalguém.
— Está com algum problema,
Vanya?—quissaberKorchnoi.
Nã o chegaria ao ponto de
perguntar como andava a campanha
dele no sentido de tomar o lugar do
atual diretor. Nem mesmo uma
amizade de dé cadas lhe permitiria
sertãodireto.
— As aporrinhaçõ es e con litos
de sempre. Pra cada sucesso, um
fracasso. Uma fonte perdida, uma
deserção,umrecrutamento...
— Vanya, você sabe muito bem
como sã o as coisas no nosso ramo.
Sempreteremosfracassos,mas,uma
vezacadacincoanos,oudez,temos
um sucesso estrondoso. Logo, logo,
viráopróximo.Fiquetranquilo.
Korchnoi bebeu um gole do
conhaque que Egorov servira contra
asuavontade.
— E sobre isso que eu gostaria
de falar. Volodya, eu lhe devo
desculpas. Escondi algo de você
quando nã o deveria ter escondido
nada. Preciso levar esse segredo
adiante, pelo menos por mais algum
tempo, mas acho que posso dividir
comvocêumapequenapartedele.
— Con io no seu discernimento
—retrucouKorchnoi.
—Você é umamigodeverdade,
Volodya. — Egorov serviu uma
terceira dose de conhaque para
ambos. — Tenho conduzido uma
operaçã o no seu territó rio. Nos
Estados Unidos. Sem o seu
conhecimentoesemasuaaprovação.
Pordireito,essaoperaçãodeveriaser
sua. Mas em minha defesa posso
dizer que foi o Kremlin quem
ordenou que as coisas fossem feitas
dessaforma.
Marble procurou manter a
frieza. Entã o era esse o caso Swan,
operadodiretamenteporumdiretor.
— Nã o é a primeira vez que
fazemosisso—falouKorchnoi.—Eu
mesmo já passei por situaçã o
semelhante. Se for mais e icaz em
termos operacionais, entã o é assim
quetemdeser.
— Eu sabia que você veria a
coisa com o pro issionalismo de
sempre. Nunca foi minha intençã o
desrespeitar você ou o seu
departamento—continuouEgorov.
— Quanto a isso você nã o
precisa se preocupar — garantiu
Korchnoi.
—
Golov
tem
conhecimentodataloperação?
Haviaaliumespaço,pormenor
que fosse, para uma discreta
sondagem.Muitodiscreta,pensou.
— E melhor nã o entrarmos
nesse tipo de detalhe — respondeu
Egorov, fugindo da pergunta. — O
queeupossodizeré queocasoestá
começando a produzir informaçõ es
deimportâ nciainé ditaparaaRú ssia,
compará vel apenas ao que tı́nhamos
em1949,quandoFeklisovcomprava
sorvetes pra Fuchs em troca das
anotaçõ es sobre a bomba que ele
estava construindo.Quanto tato,
pensou Korchnoi.Nosso apogeu foi o
NKVD nos anos 1950. Egorov riu e
deutapinhasnoombrodele.
—
Entã o
precisamos
comemorar — falou Korchnoi. —
Esse é o tipo de sucesso que só
aconteceacadavinteanos.—Bebeu
umpoucodoconhaque.—Vanya,em
quepossoajudá-lo?
— Nã o, nã o. Nã o há nada que
você possafazer—retrucouEgorov.
—Precisoquecontinuesededicando
à operaçã o contra o americano, até
porquevamosterdefazerumbreve
intervalo nesta outra operaçã o de
que falei. Quando você acha que
poderáentraremação?
— Assim que precisar. Sua
sobrinha está pronta — a irmou
Korchnoi com total naturalidade. —
Quando você quer que a gente dê o
primeiropasso?
— Temos um tempinho. Você
pode agir desde já , uma vez que
nossa fonte está se recuperando de
uma cirurgia relativamente grave no
olho.Otimingéperfeito.
—Tudobem,entã o.Empoucos
diasestaremosprontosparaviajar.
—Ótimo—falouEgorov.
— Vamos conseguir — disse
Korchnoi.—Podeescrever.
— Estou contando com você ,
velhoamigo.
Seu crocodilo velho, respondeu
Korchnoiempensamento.Levantouse do sofá e, olhando atravé s das
amplas vidraças para a loresta de
pinheirosdooutrolado,comentou:
— Nó s nos saı́mos muito bem,
Vanya. Sobretudo você . Quem diria
que aqueles dois jovens formandos
daacademiateriam as carreiras que
temos,nãoé?
— Ainda é cedo pra esse seu
sentimentalismo barato. Há muito
trabalho pela frente — retrucou
Egorov. — Obrigado, amigo, por ser
tã oleal,e,porfavor,tentenã osumir
mais.
Eles caminharam de braços
dados até a porta e se despediram
comumrápidoabraço.
— Agora vou voltar pra minha
salacombafodeconhaqueefedendo
a essa sua colô nia vagabunda —
comentou Korchnoi. — Depois vã o
dizer por aı́ que sou alcoó latra e
pedik,graçasavocê.
Ambosriram,eEgorov,vendoo
general se afastar, pensou:Já foi um
homem brilhante um dia. Brilhante e
destemido. Mas está icando velho e
cansado. Voltou para sua sala e
fechouaporta.
***
A cabeça de Marble fervilhava.
Ele repassaria a informaçã o
imediatamente, ainda naquela noite.
Imaginou como Benford receberia a
notı́cia. O convite de Vanya para
aquelaconversanoquartoandarfora
estranho, incongruente. Quanto à s
desculpasporestarconduzindouma
operaçã oemterritó rioalheio,aquilo
nã o passava de uma grande balela.
Vanyanã opensavaduasvezesantes
de desrespeitar alguma fronteira
operacional. Nã o tinha esse tipo de
pudor. Fazia apenas aquilo que
pudesse trazer algum benefı́cio para
si mesmo. Sempre fora assim. Por
isso ele se tornara o burocrata que
era em essê ncia, deixando o
verdadeiro serviço de inteligê ncia
paraosoutros.
Marble relembrou os quatro
detalhes principais que Vanya
fornecera. A importantı́ssima fonte
Swan era um “caso de vinte anos” e
vinha repassando as melhores
informaçõ es desde os tempos da
espionagematô mica.Aoperaçã oera
conduzida
pelarezidentura de
Washington.
Anatoly
Golov
provavelmente estava envolvido.
Swan passara, havia pouco tempo,
por uma cirurgia no olho. Quanto
maispistasparaBenford,melhor.
Apó s atravessar os amplos
corredores do primeiro andar,
Marble se dirigiu à cafeteria do
pré dio. Embora nã o passasse das
onzeemeia,diversosfuncioná riosjá
levavam suas bandejas de almoço
paraasmesas.Meiotontoporcausa
domalditoconhaquedeVanyaecom
oestô magoemchamas,elefoiaum
dosbalcõ esepediuumagrybnoysup,
uma sopa grossa de cogumelos com
creme azedo. Ao constatar que
Nasarenko comia sozinho ali perto,
fezoquepô deparanã oservisto.Seu
esforço foi em vã o, pois o chefe da
LinhaTjáochamavacomumsinalda
cabeça. Agora nã o havia mais jeito,
ele teria de se juntar ao homem.
Recusar o convite de outro chefe de
departamento seria uma quebra de
protocolo imperdoá vel. Korchnoi se
preparou para suportar vinte
minutosdealmoçonacompanhiade
umsujeitoapelidadodeOsciloscó pio
pelos cientistas e té cnicos que ele
mesmocomandava.
— Como vai, Yuri? — disse o
general,acomodando-seàmesa.
Tirou um naco do pã o e o
mergulhounasopafumegante.
— Sempre muito ocupado,
muito ocupado — retrucou
Nasarenko,quepartiaumrolinhode
repolhocomresultadoscatastróficos.
Como se diante de um terrı́vel
acidente de trâ nsito, Korchnoi nã o
conseguia tirar os olhos daquilo. —
Trabalhando
até tarde.
As
informaçõesnãoparamdechegar,ea
gente precisa traduzir, analisar,
mandar resumos para o quarto
andar... Uma avalanche de discos.
EstãoenviandotudoparaoKremlin.
Interessante. Discos. Com uma
produçã o assim, só podia ser a tal
operação.
— Está precisando de ajuda?
Posso emprestar um ou dois dos
meusanalistas.
Um gesto de altruı́smo sem
precedentes. Os departamentos
jamais ofereciam ajuda uns aos
outros.
Nasarenko ergueu a cabeça,
surpreso.
— Vladimir Andreiyevich, é
muitagentilezadasuaparte—falou,
mastigandometadedeumrolinho.—
Agradeço,masessetrabalhodevese
limitaraumnúmerobempequenode
analistas credenciados. E um
requisitodaoperação.
— Bem, se precisar de alguma
coisa é só avisar. Sei muito bem
como sã o esses perı́odos de
sobrecarga—comentouKorchnoi.
— Em breve teremos um
descanso. Egorov disse que haverá
uma suspensã o temporá ria no luxo
de informaçõ es. — Nasarenko se
inclinou na direçã o de Korchnoi, o
pomo de adã o saltitando em
compasso com o tremor das
bochechas.—Afonteteveumacrise
deherpes,estáincapacitada.
Sabia que estava cometendo
uma falta grave em termos de
segurança, mas... Korchnoi també m
era um chefe de departamento e
tinha um longo histó rico de bons
serviçosprestados.
Marble sentiu um calafrio. Foi
como se as paredes da cafeteria
tivessem se fechado à sua volta, as
vozes se reduzindo a um zum-zum
indistinto. Ele se obrigou a tomar
uma colherada da sopa e depois
disse:
— Nesse caso, que bom pra
você .Agentetemdesaberaproveitar
essas oportunidades. — Baixando a
voz, emendou: — Yuri, nã o
deverı́amos estar falando desse
assunto.Você conhecemelhordoque
eu a importâ ncia dessa operaçã o.
Sugiro que nã o comente com
ningué m que tivemos esta conversa,
estábem?
Os olhos escuros de Nasarenko
cintilaramdeculpaquandoelesedeu
conta do que o general estava
querendodizer.
— Concordo plenamente —
retrucou.
Emseguida icoudepé ,recolheu
suabandejaesedesculpouporterde
sairtãoderepente.
Sozinho à mesa, Marble
continuou tomando sua sopa,
tentando aparentar o má ximo
possı́veldenaturalidade.Seriaaquilo
o começo do im? Doseu im?
Tratava-se de uma armadilha
direcionada aele ou de um teste de
idelidade generalizado? Ao pensar
queVanyacriara uma armadilha, ele
balançou a cabeça, incré dulo. O
crocodilocontaraamesmahistó riaa
pessoas diferentes, mas com
pequenas variantes que permitiriam
detectar quem andava com a lı́ngua
solta.Venhacá,seucanarinho,pegue
este pólen aqui e saia por aí batendo
as suas asinhas. Era essa a ideia.
Subitamente, avisar Washington
haviasetornadomaisurgenteainda.
GRYBNOY SUP — SOPA DE
COGUMELOS
Deixar os cogumelos de molho,
depois coá-los e cozinhá-los em caldo
de carne por quatro horas. Dourar
lâminas finas de cebola na manteiga e
acrescentá-las à sopa. Adicionar amido
de milho, mexer bem e esperar que a
sopa engrosse. Temperar, polvilhar
com salsa e servir com uma colher de
creme azedo por cima.
CAPÍTULO 29
SUBMERSONASEMIESCURIDAO
DE SUA sala, Benford via na mesa à
sua frente, atulhada de papé is, a
mensagem urgente que Marble
acabara de enviar. Já a lera duas
vezes,
imaginando
o
russo
pronunciandoaspalavras,calculando
o nú mero de caracteres permitido a
cadacomunicação.Derepenteberrou
paraasecretá riachamarNateeAlice
à sua sala imediatamente. Enquanto
esperava,leuotextomaisumavez:
Swan definitivamente nos
EUA. V. diz, nada melhor
desde os 50. Operação
prov. conduzida na
capital. Golov pode ser
operador. Nasarenko
sobrecarregado, discos e
dados técnicos.
V. armou arapuca. Disse a
Nasarenko q. fonte está
com herpes. P/ mim,
falou que operou olhos.
Outras variantes, prov.
V. renovando op. vs. NN.
Me designou para
comandar (!). Sobrinha
de V. no meu depto.,
apontada contra NN.
Viagem a Roma deve
coincidir com conf. EBES.
Aviso quando
confirmado. niko.
Os olhos de Benford se
demoraram non minú sculo da
assinaturaniko,sinalpreestabelecido
de que a mensagem fora escrita de
livre-arbı́trio, sem a coaçã o de uma
roda de capangas armados, ditando
conteúdo.
Swan era um informante que
vinha tra icando informaçõ es do
governo americano. O jogo estava a
plenovapor.Ofatodeestaoperaçã o
ser considerada pelos russos a
melhor em muitos anos dava a
entender que os dados fornecidos
por Swan, alé m de numerosos, eram
de ó tima qualidade. Aos olhos de
Benford, o que vinha ocorrendo era
umahemorragiadeinformaçõ esnas
entranhasdopaís.
AssimqueAliceen iouacabeça
por uma fresta na porta da sala, foi
informada pelo chefe de que seria
destacada para um ú nico projeto, de
inícioimediato.
— Mas estou trabalhando
naquele caso do agente duplo no
Brasil—retrucouela,semrodeios.
Nã otinhamedo de contrariar o
chefe.
— Essa merda pode esperar —
decretou ele, sem nem se dar ao
trabalhodeerguerorosto.—Quero
que você interrompa o que está
fazendoecompileumalistapramim.
Uma lista diferente de todas que já
compilounavida.
— Pode falar — disse Alice,
olhandoaoredorà procuradealgum
lugarparasesentar.
Ao nã o encontrar, permaneceu
depédiantedamesadeBenford.
— Vai ser um pouco nã o
convencional,masachoquevocê vai
gostar, Alice. — Benford en im
ergueuosolhosparaafuncionária.—
Queroqueprepare uma relaçã o com
osdezmaioressegredosdogoverno
americano.Emqualquerá rea.Defesa,
política,tecnologia,sistemabancário,
programaespacial,energia,islã ...Até
a tatuagem na bunda da Pat Benatar
estávalendo.
— Na bunda de quem? —
perguntouAlice.
— Pat Benatar, a cantora pop,
nã oconhece?—explicouBenford,na
defensiva. — Comece com os
programasmaiscon idenciaisemais
cabeludosdoPentá gono,ossegredos
militaresquemaispossaminteressar
aos russos, esse tipo de coisa.
Procure descobrir que projetos o
Departamento de Defesa considera
mais importantes e delicados.
Projetos de longo prazo. Caros.
Estraté gicos. Se necessá rio, peça ao
vice-diretor de Assuntos Militares
pra ligar pro Secretá rio de Defesa.
Educadamente, convide todo mundo
a tirar a bunda da cadeira e nos
mandar essas informaçõ es o mais
rá pido possı́vel. Depois, quando
soubermosoqueelesveemcomoas
joias da coroa, vamos examinar as
listas de pessoas que tê m acesso
autorizado para cada um desses
projetos.Agoravai.Sevira.
Alice ia saindo quando deu de
cara com Nate à porta da sala e
perguntou:
— Por acaso você sabe quem é
PatBenatar?
— Nunca ouvi falar —
respondeu ele, tirando as pastas de
uma cadeira para se sentar nela. —
Nã o é aquele cara do FBI em Boston
que detonou o caso na Nova
Inglaterra?
—Deixapralá —falouBenford.
— Alice, você tem mais o que fazer,
nãotem?
Virou-se para Nate e entregoulhe uma có pia da mensagem de
Marble.Nã opô dedeixardenotarque
ele corou ao ler a parte que fazia
mençãoaDominika.
Nate releu o pequeno texto
inú meras vezes como se pudesse
tirar das entrelinhas alguma
informaçã ovaliosa.Por imergueuo
rostoparaBenfordedisse:
—Elaestáviva.
— Diva nã o só está viva como,
aoqueparece,passouincó lumepela
dura que deram nela — retrucou
Benford. — E agora o tio teve a
excelente ideia de designá -la para o
casoMarble.
Nesse ponto ele se lembrou da
estraté gia de sucessã o que o russo
sugerira.
— Você acha que ela vai pra
Romacomele?—perguntouNate.
—Achomelhorvocê tomaruma
ducha fria, rapaz — rosnou Benford.
— Nunca vai poder con iar
inteiramente nessa garota. Sempre
haverá a possibilidade de ela ter
mudado de time outra vez. Por
enquanto vamos procurar tirar
vantagem do fato de Diva, uma
informante recrutada por você ,
recé m-submetidaaumainvestigaçã o
de contrainteligê ncia, ter sido
designada pela ingê nua diretoria do
SVRparaseduzi-locomoobjetivode
descobrir o nome do o icial sê nior
que você opera, isto é , Marble, que
porcoincidênciaéonovochefedelae
está orientando a garota numa
operaçã o para neutralizarvocê, o
operadordele.
Benford olhava para Nate atrá s
das pastas e jornais que formavam
um par de torres gê meas em sua
mesa.
— Você está adorando essa
confusã o toda, nã o está ? — disse
Nate.
—Esperoquevocêsejacapazde
lidar com a ambiguidade. Caso
contrá rio, pode pegar suas coisas e
dar o fora daqui — falou Benford,
sé rio. — Bem, o que pretende fazer?
—emendou,jogandoabatataquente
paraele.
Nate respirou fundo, tentando
tirarDominikadacabeça.
— De acordo com esta
mensagem, eles ainda nã o tê m a
menorideiadequemsejaMarble.
—Ecomovocê concluiuisso?—
quissaberBenford.
—SeEgorovestá jogandoiscas
no alto escalã o do SVR é porque ele
espera que uma das versõ es da
histó ria acabe batendo de volta nos
ouvidosdele.
—E?
— Isso quer dizer que ele tem
algué m nas internas do governo
americanoqueocupaumpostoaltoo
bastante pra ouvir uma dessas
versõ es e reportar de volta. Algué m
no campo de inteligê ncia. O pró prio
Swan?
—Podeser—disseBenford.—
E o que mais você leu nessa
mensagem que pode nos ajudar a
descobriralgumacoisasobreSwan?
Nate baixou os olhos para o
papel de novo, depois os reergueu
paraBenfordefalou:
—Medêumadica.
—Nasarenko.
Nate examinou o texto mais
uma vez e subitamente ergueu o
rosto.
— Sabemos qual foi a versã o
contadaaNasarenko—observou.—
Podemosespalhá -lapor aı́, mas com
mé todo,seguindoosrastrosdecada
pessoaquereceberaisca.Sealguma
coisa acontecer a Nasarenko, entã o
vamosterumpontodepartida,uma
listarestritadepessoas.
—EofeitiçodeEgorovvaivirar
contra o feiticeiro — acrescentou
Benford. — Mas você nã o pode
esquecer uma coisa: ele está
impaciente,desesperado.PraEgorov
você é um atalho pra soluçã o de um
problema,umasoluçã o que o livrará
da guilhotina. Ele
concentrandoemvocê.
está se
Nate estava pensando em
Dominikadenovo.Benfordpercebeu
isso,grunhiudeummodohistriô nico
edisse:
— Seria um prazer icar horas
aqui falando de você , mas
infelizmenteagentetemmaisoque
fazer. Foco, rapaz, foco. Me diga: o
que você faria em primeiro lugar no
casodeSwan?SeMarbletiverrazã o,
o caso está sendo operado aqui
mesmoemWashington,pelopró prio
rezident.
— Se Golov estiver mesmo
coordenando Swan, entã o isso é um
ponto fraco deles — observou Nate.
— Acho que a gente devia cuidar do
rezidentdeperto.
— Otimo. Mas como podemos
trabalharessecara?Oquevocê faria?
—perguntouBenford,incitando-o.
—Nã osairiadopé deleporum
mê s. Pegaria pesado na vigilâ ncia,
deixaria o sujeito acuado. Olha, sei
que você vai icar puto comigo, mas
acho que nesse caso a gente devia
chamar o FBI. Se formos mesmo
rastrear o russo no centro de
Washington, o FBItem de ser
convocado.
Esses
caras
da
contrainteligê ncia estrangeira sã o
feras, sabem tudo sobre a caça de
espiõ es.Eosdainteligê nciasabemo
queestã ofazendonarua.Aequipede
vigilâ nciadelesé espetacular.Vamos
fazerumesquemadevigilâ nciatotal.
FazertantobarulhoqueGolovvaiter
deabortaramissã oumasdezvezes.
Nã o vai conseguir se encontrar com
Swan. Os igurõ es da central vã o
começar a icar nervosos. Golov vai
começar a suar. Eles vã o icar
apavorados, com medo de perder o
informante. Quanto ao efeito que
tudo isso terá sobre Swan, aı́ eu já
nãosei.
— Tudo bem. Mas agora é você
que está me deixando nervoso —
comentou Benford. — Golov é bom
demais pra fazer alguma cagada na
rua. Alé m disso, certamente tem
algum esquema de contravigilâ ncia
nopédele.
—Nã oimporta—disseNate.—
Numanoiteescuraechuvosaagente
o deixa sair sem vigilâ ncia. Ele vai
achar
que
está livre,
a
contravigilâ ncia vai con irmar, e ele
vai seguir tranquilo pro encontro.
MasosOrionsjá vã oteridonafrente.
Aı́, com um pouco de sorte, verã o
Swan andando pra lá e pra cá numa
esquina qualquer, nervoso, ou pelo
menos um carro mal estacionado
numaruadeserta,cujaplacaagente
vai poder pesquisar depois. Vamos
continuartentandoatéacertar.
Benford assentiu com a cabeça.
O garoto já havia estado do outro
lado,sobamiradoFSBnasperigosas
ruasdeMoscou.Benfordsabiaquais
eram as vulnerabilidades de um
informante,oquepodiaassustarum
operador. Nate estava se revelando
um bom agente, ele observou,
satisfeito.
Benford era praticamente o
dono dos Orions. Procurava mantê los fora do radar de outras pessoas;
nã o os emprestava nem vendia.
A inal, quem haveria de querer uma
equipe geriá trica de vigilâ ncia
composta por agentes de campo
aposentados e seus carros velhos,
meiaspretascomsandá lia,binó culos
de observador de passarinho? O
tamanhodaequipevariavadeacordo
com os compromissos pessoais de
cada um: sempre havia um que nã o
podia faltar a uma consulta mé dica,
queprecisavavisitarosnetinhos.No
entanto, era a pró pria essê ncia dos
Orions
(lentos,
pacientes,
ponderados) que os tornava tã o
e icazes. Era impossı́vel tirá -los do
sé rio com alguma provocaçã o. Eles
observavam, esperavam, sumiam e
reapareciam duas esquinas à frente.
Acariciavam o alvo, farejavam-no de
longe, iam e voltavam do mesmo
modoqueasmaré s.Enuncaperdiam
oalvodevista.
Diversos especialistas já os
tinham observado em açã o para
entender sua metodologia e ensinar
outras equipes a obter o mesmo
sucesso. Queriam descobrir o
segredodaquelamá gicaecolocarum
ró tulo
nela.
“Vigilâ ncia
de
previsibilidade baseada em aná lises
de per il”, escreviam. “Projeçõ es
situacionais como suporte para
vigilâ ncia seletiva. “Estraté gias
antecipató rias determinadas por
‘rota de marcha’ e corrigidas pela
mitigaçãodoriscoaceitável”.
Nenhuma dessas classi icaçõ es
fazia sentido, diziam os pró prios
Orions. O segredo era desenvolver o
instinto, formular uma hipó tese e
pagar para ver. Os especialistas
ouviam isso e nã o conseguiam
entender. “Tente ver a coisa desta
forma”, dissera certo Orion de 68
anosdeidade,omesmoquenoinı́cio
da carreira grampeara as ligaçõ es
que a GRU russa fazia no Tú nel de
Berlim. “Nó s somos umaameba. Um
protoplasma. Flexı́veis, moldá veis,
capazes de nos locomover em
qualquer tipo de terreno. Os
especialistassorriameducadamente,
pensando:Como colocar isso num
manualdecampo?
Certa vez, durante uma
demonstraçã o
prá tica,
os
especialistas assumiram as posiçõ es
tradicionais de uma equipe de
vigilâ ncia para observar os Orions
em
açã o,
mas
os
caras
desapareceram. Aquilo nã o era
vigilâ ncia. O alvo tinha sido
abandonadoeningué msabiaondeos
veteranos tinham ido parar. Quando
o alvo chegou ao local marcado, no
entanto, os danados já estavam em
suas posiçõ es, esperando em um
parque, um cruzamento, tã o
silenciosos que ningué m percebia
sua presença. “Ideias malucas,
alquimia”, diziam os especialistas.
“Nã o, muito obrigado.” Foi nessa
é poca que resolveram deixar os
OrionsparaBenford.
Eram esses sujeitos que agora
estavamnopé dorezidentGolov,eas
avaliaçõ es sobre ele já haviam
começado: um senhor bastante
distinto. Gentil, impassı́vel, mas
ainda assim um protocomunista.
Benford
pedira
que
eles
descobrissem tudo o que fosse
possı́vel,masque icassematentosà
equipe de contravigilâ ncia que
semprecercavaorusso.
— Muito bem. Já é hora de
tirarmosoSr.Golovdecampoporum
tempo — disse ele certo dia, e na
manhã seguinte os vigilantes do FBI
já espreitavam o pré dio da
embaixada da federaçã o russa na
Wisconsin Avenue,afundados no
bancodeumCrownVic.
***
As reuniõ es secretas do SSCI
para a discussã o de “assuntos de
inteligê ncia” eram realizadas na sala
216doHartSenateOfficeBuilding,na
Constitution Avenue. Designado
apenascomoHS,deHartSenate,nos
diretó rios do Congresso, o pré dio se
resumiaanoveandaresdemá rmore
ejanelasescuras,enã ochegavanem
perto da elegâ ncia neoclá ssica do
Dirksen and Russel Senate Of ice
Building. Benford chegou sozinho,
atravessouoá trioimensoetomouas
escadas para o segundo andar. Na
sala 216, dirigiu-se à recepçã o e se
apresentou ao guarda do outro lado
dobalcã o.Deixoucomeleocelulare
só entã opassoupelaporta-forteque
levavaàsaladocomitê.
Chegara cedo para a sessã o e o
lugar estava vazio, a nã o ser pelos
assistentesqueiamdeixandopastas
emcadalugardamesareservadaaos
congressistas, que icava sobre um
tablado de carvalho. Claro que o
mó vel icavaacimadonı́veldochã o,
Benford sempre dizia a si mesmo.
Senadores gostavam de olhar as
testemunhasdecima.
Escondida sob o acabamento
das paredes, uma tela de ilamentos
de cobre pulsava uma energia
contı́nua de modo que, uma vez
trancada a porta-forte e acionado o
mecanismo,nenhumsinaleletrô nico
entrassenasalaousaíssedela.
Nos anos 1980, numa tentativa
de espionar um importante
depoimento no comitê , os russos
haviammontadoumaoperaçã opara
plantar na sala um equipamento de
gravaçã o e recolhê -lo assim que
possı́vel, umprocedimento bastante
rudimentarparadriblaraso isticada
blindagem
eletrô nica.
Teriam
conseguido nã o fosse por um
faxineiro,queencontrouaengenhoca
colada sob uma das cadeiras da
plateia durante uma das raras
sessõ esabertasaopú blico.Ohomem
entregou o aparelho à polı́cia do
Capitó lio, que imediatamente o
repassouaoFBI.Emvezderecolocá lonomesmolugarcomoobjetivode
passarinformaçõ esfalsasaosrussos,
tal como Benford teria feito, os
panacas do FBI haviam festejado o
“desbaratamento da operaçã o” e
destruı́dooaparelhoemmilpedaços,
jogandoaquelararaoportunidadeno
lixo.
Benford era a ú nica pessoa
sentadaà mesadosdepoentes.Asua
frente,umpequenocartã oinformava
seunomeecargo.Porinsistê nciados
membrosdoSSCI,acadatrê smeses
ele fazia uma relaçã o de suas
atividades numa sessã o à qual
apenas os quinze membros do
comitê tinham permissã o para
assistir. Os senadores, acostumados
desde sempre a um sé quito de
assistentes, haviam concordado, nã o
sem alguma relutâ ncia, com a
proibiçã o de auxiliares durante os
trabalhos.Tratava-sedeumamedida
pro ilá tica no sentido de reduzir ao
má ximo, senã o por completo, a
quantidadedeanotações.
Poucos
faltavam
à s
apresentaçõ es
trimestrais
de
Benford,vistasporquasetodoscomo
as mais concisas e informativas da
comunidade de inteligê ncia. A
exceçã odeumú nicomembro,oSSCI
o tratava com o mais absoluto
respeito. Apenas Stephanie Boucher,
senadora pelo estado da Califó rnia,
parecia nutrir o mais profundo
desprezoportodososdepoentesdos
setoresdeinteligê ncia,sobretudoos
daCIA.Aoentrarnasalajuntocomos
outros, ela torceu o nariz tã o logo
avistouBenford,quepreferiuignorá laefazeralgumaanotaçã oà margem
de seus papé is. Os assistentes
esperaram
que
todos
se
acomodassem e só entã o se
retiraram.Aporta-fortefoifechadae
uma lâ mpada verde se acendeu
acimadela.
— Sr. Benford — disse o
presidente,dandoinícioàsessão.
Rapidamente, Benford relatou
os avanços mais importantes num
caso de cyberespionagem por parte
dos chineses na Costa Oeste,
a irmando que, se necessá rio, os
té cnicos da Divisã o de Operaçõ es
Computacionais da CIA poderiam
fornecer mais detalhes. Em seguida
passouaoutrocaso,maisimportante
queoprimeiro,emqueaCIAeoFBI
haviamdetectadoagentesdaDGSE,o
serviço de inteligê ncia externa da
França, abastecendo um esconderijo
nonortedoestadodeNovaYork.Um
relató rioestavasendopreparadoem
conjunto com o Frog, setor do FBI
responsá vel pela monitoraçã o das
atividades francesas em territó rio
americano.
Virando uma pá gina de sua
pasta,Benforddisse:
—
Senhores
senadores,
terminamos a avaliaçã o preliminar
que izemos em conjunto com a
marinha americana, e com o
fornecedor em questã o, dos danos
causadospelain iltraçã odeumilegal
russo em New London, Connecticut.
— Ele consultou suas anotaçõ es. —
Embora o Pentá gono ainda esteja
trabalhando no relató rio sobre as
rami icaçõ es de longo prazo dessa
in iltraçã o no programa naval,
podemos concluir desde já que os
russos ainda nã o tiveram acesso a
um
nú mero
su iciente
de
informaçõ es té cnicas para afetar a
viabilidade
operacional
da
plataforma...
— Perdã o, Sr. Benford —
interrompeu a senadora Stephanie
Boucher. Os demais pressentiram o
ataquequeestavaporvir.—Porque
diabo você usa palavras como
“plataforma” quando pode dizer
“submarino”? Nã o é muito mais
simples?
— Submarino, entã o. Muito
obrigado,Excelência.
Benford
precisou
esperar
enquantoasenadoradiscorriasobre
o obsoletismo dos submarinos
americanos em comparaçã o à classe
Dolgorukiy de submarinos balı́sticos
que vinham aparecendo na frota da
marinharussa.
A megera é bem-informada,
pensouBenford.
Asenadoracontinuou:
—Masaquestã oprincipalnisso
tudo,oquerealmentechamaatençã o
nesse episó dio de New London, é o
fato de que nem a inteligê ncia
americana nem as diversas
instâ ncias da polı́cia tiveram a
capacidade de detectar, localizar e
deter um ilegal russo que vem
operando neste paı́s há quase cinco
anos. Concorda comigo, Sr. Benford?
Ao que parece, esse ilegal conseguiu
sein iltrarnoprogramacomamaior
facilidade, apesar de todas as
investigaçõ es biográ icas e de todas
asoutrasmedidasdesegurança.
Stephanietamborilavaseulá pis
namesa.
— Com o im da Guerra Fria,
senadora, a utilizaçã o de ilegais
tornou-se muito rara — prosseguiu
Benford. — Até mesmo os russos
reconhecemquesetratadeummodo
dispendioso e ine icaz de captar
informaçõesdeinteligência.
Nem passava por sua cabeça
explicar como eles haviam icado
sabendodaexistênciadesseilegal.
—Nã ofoiissoqueeuperguntei,
Sr. Benford. Preste atençã o. O que
querosaberé qualdasduasagê ncias,
na sua opiniã o, é a mais
incompetente:aCIAouoFBI?
— Nã o tenho nenhuma opiniã o
formadaaesserespeito,senadora—
respondeu ele. — Infelizmente, na
sequê ncia desse caso em New
London,temosumpeixemaisgraú do
prapegar.
— Como assim? — quis saber
Stephanie.
— H á i ndı́ c i o s de q ue o s
rus s o s po s s ue m um a s e g unda
fo nt e de informaçõ es. Algué m com
amplo
acesso
a
assuntos
con idenciais. Estamos apenas
começando,nã ohá nadacon irmado
ainda.
— Deixe de rodeios! — rugiu a
senadora. — De que diabo você está
falando?
Benfordsuspirouruidosamente.
Fechouapastaà suafrenteecruzou
as mã os sobre ela. Olhou para a
divisa do Senado americano que
decorava a parede à s costas dos
senadoresedisse:
—
Temos
informaçõ es
fragmentadas de que há um
informante no alto escalã o do
governo americano, algué m que
possui acesso quase irrestrito aos
segredos de segurança do Estado e
que vem repassando esses dados
confidenciaisaoSVRrusso.
—Emquepontovocê sestã ona
investigaçã o desse vazamento? —
indagouosenadorpelaFlórida.
— Ainda nã o sabemos quem,
nem o quê , nem onde — retrucou
Benford.—Estamoschecandotodas
aspossibilidades.
— Resumindo, você s nã o tê m a
menor ideia de quem seja —
alfinetouStephanie.
—
Senadora,
essas
investigaçõ es levam tempo —
aplacouosenadorporNovaYork.
Elariuedisse:
— E, sei muito bem como sã o
essas investigaçõ es: centenas de
pessoas ingindo que trabalham
enquanto embolsam seu salá rio sem
descobrirnada.
Benforddeixouqueosmembros
conversassementresi,depoisergueu
avozecontinuou:
— Embora ainda estejamos no
está gio inicial da investigaçã o,
sabemos que o informante talvez
sofra de herpes. Isso pode ser ú til
mais tarde, quando tivermos em
mã osumalista de suspeitos restrita
o bastante para fazer as devidas
acareações.
— Tudo isso é muito
inconclusivo
—
sentenciou
Stephanie.Virou-separaoscolegase
falou: — Se nã o se incomodarem,
gostaria de me retirar. Tenho uma
reuniã o importante com os
integrantes de outro comitê . —
Entã o,dirigindo-seaBenford:—Por
hojejáestádebomtamanho.
Ela se levantou, recolheu sua
pastacon idencialefoiemdireçã oà
porta-forte, deixando os outros
remexendo nos pró prios papé is em
silêncio.
Benford nem sequer ergueu o
rosto. Conseguira o que queria.
Quinze senadores tinham ouvido a
palavra“herpes”.Doisdiasantes,três
subsecretá rios da Defesa escutaram
a mesma coisa durante um brie ing
no Pentá gono. Dali a trê s dias o
mesmo aconteceria em outra
reuniã o, com membros selecionados
do Comitê Nacional de Segurança,
entre eles um diretor sê nior do
Departamento de Defesa, assistente
especialdopresidentedaRepública.
Enquantorecolhiasuascoisas,a
sala já vazia, Benford imaginou os
rostospapudosdoKremlinepensou:
Os camaradas queriam um canário?
Entãoéissoquevãoter.
***
Vladimir Korchnoi havia sido
convocado pelo assistente de Vanya
Egorov para uma reuniã o numa das
salas especiais do quarto andar de
Yasenevo.
Recebera a ligaçã o de Dimitri
assim que pisara em sua sala, antes
mesmo de pendurar o casaco no
armá rio e se sentar para ler os
relató riosdamanhã .Pareciaurgente.
Ele olhou com tristeza para o prato
d esirniki que sua secretá ria deixara
sobre a mesa e que ele pretendia
comer enquanto lia. Dali a pouco as
panquecas de queijo com creme
azedo já estariam frias e
borrachudas. Antes de sair para o
elevador,eledobrouumadelascomo
garfoecolocou-ainteiranaboca.
Desde que descobrira os
joguinhos
de
Vanya
para
desmascararoinformantedoSVR,as
armadilhas
que
ele
vinha
distribuindoporaı́,Korchnoivirasua
vida de agente duplo resvalar da
tensã o cotidiana à qual ele já se
acostumaraparaopavor,aconstante
suspeitadealgumdesastreiminente.
Por catorze anos ele vivera sob
pressã o e adaptara-se a ela, mas
havia uma grande diferença entre
vazar informaçõ es sem ningué m
desconfiaresercaçado.
Agora, sempre que atravessava
as portas do pré dio ao chegar para
trabalhar ele receava ser recebido
porsegurançasmal-encaradosqueo
arrastariam do lobby para alguma
saleta vizinha. Sempre que ouvia o
telefone tocar em sua mesa, tinha
medodeserconvocadoparaalguma
sala sem janelas, repleta de homens
carrancudos. Sempre que punha os
pé snaruaduranteo imdesemana,
receavasersequestradoparaalguma
dachanoscafundósdacidade.
No quarto andar, Korchnoi saiu
doelevadorecomeçouapercorrera
galeria de retratos, pensando:Bom
dia,cambada.Eaí,jámedescobriram?
Ao entrar na sala de reuniõ es,
deparou-se com Vanya sentado à
cabeceiradamesa,rindodealgoque
Alexei Zyuganov, chefe da Linha KR,
dizia. Zyuganov, aquele gnomo que
antes de atirar na testa de algum
prisioneiro enchia a boca do infeliz
de trapos de pano só para nã o ouvir
assú plicasdeclemê nciaquetantoo
incomodavam.
A enorme cabeça branca de
Egorovpareciareluzirsobreacamisa
perfeitamente
engomada.
Ele
recebeu o velho amigo com um
abraçoepediuqueelesesentasse.
—
Queria
que
nos
encontrá ssemos nesta sala, Volodya,
porque aqui podemos usar o
projetor. Já que é você quem está
agora no comando da operaçã o, eu
gostaria de lhe mostrar um material
adicional. — Ele pegou o controle
remoto, apertou um botã o e em
seguida surgiu na parede uma foto
granuladadeNathanielNashnaqual
ele se encolhia de frio com as mã os
enterradas nos bolsos do casaco,
aparentementenumaruadeMoscou.
— Você nunca viu esse sujeito,
Volodya,maseleé Nash,oagenteda
CIA que está operando o traidor.
Passou menos de dois anos aqui, na
embaixada americana. Há um ano e
meio,maisoumenos.
Korchnoiseperguntouseaquela
fotohaviasidotiradaenquantoNate
voltavadeumdeseusencontroscom
ele. Em seguida cogitou se aquela
reuniã o nã o passava de uma
sarcá stica encenaçã o para pegá -lo.
Era bem possı́vel que dali a pouco
uma matilha de seguranças raivosos
irrompesse na sala para levá -lo.Não,
bobagem. Esta é sua vida. Respire
fundo.Mantenhaacalmaecontorneo
abismo.
— Esse Nash era muito
habilidoso.
Uma
vez
quase
conseguimos pegá -lo, mas fora isso
nã o tivemos nenhuma outra
oportunidade de descobrir o que ele
faziaporaqui.—Egorovacendeuum
cigarro,ofereceuomaçoaosdemais.
—Mas,naminhaopiniã o,otraidoré
alguémdoSVR.
Korchnoi procurou digerir as
palavrasdele.Sefossemverdadeiras
eleestariaseguro,masaindahaviaa
possibilidadedequetudoaquilonã o
passasse de teatro. Olhou para
Zyuganov e viu que ele itava
placidamenteaimagemprojetadana
parede. Nã o se iludiu com a
tranquilidade do gnomo: conhecia
muitobemseudiabó licotalentopara
adissimulação.
— Embora seja apenas uma
suposiçã o — observou Zyuganov —,
umacoisaé certa:osamericanosnã o
correriam o risco de realizar
encontros em Moscou se nã o
tivessemumafonteimportante.
Korchnoi
achou
aparentarnaturalidade.
melhor
— Se os amigos estiverem
corretos,istoé ,seopeixeformesmo
graú doeestivernoSVR,entã oalista
de candidatos se resumiria ao
diretor, a você , Vanya, e aos doze
chefes de departamento, incluindo
Lyosha e a mim. — Ele
imediatamente notou a expressã o
contrariada de seus interlocutores.
Que diabo estava fazendo? Que
maluquice era aquela? — Sem falar,
claro, nos assistentes pessoais de
cada um, nas secretá rias, nos
criptó grafos, nas centenas de
funcioná rioscomacessoindiretoaos
cabogramasdiplomá ticos.Semprehá
aquelemomentodedescuidoemque
as pessoas comentam sobre algum
assunto importante numa recepçã o
deescritó rioqualquer,oudeixamum
documentoimportantesobreamesa.
VendonorostodeZyuganovque
elejá haviaconsideradoaquilotudo,
Korchnoidecidiupararporali.Achou
que estava exagerando nas aná lises.
Egorovapagouseucigarroedisse:
— Você tem toda a razã o,
Volodya.
Sã o
muitas
as
possibilidades. Só vamos pegar esse
traidor se conseguirmos alguma
pista interna, algo concreto e
con iá vel. Ou entã o se conseguirmos
lagrá -losnarua,eleouseuoperador.
Ambasasopçõ espodemlevarmeses,
anos até . E por isso que a terceira
alternativa é a ú nica que realmente
nosinteressa.
— Concordo. Sua sobrinha é
nossa melhor arma — falou
Korchnoi, e precisou conter uma
gargalhada ao se dar conta do total
absurdo daquela situaçã o: eles
estavam discutindo meios de
identi icar e prender um espiã o que
se encontrava bem ali, debaixo do
narizdeambos.
Zyuganov girou em sua cadeira,
ospéssuspensosnoar.
— Mas... e se sua sobrinha nã o
conseguir nada num prazo razoá vel?
— aventou. — Nesse caso seremos
obrigados a recorrer a outras
medidas. Egorov rapidamente se
virouparaeleedecretou:
—Nempensar.Nadade“outras
medidas”nessaoperaçã o.Sã oordens
expressasdopresidente.Fuiclaro?
O anã o girou mais um pouco,
agora com um discreto sorriso nos
lábios.
— Você tem toda a razã o —
opinou Korchnoi. — Na histó ria do
nossoserviço,nahistó riadetodasas
operaçõ es de inteligê ncia durante o
pó s-guerra, ningué m jamais achacou
um agente adversá rio, pelo menos
intencionalmente. Isso nã o se faz. O
tumulto que isso gera nã o vale a
pena.
— Calma, Volodya. Se eu
quisesse partir pra ignorâ ncia,
estaria falando com a Linha F, nã o
comvocê —comentouEgorov,rindo.
—Nã o.Meuobjetivoé umaoperaçã o
elegante, sutil, inteligente, que
produzirá resultados rá pidos e
deixará nossos
inimigos
boquiabertos, sem entender direito
como perderam seu ativo tã o
importante, admirados com a
competê ncia e com a esperteza do
SVR.
SIRKINI — AS PANQUECAS DE
MARBLE
Misturar vigorosamente queijo
de cabra, ovos, açúcar, sal e farinha até
formar uma massa pegajosa. Levar ao
refrigerador. Depois que gelar, fazer
pequenas bolotas com a massa e
mergulhá-las na farinha, depois
achatá-las em pequenos discos. Fritar
na manteiga derre da em fogo médio
e re rar assim que a panqueca dourar.
Servir com creme azedo, caviar, peixe
defumado ou geleia.
CAPÍTULO 30
KORCHNOI
E
DOMINIKA
ESTAVAM na minú scula sala do
apartamento do general. O velho
contemplavaadesconcertantebeleza
da moça, observando a delicadeza
dos gestos dela, a elegâ ncia ao
caminhar, o despudor ao itá -lo
diretamente nos olhos. Quanto mais
tempo passava com ela, mais se
convencia de que izera a escolha
certa.Opró ximopassoseriacooptá la.Aconversadaquelanoitenã oseria
nadafácil.
Porforaelaapresentavaseruma
pessoafria,controlada,determinada.
Mas nas interaçõ es, nos gestos e até
mesmo na deferê ncia que lhe
dedicava, Korchnoi percebia um
ardor que parecia tender para a
revolta. Embora ela nunca tivesse
falado de sua passagem pela Escola
de
Pardais,
ele
levantara
discretamente boa parte dos fatos,
assim como izera em relaçã o à
passagem dela pelos porõ es de
Lefortovo.
A jovem estava escondendo
alguma coisa, disso ele tinha quase
certeza.Nã osepassavaumú nicodia
sem que ela se dissesse ansiosa por
encontrar o americano de novo. No
entanto,algoemsuavoz,ounomodo
como inclinava a cabeça, dava a
entender que o contato com
NathanielemHelsinquegeraraalgum
tipo de sentimento que ia alé m da
relaçã ooperadora/alvo,talvezalgum
con lito,algumaempatia,até mesmo
algumencanto.Embreveelesaberia
oqueera.
Naquela manhã eles haviam
começado a trabalhar no “Projeto
Nash”,comoohaviambatizado.Com
asluzesdeseuescritó rioapagadas,o
generalhavialigadoumprojetorpara
exibir imagens do americano e, logo
na primeira delas, ao itar Dominika
desoslaio,tiveraaimpressã odeque
os olhos da jovem haviam se
arregalado um pouco, de que as
narinas
haviam
se
aberto.
Impiedosamenteeleprosseguiracom
as imagens, relatando em detalhes
tudooqueoSVRsabiaarespeitode
Nash, repassando os relató rios que
ela mesma mandara de Helsinque,
observando-a sempre, interpretando
asreticências.
Ao im da projeçã o ele alertara
Dominika para o fato de que a fase
seguinte do projeto seria bem mais
complicada do que a anterior, em
Helsinque. Ela teria de viajar para
fora da Rú ssia, e para que seus
deslocamentos no exterior fossem
justi icados,
precisaria
ser
t ra ns fe ri dapara o serviço de
mensageirosdoSVRnaDiretoriaOT.
Operaria sozinha no Ocidente. Sua
funçã oseriasereaproximardorapaz
americanoeseduzi-loparatirardele
o nome do krysa, do rato traidor.
Entã o Korshnoi perguntou se ela
achavaqueseriacapazdefazerisso.
Os olhos de Dominika cintilaram e
tremeram.Emoção.Conflito.
Fora difı́cil, para ela, ser
obrigada a olhar para a imagem de
Nate. Seria possı́vel que o general
tivesse percebido sua agitaçã o? Por
quanto tempo ela conseguiria
enganá -lo? O que exatamente ele
sabiaaseurespeito?
Ao im da conversa ele a
convidara para jantar em seu
apartamento.
Prepararia
algo
simples, um prato nã o russo, uma
massa para celebrar a iminente
viagemaRoma,edurantearefeiçã o
eles poderiam continuar falando
sobreaoperaçã o.Nã ohavianenhum
traço de segundas intençõ es no
convite. Vladimir Korchnoi era um
o icial graduado e respeitado, um
veterano da espionagem, nã o um
grubyj chelovek, um moleque
qualquer. Eles haviam tomado o
metrô juntos, saltado na estaçã o de
Strogino, no Quarto Distrito, e
caminhado por um amplo parque à s
margensdorioMoscou.Opré diodo
generaleraoterceirodeumasériede
cincoconstruçõ esidê nticas,espigõ es
tubulares que pareciam estriados
pela ferrugem das esquadrias
metá licas. O apartamento icava no
dé cimo segundo andar, e o elevador
capenga grunhira ruidosamente ao
subircomeles.
O imó vel era pequeno e
modesto, mas confortá vel o
su iciente para um homem solitá rio
que nã o fazia muita questã o de
espaço. Havia poucos itens de
decoraçã o: na parede, uma bonita
pintura a ó leo italiana; no chã o, um
tapetedesedapersa.Logoseviaque
o morador tivera uma carreira de
viagens ao exterior. Num canto
icavam uma poltrona já bastante
gasta, uma luminá ria de chã o e uma
estante baixa com alguns livros de
capadura.Ajaneladasalatinhauma
amplavistaparaorio.
Dominika notou o portaretratos com uma foto de Korchnoi
ainda bem jovem ao lado de uma
mulher,pertodeumlago.Eraverão,e
eleaenvolviapelacintura.
—Issofoiem1973—explicou.
— Num lago italiano. Maggiore, eu
acho.—Esuaesposa?—perguntou
Dominika.—Elaémuitobonita.
— Vinte e seis anos de
casamento — disse ele, tomando o
porta-retratos das mã os de
Dominika. Virou-o na direçã o da luz
paravê-lomelhor.–
Viajamos o mundo inteiro
juntos.Itália,Malásia,Marrocos,Nova
York.Depoisela icoudoente.Passou
mesescomumdiagnósticoerrado.—
Elecolocouoporta-retratosdenovo
na mesa de centro e conduziu
Dominika à minú scula cozinha. —
Espero que você nunca precise de
uma embaixada russa pra nada,
muitomenosseadoecerforadopaı́s
—falousorrindo.
Ela notou que ele estava com a
cabeçabaixa.
O general contou que havia se
mudado para aquele apartamento
apó samortedamulher.Nã opoderia
continuar no antigo lar dos dois,
entã ootrocarapeloatual,queapesar
de pequeno era relativamente
moderno,tranquiloepertodocentro
da cidade. Falou que gostava do
cinturã o verde ao longo do rio, mas
preferiu omitir que as transmissõ es
emrajadaqueemitiaatravé sdaquela
janelatinhamumaexcelentelinhade
miraparaosatéliteamericano.
Ele serviu duas taças de vinho
moldávio.Acozinhadispunhadeuma
pia, um fogã o de trê s bocas e uma
pequena geladeira que chocalhava
sempre que a porta era aberta.
Recostada na bancada, Dominika
ergueu sua taça e propô s um brinde
ao sucesso da operaçã o. Via que o
general estava completamente à
vontade,
irradiando
um
aconchegante brilho violeta que
parecia vir das profundezas de seu
ser.
Embora izesse pouco tempo
quetrabalhavamjuntos,Dominikajá
se afeiçoara bastante a Korchnoi.
Alé mdecativá -lacomobrilhantismo
té cnico e a impressionante intuiçã o,
ele a tratara com respeito desde o
inı́cio,até mesmocomcertocuidado,
como se lamentasse tudo o que ela
padecera até entã o. Durante uma
reuniã o de departamento, havia
endossado e defendido o ponto de
vista dela sobre determinada
operaçã o. Na verdade, tomara as
dores da recé m-chegada, e era por
isso que Dominika via nele algo do
paieestavaaliviadaportê -loagoraa
seu lado. Caso fosse descoberto, o
jogoduploqueelavinhafazendosem
dú vida o magoaria, talvez até
apressasse o im da carreira dele.
Será que ele entenderia os seus
motivos?
Enquanto preparava o jantar,
Korchnoi indagou sobre a vida de
Dominika, sobre a famı́lia dela, e a
jovem,longedosrigoreseprotocolos
de Yasenevo, pô de falar livre e
afetuosamentesobreospais,asaulas
debalé ,adelı́ciaqueforadescobriro
Ocidente. Helsinque havia sido uma
grata surpresa, e agora ela queria
conhecer o mundo. Conversar sobre
essas coisas com o general quase a
fazia esquecer que vinha mentindo
para ele. Dominika afastou o
pensamento.
— Mas alguma coisa aconteceu
com você em Helsinque — arriscou
Korchnoi, trabalhando diante da
bancada. — Pode me contar o que
foi?
Dominika
hesitou
por
um
instante, organizando as ideias
enquantooviapicartomates,cebola
e alho sobre uma frigideira com
azeitequente,perfumandoacozinha.
O homem ainda por cima sabia
cozinhar. Um espanto. Ela tomou o
últimogoledeseuvinhoedisse:
— O voluntá rio americano que
ajudeiaoperarfoipresologodepois
defazersuaentrega.Alé mdemim,o
rezidenteraaú nicapessoaquesabia
desse encontro. Ningué m entendeu
nada,entã oelespartiramparaapior
das hipó teses, a de que eu havia
vazado a informaçã o para os
americanos. — Esperou que
Korchnoi a servisse de mais vinho e
continuou:—Masdepoisconcluı́ram
queeuerainocente.
Nã o queria falar mais daquilo,
nã o queria continuar mentindo para
ogeneral.
— Sim, mas... eu estava me
referindoaoutracoisaqueaconteceu
em Helsinque — insistiu Korchnoi,
cauteloso. — Li os seus relató rios.
Apesardaregularidadedoscontatos,
você nã o fez muito progresso com
Nash.
Dominika percebeu o tom que
eleusaraeviuqueprecisavaescolher
bemaspalavras. Todo cuidado seria
pouco.
— E verdade — retrucou ela
com a voz irme. — A princı́pio ele
nã odemonstroumuitointeresse,nã o
queria saber muito de mim. Nã o foi
muitofácilconvencê-lo.
Teriaelepercebidoamentira?
—Estranho.Umamulherbonita
como você ... E ele, bonito també m,
jovem, solteiro, um o icial de
inteligê ncia morando sozinho num
paı́s estrangeiro... Korchnoi deixou a
frasenoar.
O molho de tomate começou a
borbulhar e Dominika icou em
silê ncio, só observando enquanto
Korchnoi vertia um io de vinagre
balsâ mico na panela e acrescentava
folhas de manjericã o que ia
destacando dos talos. Sua aura
pareciaaindamaisbrilhante.
O general olhou para ela. Nem
BenfordnemNatetinhamditoquea
garota fora recrutada na Finlâ ndia,
maseleestavaquasecerto,eachava
quejáerahoradeiralém.
— Você teve uma sorte danada
até agora, minha querida — falou
baixinho.—Mesmonestemomento,
comaUniã oSovié ticareduzidaapó ,
omonstrocontinualá ,logoabaixoda
superfície.
Dominika icouassustada:podia
sentir que estava sendo enredada.
Deu-se conta de que nã o fora tã o
esperta quanto havia imaginado,
a inal. Korchnoi estava descon iado.
Nã o,maisqueisso:elesabia.Ovelho
feiticeiro. E agora, o que fazer? Se
insistissenamentira,elacontinuaria
mostrando desrespeito e correria o
risco de ser afastada da operaçã o,
assim como do departamento. Se
confessasse tudo, colocando a vida
nasmã osdogeneral,quemotivoele
teriaparanã odenunciá -la?Lefortovo
seriaumacolô niadefé riasdiantedo
destino que a esperaria nesse caso.
Defenda-se,elapensou.
— Conheço esse monstro de
perto — falou, altiva. — Dormi nos
porõ es de Lefortovo. Fui obrigada a
passar pela Escola de Pardais.
Forçada a ver um homem ser
assassinado com um garrote; por
pouco nã o arrancaram fora a cabeça
dele.MinhaamigaMartadesapareceu
em Helsinque. Disseram que ela
desertou,masnãonasciontem.
Só entã o ela percebeu que
estava falando alto demais para o
espaçotãoreduzidodaquelacozinha.
Korchnoi nã o pô de deixar de
notararapidezcomqueelaperdiaas
estribeiras. Decidiu pressionar um
poucomais:
— Esse rapaz americano, Nash,
vocêgostavadele?
—Achoquesim—retrucouela.
—Eraumcaraengraçado,agradá vel,
cortê s. Eu nã o sabia que os
americanoseramassim.
Derepenteseachouumaidiota,
malacreditandoquedissera“cortê s”.
Korchnoi ainda a encarava,
irradiando seu violeta, visivelmente
calmo. Era como se ela fosse um
passarinho enfeitiçado, incapaz de
fugir ao ver uma serpente rastejar
pelosgalhosdeumaá rvorerumoao
ninho.
— Tenho a impressã o de que
você conheceuesserapazmuitomais
do que admitiu nos relató rios que
mandou de Helsinque — disse
Korchnoi, e se calou para mexer o
molho.Obarulhodacolhernapanela
foi o ú nico som na cozinha até que,
com delicadeza, ele arriscou: —
Comofoiqueelesrecrutaramvocê?
Dominika permaneceu imó vel,
olhando para ele. Abriu a boca para
dizer algo, mas nã o encontrou as
palavras.Sabiaquehaviaalcançadoo
cume daquela montanha de riscos e
perigosquede inia sua vida secreta.
Aquilo era muito mais difı́cil do que
resistir à brutalidade de Lefortovo.
Suas mã os tremiam quando ela
pousou a taça de vinho sobre a
bancada. Korchnoi ainda mexia o
molhoeacozinhasepreenchiacomo
halo violeta que ele irradiava. Ela
podiasentiraforçaincontestá velque
vinha daquele homem. Sabia que
contava apenas consigo mesma, que
precisavaseproteger,sairdaliefugir
para algum lugar. Foi entã o que
Korchnoi, a velha raposa, disse algo
extraordinário:
— Dominika, eu posso ver.
Estou lhe dando aoportunidade de
me contar a verdade, de con iar em
mim.Nãovoulhefazernenhummal.
Meu Deus, pensou ela,que belo
interrogador daria esse general! Mas
sua intuiçã o lhe dizia que ele estava
sendo sincero, que realmente nã o
tinha a intençã o de prejudicá -la. Ela
queria que ele a ajudasse,precisava
dividiraquelefardocomele.
— Comecei obedecendo à s
ordens
darezidentura, tentando
recrutar Nate enquantoele tentava
fazer o mesmo comigo — começou
ela, trê mula. — Era uma corrida pra
verquemrecrutavaooutroprimeiro.
Ainda resistia, ainda hesitava à
beira do penhasco. Dera uma
resposta evasiva, nã o confessara
nada.
Korchnoinãoadeixariaescapar.
— Sim, eu sei — falou. — Mas
ouça com atençã o: eu quero saber
comoelesrecrutaramvocê.
Dominika balbuciou alguma
coisa incompreensı́vel, como o
sussurro de uma sonâ mbula, e
Korchnoi arqueou as sobrancelhas,
ainda à espera de uma resposta.
Nessemomento,eladecidiusaltardo
penhasco e colocar a vida nas mã os
dele.
— Eles nã o me recrutaram. Eu
escolhi trabalhar pra eles. A decisã o
foiminha.Assimcomoascondições.
Korchnoi encheu uma panela
comá guadapia,levou-aparaofogã o
e jogou dentro um punhado de sal.
Sinalizou para que Dominika se
aproximasseelheentregouacolhera
imdeque ela continuasse mexendo
omolho.
— Nã o teve nada a ver com
amor — continuou ela num iapo de
voz.—Foiumaquestãodeescolha.
Korchnoi nã o disse nada, mas
Dominika sabia que estava segura.
Saltaradopenhascoeagoraseviaem
pleno voo, o vento rugindo à sua
volta, o mar explodindo contra os
rochedoslá embaixo.Elaplanavanas
alturas,massabiaqueestavasegura.
O homem estava satisfeito. Nã o
via a con issã o dela como uma
fraqueza, uma insanidade ou uma
estupidez. Observara como ela
calculara as palavras, como avaliara
as intençõ es dele, mas, acima de
tudo,notaracomadmiraçãocomoela
con iara nos pró prios instintos para
daraquelesaltomortal.Suaconfissão
haviasidouma importante prova de
con iança. No futuro pró ximo ela
teriadeconfiarnele.
Agora era sua vez de arriscar.
Em catorze anos ele nunca dissera
nadaaningué m,masnã ohaviaoutro
jeito: para que aquela estraté gia de
sucessã o tivesse alguma chance de
ê xito era preciso que eles
construı́ssem uma só lida parceria.
Abrir o jogo seria tã o difı́cil para ele
quantoforaparaela.
Eles estavam bem pró ximos no
exı́guo espaço da cozinha, o gá s
chiandonasbocasdofogã o,omolho
crepitando sobre o fogo baixo, a
colher de pau produzindo um ruı́do
quasemusicalaoroçaroalumı́nioda
panela.Seminterromperoquefazia,
Dominika olhou para Korchnoi.
Ficava ainda mais bela assim, de
perto, mas ele gostou de ver que ela
nãoseaproveitavadisso.
— E agora, o que vamos fazer?
— perguntou Dominika baixinho. —
Vocêvaimedenunciar?
Ela queria ouvir as palavras da
boca dele, caso fosse essa a sua
intenção.
—Voufazerissosevocê deixar
essa massa passar do ponto —
respondeu Korchnoi. Em seguida,
jogou na panela as varetas secas de
bucatini,queseespalharamemleque
na á gua fervente. — E tome cuidado
praqueomolhonã ogrudenofundo.
Vou ali tirar este paletó e esta
gravata.—Foiemdireçã oaoquarto,
mas ainda no corredor parou e
pensou:Tem de ser agora. Voltou à
cozinha e disse: — Sabe de uma
coisa? Tenho plena consciê ncia de
que minha tristeza nã o vai trazer
minha mulher de volta, mas, desde
que iqueisemela,nã oacreditomais
em causa nenhuma. Meu coraçã o
virou
uma
pedra.
Perdi
completamente a fé na ideologia
o icial. Continuava fazendo meu
trabalho, mas nã o me considerava
u mdeles. Eles nã o mereciam minha
idelidade,assimcomonã omerecem
asuaagora.Elesmesmosjustificamo
nossodesprezo.
Pronto. Agora nã o havia mais
como voltar atrá s. Ele a encarava, e
ela o itava de volta com os olhos
arregalados, tentando digerir todas
as implicaçõ es daquelas palavras
enquanto ele afrouxava o nó da
gravata.
—Évocê? — sussurrou ela, por
im. — E você que eles estã o
procurando?Vocêéo...
Korchnoi levou um dedo aos
lábiosparasilenciá-la.
— Atençã o ao molho. Nã o pare
demexer—disse,elhedeuascostas,
voltando para o corredor com seu
mantovioleta.
***
— As chances de sucesso sã o
grandes, e os riscos operacionais,
mı́nimos — garantiu o general
Korchnoi. — Estamos prontos pra
retomar a operaçã o em Roma.
Conheçobemacidade.
—Continue—ordenouVanya.
Elesestavamnosofá dasalado
vice-diretor e Zyuganov tinha se
acomodado numa das poltronas
laterais.
— O cabo Egorova deverá
procurar o chefe da CIA em Roma.
Sabemos o endereço dele no centro
histó rico. Vamos escolher um
domingo chuvoso e modorrento em
que todo mundo esteja grudado nos
jogos de futebol da TV. Egorova dirá
que icará apenas alguns dias na
cidadecomomensageiradoSVR,que
correumuitosriscosparaprocurá -lo
e que gostaria de entrar em contato
comNathanielNash,oadidoqueela
conheceunaEscandiná via.Ochefeda
estaçã o saberá o que fazer. Irá ligar
paraoNash,eelepegará oprimeiro
aviãopraRoma.
—EdepoisqueNashchegar?—
perguntouEgorov.
— E bastante prová vel que eles
se encontrem no quarto de hotel do
americano — retrucou Korchnoi. —
Procedimento-padrã o. Ela vai dizer
quefoitransferidaparaoserviçode
mensageiros e que por isso fará
viagens frequentes para a Europa,
AsiaeAmé ricadoSul.Osamericanos,
claro, icarã ointeressadosnoacesso
dela, na possibilidade de interceptar
ummalotedoSVR.Essahistó rianos
permitirádeterminarafrequênciaea
duraçã o dos contatos futuros, e
assim Egorova poderá reacender o
relacionamento que começou em
Helsinque.
—Ótimo—elogiouEgorov.
— Vou permanecer nos
bastidores—continuouKorchnoi—,
intervindo e aconselhando sempre
quenecessário.
— Estou con iante em que vai
dartudocerto.
— Posso fazer uma sugestã o
operacional aos colegas? —
perguntouZyuganov.—Porquenã o
fazer Nash vir ao encontro de
Egorova no hoteldela? Quanto mais
controle
tivermos,
maior
a
segurança.
Korchnoi se perguntou por que
ognomodisseraaquilo.
—Aestaalturaissoéapenasum
detalhe — a irmou Vanya, abanando
a mã o. — Por enquanto vamos nos
concentrarnosucessodaoperação.
— Claro — falou Zyuganov,
deferindo ao chefe. Entã o, dirigindose a Korchnoi: — Você nos manterá
informadosdetudo,nã oé ?Asdatase
os horá rios dos encontros, os locais
etc.
— Claro que sim — disse
Korchnoi, enfá tico. — O mais
regularmente possı́vel, a menos que
haja algum impedimento de força
maior.
— Muito obrigado, general —
retrucouZyuganov.
***
Korchnoi atravessava com
Dominika um dos longos corredores
deYasenevo.Elesagoraconheciamo
segredo um do outro. Nada era dito,
mas os olhares eram carregados de
signi icado e o vı́nculo entre os dois
se tornara indestrutı́vel, talvez até
um tanto desconfortá vel. Dominika
caminhava ao lado do general,
mancando discretamente como
sempre, mas em sua cabeça ela
voava: visitaria Roma pela primeira
vez e voltaria a ver Nate. Eles já
haviam chegado aos elevadores
quando, percebendo que o chefe
estava um pouco agitado, ela
perguntou:
—Oquefoi?
Agora,todasasinteraçõ esentre
eles tocavam no monumental
segredoquedividiam.
— Alguma coisa nã o está certa.
Precisamos redobrar os cuidados
durante nosso pequeno passeio em
Roma — disse ele. — De agora em
diante, Dominika, você vai ter de
fazerexatamente o que eu mandar.
Likha beda nachalo. Os desastres
semprecomeçamcomumproblema.
Eles entraram no elevador e as
portassefecharam,engolindo-ospor
inteiro. Zyuganov falava ao telefone
em seu escritó rio. As paredes do
pequeno recinto eram cobertas de
fotos dele na companhia de seus
colegas do SVR, ora na praia, ora
diante de uma dacha, ora posando
juntos em formaçã o. A maioria já
havia sumido do mapa, expurgada
porsuaspró priasmã os,talcomoele
sempregostavadeobservar.
Elebalançavaacabeçaenquanto
repetia “Da, da...” ao telefone, como
se estivesse recebendo instruçõ es
detalhadas.
— Sim, senhor, entendido. Sei
exatamente o que precisa ser feito.
Sim,senhor.—Eledesligouelogoem
seguida chamou a secretá ria pelo
interfone. — Peça ao Matorin que
venhaatéminhasala.Já—ordenou.
Pro serovo rech a servy,
navstretch, disse a si mesmo,
recostando-se na cadeira. Basta
pensarnodiaboparaeledarascaras.
O MOLHO DE TOMATE DE
MARBLE
Refogar cebolas picadas, alho
amassado e filés de anchova no azeite
até que o ambiente fique perfumado e
os filés comecem a se desmanchar.
Acrescentar um pouco de massa de
tomate no meio da panela e mexer até
que ela adquira um tom ferruginoso.
Acrescentar tomates maduros picados,
orégano macerado, pimenta dedo de
moça e manjericão fresco. Temperar a
gosto. Deixar o molho reduzir até
engrossar e, como toque final,
acrescentar um fiapo de vinagre
balsâmico. Decorar com folhinhas de
manjericão. Servir com massa ou
almôndegas.
CAPÍTULO 31
O
MOVIMENTO
NA
REZIDENTURAEMWashingtonvinha
icando cada vez mais fraco: uns
preparavam chá na cozinha, outros
liam o jornal, outros assistiam aos
telejornaisdaCNNoudocanalrusso
RTR-Planeta.Vezououtraalgué mse
levantava para espiar atravé s das
persianas que deviam ter sido
abertas pela ú ltima vez em 1990.
Quanto
aos
cabogramas
diplomá ticos, nada chegava, nada
saı́a. Almoços eram cancelados,
contatosnovoscomeçavamaesfriar.
Assemanasseguidasdevigilâ nciado
FBI, tanto as motorizadas quanto as
realizadas a pé , eram sufocantes,
esmagadoras,algoquenuncasevira
antes.Apó soprimeiromê sacentral
havia ordenado a interrupçã o, até
segunda ordem, de toda a atividade
operacional. També m pedira à
rezidentura que preparasse uma
avaliaçã odesegurançaparaexplicar
a situaçã o. O problema era quenão
haviaexplicação.
Nem mesmo o eleganterezident
Golov fora poupado. Em vinte das
últimastrintanoiteseledetectaraum
esquema de vigilâ ncia veicular
dirigidoespecificamentecontraele.A
dataparaoencontroalternativocom
Swan se aproximava e ele precisava
despistar os vigilantes de qualquer
maneira; nã o poderia faltar a
segundavez.Só Deussabiaqualseria
areaçãodamegera.
AsdeznoitesemquenemGolov
nem sua equipe de contravigilâ ncia
tinham detectado o menor sinal de
espionagem haviam sido, ao
contrá rio de qualquer ló gica, as
piores de todas. Noites de incerteza,
de dú vida. Talvez os americanos
dispusessem de alguma estraté gia
nova, alguma tecnologia recente,
quem poderia saber? Só mesmo o
diabo e mais ningué m. Mas ele
precisavadespistá-los.
Tudo precisava ser feito para
preservar Swan, mas a mulher era o
pesadelo de qualquer equipe de
segurança.Rejeitavatodaequalquer
proposta no sentido de protegê -la:
comunicaçõ es eletrô nicas, encontros
em hoté is diferentes, datas
alternativas
previamente
combinadas para substituir algum
encontro abortado. Ela nã o aceitava
nadadisso.“Seeutiverotrabalhode
me despencar pra um encontro
marcado”,disseraaGolov,“é melhor
que você e sua bunda estejam lá à
minha espera.” A mulher era
impossı́vel. A vontade de Golov era
passá -laparaasmã osdealgumilegal
de pouca visibilidade, mas Moscou
nã o deixava, sobretudo depois do
que acontecera ao ilegal de New
London.
Portanto,Golovseviadiantede
um dos clá ssicos dilemas da
espionagem: ter de encontrar um
ativo importante numa noite e num
localpredeterminados,adespeitoda
existê ncia ou nã o de vigilantes nas
ruas. Abortar a missã o seria
inaceitá vel, impossı́vel. Aquela noite
seria o encontro “estepe” que eles
tinhamcombinado.Eletinhaqueir.
Durante a tarde, ele repassou
com a equipe de contravigilâ ncia
todasaspossı́veis rotas de detecçã o
devigilâ ncia.Falouquequeriatentar
atrair todos os adversá rios de uma
vezparaforadeseusesconderijose,
mais importante, tentar escapar de
todoselesjuntos.Elesestabeleceram
um có digo numé rico a ser
transmitido
pelos
rá dios
criptografados para sinalizar que a
estraté gia havia funcionado e em
seguidareviramasrotasumaú ltima
vez.
Golov sabia que aquilo era uma
loucura.Apenasumativotã ovalioso
quanto Swan justi icava tamanho
risco. Alé m disso, a central vinha
insistindo,entãoeleprecisavatentar.
Nomeiodatarde,osoitocarros
atravessaram os portõ es da
embaixada e seguiram pela Avenida
Wisconsin, Golov entre eles com seu
BMW Sé rie 5. Ao constatar que cada
um deles tomava uma direçã o
diferente, os sentinelas do FBI
anunciaram pelo rá dio, no mesmo
instante, que se tratava de uma
formaçã o estrela, tá tica tradicional
para sobrecarregar a vigilâ ncia
adversá ria e, com sorte, deixar o
caminholivreparaumoudoiscarros.
O anú ncio també m foi ouvido pela
equipe Orion da CIA. Interessados
apenas em Golov, eles continuaram
esperando
pacientemente
até
receberemalgumainformaçã osobre
orezident,quedirigiaoprópriocarro.
Comsuaequipedecontravigilânciajá
à esperaaoestedaWisconsin,Golov
continuou seguindo por ela até
alcançar a Avenida Western, que
demarcava a fronteira entre o
distrito de Colú mbia e Maryland,
depois
virou
para
o
sul,
embrenhando-se em zigue-zague
pelas ruas de American University
Park. A certa altura ele estacionou o
carro, esperou e dali a quinze
minutos recebeu o sinal da
contravigilâ ncia: nenhum sentinela
aparente. Seus homens nã o tinham
visto os dois carros parados que os
Orionsjá haviamdespachadoparaas
redondezasdobairro.
Golov voltou para a direçã o
oesteeseguiupelasruasresidenciais
enquanto sua equipe fazia um
caminho paralelo. Ningué m via ou
farejava
qualquer
sinal
da
movimentaçã o
adversá ria
simplesmente porque nã o havia
nenhum.
Os
homens
da
contravigilâ ncia
continuaram
cobrindo Golov enquanto ele pegava
a Canal Road e atravessava a Chain
Bridgenadireçã odaVirgı́nia.Issofoi
informado por um dos carros dos
Orions que esperava no cruzamento
daArizonacomaCanal,aú nicarota
possı́vel para a travessia do rio
Potomac entre Georgetown e o Anel
Rodoviá rio. Os Orions icaram
tentados a invadir os subú rbios da
Virgı́nia, mas o lı́der da equipe, um
ex-instrutordevigilâ nciade65anos
chamado Kramer, os havia instruı́do
a aguardar. Kramer preferiu
despachar trê s carros para seguir
Golovparalelamenteaocaminhoque
ele traçava do lado de Maryland do
Potomac.Elesagoramargeavamorio
na direçã o norte, antecipando-se à
rota do russo, uma de suas
estratégiasclássicas.
Umdosveı́culos era guiado por
uma vovó (igual a qualquer outra
quando nã o estava rastreando
agentes do SVR) que se dirigiu ao
estacionamento da Eclusa 10 no
parquenacionaldocanalChesapeake
eOhio.
O segundo, també m conduzido
por uma velhinha, foi para o Old
Angler’sInndaMacArthurBoulevard,
6 quilô metros à frente; a respeitá vel
senhora se acomodou numa das
mesas externas e icou admirando o
entardecer,tentandoadivinharquais
dos casais espalhados à sua volta
estavamtraindooscônjuges.
AterceiraOriondespachadapor
Kramer, uma tia-avó , foi para outro
local 6 quilô metros ao norte do
vilarejo de Potomac, parou no
Hunters Inn e pediu uma saladinha,
emboraaindafossecedoparajantar.
Enquanto aguardavam, as trê s
mulheres anotavam a placa dos
carros que por algum motivo
chamavam
sua
atençã o
e
observavam os pedestres que se
demoravam por ali. A lista de
suspeitos crescia. Seria possı́vel que
algum deles estivesse à espera do
BMWpreto?Osoutrosdoiscarrosda
equipeOrion(quenaquelediaestava
reduzida) se separaram: um deles
cobriaasredondezasdaRiverRoada
sudestedoPotomaceooutroestava
estacionado à entrada do parque
nacional,aondetraidoresamericanos
do passado, como Walker, Ames,
PollardePelton,tinhamidorecolher
sacos de dinheiro russo nas
entranhas de uma á rvore qualquer.
OsOrionsestavamsentadosimó veis,
escaneando o perı́metro com os
olhos,tentandoavistarore lexoouo
vulto negro de um BMW. Caso Golov
seguisse para a Virgı́nia, eles
perderiam; se voltasse para
Maryland,masnadireçã oopostaà do
Potomac,perderiamtambé m.Só lhes
restava esperar. Era assim que
funcionava a estraté gia que tinham
colocado em curso. Haveria outros
dias e outras noites. A ú nica coisa
queprecisavamfazereraestarcertos
umasóvez.
***
Dessa vez, poré m, eles estavam
errados, pois Golov voltou para
Maryland pela I-495, uma via
expressaqueolevaria,juntocomsua
equipe de contravigilâ ncia, até o
ú ltimo trecho da rota combinada, a
sinuosaBeachDrive,queatravessava
o Rock Creek Park ora entrando, ora
saindo
do
bosque,
sempre
margeando o riacho até a altura de
Georgetown. Assim que ouviu pelo
rá dioainformaçã odequeocaminho
estava livre, Golov saiu da Beach
Drive no inal do Rock Creek e
estacionou na Rua 22, no West End,
deixando sua equipe continuar o
caminho para o sul. Na hipó tese de
queoFBItivesseconseguidoplantar
um sinalizador no BMW (o que era
imprová vel, pois alé m de nunca ser
deixado sozinho o carro era
submetidoaumarigorosavarredura
semanal), eles o encontrariam a um
quarteirã odedistâ nciatantodoRitzCarlton quanto do Fairmont Hotel,
emalgumlugarnocorredordemais
de cinquenta restaurantes da Rua K.
Se quisessem pegá -lo, teriam de
entrar em cada um desses
estabelecimentos.
Golov
trancou
o
carro
e
atravessou a pé os seis quarteirõ es
que o separavam do bom e velho
Tabard Inn. A essa altura já havia
anoitecidoeumaluzsuaveiluminava
ointeriordohotelzinho.
Maisumaloucura,usaromesmo
local de encontro duas vezes
seguidas.Pelomenoshaviadecorrido
um tempo razoavelmente longo
desdeaú ltimareuniã o.Goloventrou
no hotel, atravessou o lobby e foi
direto para o jardim dos fundos.
Dessa vez Swan já estava lá . Ela
ocupava uma mesa junto ao muro e
serecostavanele,fumando.Golovse
preparou para a bronca. Swan
acabara de pedir outra bebida ao
garçom. A sua frente havia um copo
longo vazio. Ela vestia um terninho
azul com uma camisa vermelha e
usava um colar de pedras azuis. Nas
unhas,
o
esmalte
vermelho
combinava com a blusa. Os cabelos
lourosestavampenteadosparatrá se
orosto,sobaluzdifusadaslâ mpadas
que pontilhavam as á rvores, parecia
envelhecidoeumtantoressecado.
— Como vai, Stephanie? —
cumprimentouGolov.
Estendeu a mã o para a
senadora, mas foi ignorado. Restoulhe abrir um sorriso e se sentar
també m. O garçom chegou com o
uı́sque duplo dela. Cansado e
doloridoapó scincohorasnointerior
deumcarro,GolovpediuumCampari
comsoda.
— Anatoly — disse Stephanie,
sorrindo e rosnando ao mesmo
tempo —, faz quase uma hora que
estouplantadanestejardimridículo.
Precisou acionar o isqueiro
umas dez vezes antes de conseguir
acendermaisumcigarro.
— Desculpe — retrucou Golov
—,maseuestavatentandoevitarque
oFBIinteiroviessejantarconosco.
— Muito pro issional da sua
parte.
—Poderı́amosfacilitarmuitoas
coisas se você aceitasse fazer
algumas pequenas mudanças —
comentouele.
— Esse assunto de novo, nã o.
Mas icoaliviadaporsaberquevocê
sepreocupacomaminhasegurança,
sobretudo agora que estã o virando
Washingtonpeloavessoà procurade
um informante no alto escalã o do
governo.
—Emesmo?Oquevocê ouviu?
Nã o temos nenhum motivo para
recear que seu status tenha sido
comprometido — a irmou Golov. —
Temoscertezaabsolutadequetanto
o FBI quanto a CIA nem sequer
suspeitam do nosso relacionamento.
Apenas cinco pessoas no mundo
sabemquemvocê é ,eessalistainclui
nó s dois. Que histó ria é essa sobre
umabuscaemWashington?Detalhes,
Stephanie,porfavor.
A coisa devia ser importante.
Sua cabeça começava a coçar, e isso
eraummausinal.
— Que bom que você está tã o
con iante. Mas como explica o
brie ing que ouvi de um daqueles
idiotas da CIA durante uma sessã o
particular do comitê ? Alguma pista
eles tê m. Estã o procurando algué m
quesofredeherpes.Você sabeoque
é isso, nã o sabe? Aquelas feridas
vermelhas que doem à beça? Tanto
quanto minha bunda está doendo
agora?
Elainclinouacabeçaparatrá se
terminou seu uı́sque, os cubos de
gelo batendo contra os dentes.
Imediatamentepediumaisum.
— Stephanie, você nã o sofre de
herpes,sofre?—perguntouGolov.
Ele teria de repassar
informaçãoaindanaquelanoite.
Stephanie
irritação.
o
encarou
a
com
— Isso nã o vem ao caso. Você
sabe tã o bem quanto eu que nã o
posso colocar minha posiçã o em
risco. Suei muito pra chegar aonde
cheguei.
Golov icou pasmo ao constatar
que, cega por seu ego sem limites, a
mulherviaaquelejogoterrivelmente
perigoso apenas como um possı́vel
obstá culoasuaascensã onacarreira
polı́tica. Seria possı́vel que nã o
izesse nenhuma ideia dos riscos
envolvidos?Dasconsequências?
— E por isso que insisto que
passemos a nos encontrar num
quartodehotel—disseele.
— Vou pensar no assunto. —
Stephaniedeuumaolhadadecimaa
baixonogarçomquandoeletrouxeo
terceiro uı́sque. — Tem mais uma
coisa — falou com irmeza, no
mesmo tom que usava durante os
depoimentos no Congresso. — Se
vocês izerem alguma merda e a
polı́cia federal vier bater n aminha
porta, iquem sabendo que nã o vou
pra porra de prisã o nenhuma. Nã o
v o umesmo. Entã o eu gostaria que
você s me dessem alguma coisa...
permanente. Algo que eu possa
tomar.
Golov se recostou na cadeira,
perplexo.Assustadacomaexistê ncia
de uma operaçã o federal, a mulher
agoraqueriaumapı́luladecianureto.
Uma senadora dos Estados Unidos.
Deondeelateriatiradoaquelaideia
tã o absurda? Ele se debruçou na
mesa, tomou as mã os dela entre as
suas e retrucou com toda a
delicadeza:
—Stephanie,meuanjo,issofoia
coisa mais estapafú rdia que você já
disse. Você só pode estar brincando.
NemnostemposdaGuerraFriahavia
isso.Nuncahouve.
—Achoquevocê está mentindo
pra mim, Anatoly — respondeu ela,
dando um sorriso vago enquanto
desvencilhava as mã os das dele. —
Ou você me dá o que estou pedindo
ou nossa “parceria”, como você diz,
está acabada.
Quando
nos
encontrarmos de novo daqui a um
mê s, você vai chegarpontualmente e
vai me entregar uma linda caixinha
para pı́lulas feita de mar im. Ou de
madrepérola.
— Mal posso acreditar no que
estououvindo—disseGolov.—Vou
consultarMoscou,masduvidomuito
queelesautorizemumacoisadessas.
Como de costume, Stephanie
esperou até o im do encontro para
tirardabolsaoCDquehavialevadoe
jogá -lodeformacasualsobreamesa.
Antes de guardá -lo no bolso, Golov
notoualogomarca da PathFinder no
estojopreto.Amegeratemumtalento
inquestionável para o drama , ele
pensou,vendo-acambaleardevoltaà
rua.Herpes.
***
Anatoly Golov estava num
quarto do Tabard Inn, refestelado
numa cadeira de balanço. O cô modo
tinha uma cama de dossel num dos
cantos,grandedemaisparaoespaço
relativamente
pequeno,
dois
pô steres de animais de um circo
francê s pendurados nas paredes
cobertas de papel de motivos lorais
em tons de roxo e, no chã o, um
caóticotapetepersa.
Nã o tivera nenhuma tré gua no
pesado esquema de vigilâ ncia dos
americanos sobre os o iciais da
rezidentura desde o ú ltimo encontro
dele com Swan. Portanto, em vez de
arriscar mais uma penosa rota de
despiste, Golov fora autorizado pela
central a tentar uma clá ssica
estraté giaparapassardespercebido.
Na manhã do encontro, ele se
espremera no porta-malas do carro
do adido econô mico com um
pequeno tanque de oxigê nio para
respirar. As esposas de trê s o iciais
da embaixada entraram nesse
mesmo veı́culo e, sem atentar a
qualquer esquema de vigilâ ncia,
seguiramparaFriendshipHeighs,na
parte norte da Wisconsin Avenue.
Obedecendoà sinstruçõ esrecebidas,
entraram num estacionamento
subterrâ neo, deixaram o carro e
foramàscompras.
Outraesposarussajá aguardava
no estacionamento. Apó s observar o
carro por quinze minutos para se
certi icar de que nã o havia nenhum
vigilanteporperto,elaseaproximou
do porta-malas com suas sacolas de
compras, bateu nele duas vezes e o
destrancou para que Golov, a essa
altura já bastante irritado, pudesse
sair.
Ele praguejou contra o caso
Swan, contra Moscou, contra o SVR,
masgostoudesaberqueestavalivre
do olhar indiscreto da vigilâ ncia
americana. O velho truque do portamalas funcionara. Ele deixou o
estacionamento e seguiu a esmo na
direçã osul,oratomandoumô nibus,
ora um tá xi, sempre evitando as
estaçõ es de metrô e suas câ meras
onipresentes. Nas imediaçõ es do
Dupont Circle ele ainda passou duas
horasemalgumaslivrariasenum
pequeno bistrô . Assim que o sol
começou a se pô r e o trâ nsito
chegou à hora do rush, ele
contornou o parque, seguiu pela
Rua 19, entrou na Rua N e
percorreumaisquatroquarteirõ es
até alcançar o Tabard Inn. Nenhum
sinaldevigilâ ncia.Comoobjetivode
se misturar à multidã o, ele havia
escolhidoroupasmaisinformais,que
nã o costumava usar: casaco de
veludo marrom por cima de um
moletom da mesma cor, calças de
veludo cotelê e sapatos de camurça.
Ossapatosmaisconfortá veisaté que
tinham vindo a calhar. Ao entrar no
hotel, ele colocou um pesado par de
óculos.
Já noquarto,comeuumpratode
mexilhõ es gratinados com queijo de
cabra, acompanhado de um vinho
Vernacciatoscano.Sentia-sealiviado
por ter conseguido alugar aquele
quarto com uma identidade falsa e
chequesdeviagem.Faziaanosdesde
aú ltimavezqueprecisararecorrera
esse tipo de estraté gia, coisa de
quem estava em inı́cio de carreira,
mas nã o deixava de ser divertido
passardenovoporaquelaespé ciede
aperto.
Apesardosotaqueestrangeiroe
daausê nciadereservaebagagens,a
atendente do outro lado do balcã o
nã o colocara nenhum obstá culo.
A inal, via-se claramente que se
tratavadeumsenhordistinto.Golov
foi conduzido ao pequeno mas
elegante quarto no segundo andar,
onde poderia conversar com a
senadora
com
tranquilidade.
Privacidade era de fundamental
importâ ncia, sobretudo levando-se
em conta o que ele tinha para
entregaraela.
Quando terminou de comer,
Golov foi ao banheiro e jogou um
pouco de á gua no rosto. Olhando-se
no espelho, praguejou mais uma vez
contrao
SVR. Em seguida desceu para o
lobby e se acomodou no sofazinho
verde meio mofado que dava para a
porta do hotel. Com uma revista
aberta sobre o colo, icou esperando
ali,ansioso.
Stephanie Boucher entrou no
Tabard Inn como se fosse a
proprietá ria do lugar. Nã o viu Golov
nosofá (osó culosdegraudesfaziam
um pouco o aspecto nobre de suas
feiçõ es) e passou direto por ele. Era
uma mulher acostumada a ser alvo
dosolharesnoslugares,nã oaterde
procurarquemquerquefosse.Golov
alcançou-a no corredor e eles
subiram as escadas para o segundo
andar. Ningué m os vira. Golov
destrancou a porta e deixou que
Stephanie entrasse primeiro. Ela
correuosolhospeloquarto,abriuum
sorrisoirônicoedisse:
—Muitoaconchegante,Anatoly.
Sempre descon iei que você fosse
romântico.
Ignorando a ironia, Golov
ofereceu-lhe uma taça de vinho, que
ela aceitou no lugar do habitual
uísque.
— Os encontros entre quatro
paredessã osempremaisseguros—
comentouele—,masdapró ximavez
precisamos escolher outro hotel. Eu
insisto.Moscoutambém.
— Que bom pra você e pra
Moscou — retrucou Swan, erguendo
a taça já vazia para que o russo a
enchesse de novo. — Você trouxe
minha... vitamina? Diga que sim,
Anatoly, e eu vou icar muito
satisfeita.
Golov lembrou-se de um
informante que ele mesmo operara
emBeirute,umcristã omaronitaque
icara tã o acostumado a pedir
dinheiroepresentesantesdepassar
alguma informaçã o que apó s um
tempo a situaçã o acabara icando
insustentá vel. Golov orientara a
equipe Vympel da KGB a colocar
pesos no corpo do homem e
empurrá -lo de um dos penhascos de
Raouché ,maisoumenosnaalturada
famosa Rocha dos Pombos. Pois era
exatamente isso que ele gostaria de
fazer agora com a senadora
americana.
—Tenhoboasnotícias.
Golovserviuovinhoesesentou
ao lado de Stephanie no sofá de
veludo.Emseguidatiroudobolsodo
casaco uma caixinha oblonga,
colocou-asobreamesaeabriu-a.No
interiorhaviaumaso isticadacaneta
alojada numa almofadinha de seda
azul-clara. Tratava-se de uma
Montblanc Etoile, com seu elegante
formato de ampulheta; na ponta
leitosa,aicô nicaestrelinhabranca,e
naextremidadedo clipe, uma pé rola
Akoyaperfeitamenteincrustada.
— Que
Stephanie.
linda
—
elogiou
Esticou o braço para pegá -la,
mas foi detida por Golov, que a
seguroupelopunhoeaafastou.
— Linda mesmo, mas nã o foi
isso que pedi. Queria alguma coisa
quepudessetomar.Umcomprimido.
— Nã o tem comprimido
nenhum—retrucouGolov,umtanto
rı́spido.—Chegamosaumconsenso
emrelaçã oasuademandaabsurda,e
é istoquetemospravocê .—Pegoua
canetaeexplicou:—Está vendoesta
pé rola aqui? Você aperta as bordas
com irmeza e vai puxando devagar,
comcuidado...
A pedra se soltou de repente.
Presa a ela havia uma agulha de
aproximadamente 2 centı́metros
escondida no interior do clipe da
caneta. Tinha um tom de cobre
queimado,comosealgué mativesse
exposto a uma chama. Golov
empurrou-a de volta para o canal
secreto e pressionou a pé rola até
travá-lanolugar.
— O que é isso? — indagou
Stephanie.—Pediumacoisasimples.
— Fique quieta e eu explico —
desferiu Golov. Precisou resistir ao
impulso de retirar a agulha
novamenteeespetá -lanopescoçoda
megera. Recompondo-se, disse: —
Esta agulha é revestida de um
composto natural. Basta perfurar a
pele, em qualquer lugar, e depois
coçar o local. O efeito é quase
imediato. Dez segundos no má ximo.
—AntesqueStephaniepudessefazer
qualquer objeçã o, ele continuou: —
Isto é muito mais e icaz do que um
comprimido.Esqueçaoquevocê viu
no cinema. Uma pı́lula perde a
potê ncia com o passar do tempo.
Esta agulha, nã o. Vamos lá , tente
retirá -la.—Eleen imlheentregoua
peça. —Muito devagar. E commuito
cuidado.
Com as mã os tremendo um
pouco, Stephanie tirou o objeto do
estojo, sentiu seu peso na palma da
mã o e depois puxou lentamente a
pé rola para fora do clipe. A agulha
reluziu sob a iluminaçã o do quarto.
Eramenorqueosmodeloscomunse
talvez por isso tivesse um aspecto
especialmente ameaçador. Com o
mesmo cuidado de antes, Stephanie
empurrou-a de volta e prendeu a
canetaentreosbotõesdacamisa.
— Obrigada, Anatoly — disse,
agoramaiscalma.
Depois que a gravidade do
momento passou, ela olhou à sua
voltaesedeteveporuminstantena
cama de dossel. Virou-se para Golov
e,parahorrordele,perguntou:
—Eaí,vairolarounãovai?
OS MEXILHÕES MEDITERRÂNEOS
DE GOLOV
Formar uma pasta homogênea
com
manteiga
à
temperatura
ambiente, queijo feta esfarelado,
farinha de rosca, azeite, orégano fresco
e suco de limão. Enrolar e levar ao
refrigerador. Colocar uma colherada
dessa pasta em cada um dos
mexilhões abertos e firmar as conchas
num leito de sal kosher. Gra nar por
um ou dois minutos, até a manteiga
derreter. Espremer limão sobre eles e
servir.
CAPÍTULO 32
ALUZDOSOLINCIDIAsobreas
fachadas de má rmore e os telhados
pardacentosdeRoma.Portodaparte
se ouvia o zumbido dasmotorini
pilotadas por moças de cabelos
negros usando sapatos de salto alto.
OgeneralVladimirKorchnoiabsorvia
apaisagemà suavolta,lembrando-se
da é poca em que aquelas mesmas
ruas haviam sido seu territó rio
operacional. Num restaurantezinho
rú stico poré m elegante chamado La
Taverna dei Fori Imperiale, ele
escolheuopratodeseualmoçocom
Dominika:spaghettiallabottarga.Ela
nunca ouvira falar daquilo, mas
salivou quando a tigela de massa
embebidaemazeiteesalpicadacom
as ovas douradas de tainha chegou.
Olhou por cima da mesa para
Korchnoi, que assentiu, satisfeito.
Aquilonã osepareciaemnadacomo
caviarrusso,elapensou.
Oestabelecimentoseresumiaa
duas salas minú sculas com paredes
de estuque branco, murais em tons
desbotadosepisodecerâ micapreta
e branca. Localizava-se no meio da
Via Madonna dei Monti, uma ruela
estreita e muito antiga de pré dios
igualmente
antigos
e
estabelecimentos como padarias,
serralherias etc., que faziam o ar
recenderapãoeserragem.
No dia anterior, Dominika
procuraraochefedeestaçã olocalda
CIA e lhe entregara sua mensagem,
junto com o nú mero de seu celular
pré -pago.
Ao
observar
o
comportamento de sua funcioná ria,
Korchnoi gostara de ver a
tranquilidade e a irmeza que ela
demonstrara tanto antes quanto
depoisdocontato.Dominikagostava
de estar nas ruas: o rosto corava de
entusiasmo, os olhos re letiam os
esguichos das inú meras fontes
italianas.
Korchnoi havia alterado os
planos operacionais assim que os
dois saı́ram de Moscou, insistindo
com
Dominika
que
eles
encontrassem os americanos nas
ruas da cidade e depois fossem com
eles a algum quarto de hotel
providenciadopelaprópriaCIA.
— Me perdoe, mas nã o con io
nem um pouco no seu tio, e muito
menos em Zyuganov — disse ele
agora, apó s o almoço, caminhando
com ela sem nenhuma pressa pelas
ruasromanas.
Eles passaram pelo fó rum,
atravessaram uma passagem
estreita, depositaram uma moeda
numacaixinhametá licaedesceramà
Prisã o Mamertina, imaginando Sã o
Pedro sendo baixado para seu
cá rcereatravé sdeumburacoaberto
nas rochas do monte Capitolino.
Sufocados dentro do espaço
minú sculo, logo voltaram à s ruas a
céuaberto.
Seguiramcaminhandoemziguezague pelos bairros, usando mais o
tempo que o espaço como recurso
paradespistarvigilantes.Korchnoiia
conversando com Dominika, vez ou
outra interrompendo a caminhada
parapousarumadasmã osnoombro
dela. Contava como era a vida de
agente duplo, como era trabalhar
para a CIA debaixo das barbas do
SVR. A certa altura eles se sentaram
numbancojuntoaumobeliscopara
tomar u magranita, uma espé cie de
sorvete de café . Sempre observando
os pedestres e os carros
estacionados,conferindoashorasno
reló gio de vez em quando, Korchnoi
explicou que um espiã o precisava
estabelecer limites entre o risco e a
inconsequê ncia: tinha que saber
ouvir com discernimento, e nã o
necessariamente
aceitar,
as
instruçõ es que recebia de seus
operadoresamericanos.
—Easuavidaqueestá emjogo,
o seu bem-estar — disse ele. — Em
ú ltima instâ ncia, é você quem decide
oquefazerecomofazer.
Dominika, por sua vez, contou
mais sobre sua vida em Helsinque.
Falou de suas atividades, do prazer
que experimentou ao saber que
guardava um segredo importante.
Baixando os olhos para oespresso
gelado em suas mã os, falou pouco
sobreNate,poisnã osabiaaocertoo
que sentia por ele, e muito menos o
queelesentiaporela.Comoserá que
a via? Como informante russa em
primeiro lugar, e depois como uma
mulher com quem tivera um caso?
Ela estava numa posiçã o difı́cil, e
Korchnoipercebiaisso.
O general ainda falou sobre a
santı́ssima trindade que lhe
permitira sobreviver por catorze
anos como informante da CIA:
autocontrole,
discernimento
e
paciê ncia. Havia um entendimento
tá cito de que Korchnoi e Dominika
“trabalhariam juntos”, mas nenhum
dos dois tentou de inir como
exatamente seria essa parceria. Nã o
eracomumqueinformantesagissem
emdupla,eambossabiamdisso.Em
nenhum momento Korchnoi falou
sobre seu plano de que ela o
“sucedesse”.
Outro assunto em que nã o
tocaramfoiosentimentodecadaum
em relaçã o à Rú ssia. Tratava-se de
um terreno pantanoso do qual nã o
queriam, ou nã o podiam, falar: a
traiçã o.
Teriam
muitas
oportunidades para conversar sobre
isso depois. O tempo de que
dispunham agora daria apenas para
terminar a rota de detecçã o de
vigilâ ncia e chegar pontualmente ao
localmarcadoparaofurtivoencontro
comoPrincipalInimigo.
***
Marblejá avisaraBenforddeque
o contato de Dominika com o chefe
da estaçã o de Roma sinalizaria a
chegada deles à cidade. Isso
desencadeariaumareuniã odalia24
horas
na
Villa
Borghese,
ironicamente um lugar muito usado
pelaKGBnopassadoedoqualMarble
ainda se lembrava muito bem. Em
sua comunicaçã o ele també m havia
incluı́do uma frase bastante sucinta:
“Elaagoraé nossa”,signi icandoque,
em essê ncia, Dominika fora
recrutada por ele. Era uma situaçã o
bastanteinusitada.Doisinformantes,
ambossabendodasatividadesumdo
outro, um ú nico operador, o caso
inteiramente orquestrado por um
cientista maluco que era chefe de
contrainteligê ncia e duas caçadas
paralelas—semfalarnanecessidade
de decidir aonde jantar. A inal, eles
estavamemRoma,pensouMarble.
O celular pré -pago de Dominika
tocou quando eles subiam uma das
escadarias dos Muros Aurelianos,
admirados com o verde-azulado das
á rvoresqueoscercavam,aterracota
dascerâ micas,odouradodosdomos.
Korchnoi atendeu à ligaçã o em
italiano, permaneceu mudo por uns
dezsegundosederepentedesligou.
—Elesjáestãoapostos—falou.
—Quetalirmospeloparque?
Em meio ao calor da tarde, eles
atravessaram a Porta Pinciana e
entraramnaVillaBorghese.Korchnoi
usava um terno cinza-claro e uma
camisa escura, com o colarinho
aberto. Dominika vestia uma saia
azul-marinhoeumacamisadelistras
azuis e cor-de-rosa. Tinha prendido
oscabelosnoalto,porcausadocalor.
Juntos, os dois poderiam ser vistos
como uma pró spera dupla de
italianos, pai e ilha talvez indo
visitaromuseunocentrodoparque.
Korchnoipercebeuqueelaestavaao
mesmotempoempolgadaenervosa,
osolhosbrilhando.Aindaassim,nã o
deixava de esquadrinhar o terreno
em busca de vigilantes, catalogando
pedestres.
Korchnoi conhecia muito bem
aqueleparque,claro.Nopassadofora
designadocomoo icial jú nior para a
rezidentura de Roma, portanto já
encontrara muitos informantes ali e
deixarainúmerospacotesparaativos
em esconderijos, sempre auxiliado
por sua jovem esposa, que vigiava o
local para ele. Mas isso havia sido
sé culos antes. Agora, ele e Dominika
caminhavam pelas amplas avenidas
de cascalho iluminadas pelo sol que
atravessava as copas das á rvores.
Pararam alguns minutos diante da
FontanadeiCavalliMarini,comseus
estranhoscavalosdecascobipartido,
depoiscontornaramohipó dromoda
Piazza di Siena e seguiram para o
Viale del Lago. Korchnoi nã o
identi icara
nenhum
pedestre
suspeito, nenhuma indicaçã o de
vigilâ ncia ao longo da tortuosa rota
que eles haviam percorrido. Agora
sentia, mais do que via, o crescente
nervosismo de Dominika. Tomou-a
pelobraçoeresolveulhecontaruma
piada.
— Um homem veio procurar a
KGB, muito assustado, dizendo que
seu papagaio tinha sido roubado.
“Isto nã o é conosco”, respondeu o
sujeito da KGB. “Vá procurar a
polı́cia.” “Eu sei, eu sei”, retrucou o
outro. “Já estive na polı́cia. Vim aqui
só pradeixarregistradoquediscordo
detudooqueaquelepapagaiodiz.”
Dominika riu, depois cobriu a
boca com a mã o. Korchnoi logo viu
que sua intuiçã o nã o estava errada.
Aquelamoçatinhatudoparasersua
substituta, e Benford veria isso em
dezminutosdeconversa.
Eles se aproximavam de um
pequeno lago arti icial com um
templo jô nico dedicado a Esculá pio
numailhotacentral.Seguindooolhar
de Korchnoi, Dominika avistou um
homem baixo e amarfanhado
sentado num dos bancos à beira da
água.
—Benford—disseKorchnoi.—
Vou cumprimentá -lo. — Apontou
com o queixo na direçã o da ilha. —
Continue caminhando em torno do
lagoaté chegarà pontezinhaqueleva
àilha.
Dominika esperou até vê -lo
apertar a mã o do homem e se
acomodar ao lado dele no banco.
Depois, mal sentindo as pró prias
pernasecomocoraçã oretumbando
no peito, seguiu na direçã o indicada
pelo general e pensou no que diria
dali a pouco. Que estava com
saudades?Não, sua idiota. Vocês não
estarão sozinhos. Além disso, hoje é o
primeirodiadorestodesuavidacomo
espiã.Sejapro issional,Dominika.Seja
profissional.
Nã o demorou para que ela
avistasse um vulto parado na
pontezinhametá licaà sombradeum
amplosalgueiroenraizadoà margem
dolago.
Dominika conhecia aquela
silhueta, aquele porte, aquele modo
de se debruçar sobre um parapeito.
Podiaverohaloemtornodele,mais
escuro do que lembrava, talvez por
contadasombra.Quandoeleaviu,foi
emsuadireção,ospassosecoandona
ponte.
Flores caı́das do salgueiro
lutuavam na á gua. Dominika foi ao
encontrodeleeestendeuamão.
—Zdravstvuy.Olá —disseela,e
icou imó vel, esperando que ele
ignorasse a mã o estendida e a
puxasseparaumabraço.
— Dominika — cumprimentou
Nate.—Comovai?—Apertouamã o
dela e Dominika se lembrou de tudo
aosentirotoquedele.—Está vamos
preocupados com você . Ficamos
muito tempo no escuro, sem
nenhumanotíciasua.
Violeta e cintilante, exatamente
comoelarecordava.Dominikalargou
amãodeleefalou:
— Estou bem. Agora trabalho
comogeneral.
Pelomenosissoelaagorapodia
contar.
Nate nã o queria falar sobre
Marble com ela, impedido pelas
regras de compartimentalizaçã o. Já
haviaensaiadomaisoumenosoque
diria ao encontrá -la: que ela
signi icava muito para ele, que ele
pensaranelatodososdias.Massaiu
tudoerrado:
— Que bom que você está em
campo de novo. Temos muito o que
conversar.
Ele mal acreditou em suas
palavras, em seu discurso de
operador burocrata que só pensava
em trabalho. Faltava pouco para
começaradiscutircomelaasdatase
oslocaisdospróximosencontros.
Dominika viu o desconcerto
dele, o halo pulsando como se
escravizadopelasbatidasdocoraçã o.
Por um instante eles se olharam em
silê ncio e Dominika icou tensa,
sabendo que se jogaria naqueles
braços se Nate nã o se mexesse
primeiroemtrêssegundos.
Foientã oquealgué mestalouos
dedos, fazendo com que os dois se
virassem na direçã o do ruı́do.
Benford estava ao pé da ponte,
apontando para onde iria com
Korchnoi, e depois iniciou a
caminhada.Nateacenoucomamã oe
começou a segui-los junto com
Dominika.
Os
quatro
estavam
agora
sentadosemvoltadamesadecentro
na saleta da elegante suı́te que
BenfordocupavanohotelAldrovandi,
do outro lado do parque. O quarto
tinha tons terrosos e discretos, um
vasode loreseumbelı́ssimopisode
má rmore. Nos jardins do hotel, uma
piscinaturquesaseescondiaatrá sde
uma cerca viva de ciprestes. Na
varandadoquartosopravaumabrisa
fresca,quein lavaascortinaslevese
diá fanas. Uma garrafa de vinho
esperavafechadanumbaldedecobre
sobreoaparador.
Benford já discutira — na
verdade, continuava discutindo — a
situaçã obastantepeculiardeMarble
eDominika.
— E de uma irresponsabilidade
inacreditá vel. Nı́vel de segurança
zero. Vamos ter de fazer ajustes
imediatos.
— Otima ideia — disse Marble.
— Aliá s, é sobre isso mesmo que eu
gostaria de falar com você , Benford,
mas a só s. Acho melhor, pelo menos
por enquanto, que Dominika nã o
esteja presente. Nate é meu
operador, entã o poderia icar sem
nenhumproblema,mastenhocerteza
dequeelenã oseimportará emfazer
companhiaaela.
Assim que os dois saı́ram do
quarto,Marblevirou-separaBenford,
esperou que ele acendesse seu
cigarroecomeçou:
—Elaé jovemepassional,masé
muito inteligente. Assim que veio
trabalhar comigo, percebi que icava
muitoatenta,observandoemsilêncio
tudooqueeufazia,só meavaliando.
Pude ver a determinaçã o dela. Fiz
com que admitisse que havia sido
recrutadaemHelsinque.Eujá andava
descon iado. Você pretendia me
contar?
Benforddeudeombros.
— També m contei a ela sobre
mim — prosseguiu Marble. —
Indiretamente, mas ela deduziu na
mesma hora. Temos conversado
muito. Sobre riscos, perigos, sobre
n o sinfiltrarmos na central. Ela me
ouve sem nem piscar, sem o menor
sinal de hesitaçã o. Estou muito
satisfeitocomessamoça.
—Quebom—retrucouBenford,
sem grande entusiasmo. — Mas
ainda acho que ela está muito no
inı́ciodacarreira.Vaidemoraralguns
anos até alcançar uma posiçã o
importante,sechegaraisso.
—Você conheceojogotã obem
quantoeu,Benford.Osquecomeçam
cedo e vã o crescendo sã o os
melhores, os mais seguros. Ela é
perfeita.
— Mas será que vai conseguir
entregar você ? Será que tem
estômagopraisso?
—Vai,senã osouberoqueestá
fazendo. O que vai tornar as coisas
ainda mais convincentes. O susto
dela será genuı́no. Seja como for, ela
vai obedecer minhas instruçõ es,
tenhocertezaabsoluta.
— Isso é ridı́culo — disse
Benford.—Precisamosdevocêagora
maisdoquenunca.Só depensarque
vamosperdê-loantesdahora...
Ele apagou o cigarro num
cinzeirodecristal.
Marble balançou a cabeça e
retrucou:
— O tempo é sempre uma
incó gnita. Eles estã o atrá s de mim.
Nã o dá pra saber se estã o perto ou
longe de me pegar. Vanya é um
homem dedicado. Sem falar na
kanareykazapadnyaqueele...
— Sem falar em quê ? —
interrompeuBenford.
— Na armadilha que ele
preparou. Só Deus sabe o que ele e
Zyuganovandamaprontandoporaí.
— O que você quer dizer com
isso?
— Que meu tempo com a CIA
pode ser mais curto do que
gostarı́amos. Dominika precisa ser
preparadaomaisrá pidopossı́vel.Se
me pegarem antes de ela me
entregar...tudoterásidoemvão.
—Desculpeovocabulá rio,mas...
quemerda.
—Paredereclamar,meuamigo.
O que estamos fazendo nã o tem
nenhum precedente no nosso ramo.
Vamostrocaroquê ?Umanooudois
de informaçõ es minhas pelo
posicionamento de uma nova espiã
com o potencial de servir por mais
vinte,vinteecincoanos.Eumatroca
excelente,vocênãoacha?
Benford balançou a cabeça e
falou:
— Nã o foi pra isso que você
trabalhou esses anos todos, que
correu tantos riscos. Merece uma
aposentadoria,recompensasetc.
— Minha recompensa será
deixar algué m no meu lugar pra dar
continuidade a esse trabalho —
retrucou Marble. — Cabe a nó s, a
mim e a você , escolher o momento
certodefazeratransição.
— Esta viagem a Roma talvez
nã osejaomelhormomento—disse
Benford,eacendeu mais um cigarro.
— Sei que nã o podemos esperar
muito,masqueropelomenosverse
alguémmordeuminhaisca.
—Isca?—indagouMarble.
— Andei espalhando por aı́ que
o informante americano sofre de
herpes.Segundooquevocê disse,foi
issoqueEgorovfalouproNasarenko.
— Pobre Nasarenko. Você pode
merevelarpraquemjogouaisca?
— Quinze membros do SSCI,
o iciaisdoPentá gono,meiadú ziade
burocratas na Casa Branca —
respondeu Benford. — Um grupo
pequeno o su iciente pra que eu
possainvestigardepois.
—Vsegodobrogo,meuamigo—
disse Marble. — Boa sorte pra você .
Vou icar de olhos abertos e avisar
assim que o coitado do Nasarenko
pulardajanela.
— Otimo — exclamou Benford.
— Se puder icar atento a qualquer
outrapista...
— Tenho algo em mente —
retrucou Marble. — Mas falamos
sobreissodepois.
***
Nate e Dominika foram para o
quarto dele e conversaram em voz
baixa. Ele procurava aparentar
indiferença,masDominikasabiaque
se tratava de uma encenaçã o: podia
ver a intensidade da aura dele. Mais
umavezeledissequesepreocupara
muito com ela, que todos eles
esperarama litosporalgumanotı́cia
e que tinham icado bastante
aliviados ao saber pelo general
Korchnoiqueelaestavabem.Culpou
asimesmopeloqueacontecera,pelo
retorno dela a Moscou. Mas agora
eles poderiam retomar a relaçã o,
trabalhar juntos de novo. Dominika
achou que ele parecia um operador
coordenandoainformante,oqueera
exatamente o caso. Ele icara
preocupado, depoisaliviado. Chto za
divo!Maravilha.
Nate
sabia
que
estava
tagarelando. Estava um pouco
constrangido com a presença dos
homens no quarto ao lado. Tinha
plena consciê ncia da estranheza
daquele momento, e sabia que
precisavasecontrolar.Acertaaltura,
ao olhar para o rosto dela, parou de
falar. Dominika era elegante, linda,
imponente. Ele se lembrava de sua
expressã o de seriedade, dos lá bios
crispados. Viu que ela começava a
icar impaciente. Apó s uma
eternidadedetemposeparados,sem
saberseelaestavavivaoumorta,na
primeira hora juntos ele conseguira
irritaragarota.
Por sua vez, Dominika pensava:
Eagora,comovaiser?Eleshaviamse
distanciadoeelacriaraexpectativas,
mas, ao que tudo indicava, as coisas
seriam bem diferentes dali em
diante.Nã oseriamaispossı́velvoltar
à quele idı́lio de Helsinque, à s
escapadelas que ela arriscava para
entregar algum documento roubado
d arezidentura, à s longas tardes
passadas no simpá tico apartamento
clandestino dos americanos, à s
comidinhaspreparadasnaminú scula
cozinha... Tudo isso pertencia ao
passado. Assim como o quarto
banhadopeloluar.
Ela havia se comportado como
u m afantazerka, uma boboca
sonhadora. Mas també m podia ser
uma pro issional exemplar. Nã o
facilitariaascoisasparaoamericano.
Sem poupá -lo de nenhum detalhe
chocante, Dominika contou a Nate
tudo o que ela passara ao voltar a
Moscou: falou dos porõ es de
Lefortovo,dasinterminá veissessõ es
de interrogató rio, dos tapas e
hematomas, dos armá rios escuros
emqueatrancavam.
Corou um pouco ao dizer que
pensava nele nos momentos mais
difı́ceis e que isso lhe dava forças
parasobreviverà queleinferno.Falou
que o imaginava a seu lado sempre
quealevavampeloscorredorespara
jogá -la no buraco seguinte. Nate
ouvia em silê ncio, mas ela via a
emoçã o nos olhos dele, no violeta
maisintensodohalo.
Abalado, ele se levantou e foi
para o aparador do outro lado do
quarto.Dominikaoseguiu,eviuque
as mã os dele tremiam ao servir o
vinho nas taças. Nate preferiria nã o
ter que encará -la; sabia que estaria
perdido se eles se tocassem naquele
momento. No entanto, quando se
virou, deparou com a profundeza
insondá veldaquelesolhosazuis,com
odesenhoperfeitodaquelaboca,com
o convite velado daqueles cabelos.
Tinha plena consciê ncia de que
estava prestes a fazer uma besteira,
mas sentiu um nó na garganta, um
bolo no estô mago, e nã o conseguiu
mais se conter: tomou o rosto dela
nasmã oseabeijoucomvoracidade,
como se algué m fosse aparecer a
qualquermomentoparasepará-los.
Dominikaagarrou-opelanucae
o conduziu para a varanda de
má rmore. O sol começava a se pô r e
ospá ssarosvoavamdeumciprestea
o u t r o ,negros contra o cé u
vespertino. Nã o se ouvia nenhum
som, nem mesmo o sopro de uma
brisa. Dominika pressionou Nate
contra o parapeito e, em silê ncio, os
dois desa ivelaram desajeitamente o
cintodele,levantaramovestidodela
e agora ela estava na ponta dos pé s,
olhando-o nos olhos. Agarrando-se
ao parapeito de ferro fundido,
DominikaenlaçouNatecomumadas
pernas. Colou a boca à dele e
começouagemer.Quandoseucorpo
estremeceu, ela largou o parapeito e
enlaçouopescoçodeleparanãocair.
Todaaquelaagitaçãonavaranda
pareceu assustar os pá ssaros nas
á rvores, que agora voavam para
longe.
Para Dominika o mundo se
resumia ao espaço daquela varanda,
e nesse mundo nã o havia ningué m
alé m de Nate, que retribuı́a seus
beijos com o mesmo ı́mpeto e
ferocidade.Estaralicomeleeradoce,
natural e ló gico. Ele a enlaçava pela
cinturaeaspernasdelacomeçarama
tremer. Nesse momento, ela
sussurrou
no
ouvido
dele
“Dushenka”,eospássarosvarreramo
céu.
Por
dois
minutos
eles
permaneceram imó veis. Dominika
ainda
ofegava
quando
se
desvencilhou dele para ajeitar o
vestido. Nate endireitou a camisa e
os dois voltaram para dentro. Ele
acendeuumdosabajuresdoquartoe
entregou uma taça de vinho a ela.
Eles se sentaram lado a lado e
icaram olhando para a frente, em
silê ncio. Dominika sentia as pernas
tremerem, o coraçã o esmurrar o
peito. Por um instante pareceu que
Nate fosse dizer alguma coisa, mas
entã oBenfordentrounoquartopara
buscá-losparajantar.
***
Serguei Matorin, o carrasco da
Linha F do SVR, ocupava uma das
mesinhasexternasdoHarry’sBarna
Via Veneto, de onde podia ver a
entrada do hotel na Via di Porta
Pinciana em que Dominika Egorova
estavahospedada.Esperavavê -laem
algum momento, ou Korchnoi, mas
sobretudo o jovem americano cujo
rosto guardara em sua conturbada
mente antes de deixar Moscou.
Aquela altura ele já deveria ter
avistado algum deles. Estava com a
bocasecaesentiaumpesoestranho
nopeito.
Ficara tentado a invadir o
quarto de Egorova e esperar lá
dentro, imerso no cheiro acre do
pró prio corpo, mas recebera
instruçõ es diretas do chefe
Zyuganov:
nenhuma
açã o
desnecessá ria, nada de precipitaçã o,
nada de erros. Bastava aguardar a
oportunidade certa. Era isso que
Matorinfaziaagora.
Ele viu um grupo de moças
emergir das escadas rolantes
subindo do subsolo da Galeria
Borghese, mas ignorou-as em favor
de seu devaneio preferido nos
ú ltimos tempos: as mulheres afegã s
que vira durante a ofensiva de
Parvan,acuadasnoaltodeummorro,
atrá sdasripasdepau-a-piquedeum
curral de ovelhas. As granadas
lançadas pelos GP-25 desenhavam
um preguiçoso arco no cé u para
depois caı́rem dentro do curral, o
baque
seco
das
explosõ es
misturando-se aos gritos das
mulheres; em seguida o mais
absoluto silê ncio. Um carro buzinou
ruidosamente na Via Veneto e
Matorin
lamentou
ter
sido
despertadodeumsonhotãobom.
SPAGHETTI ALLA BOTTARGA DO
FORI IMPERIALE
Refogar um pouco de alho no
azeite quente até que esteja dourado.
Re rar o alho da panela e em seguida,
dentro do mesmo recipiente, colocar
um pouco de manteiga e uma
colherada de ovas de tainha raladas;
não cozinhar demais para não
amargar. Acrescentar a massa já
cozida al dente à panela e revirar os
fios para umedecê-los. Tirar do fogo.
Adicionar um pouco mais de manteiga
e uma segunda colherada de ovas.
Decorar com salsa picada e servir.
CAPÍTULO 33
ANATOLY GOLOV FICARIA
SURPRESO se soubesse quanto a
equipe Orion descobrira a seu
respeito apenas observando-o nas
ruas. O homem era um mestre, eles
diziam, um intelectual, um artista.
Jamais obedecia à grosseira cartilha
doSVR:asóbviasrotasdedetecção,o
comportamento
arrogante,
as
provocaçõ esofensivasao imdecada
operaçã o. Seu estilo re letia os
muitos anos de experiê ncia atuando
naEuropaenosEstadosUnidos.Suas
rotas conquistavam a vigilâ ncia
adversá ria,seduziam-na,e só ao im
demuitashorasdemanipulaçã osutil
ele desferia o golpe de misericó rdia.
Mas os Orions haviam conseguido
identi icar determinados padrõ es,
certas preferê ncias e manias nas
tá ticas dorezident. Golov nã o tinha
nenhumaconsciê nciadesuaelegante
previsibilidade. Uma de suas
manobras preferidas consistia em
executar uma virada repentina apó s
completar mais ou menos trê s
quartos de uma rota aparentemente
ortodoxa. Era um movimento
totalmenteefetivo:elesimplesmente
desapareciadomapa.
A tá tica de Golov confundia os
homens do FBI, que havia meses o
seguiam. Frustrados, eles queriam
era ensinar uma boa liçã o ao russo,
colar na traseira dele e obrigá -lo a
dar trê s voltas na Beltway antes de
deixá -lo pegar uma rampa de saı́da.
Os Orions, bem mais pacientes,
preferiam observar dos bastidores,
tentando entender a manobra,
quanti icá -la, con irmar aquilo que
todos eles tinham começado a
entender. Depois que orezident se
desmaterializava,
o
caminho
percorrido por ele correspondia à
aberturadeumaagulhadecompasso
e apontava direto para seu destino
final—eseuinformante.
A questã o era matemá tica, na
verdade. Golov estaria seguro se
pudesse completar apenas as cinco
rotas de detecçã o de vigilâ ncia que
costumava fazer a cada ano. Mas os
espiõ es russos darezidentura de
Washington
estavam
sendo
submetidos a um cruel regime de
esgotamento. Tinham trabalho a
fazer, contatos a realizar, fontes a
encontrar. Sobretudo Golov, que
precisava desesperadamente se
manterforadoradardosamericanos
para continuar bajulando Swan. Isso
demandava duas ou trê s rotas por
semana. Como um ator em im de
carreira que precisa aceitar o
má ximo possı́vel de papé is, Golov já
vinha
sofrendo
superexposiçã o de
operacionais.
com
a
seustalentos
Sentadosemvoltadeumamesa
grande no restaurante Sizzler de
Maryland, membros da equipe Orion
saboreavamoespecialdanoiteantes
de dar inı́cio aos trabalhos. Eram
apenas cinco, mas isso nã o fazia
muita diferença. Todos eles eram
estrelasdeprimeiragrandeza.
Orest Javorskiy já estivera no
corredor de Fulda distribuindo pela
neve tocos de á rvore cenográ icos
repletos de aparelhos eletrô nicos
destinados a detectar o estrondo
noturno dos tanques sovié ticos. Mel
Filippo já conduzira um informante
cego pela mã o para fora de Brasov.
Clio Bavisotto já tocara Chopin para
Tito enquanto o marido arrombava
um cofre no andar de cima. Johnny
Parment já recrutara um general
vietnamitanasbarbasdeumaequipe
de vinte vigilantes em Hanó i. E
SocratesBurbank,oFilósofo,comsua
barbicha e seus 80 anos nas costas,
trê s vezes casado e trê s vezes
divorciado,eraoBudaqueinventara
oprincipalemaisefetivoesquemade
vigilâ ncia dos Orions e que, dos
bastidores, distribuı́a tarefas e
orientavaaequipe.
Costumava-se dizer entre eles
que Burbank já havia até “dançado
valsa com o capeta”, isto é , já izera
detudo.Aos20epoucosanos,tinha
ex iltradouminformantecomtodaa
famı́liadeBudapeste,passandoileso
pelostanquesquecirculavamaesmo
na praça dos Má rtires. Instalara
sinalizadores para atracaçã o nas
fatı́dicas praias da baı́a dos Porcos.
Num apartamento clandestino em
Berlim,
arrancara
informaçõ es
secretas de um general sovié tico
completamente bê bado de vodca ao
mesmo tempo que segurava um
balde para que o homem pudesse
vomitar. Nem mesmo Benford
interferia
quando
Burbank
coordenava os Orions, com o lá pis
entre os dedos, mapas sobre o colo,
um rá dio junto da boca, falando
baixinho com os membros de sua
equipe.
O gigantesco volume de nuvens
carregadas que despontara no
horizontenaquelatardeculminara,à
noite,
numa
sucessã o
de
tempestades e raios que paralisara
porcompletoaregiã ometropolitana
de Washington. Galhos caı́dos
atulhavam as ruas alagadas, o anel
rodoviá rio
estava
totalmente
engarrafado e dos dois aeroportos
tinham sido fechados. Era a pior
noite possı́vel para uma rota de
detecçã o de vigilâ ncia, e ao mesmo
tempoamelhor.
Usando os congestionamentos
como escudo, Golov deixou a
embaixada, tomou a direçã o de
Georgetown,atravessouorionaKey
Bridge e desceu pela marginal do
Potomac, parando em diversos
pontosdoCrystalCityUndergrounde
do distrito histó rico de Alexandria.
Debaixo daquele temporal, as
paradas eram mais do que
incô modas, e ele já estava
completamente encharcado quando
en im terminou seu passeio de
compras — assim como os homens
doFBIqueoseguiamacontragosto.
Apesardotempo,Golovtentava
convencerquemquerqueoestivesse
seguindo que Mount Vernon era seu
destino inal. Para tanto, traçou um
caminhoquaseretonaqueladireçã o.
Jantares e concertos noturnos eram
comuns na mansã o histó rica, e
nenhuma equipe de vigilâ ncia que
izesse jus ao nome deixaria de
correrparalá aomenorsinaldeque
eraesseorumodeseualvo.Poisfoi
issoque izeramosvigilantesdoFBI:
enviaram dois carros na frente e
mantiveramoutrosquatronaesteira
d orezident, a uma distâ ncia
razoavelmentegrande.Eraahorade
Golovfazersuamá gica.Maisumavez
ele usaria o trâ nsito pesado como
escudo, favorecendo-se ainda mais
peladistâ nciaguardadapeloFBI.Sua
estraté gia de despiste foi um rá pido
retorno para a rampa que levava à
Wilson Bridge, que ele usou para
atravessar o Potomac. De volta a
Maryland, passou por Oxon Hill e
Forest Heights e seguiu para
Anacostia.
Uma cortina de fumaça e,
pronto,elehaviadesaparecido.Dalia
trintaminutosafrustradaequipedo
FBI informou por rá dio que eles
tinhamperdidooalvodevistanaGW
Parkway,quenã ohavianingué mem
MountVernoneagorasó lhesrestava
recomeçar do zero: voltar para
Alexandriaeatravessarapartenorte
dos subú rbios da Virgı́nia. A
estraté giadeGolovosafastavaainda
mais.
A chuva dera uma tré gua e o
trâ nsitojá estavamaislivrequandoo
rezident fez o ú ltimo trecho de seu
caminho pela zona leste de
Washington.
A
certa
altura,
estacionou o carro e esperou, com o
limpadordepara-brisanavelocidade
maislenta.Agorabastariaatravessar
oNationalMallparachegaraocentro
dacidade.Deixariaoautomó velnum
estacionamento subterrâ neo na Rua
K e seguiria a pé pelos dez ou doze
quarteirõ es que levavam ao Tabard
Inn.Até alielenã odetectaranenhum
sinal de vigilâ ncia. Os anos de
experiê ncia diziam que ele estava
fora do radar, livre para fazer o que
bementendesse.
SocratesBurbanklargouorá dio
que estava usando para falar com o
FBI: a ú nica coisa que se ouvia em
todas
as
frequê ncias
eram
xingamentos. Em seguida marcou
algo no mapa com seu lá pis. O
retorno havia sido na Wilson Bridge
—eraaú nicaexplicaçã opossı́vel—,
eapontadocompassoapontavapara
ocentrodacidade.Apó sassinalaros
pontosnomapa,formandoumanova
linha de vigilâ ncia ao longo da parte
sul do National Mall, ele despachou
trê sdoscarrosdesuaequipeparaas
Ruas 7, 14 e 17, deixando livres os
tú neisdasRuas9e12.Nã odemorou
para Clio avistar o BMW preto de
GolovnaRua14.Semnenhumalarde,
ela avisou ao chefe pelo rá dio,
informando apenas a direçã o e a
velocidade, e seguiu atrá s do russo
comoumavovó faria:comcarinhoe
preocupação.
Osoutrosdoiscarrosdaequipe
també m convergiam na direçã o de
Golov, um pela Rua 18 e outro pela
Avenida Pensilvâ nia. Orientado por
Socrates, agora era Johnny quem
seguia
orezident. Pró ximo à
McPherson Square, ele viu o homem
entrar num estacionamento e a
equipe se preparou para segui-lo a
pé ; era nesse momento que eles de
fato se superavam. Fazia quase uma
dé cadaquehaviamdeixadodeladoa
formaçã o ABC. No lugar dela,
enredavam o alvo aos poucos,
cozinhando-o em banho-maria:
adiantavam-se a ele, iam para trá s,
atravessavam
na
frente,
circundavam-no de longe. Quando
eventualmente Golov olhava na
direçã odeles,nã odesviavamoolhar
nem buscavam refú gio numa vitrine
qualquer: encaravam-no de volta,
depois prosseguiam com a mais
absoluta naturalidade, fofos e
distraı́dos, cabelos azuis sob os
chapé us mais absurdos, sacola ou
bolsaempunho,ó culosdeleiturana
pontinhadonariz,cachimbonocanto
da boca. Golov, alto e elegante,
habituadoà sruasdePariseLondres,
nãopercebianada.
Eleserambonsdemais,naturais
demais, discretos demais. Sabiam
passar despercebidos em meio à
multidãodepedestres,sobretudoaos
olhos de umrezident exaurido pela
pressã o, irritado com o fardo da
cartilha operacional, ansioso para
chegar ao destino inal. O russo
estava sendo ludibriado por cinco
aposentados com manchas de
senilidade e problemas nas
articulaçõ es.Casodetectassealguma
coisa, poderia dar meia-volta,
comprar um jornal, tomar um café e
pegar o caminho de casa depois de
abortar o encontro. Mas ele nã o
notounada.
A chuva agora tinha parado por
completo, e quando Golov entrou na
RuaN,osOrionsen imsolucionaram
o misté rio. Ele só podia estar indo
para o Tabard Inn; era a ú nica
possibilidadenaquelarua. Mel e Clio
já esperavam no lobby, descalças,
esfregando os pé s e comentando
como eles doı́am. De repente Golov
apareceu e elas viram quando ele
pegou a chave na recepçã o e sumiu
naescadadohotel.
Obedecendoà disciplinadeuma
manobra desde muito consagrada,
elas permaneceram onde estavam
por mais meia hora, observando a
movimentaçã o à sua volta, atentas a
qualquer peculiaridade. Nã o tinham
autoridade para dar voz de prisã o a
ningué m, e icar por ali mais que o
necessá rio serviria apenas para
deixaroalvodeorelhasempé .Entã o,
Socrates ligou para Benford, fez um
breve relato e desligou. Em seguida
teclou algo no rá dio para sinalizar
queMeleCliojápodiamirembora.
Eles nã o haviam testemunhado
nenhum encontro, nã o tinham nada
de concreto. Haviam encurralado o
rezident, mas nã o o viram com
nenhum
informante,
nenhum
suspeito.Apaciê nciaeaperspectiva
osajudaramalidarcomafrustraçã o
de uma noite inconclusiva, assim
comooscachorros-quentesdoShake
Shack,naRua18.
Um o icial da inteligê ncia russa
provavelmente estava tendo um
encontro clandestino com um
informante
nã o
identi icado
in iltrado no governo americano
enquanto os Orions pediam os seus
respectivossanduı́ches.Opassadode
Johnny na China icava evidente na
suapreferê nciaderecheio:saladade
repolho com gergelim e pimenta.
Orest era um purista e jamais
aceitava outra coisa que nã o fosse
mostarda e chucrute. Mel preferia
cebolaseketchup,aopassoqueClio,
a pianista clá ssica, preferia alface,
tomate, bacon e gorgonzola. Anos
antes, Socrates deixara todos eles
chocados ao inventar a pró pria
combinaçã o,
batizada
de
“nitroglicerina”, cujos ingredientes
podiam ser encontrados apenas no
ShakeShack:umanojentamistureba
de
batatas
fritas,
cebolas
carameladas, anchovas echimichurri,
o molho picante dos argentinos. Era
um acordo mais ou menos tá cito
entre os Orions que nenhum deles
jamais comeria com Socrates no
mesmocarro.
***
Benfordfalavaaotelefonecomo
FBI, ora berrando e xingando, ora
implorando que eles despachassem
imediatamente uma equipe para
cobrir o Tabard Inn. Vá rias outras
ligaçõ es ainda seriam feitas até que,
com a aprovaçã o de um supervisor
de turnos, os agentes especiais
fossem en im acionados. Nas duas
horas que eles levaram para chegar
ao hotel, Stephanie Boucher entrou
nolugar,encontroucomGolovesaiu.
Nã o teria sido difı́cil seguir a
senadora; sem dú vida, menos
desa iante do que seguir orezident,
ou um grupo de turistas japoneses
dentro do Lincoln Memorial, ou um
elefante numa fá brica de porcelana
comumsinoamarradonorabo.
A arrogâ ncia e a sociopatia de
StephanieBouchereramdetalmodo
arraigadas que ela nem sequer
cogitava a possibilidade de ser mais
discreta nas ruas, mesmo sabendo
que tinha os pé s enterrados no
pantanoso solo da traiçã o. Contando
comaimpunidadequelheconferiam
overmelhoebrancodaplacadeseu
carro o icial, ela estacionara numa
vagareservadaparacargaedescarga
naRuaN,aú nicalivrenomomento,e
aosairdeseuencontrocomGolov,no
qual lhe entregara mais um disco da
Path inder Corporation, seguira
diretoparacasa.OFBInã oviranada
disso.
***
Na manhã seguinte, com o
relató rio dos Orions em mã os,
Benfordvociferavacontraosagentes
especiais do FBI enquanto Nate
icava recostado à parede em
silêncio.
— Desculpem — dizia ele num
tomprofessoralqueNatejá sabiaser
a primeira trombeta de um
apocalipseiminente—,masé minha
obrigaçã oalertá -losparaagravidade
do que ocorreu ontem. Depois de
muitas horas de RDV, Anatoly Golov
conseguiu entrar em sua toca,
provavelmente para se encontrar
com um informante importante o
bastante para ser coordenado pelo
rezident do SVR em pessoa, em
Washington.OFBI levou duas horas,
desdeaminhaligação,parachegarao
Tabard Inn, que icaa menos de 3
quilômetros do J. Edgar Hoover
Building.Emboratodasasevidê ncias
apontassem para um encontro
clandestino entre um o icial russo e
umtraidoramericano, você s nem se
deramaotrabalhodechecaroslivros
do hotel, de interrogar os
funcioná rios,emuitomenosdesubir
evasculharoquartodeGolov,queé o
oficialmaisgraduadodoSVRemtoda
aAmé ricadoNorte.Setivessemfeito
isso, sem dú vida teriam recuperado
informaçõ es
con idenciais
do
governo americano, informaçõ es
repassadasnaquelamesmanoitepelo
infiltradodeGolov.
OshomensdoFBIseremexeram
nascadeiras,masnãodisseramnada.
—
Você s
simplesmente
cruzaram os braços diante do que
talvez seja o maior caso de
espionagem desde 2001 —
prosseguiuBenford.—Deixaramum
traidorescaparimpuneeincógnito.
— Um suspeito — disse Chaz
Montgomery.
Sua gravata reproduzia uma
garota poliné sia, uma imagem de
Gauguin.OsolhosdeBenforddoeram
aovê-la.
— O quê ? — retrucou ele,
elevandoavoz.
AessaalturaNatereceavaquea
reuniã o terminasse com um dos
agentes dando um tiro em Benford
parafazê-localaraboca.
— Um suspeito — repetiu
Montgomery. — Essa pessoa que foi
se encontrar com o russo, seja lá
quemfor,éapenasumsuspeito.
Benford correu os olhos pela
salaefalou:
—Chaz,você fariaagentilezade
me enviar o currı́culo atual do
treinamento bá sico que você s
ministram na academia? Aposto que
vou encontrar iguras coloridas de
cavalinhoseflores.
—Vásefoder,Benford—cuspiu
Montgomery. — Você conhece as
regras,edeveterpelomenosalguma
noçã odoquedizalei.Precisamosde
provas, provas incontestá veis, antes
dedarvozdeprisãoaalguém.
—PradarumaprensaemGolov
também?
— Já ouviu falar em imunidade
diplomá tica? A gente nem sabe se
estava mesmo acontecendo algum
encontronaquelehotel.Nadaimpede
que ele estivesse lá pra distribuir
convites pra alguma recepçã o na
embaixada. Dia Nacional da Rú ssia
ouqualquerporradessas.
—Você só podeestarbrincando
—disseBenford.
—Você sabetã obemquantoeu
queantesdeagiragenteprecisater
umcalhamaçode provas debaixo do
braço. Essas investigaçõ es levam
tempo.Àsvezesanos.
— Puta merda — respondeu
Benford, balançando a cabeça. —
Você s ainda estã o no tempo dos
tá rtaros,dosmongó is,dosvisigodos,
doscartagineses.
—Oqueocâ ncertemavercom
a histó ria? — perguntou um jovem
agente cujos bı́ceps estufavam as
mangasdacamisabranca.
— Eu disse “cartagineses”, meu
caro,não“carcinógenos”.
— Acho que nã o preciso lhe
explicar isso — interrompeu
Montgomery,dirigindo-seaBenford.
— Se izermos nosso trabalho
direitinho, esse suspeito nã o
identi icado vai passar o resto dos
dias mofando numa prisã o de
segurança má xima, sem direito a
condicional. Mas, se izermos
qualquer merda, ele se aposenta
como um consultor multimilioná rio.
Será que você nã o pode segurar a
ondasómaisumpouco?
— Com uma condiçã o —
retrucou Benford, como se ofendido
pelos modos bruscos do outro. —
Exijo que um o icial da CIA esteja
presente quando a prisã o for feita.
Esse caso nã o pertence apenas à
esferacriminal,masà deinteligê ncia
também.
— Impossı́vel — disse
Montgomery. — O diretor nã o vai
concordar. Alé m do mais, qualquer
pessoaenvolvidanumainvestigaçã o,
vigilâ ncia ou detençã o pode ser
convocada a depor em juı́zo. Você
estariadispostoaexporumdosseus
agentessó porcausadisso?Amenos
que algum deles nã o precise mais
ficarincógnito.
— E bem prová vel que eu só
consiga colocar as mã os nesse
informante perdendo um ativo
valioso para a agê ncia — retrucou
Benford.—Euinsisto:queroumdos
meushomensjuntocomvocês.
— Ainda assim acho que o
diretor nã o vai aprovar, mas nã o
custa nada perguntar — falou
Montgomery.—Elevaiquerersaber
emquemvocêestápensando.
— Ele — respondeu Benford,
apontando para Nate. — Nathaniel
está integralmente envolvido nessa
operação.
Ainda recostado à parede dos
fundos, Nate nã o sabia se devia se
sentirhonradoounã o.Aquelaaltura
era muito prová vel que seu disfarce
já tivesse ido pelo ralo. Alé m disso,
ele nã o iria contradizer Benford,
sobretudonafrentedeummontede
agentesespeciaisdoFBI.
O agente dos bı́ceps inchados
virou-se para Nate na esperança de
entender
o
que
signi icava
“integralmenteenvolvido”.
— Proctor — adiantou-se
Montgomery —, nã o dê um pio a
menos que algué m lhe pergunte
algumacoisa.
MOLHO CHIMICHURRI
Com uma faca ou processador,
picar um ramo de salsa, uma cabeça
de alho descascada e uma cenoura
média. Acrescentar azeite, vinagre de
vinho branco, sal, orégano, pimentado-reino e pedacinhos de pimenta
dedo de moça. Misturar tudo até
formar um molho espesso. Servir de
preferência ainda fresco.
CAPÍTULO 34
VANYA EGOROV OLHAVA AO
LONGE atravé s das amplas vidraças
de sua sala, antevendo a iminente
colisã o de fatores operacionais que
rodopiavam à sua volta. Swan
continuava
produzindo
uma
quantidade
fantá stica
de
informaçõ es,mascedooutardeseria
vitimada pela pró pria indisciplina. O
queparaelesignificariaumdesastre.
As notı́cias que Korchnoi
trouxera da Itá lia pouco ou nada
diziam: Dominika tivera um breve
contato com Nate, a relaçã o fora
retomada, ele acreditara na histó ria
de que ela agora trabalhava para o
serviço de correspondê ncia, os dois
haviam estabelecido um plano de
novos contatos mundo afora. Lento
demais.Comosempre,lentodemais.
O traidor ainda andava à solta,
uma ameaça para Swan, para outros
casos, para o pró prio Egorov
també m. Ele instruı́ra Korchnoi a
agendaroutraviagemparaDominika
na qualidade de mensageira.
Precisava de resultados. Era nisso
queelepensavaquandoseutelefone
tocou.Otelefoneespecial.
— Insatisfató rio — começou o
presidente. — Espero que você já
esteja articulando novos contatos. E
rápido.
Egresso da KGB, Putin sabia
muitobemcomoeraimportantenã o
perderoimpulsonumaoperação.
— Sim, senhor presidente —
concordou Egorov. — Já agendamos
uma segunda viagem para nossa
agente.Estoumuitootimistaquanto
aosresultados.
A que ponto ele havia chegado:
agorasopravamentirasnoouvidodo
presidente.
— Otimo — retrucou Putin. —
Praonde?
Egorovengoliuaseco.
—Aindaestamosdeterminando
exatamente qual é o destino mais
vantajosopranó s.Informoaosenhor
assimquedecidirmos.
—Atenas—dissePutin.
— Como? — devolveu Egorov,
surpreso.
— Mande essa agente... sua
sobrinha... pra Atenas. Os riscos de
segurança sã o baixos, temos gente
infiltradanapolíciadelá.
Por que diabo ele estaria
insistindonaGrécia?
— Pois nã o, presidente —
respondeuEgorov,masPutinjá havia
desligado.
***
No andar de baixo, Zyuganov
encaravaosolhosturvosdosujeito.
—Prepare-seprairaAtenas—
disse o anã o, e viu o homem que
personi icava a morte se levantar
parasair.
Considerouporuminstanteque
Dominika poderia correr perigo se
estivesseentreaquelemanı́acoeseu
alvo, mas nã o podia fazer nada a
respeito.
***
Benford já encomendara à sua
equipe um levantamento dos
projetos de defesa mais relevantes.
Aguardava receber algum eco da
armadilha preparada por Vanya. Os
Orions estavam tentando encurralar
Golov mais uma vez nas ruas de
Washington.MasKorchnoiprecisava
de algo já . Sabia o que devia fazer, e
quais eram os riscos envolvidos.
Discutiraoassunto com Benford em
Roma e ele acabara concordando,
aindaqueacontragosto.
Korchnoi desceu para o
laborató rio da Diretoria K, no
primeiro
andar.
Nasarenko
trabalhavaàsuamesa,umapaisagem
lunardepapé is,caixasepastas.Junto
à parede,outramesamaiscomprida
que a primeira abrigava um caos
semelhante, poré m maior, sem um
ú nico centı́metro quadrado de
espaço livre. Nasarenko ergueu o
rostoparaKorchnoi,opomodeadã o
saltitandonopescoço.
— Yuri, me desculpe por
interromper
—
começou,
adiantando-se até a mesa para
apertar a mã o do colega. — Posso
falarcomvocêuminstante?
Nasarenko
parecia
um
marinheiro subitamente encalhado
num banco de gelo, contemplando o
espaçocadavezmaiorentreocasco
donavioeogeloemsi.
—Oqueé?—perguntou.
O homem tinha um rosto
cinzento e os cabelos, sempre
desgrenhados,pareciampalhadetã o
ressecados e opacos. Os ó culos
estavamengorduradosesujos.
— Preciso de seus conselhos
num assunto de comunicaçã o —
disseKorchnoi,eporquinzeminutos
discorreusobreumpossı́velback-up
para o sistema de comunicaçã o com
umalvoderecrutamentonoCanadá.
Agitado, dobrando os polegares
sem parar, Nasarenko opinou
distraidamente sobre a questã o.
Korchnoi se debruçou na mesa,
cercando-o,acuando-o.
—Está preocupadocomalguma
coisa,velhoamigo?—perguntou.
— Nã o é nada. Muito trabalho
acumulado, só isso. Uma avalanche
de dados pra analisar. Estou
precisando de tradutores, analistas...
—respondeuNasarenko.Continuava
movimentando os polegares sem
parar.
— Você faz ideia do volume de
dados que um ú nico disco pode
conter?—Elegirounacadeira,pegou
uma caixinha metá lica de uma das
quatro gavetas de seu cofre e
despejou o conteú do sobre a mesa:
umadezenadeembalagensplá sticas
grampeadas no topo, cada uma com
um estojo cinza contendo um CD de
armazenamento de dados. Com as
mã os trê mulas, ele pegou alguns
dessesdiscosedisse:—Sã omuitos
gigabytes.Istotudoaindaestá na ila
praserprocessado.
Jogouosdiscoscomdisplicê ncia
sobreamesaeumdelesescorregou
para junto de uma pilha de pastas
pardas.
Korchnoi pegou o disco e o
examinou como se nã o izesse a
menor ideia de que um objeto tã o
pequeno pudesse armazenar tanta
informaçã o. Viu a logomarca da
Pathfindernoestojo.
— Por que eles nã o aumentam
suaequipe?
Nasarenko abaixou a cabeça e
segurou-a entre as mã os. Korchnoi
ficoucompenadele.
— Yuri, nã o se desespere. Você
temanosdebonsserviçosprestados
para ser tratado assim — observou.
Aoseesticarporcimadamesapara
dar um tapinha compassivo no
ombro do colega, aproveitou a
oportunidadeeguardou no bolso do
paletó odiscoquetinhanamã o.Nã o
sabia dizer se os discos eram
sequenciaisouprotegidosporsenha,
tampouco se Nasarenko daria pela
faltadoCDroubado.—Possomandar
um ou dois analistas do meu
departamento para ajudá -lo por um
tempo, se isso for ú til. Todas as
equipes estã o sobrecarregadas, a
verdadeéessa,masesseseutrabalho
édesumaimportância.Oqueacha?
Nasarenko ergueu o rosto e
resmungou:
—Seusanalistasnã ovã opoder
trabalhar nesse projeto. O acesso é
restrito.
— Talvez possam ajudá -lo em
outros projetos para que você tenha
maistempoparaeste—argumentou
Korchnoi. — Nã o aceito “nã o” como
resposta. Está decidido, Yuri. Mando
meushomenshoje mesmo. Mas veja
bem: nem pense em roubá -los de
mim!
Nasarenko respondeu com um
sorrisodesanimado.
***
Sobre a mesa de Vanya Egorov
estava o cabograma em que o
rezident de Washington informava
sobreaiscamordidacomavariante
“herpes”. Uma listra azul cortava
diagonalmente o papel, já bastante
amassado em razã o das repetidas
leituras. Sentado diante do vicediretor, Zyuganov parecia mais feliz
do que nunca. Egorov balançou a
cabeça.
— Nã o posso acreditar que
Nasarenko é o traidor — falou. — O
homemmalé capazdeconduziruma
conversa decente na cafeteria. Você
consegue imaginá -lo num encontro
noturnocomosamericanos?
Zyuganov umedeceu os lá bios,
depoisdisse:
— Herpes. Golov nã o se
equivocaria com uma coisa dessas.
Você leuorelató riodele,umacitaçã o
direta de Swan. “Estã o procurando
algué mquesofredeherpes.”Essafoi
aversãocontadaaNasarenko.
— Nasarenko é um tolo
distraı́do—disseEgorov,semsaber
aocertoporqueestavadefendendoo
homem.—Ebempossı́velquetenha
comentadocomoutraspessoaseque
o traidor que procuramos esteja
entreelas.
Zyuganovnã oqueriasaber.Para
eleoimportanteeraqueagorahavia
umamissã oacumprir,umacabeçaa
sertriturada.
—Merda—prosseguiuEgorov.
— Isso é tudo o que temos por
enquanto. Comece sua investigaçã o
imediatamente.
Zyuganov assentiu, pulou da
cadeira e foi em direçã o à porta,
tentando lembrar onde havia
guardado sua tú nica do Exé rcito
Vermelho, aquela com os botõ es
laterais que ele gostava de usar nos
interrogató rios. O tecido marrom-
esverdeado já estava endurecido
pelas muitas manchas de sangue,
impregnado com o fedor do
excremento de inú meras vı́timas, e
as mangas já estavam bastante
puı́das, mas ainda assim era melhor
do que otecido branco de qualquer
jalecodelaboratório.
— Mais uma coisa —
acrescentou Egorov à s suas costas.
— Faça um teste parametka. Se nos
ú ltimos dois anos ele foi tocado por
um americano, alguma coisa deve
aparecer.
Zyuganov fez que sim com a
cabeça, mas tinha uma opiniã o
pró pria sobre a polinizaçã o de
produtos quı́micos como té cnica de
contraespionagem.
Nada
se
comparava a uma boapovinnaya,
uma boa con issã o, para eliminar
qualquer traço de dú vida quanto à
culpa do infeliz. Zyuganov tinha um
grandetalentoparadobrarsuspeitos:
nã o havia quem se recusasse a
confessar o que fosse apó s alguns
tendõ es seccionados ou um olho
queimado.
Ainda nã o conseguia lembrar
ondetinhadeixadoaquelatúnica.
***
Nasarenko foi convocado ao
setordecontrainteligê nciaparauma
entrevista de “atualizaçã o aleató ria
desegurança”.Aprincı́piotratava-se
de um procedimento de praxe, mas
ningué m precisava ter anos de SVR
parasaberqueumareuniã odaquela
natureza era problema na certa, e
Nasarenkoentrouempâ nico.Ao im
deuminterrogató rioessencialmente
inconclusivo, Zyuganov transferiu o
cientistaconfusoelastimosoparaos
porõ es de Butyrka, no centro de
Moscou.
Com o cassetete na mã o,
Zyuganov re letiu sobre como as
pessoas eram engraçadas, sobre
comoreagiamdemodotã odiferente
umasdasoutras.EmNasarenko,por
exemplo, uma pancada na sola dos
pé s era muito mais e iciente do que
namaioriadosinterrogados.
Elesó conseguiucompletaruma
sessã odetorturacomocientistade
olhos esbugalhados antes de ser
interrompido pela revelaçã o de que
um dos discos do caso Swan havia
desaparecido da sala do homem, e
isso era de primordial importâ ncia.
Autorizou uma aplicaçã o de
amobarbital para destravar a lı́ngua
de Nasarenko e fazê -lo contar tudo
sobreseupassadomaisrecente.Uma
dosefoisu icienteparaqueosujeito
revisse sua equipe, seus colegas e
visitantes, entre eles o general
Korchnoi, que passara rapidamente
em sua sala.Korchnoi? Impossı́vel.
Uma nova busca no laborató rio dele
foi ordenada. Alguma explicaçã o
haveria de existir para osumiço do
taldisco.
Nã o tardou para que as
novidadeschegassemaosouvidosde
Korchnoi: a caçada ao traidor havia
esquentado, algum problema estava
acontecendo na Diretoria T, um
material importante desaparecera.
Conversando com velhos amigos em
outros departamentos e prestando
atençã o à s fofocas nos banheiros do
alto escalã o, ele descobriu que já
fazia algum tempo que Nasarenko
nãodavaascarasnoprédio.
Korchnoi sabia que o cerco da
investigaçã o
de
espionagem
começava a se fechar à sua volta.
Precisava urgentemente avisar
Benfordeenviarà
CIA,aindanaquelanoite,odisco
surrupiadodeNasarenko.Istoé ,seo
deixassem sair do pré dio. Talvez ele
tivesse calculado mal seus prazos,
talvez nem sequer houvesse tempo
paraqueDominikafossedespachada
paraAtenaselápudesse“entregá-lo”.
Korchnoi saiu à rua com as
pró priaspernas—erabemprová vel
que pela ú ltima vez, pensou — e foi
paracasa.Assimquechegou,redigiu
uma mensagem e a enviou. A
transmissã onã olevoumaisqueuma
fraçã o de segundo. Dali a vinte
minutos, Benford leu as duas linhas
de texto: “Nasarenko na armadilha.
OvoserádeixadononinhoDrakon.”
Umaentrega,pensouBenford.A
raposa velha certamente tinha algo
de muito importante. E Nasarenko
estava em apuros: isso signi icava
queSwaneraumadas23pessoasna
lista de suspeitos. Ele pegou o
telefoneeligouparaoFBI.
***
A
estaçã o
de
metrô
Molodezhnaya estava praticamente
deserta, com as lojas fechadas e
poucascomposiçõ es.Antesdechegar
ali, Marble izera trê s trajetos em
trens diferentes, alé m de uma longa
caminhada à margem do rio, até
achar que podia con iar em seus
instintos:nã o,ningué moseguia.Ele
en im saiu da estaçã o na rua
Leninskaya e deparou com a chuva,
que caı́a quase na horizontal em
razã o do vento forte. Ergueu o
colarinho do casaco, enterrou as
mã os nos bolsos e começou a
caminhardevagarpelacalçada.
Os pingos fustigavam suas
costas como se algué m o cutucasse.
Ele procurou se concentrar, estava
quasechegando.Esgueirou-sejuntoa
ummuroquandopercebeuquevinha
algué m em sua direçã o, depois
seguiu em frente enquanto ouvia os
passos molhados atrá s de si, se
afastando. Do outro lado de uma
curva acentuada icava a Faculdade
de Obstetrı́cia 81. Nas imediaçõ es
dela, ele se embrenhou numa mata
escura e encharcada e começou a
tremerdefrio.Acertaaltura,paroue
aguçouosouvidos,receandoescutar
oroncodealgummotor,umafreada,
uma porta de automó vel batendo.
Nada.Apenasoassobiodoventopor
entreasárvores.
Hora de agir. Um duto de
escoamento cuspia sua á gua negra
nã omuitolongedoasfalto.Marblese
ajoelhou pró ximo à boca, tirou o
disco do bolso, preparou a ita
adesivadeduplafaceepressionouo
estojododisconaparedeinternado
duto metá lico. Contou até dez para
que o epó xi izesse efeito, depois
afastou a mã o com cuidado,
certificando-sedequeoestojoestava
firme.Tudocerto.
Ele se levantou, aguçou
novamente os ouvidos e mais uma
vez nã o detectou nenhum sinal de
perigo. Entã o voltou ao asfalto,
entrou na estaçã o Krylatskoye do
metrôesumiuládentro.
Quandochegouemcasa,despiuse ainda na cozinha e largou as
roupas empapadas no chã o. Sentouse à frente do computador e suas
mã os começaram a tremer sobre o
teclado. Alé m disso, as letras eram
miú das demais, até mesmo com os
ó culos para vista cansada.Por que
não fabricam essas engenhocas de
modoqueumvelhoconsigaenxergar?,
ele se perguntou.Porque neste ramo
ninguémviveatéaminhaidade,sópor
isso. A tecla Enter estava quente
quando ele en im a pressionou para
enviar a mensagem: OVO JA NO
NINHODRAKON.
Depois, Marble se acomodou na
poltrona da sala e fechou os olhos,
pedindo a Deus que olhasse pelo
rapaz da CIA que teria de chafurdar
naquelalamapararecolheraentrega
e també m pela mocinha que o
esperaria no carro com um rá dio ao
ouvido, atenta a qualquer ruı́do
suspeito.
Quando o disco inalmente
chegouà estaçã o,foiacomodadoem
uma embalagem com reforço duplo,
querecebeuumaproteçã odeestopa
antesdesercolocadaemummalote
de segurança má xima. Como Marble
era o remetente, o pacote foi
despachado o mais rá pido possı́vel
paraWashington.Nã odemoroupara
que o pombo-correio chegasse com
uma resposta no bico: OVO
RECOLHIDO.
Nos con ins da cidade, um duto
de
escoamento
continuava
vomitandosuaáguanegra,masagora
conhecia um segredo que guardaria
parasempre.
***
Benford estava reunido com os
o iciaisdoFBInoporã odopré diodo
Bureau na Avenida Pensilvâ nia, em
Washington. A mesa estava atulhada
com os restos do almoço que fora
entregue
por
diversos
estabelecimentos da vizinhança.
Tinha sido um almoço de trabalho,
semnenhumdosluxosdeumavisita
de cortesia. Benford escolhera
comida tailandesa: umlarb gai,
salada de frango com cebolas,
manjericã o, limã o e tanta pimenta
que ele parecia soltar fumaça pelas
ventas enquanto os demais
navegavampelasá guascalmasdeum
sanduícheouumasopa.
OnúmerodefuncionáriosdaCIA
e do FBI era igual, em sua maioria
o iciais graduados da á rea té cnica e
da contrainteligê ncia. Quando o
mensageiro chegou com o material
enviado por Marble, Benford — logo
ele — concordou em deixar o FBI
abrir o pacote de acordo com os
princı́pios e cuidados da perı́cia
forense.MaiscedoeledisseraaNate:
“Aquelesrobô snã opararamdefalar
sobre ‘preservar a integridade
evidenciá ria’ do pacote. De acordo
com eles, caso Marble tenha
realmente conseguido roubar um
disco
contendo
informaçõ es
ultracon idenciais entregue aos
russos por Swan, entã o precisamos
lembrarquehaverá umjulgamentoe
que vamos precisar de todas as
provas possı́veis.” Ao contrá rio do
que qualquer um poderia ter
esperado,Benfordhaviaconcordado.
O disco de Marble agora se
encontrava numa bandeja metá lica
no centro da mesa, já fora do estojo
plá sticodoSVRedacapadepapelda
Path inder,
cuidadosamente
acomodado sobre uma toalha
esterilizada.Umpó cinzentoformava
uma leve camada sobre a superfı́cie.
Tratava-se da ninidrina que os
té cnicos do FBI haviam polvilhado e
que depois seria borrifada com um
contraste de ó xido de cá lcio para
trazer à tona as impressõ es digitais.
Sentados em volta da mesa, todos
podiam ver as trê s marcas latentes
no disco. A quem pertenceriam? Aos
dedos engordurados de um rato de
laborató rio russo? Aos dedos
traidores de um informante
americano?BenfordsabiaqueMarble
jamais teria manuseado o CD
diretamente:
o
general
era
competenteecautelosodemaispara
fazer isso. Os agentes especiais
fotografaram todo o material,
mandaram as fotos para serem
ampliadasemlaborató rioesó entã o
foi possı́vel dar inı́cio a uma busca
automatizadanosarquivosdoFBI.
Benford estava voltando para a
CIA quando o telefone de seu carro
tocou. Era o vice-diretor do
Departamento
de
Serviços
LaboratoriaisdoFBI.
— Sugiro que você entre no
primeiro retorno e volte correndo
pra cá . Nã o vai acreditar no que
acabamosdedescobrir—disseele.
— E bom que seja algo muito
importante — retrucou Benford,
mudando de pista para tomar a
rampamaispróximadaautoestrada.
— Ah, pode acreditar que é
muitoimportante—falouohomem.
A SALADA DE FRANGO (LARB
GAI) DE BENFORD
Cortar filés de peito de frango
em fa as finas com uma faca grande
ou um cutelo. Temperar com suco de
limão e vinho de arroz e saltear no
óleo quente. Deixar esfriar e marinar
em caldo de peixe com sal, pimenta,
capim-limão, alho picado, pimenta
dedo de moça e raspas de limão.
Reservar por algumas horas, depois
acrescentar
coentro,
manjericão,
hortelã e cebolinha. Mexer bem. Servir
sobre
um
leito
de
alface,
acompanhado de arroz.
CAPÍTULO 35
EM 2005, FOI ESBOÇADO E
discutido no Comitê Judiciá rio do
Congresso americano um projeto de
lei com vistas a regulamentar o uso
deimpressõ esdigitaiseamostrasde
DNA em medidas de segurança. Por
uma sé rie de motivos polı́ticos que
nada tinham a ver com a segurança
nacional, poré m, a votaçã o foi
postergada duas vezes e o projeto,
apó s um tempo, engavetado. A ideia
era estabelecer um banco de dados
nacional de impressõ es digitais e
informaçõ es
gené ticas
para
levantamento
de
histó ricos
criminais, registro de imigrantes e
identi icaçã o
de
funcioná rios
federais em posiçõ es crı́ticas. A
é poca, o lı́der dos democratas no
Senado sugerira à senadora recé meleita Stephanie Boucher que, em
prol da cortesia bipartidarista, ela
integrasse uma bancada mista de
democratas e republicanos para a
defesadotalprojeto.Emboravissea
formaçã o de um banco nacional de
dados biográ icos como uma
escandalosainvasã oà privacidade,a
senadora acreditava que o apoio
pú blico a esse tipo de projeto daria
credibilidade à sua plataforma
polı́tica, basicamente centrada na
segurançanacional,eseriavistocom
bons olhos por seus eleitores
californianos do setor aeroespacial.
Numa coletiva de imprensa, os
membros dessa bancada haviam
concordadoemcoletaralimesmoas
impressõ es digitais e o material
gené tico de cada um. Sorrindo para
as câ meras, Stephanie Boucher
permitira que um té cnico coletasse
amostrasdesuasalivaenquantoum
assessor mais curioso indagava
quantos nucleotı́deos de DNA
poderiam ser encontrados no
interior de uma boca em dado
momento.
O resultado desse teatrinho
bipartidá rio realizado quase uma
dé cadaantes(esquecidohaviamuito
tempo
pela
senadora
e
completamente ignorado por seus
operadores no SVR) era que as
impressõ es digitais de Stephanie
Boucher haviam sido incluı́das na
base de dados do FBI. Ao receber as
impressõ es parciais de um polegar,
umdedomé dioeumanular,colhidas
de um CD da Path inder Satellite
Corporation roubado de um
laborató rio do SVR, o sistema
computadorizadonã olevounemdez
minutos para identi icar as latentes
dasenadoraentreasmaisde25mil
impressõ es civis armazenadas no
sistema.
Ao longo dos dias seguintes,
Benford
e
os
chefes
de
contrainteligê ncia do FBI se
reuniram diversas vezes em ambas
as margens do Potomac, nã o tanto
para determinar quem tinha
prioridade sobre aquele caso ou
discutir as complexidades de uma
ampla operaçã o policial envolvendo
uma senadora da Repú blica, mas
principalmente para decidir o que
fazerparaimpedirqueaCasaBranca,
o Conselho de Segurança Nacional, a
Polı́cia do Capitó lio, o Senado
Americano,oJudiciá riodoEstadoda
Califó rnia, o Conselho Municipal de
Los Angeles e a Associaçã o
Californiana dos Produtores de UvaPassa vazassem detalhes da
investigaçãoparaamídia.
—Aú ltimacoisaquequeremos
é queStephanieentreempâ nicoese
mandeparaaRú ssia—disseCharles
Montgomery, mais conhecido como
Chaz, chefe da Divisã o de Segurança
NacionaldoFBI.
— Bobagem — retrucou
Benford,recolhendoseusmapasapós
um longo debate sobre esquemas e
rotas de vigilâ ncia. — Mandar essa
mulher
permanentemente
pra
Moscouseriamelhordoquedetonar
uma bomba de nê utrons na Praça
Vermelha.
Juntos,aCIAeoFBIformularam
um plano tá tico para a vigilâ ncia da
senadora,tantoemcampoquantoem
ligaçõ es
telefô nicas,
correspondê ncias e até mesmo no
lixo. Stephanie nã o sabia, mas se
tornara a donzela de cabelos
douradosquecaminhavaincautapor
um pâ ntano cinzento enquanto os
cã es começavam a uivar por trá s da
neblina, do alto dos rochedos, do
interior das ravinas lamacentas. Já
eratardedemaisparacorrer.
***
AcasadeStephanieBoucher,na
Califó rnia, icava no alto de uma
colinaemBrentwood,razoavelmente
afastada da civilizaçã o, um casarã o
de cinco quartos em estilo
campestre, telhado de á guas muito
ı́ngremes e revestimento de ardó sia,
vista para o Pacı́ ico de um lado e
paraasluzesdeLosAngelesdeoutro.
Nopá tiointernodaconstruçã oemU
havia uma piscina de fundo preto e
um amplo deque onde agora batia o
soldamanhã .Aportadecorrerdaala
dos quartos estava aberta, e por ela
passava a melodia suave e sedutora
de“MissChateleine”,dek.d.lang.
Stephanie ainda estava deitada
na cama enorme, que transmitia
certa severidade escandinava em
razã odacabeceiradefreixopreto.O
tom escuro contrastava com os
matizes bege e creme que
predominavam no resto da
decoraçã o. A senadora estava nua,
com os cabelos presos no alto da
cabeça. A seu lado havia um rapaz
com metade da idade dela, um
jogador de beisebol de 20 e poucos
anosquejogavanosDodgersounos
Angels em uma posiçã o que ela nã o
lembravadireitoqualera.Dormia,nu
també m, negro como um deus de
é bano, a pele ú mida com o suor da
manhã , os mú sculos lembrando os
seixos no fundo de um riacho. Jazia
debruçoscomaspernascruzadasna
alturadostornozelos.
Stephanieselevantoucomtodo
o cuidado para nã o acordar o fulano
cujonomeelanã orecordava.Fezisso
maisparaevitarumanovarodadade
trabalhosdoqueporconsideraçã oao
sono dele. A noite fora agitada o
bastante,comhorasdesexo,algumas
delasbastantedolorosas:pernasnã o
haviam sido feitas para serem tã o
esticadas e certas partes do corpo
deveriam ser dobradas em apenas
umadireçã o.Masesseeraopreçodo
paraı́so,elapensouenquantodeixava
a cama com uma leve coceira nas
costas,nascoxasenoventre.
Stephanie penteava os cabelos
no banheiro quando visualizou no
espelho a imagem da mã e e se
lembrou dela ainda nos tempos da
casinha em Hermosa, refestelada na
cama, dividindo um cigarro com o
homem da vez, ora um velho
barrigudo, ora um jovem magricela,
comumatatuagemouumbigode,um
rabodecavaloouacabeçaraspada,e
ela,Stephanie,fechandoaportapara
nã oterdeveraquilo,olhandoparao
reló gio da cozinha e rezando para
que pelo menos uma vez na vida o
pai, sempre acanhado e medroso,
voltassemaiscedodotrabalho.Apó s
o enterro, e o julgamento, ela se
olharaemoutroespelhoedisseraasi
mesmaqueningué m a ajudaria caso
elanã oajudasseasimesma,motivo
peloqualhaviatelefonadoparaopai
e pedido que ele voltasse para casa
naquelefimdetarde.
***
A senadora agora se reclinava
numa espreguiçadeira ao lado da
piscina enquanto beliscava uma
salada de camarã o com cominho e
endro. Vestira um roupã o branco a
im de poupar sua assistente do
desconfortodevê -lacomosseiosde
fora enquanto trabalhavam juntas.
Missy, a mais recente aquisiçã o de
sua equipe de assessores, era uma
mocinhagorduchaetı́midaquetinha
o há bito de roer as unhas e agora
estava sentada à mesa cercada de
papé is. Era a terceira secretá ria
pessoaldasenadoraemdozemeses.
As ossadas dos ex-integrantes da
equipe Boucher encontravam-se
espalhadas ao longo de todo o
caminho entre Washington e Los
Angeles. Missy lia de um arquivo,
repassando os compromissos da
chefe para os pró ximos dias na
Califó rnia. Havia duas palestras
previstas em San Diego e
Sacramento,umbrie ingcon idencial
na sede da Path inder Satellite em
Los Angeles e um jantar ilantó pico
emSã oFrancisco.Elateriadevoltar
a Washington no má ximo até terçafeiradasemanaseguinte,atempoda
votaçã o
de
novos
aportes
orçamentá rios para o Pentá gono.
Stephanie pediu à mocinha que a
lembrasse de solicitar uma revisã o
completa do orçamento con idencial
da CIA. Sua intençã o era en iar
algumas coisas desagradá veis na
bunda daqueles folgados nos
próximosmeses.
Essa imagem fez Stephanie
olharparaasportasabertasdooutro
lado da piscina. Seu jogador ainda
dormia,graçasaDeus.Elapediriaao
motoristaqueolevassedevoltapara
oestádio,paraMalibuoupara...
Movimento. Muito movimento
dentro de casa. A empregada surgiu
na á rea da piscina junto com quatro
homens. Trê s deles usavam terno,
camisa branca, gravata discreta,
sapatos de cadarço e ó culos estilo
aviador; apenas um carregava uma
maleta.OquartoeraNate,magroede
cabelos negros. Ele vestia um blazer
porcimadeumacamisadealgodã o,
calças jeans e mocassins. Stephanie
sentiuocoraçãodisparar,farejandoo
perigo.Fossemquemfossemaqueles
burocratas, ela nã o deixaria barato:
fariaumescâ ndaloporcontadaquela
invasã o absurda. No entanto, nã o
teve tempo para desferir o primeiro
tiro, pois o mais velho da trinca de
engravatadosfoilogodizendo:
—SenadoraStephanieBoucher?
Meu nome é Charles Montgomery e
sou agente especial da Divisã o de
Segurança Nacional do FBI. — Ele
pegou a carteira para apresentar o
distintivo. Os outros dois colegas
izeram o mesmo, mas Nate
permaneceu imó vel. — A senhora
está presa por repassar informaçõ es
con idenciais a uma potê ncia
estrangeira, o que constitui uma
violaçã oaoartigo18,seçõ es794(a)e
794(c) da Lei de Espionagem de
1917.
Stephanie ergueu os olhos para
os homens, estreitando as pá lpebras
contra a claridade. Deixou de
propó sito o roupã o como estava,
ligeiramente caı́do na altura dos
ombros, evidenciando as curvas dos
seiospequenos.
— Do que você está falando?
Ficou doido? Acha que pode entrar
assim na minha casa, sem hora
marcada?
Missy nem piscava enquanto
corria os olhos de um lado a outro,
oraparaachefe,oraparaoshomens.
—Senadora,precisopedirquea
senhoravá sevestir—disseoagente
doFBI.
Em seguida fez a leitura de
praxe dos direitos dela ao mesmo
tempo que a puxava pelo cotovelo,
obrigando-aaselevantar.
— Tire as mã os de mim! —
exigiu Stephanie. — Sou uma
senadora da Repú blica. Você s nã o
fazem ideia da encrenca em que
estãosemetendo.
Entã osevirouparaasecretá ria
gordinha, que continuava muda à
mesa, repassando mentalmente
como o dia havia começado (meia
hora de gemidos sensuais vindos do
quarto da chefe) e como ele estava
progredindo (o FBI levando a
senadora presa). Já se perguntava
comoaquilotudopoderiaterminar.
— Missy, pegue o telefone.
Quero que você faça trê s ligaçõ es
para mim agora mesmo —
prosseguiu
Stephanie,
ainda
imobilizada por Montgomery. —
Primeiro,paraopromotordoestado.
Nã o quero nem saber onde ele está
ou o que está fazendo: coloque-o na
linha.Depois,telefonepropresidente
do SSCI. Mesma coisa: quero o
homem na linha em cinco minutos.
Por ú ltimo, meu advogado. Mande-o
virpracá agoramesmo.—Dirigindose aos homens que formavam um
semicı́rculo à sua volta, falou: — O
chefe de você s no Departamento de
Justiça vai en iar um espeto no rabo
de cada um, e meu advogado vai
terminarochurrasco.
Missy
foi
recolhendo
apressadamente a papelada sobre a
mesa,masumdosagentesdisse:
— Senhorita, sinto muito, mas
vamosterdelevaressespapéis.
Missy olhou para ele, depois
para a chefe, em seguida saiu
correndoparadentrodecasa.
Os agentes levaram Stephanie
da piscina para a ala principal da
mansã o.Nasala,elasedesvencilhou
de forma brusca do homem que a
seguravaecuspiu:
—Já disseparatiraremasmã os
decimademim,porra.Istotudoéum
absurdo.Você snã opodemmeacusar
dessa forma. Onde estã o as
evidências,asprovas?
Ela andou de maneira decidida
emdireçãoaosofáesesentou.Aessa
altura sua fachada de segurança e
empá iajá estavaumpoucorachada.
Ela precisava ganhar tempo até que
seu advogado chegasse. Golov talvez
tivesse alguma razã o naquela sua
ladainha constante sobre segurança,
talvez tivesse sido mais prudente
ouvi-lo.Aindaassim,oFBInã osabia
denada.Orussoeraumpro issional,
seriaimpossívelprovaralgumacoisa.
Stephanie nã o se dava conta de que
foraelaquemcavaraaprópriacova.
— Vou esperar meu advogado
— decretou ela, cruzando os braços
naalturadopeito.
—
Senadora,
já nos
identi icamoscomoagentesfederais
elemosos seus direitos exatamente
como manda a lei. A senhora
entendeu o que foi dito? —
perguntou Montgomery, e na
ausê nciaderespostaemendou:—Se
nã otiverentendido,vourepetirtudo.
Caso tenha entendido, nos dê algum
sinal disso. Mantendo esses direitos
emmente,asenhoravaiquererfalar
conoscoagora?
Stephanie
percebeu
que
qualquer
contemporizaçã o
e
protelaçã oseriade seu interesse. As
ligaçõ esparaWashingtoneparaseu
advogado em breve resultariam
numa torrente de açõ es que
estenderia aquele caso por muitos
meses, senã o anos. Uma vez que o
caso nã o era de lagrante, nã o
poderiam provar merda nenhuma.
Alegaçõ es, conclusõ es equivocadas,
associaçõ es
sem
nenhuma
substâ ncia. Ela conhecia muito bem
todas aquelas tá ticas. Estava
preparada para medir forças com o
melhordeles.
— Nã o vou responder pergunta
nenhuma—falou.
Montgomerytirouumapastade
sua maleta e a deixou sobre a mesa
diante de Stephanie. Ao abri-la, a
senadoradeparoucomumalistagem
das reuniõ es con idenciais que ela
tiveranasededaPath inderSatellite
Corporation,alé mdeextratosdesua
conta bancá ria pessoal nos quais se
viam diversos depó sitos anô nimos
novalorde9.500dó lares,totalizando
alguns milhares de dó lares. Ela se
lembrava de ter pedido esses
pagamentoscontingenciaisaGolove
que ele havia tentado dissuadi-la.
Mas seus instintos de guerreira
parlamentardiziamquenadadaquilo
constituı́a uma prova concreta, que
umbomadvogadonã oteriaamenor
di iculdade para levantar dú vidas,
confundir e protelar. Encarando o
agente com um ar de desa io, ela
disse:
— Só um monte de papel. Isso
nãosignificaabsolutamentenada.
— Senadora, por favor dê uma
olhada no ú ltimo documento do
arquivo — pediu Montgomery, e
esperouqueelapassasseaspá ginas.
Na penú ltima havia uma foto
bastante nı́tida de um CD da
Path inder polvilhado com um pó
branco. — Conseguimos esse disco
em Moscou, e encontramos as suas
impressõesdigitaisnele.
Stephanie nã o respondeu. O
silê ncio seria completo nã o fosse
pela melodia que chegava até eles
vindadasentranhasdacasa:alguma
mú sica do á lbumOut of Silence, de
Yanni,comJohnTeshnosteclados,o
predileto de Missy. Montgomery
pigarreou e colocou mais uma folha
diantedasenadora.
— O que é isso? — perguntou
ela.
—Seasenhoracompreendeuos
seus direitos tal como eles foram
explicados, isto é uma con issã o de
culpa para a acusaçã o de
espionagem.Asenhoravaiassinar?
— Você está achando que vou
assinarumaconfissãodeculpa?
Stephanie nã o se deu conta de
que o roupã o estava aberto. Os
agentes faziam o possı́vel para nã o
olhar.
— A senhora nã o é obrigada a
assinar
nada
—
retrucou
Montgomery. — Estou apenas
apresentandoumaopção.
Stephanie podia ter muitos
defeitos,masaindecisã onã oeraum
deles. Acreditava em si mesma e
tinha plena convicçã o de que
merecia,oumelhor,dequeavidalhe
devia sucesso, dinheiro e todo o
confortodoqualelaagoradesfrutava.
Nã o era de seu feitio ceder a quem
quer que fosse. Muito menos a um
bando de caipiras como aqueles.
Ainda estava para nascer quem
roubariadelaopodereoprestı́giode
um cargo eletivo. Ainda estava para
nascer quem a faria mofar numa
prisã o pelo resto da vida. Ela nã o
deixaria isso acontecer. Olhou para
oshomensàsuavolta.
—Muitobem,euassino—disse
abruptamente.
Osagentesseentreolharampor
um instante. Um deles se adiantou
para entregar a pró pria caneta, uma
Skillcraft de plá stico branco com as
palavras GOVERNO DOS ESTADOS
UNIDOS estampadas na lateral.
Stephanie olhou para a caneta e
acenoucomamão,descartando-a.
— Missy, vá buscar minha
canetanoescritório—ordenou.
A assistente, até entã o
pendurada ao telefone, saiu para o
escritó rioevoltoudaliapoucocoma
MontblancEtoiledachefe.Stephanie
desenroscou a tampa, debruçou-se
sobreopapelerabiscoualgonalinha
inferiordodocumento.
— Está perguntouela.
bom
assim?
—
Montgomery examinou o papel
e,sorrindo,disse:
— Imagino que “Vai tomar no
cu”nã osejaadmissı́velemjuı́zo.Mas
nãosoueuquemvaiobjetar.
— E quem é aquele cara ali? —
indagou Stephanie, apontando para
Nate.
Seguiu-se um momento de
silê ncio desconcertado enquanto
todos viravam as cabeças para ele.
Aproveitando
a
oportunidade,
Stephanie tampou a caneta, sacou a
agulhaescondidanoclipeeespetouanumaveiadobraçoesquerdo.Nate,
o ú nico a ver o que ela izera,
irrompeu imediatamente na direçã o
do sofá e jogou a caneta para longe
comumtapa.
Ningué m naquela sala já ouvira
falar do sapo-veneno-de- lecha,
tampouco sabia que o animalzinho
nã otinhamaisque5centı́metrosde
comprimento,camuflava-secomuma
bela estampa em tons fortes de
amarelo e vivia nas lorestas
tropicaisdaColô mbia.Umtoxicó logo
doFBIcomseumaterialdepesquisa
emmã ospoderiainformar-lhesquea
batracotoxinaencontradanapeledo
minú sculoanfı́bioé altamentenociva
aos humanos, uma neurotoxina que
paralisa os mú sculos com uma
rapidez impressionante, o su iciente
para levar a uma parada cardı́aca.
Tinham sido os quı́micos do
Laborató rio 12 da KGB, també m
conhecido como Kamera, os
primeirosacoletarearmazenaresse
venenonadé cadade1970,cientesde
que o antı́doto nã o existia e que o
composto produzido em laborató rio
nã o perdia a toxicidade nem com a
passagemdotempo,nemapóssecar.
Os efeitos produzidos pela
picada de Stephanie Boucher foram
bem menos cientı́ icos e bem mais
espetaculares.
Ela
agora
convulsionava de forma frené tica
com as pernas esticadas, os braços
tremendodescontroladamente.Dalia
pouco ela icou estirada de costas
sobreosofá comacabeçacaı́dapara
trá s, os mú sculos do pescoço
estufados, os olhos revirados. Nate
tentava imobilizar seus braços. As
mã os formavam garras rı́gidas nas
laterais do corpo e ela começou a
babar.Nenhumsomsaı́adesuaboca
esuascostasestavamtã oarqueadas
que o corpo tinha quase se dobrado
em dois. Nate se preparava para
ressuscitá -laquandoalgué mdisseà s
suascostas:
—Melhornão,cara.
Era Proctor, o mais jovem dos
agentes especiais. Ele apontava para
a espuma que começava a escapulir
doslábiosinchadosdasenadora.
Os homens icaram parados,
olhando para ela. Stephanie se
sacudiu mais duas vezes antes de
icar completamente imó vel. O
roupã o havia caı́do para o lado,
deixando um dos seios à mostra.
Nateteveadelicadezadecobri-lo.
— Caramba — comentou
Proctor.—Tudoissosó porcausade
umacanetavagabundadogoverno?
Missychoramingavanocantoda
sala. Agora sabia o im daquele dia
maluco.
SALADA DE CAMARÃO
Descascar os camarões e
cozinhá-los até que estejam firmes.
Picar cebolinha, aipo, azeitonas pretas
e cubos de queijo feta e misturar com
maionese, azeite, cominho, endro
fresco e suco de limão. Adicionar os
camarões cozidos, mexer e levar à
geladeira.
CAPÍTULO 36
VANYA
EGOROV
ESTAVA
SENTADOATRASdaescrivaninhaem
seu escritó rio escuro. Um cigarro
queimava esquecido no cinzeiro. O
vice-diretor olhava as imagens do
noticiá riodeumcanalamericanona
TV de tela plana, da qual ele havia
tirado o som. Um repó rter louro e
beiçudo encontrava-se diante de um
portã o coberto de hera numa rua
arborizada de Los Angeles. No canto
da tela via-se uma foto antiga de
StephanieBoucher.Naparteinferior,
uma barra de informaçõ es dizia:
“Senadoracalifornianamortaaos45,
possivelmentevítimadeinfarto.”
Swan. O ativo mais importante
da inteligê ncia russa nas ú ltimas
cinco dé cadas. Vı́tima de infarto.
Mentira. Era bem prová vel que ela
tivesse usado a caneta suicida que
Golov solicitara e que Egorov havia
autorizado. Aquilo era um pesadelo.
Quem poderia ter imaginado que os
americanos fossem descobrir tã o
rá pido a identidade dela? E quem
poderia ter previsto, sobretudo na
era pó s-Guerra Fria de informantes
cé lebres e polı́ticos espiõ es, que o
caso Swan tivesse um desfecho tã o
dramá tico,tã oviolento,tã osoviético?
O traidor coordenado pela CIA era o
principal responsá vel por aquela
perda tã o grave. Se conseguisse
desmascará -lo,Egorovaindapoderia
salvarsuacarreira.
No momento havia apenas dois
caminhos a seguir: Nasarenko, o
chefe
té cnico
implicado
na
armadilha, e Nathaniel Nash, o
operador da CIA. Egorov pegou o
controle remoto da TV e mudou de
canal. Uma imagem bastante nı́tida
de Nasarenko surgiu em cores na
tela. Cada segundo das muitas horas
de interrogató rio nos porõ es de
Butyrkahaviasido ilmado,eEgorov
tinha cada vez mais certeza: aquele
espantalho di icilmente seria capaz
de espionar para os americanos. As
gravaçõ es
mostravam
os
espancamentos, a histeria induzida
por drogas, Zyuganov metido num
uniforme militar ao interpelar sua
presa.
A parte relevante da gravaçã o
foramarcadaeEgorovadiantoua ita
para o ponto certo do contador.
Atordoado, Nasarenko admitia ter
falado sobre seu excesso de serviço
com Vladimir Korchnoi, chefe do
Departamento
das
Amé ricas.
Korchnoi havia oferecido dois de
seus analistas para ajudá -lo.
Nasarenko mostrara ao general um
dos Cds americanos durante a
conversa. Nã o, ele nã o havia
recontado os discos depois. No
entanto,
pelos
cá lculos
dos
investigadores, um deles sumira.
Nã o, era ridı́culo pensar que
Korchnoipudesseterlevadoconsigo
otalCD.Impossível.
Impossível?,pensouEgorov.
Ele conhecia Volodya Korchnoi
havia quase 25 anos, desde os
tempos da academia. Korchnoi se
revelaraumextraordiná riooperador
de campo: habilidoso, ousado,
esperto, o tipo de homem
teoricamente capaz de sobreviver
aos muitos perigos da vida dupla.
Alé m disso, servira diversas vezes
fora do paı́s; oportunidades nã o
haviam faltado para que ele se
aproximasse dos americanos. Nã o.
Impossível. Nasarenko passaria
meses repetindo a mesma histó ria,
cuspindo os mesmos nomes e as
mesmas
explicaçõ es.
Mais
contemporizaçõ es, mais atrasos.
Egorov discutiria com Zyuganov a
hipó tesedeKorchnoi,masagoranã o
haviatempo.OamericanoNasheraa
chave.Dominikajá estavaacaminho
daGré cia.Restavaesperarparavero
queaconteceria.
***
Dominika
icara maravilhada
com a luz de Atenas. A de Roma era
bemmaisbranda,dourada.Masado
Egeu era impressionante: brilhava
tantonobrancodasfachadasquanto
no preto das ruas. No centro da
cidade,tá xis,caminhõ esemotonetas
pareciam se derramar da Avenida
Vassilis So ias feito uma enxurrada
para depois se bifurcar na Praça
Syntagmaenopré diodoParlamento
Helê nico, sumindo em seguida nas
ruas menores que levavam a Plaka.
Dominika saiu do hotel e desceu a
movimentada
Rua
Ermou,
observando as vitrines pelas quais
passava. Numa delas, sacolas e
mochilas de toda sorte. Noutra,
luminá riasematerialelé trico.Numa
terceira, manequins com estolas de
raposa pareciam itá -la nos olhos,
inclinando a cabeça como se
dissessem:“Fiqueatenta,garota.”
Seguindo o conselho, Dominika
redobrou seus cuidados na rua,
atravessando para o outro lado,
entrando
e
saindo
de
estabelecimentos,
usando
os
espelhos das lojas para observar e
marcar os pedestres: um baixinho,
ummoreno,outrodebigode,umade
camisetaregata,outradechinelosde
borracha, um outro de olhos muito
pretos e irrequietos. O ar recendia a
castanhas torradas; na esquina, um
realejo cantarolava sua cançã o.
Dominika sabia muito bem no que
deveria prestar atençã o: rostos
estrangeiros, olhos azuis, maçã s
eslá vicas. Auras escuras, amareladas
ou verdes; sinais de perigo, de
engodo,deestresse.
Ela usava um vestido azul de
algodã o com decote quadrado e um
pardesandá liaspretas,alé mdeuma
bolsinhademã oeó culosescurosde
armaçã o redonda. No pulso, um
reló gio barato de mostrador preto e
corrente metá lica. Os cabelos
estavam presos no alto, um alı́vio
paraocalormatinal.Eraapenasuma
informante russa de olhos azuis
fazendo sua contravigilâ ncia a
caminhodeumencontroclandestino
comseuoperadoramericano.
DominikasaiudaErmou,entrou
numa ruazinha transversal e passou
por vitrines agora minú sculas, bem
diferentes das anteriores, nas quais
eram expostos diversos artigos de
natureza religiosa: paramentos,
batinas, estolas e mitras. Cruci ixos
de prata pendiam de suas pesadas
correntes e giravam lentamente no
ar: uma vez, duas vezes, trê s, e
Dominika continuava sozinha ali,
nenhumoutropedestreà vista.Mais
à frente, bem no centro da Rua
Ermou, icava a capela bizantina de
Kapnikarea, com sua fachada de
pedraslargas,janelas inasetelhado
de mú ltiplas á guas. Dominika voltou
para a Ermou, desceu cinco degraus
—onı́veldaruanoanode1050—e
entrounacapela.
O interior era minú sculo. Os
afrescos e ı́cones nos arcos do teto
estavam lascados e manchados de
á gua,eossinuosostextosbizantinos,
desbotados havia muito tempo,
talvez em razã o dos sé culos de
fumaçadeincensosevelas.Pertoda
porta icava uma bandeja de areia
com inú meras velas espetadas,
algumas inclinadas para o lado das
vizinhas.Dominikapegouumanovae
aacendeunachamadeoutra.
Ainda nã o a tinha espetado na
areia quando algué m se adiantou
para acender a pró pria vela na dela.
Ao virar o rosto, ela deparou com
Nate à s suas costas, sé rio, o halo
violeta conferindo-lhe uma estranha
semelhançacomossantosbizantinos
dos afrescos lascados. Ele sinalizou
para que ela nã o dissesse nada,
depoisapontoucomoqueixoparaa
porta e saiu. Dominika esperou
alguns minutos, en iou sua vela na
areia e voltou para a confusã o da
cidade.
Nate a aguardava do outro lado
da rua, e ela foi ao encontro dele.
Nate,ooperadorsé rioepro issional,
à espera de seu ativo. Dominika
lembrou-se dos momentos de
intimidade que eles tiveram em
Roma e Helsinque. Para alé m da
espionagem, os dois haviam sido
amantes, uma relaçã o duplamente
clandestina, poré m vital, voraz e
verdadeira.
Para ele a memó ria do que
tinham vivido era um pouco mais
complicada. Ele dormira com sua
informante, colocando em risco nã o
só asegurançadela,comotambé mo
pró priofuturo,umenganoterrı́vel.Já
fora advertido por Forsyth e Gable,
homens que respeitava, e mesmo
assim repetira o erro em Roma,
sabendoqueochefeestavanoquarto
aolado.Ficaraarrasadoaosaberque
Dominika fora chamada de volta a
Moscou,eculpava-seportudooque
ela havia passado depois. Agora eles
tinhamumamissã oacumprirjuntos,
mas vendo o suor que se acumulava
acima dos lá bios dela, sua vontade
eraseaproximaretocá-la.
Dominika percebia tudo isso
com sua clarividê ncia ú nica.
Manteve-se afastada, sem oferecer a
mã o, e observou os olhos dele, o
violeta que o emoldurava. Via
perfeitamente que ele pretendia
tratá -la
apenas
como
uma
informante, um ativo da CIA, mas na
realidadeosdoiserambemmaisque
isso. Já que ele se recusava a dar o
primeiro passo, restava a ela
comportar-se com o mesmo
profissionalismo.
— Vamos? — falou, e seguiu
atrá sdeleruaacimaquandoNatese
virouecomeçouaandar.
Elesseembrenharamnasruelas
do coraçã o de Plaka, dobrando ora à
esquerda, ora à direita, numa rota à
primeira vista sem destino, um
caminho que obrigaria qualquer
esquemadevigilâ nciaadarascaras
naquele labirinto de pá tios,
passagens estreitas e pequenas
praças. A mú sica escapava das lojas,
quetinhamasportasdecoradascom
guirlandas amarelas artesanais. Era
possı́vel sentir o perfume dos
incensosedossândalos.Natelançava
olhares rá pidos na direçã o de
Dominika,queassentiacomacabeça
querendo dizer que nã o havia
ningué m que ela pudesse ver. Ele
anuíaemconcordância.
A tarde caı́a quando en im eles
chegaram à Praça Filomouson, cheia
de restaurantes. Mesas, toldos e
guarda-só is se espalhavam sob as
ileirasdelâ mpadasquesecruzavam
noalto.Otilintardepratosepanelas
chegava ao lado de fora dos
estabelecimentos,vindodasdiversas
cozinhas. Nate conduziu Dominika
até umaportinhaverdedecré pita,ao
lado da qual uma placa informava:
TAVERNA XINOS. Eles entraram,
seguiramparaoquintaldecascalhoe
se acomodaram numa mesinha de
canto.Natefezopedido:umasalada
detaramocombroto de beterraba e
uma
porçã o
depapoutsakia,
berinjelas assadas recheadas com
carne de cordeiro moı́da, canela,
tomatesemolhobechamel.
Enquanto
comiam,
eles
discutiam com o má ximo de
discriçã o possı́vel o que Dominika
deveria dizer quando voltasse a
Moscou. Combinaram que ela
contaria à central que o seduzira, e
nesse momento Nate precisou
desviaroolharporalgunssegundos.
Ela diria, ainda, que ele estava
começandoafalardeseutrabalho,o
pardal russo enredando o ingê nuo
americanocomsuasartimanhas.Eles
tinham dois dias para fabricar essa
histó ria, durante os quais deveriam
se manter distantes do quarto dela,
atentosaqualquersinaldevigilâ ncia
russa. Nenhum contato seria feito
comaestação.
— Duvido que você adivinhe
quem está em Atenas — disse Nate,
enchendo o copo dela com oretsina
servido numa jarra de alumı́nio
amassada.—Forsyth. Ele chegou há
dois meses. Agora é o chefe da
estaçãodeAtenas.
Dominikasorriu.
— EBratok? Veio també m? —
quissaberDominika.
Imaginavaseosdoissabiamde
seucasoamoroso.
— Gable? Claro que veio.
Aqueles dois sã o insepará veis —
respondeu Nate, e a conversa
empacou.Haviaumcertopesonoar,
sobre a cabeça de ambos. Eles se
entreolharam em silê ncio, os olhos
de Nate icando turvos. — Temos
dois dias — falou ele a inal. — E
importante fazermos toda a
encenaçã o, preenchermos esse
tempo.
— Sim — concordou Dominika.
— Precisamos encenar inclusive as
nossas conversas, pra que depois eu
possa fazer meus relató rios pra
central. Tudo deve parecer...
podlinnyj. Como é mesmo que se diz
isso?
—Autê ntico—respondeuNate.
— Exatamente, precisamos parecer
autênticos.
— E importante que eu tenha
muitosdetalhespracontardepois—
emendou Dominika, lembrando-se
dosinterrogatóriosemLefortovo.
Emseguidaoassuntomorreude
novo. Ambos sentiam nos ombros o
pesodamentira,danegaçã odeseus
sentimentos. A nuvem violeta de
Nate era sempre a mesma, como se
nenhum con lito o atormentasse.
Dominikaprocurouseconcentrar.Ao
sair do restaurante, eles seguiram
pela periferia de Plaka, percorrendo
asruelasescurasvizinhasdosmuros
da Acró pole. A certa altura, subiram
uma escada estreita com vasos
loridos em cada degrau. No alto,
Dominika segurou Nate pelo braço
para que ele parasse. Por um breve
instante icaram ali, no escuro,
correndo os olhos à sua volta,
procurando ouvir passos no silê ncio
da noite. Nã o escutaram nada, e
Dominikaosoltou.
— Aqui a gente precisa decidir
— sussurrou ele. — O que vamos
fazer? Cada um vai pro seu hotel e
voltamosanosveramanhã?
Dominika nã o tinha a menor
intençãodefacilitarascoisas.
— E se meu quarto estiver
monitorado? O esperado é que você
me convide pro seu hotel, e que eu
aceiteoconvite.
Nate teve a sensaçã o de que
estava pulando de cabeça nas á guas
geladasdeumlago.
— Você tem razã o. A inal,
precisamosserautênticos,nãoé?
Eles se entreolharam por mais
umminuto.
—Então,vamos?—disseNate.
— Como você quiser —
respondeuDominika.
***
Serguei
Matorin
estava
completamentenudiantedoespelho
de seu quarto no King George Hotel,
na Praça Syntagma. Sabia que
Dominika estava hospedada no
vizinho
Grande
Bretagne.
Remanescentes de um passado
glorioso, os dois hoté is ainda
guardavam certa elegâ ncia do Velho
Mundo que contrastava com a
confusã o da cidade. Matorin nã o
estavanafrentedaqueleespelhopara
admirar seu corpo lanhado de
cicatrizesafegã secomumburacono
ombro direito no ponto em que ele
fora ferido ao liderar uma manobra
com seu Grupo Alfa no Bazar de
Ghazni. Nã o. Estava ali para se
concentrar melhor nos movimentos
d etai chi que vinha praticando, no
seu lento balé de ataques, defesas,
pivô s e imobilizaçõ es. Um apolo
bailando em meio à cacofonia do
trâ nsitoquevinhadarua.Terminada
a prá tica, ele dobrou o tronco o
má ximo possı́vel, voltou a se
reerguer e respirou fundo, o olho
opacoimóvelnaórbita.
Em seguida pegou sua mala de
rodinhas e a esvaziou em cima da
cama. Desparafusou a estrutura
metá licaechegouaocompartimento
secreto, engenhosamente concebido
pelosté cnicosdeMoscou,noqualele
escondia seu facã o Khyber sempre
queprecisavaviajar.Comaarmaem
punho, voltou para a frente do
espelho e simulou uma sé rie de
golpesdecombate,alâ minachiando
baixinhoaocortaroar.
Matorin suava profusamente
por causa do exercı́cio. Manchou o
brocado azul-claro de uma cadeira
Luı́s XIV ao se sentar nela para uma
inusitadaoperaçã o:pegouocinzeiro
de cerâ mica do hotel, virou-o de
cabeçaparabaixoeusouasuperfı́cie
á spera para a iar seu facã o com
movimentos precisos, a estridê ncia
daaçã osesobrepondoaobarulhoda
rua. Dali a pouco, satisfeito com o
resultado de seu trabalho, largou a
arma e tirou da mala uma pequena
sacola fechada com zı́per e
etiquetada com a palavra INSULINA.
Pescou lá de dentro duas grossas
seringasautoaplicá veis,umaamarela
e a outra vermelha, concebidas para
seremusadasnomúsculodacoxaou
nas ná degas. A primeira continha
umadosedeSP-117,umcomposto
de barbiturato desenvolvido pela
Linha S. Essa seria usada para as
perguntas. Já a vermelha, do
Laborató rio 12, continha 100
miligramas
de
pancurô nio,
substâ ncia capaz de paralisar o
diafragma em noventa segundos.
Essa seria para depois. Duas
seringas.Oamareloeovermelhodas
Spetsnaz.
***
Eles
pegaram
um
tá xi
e
seguiramemsilê ncioparaohotelde
Nate,oSt.GeorgeLycabettus,quese
aninhavaentreospinheirosdacolina
Likavittos.Davarandadoquartoera
possı́velveroPartenoniluminado,o
vasto tapete de luzes urbanas que
cintilavaaté anegritudedomar,até o
porto em que Egeu se sentara à
espera das velas brancas do ilho
Teseu. Dominika deu uma olhada no
banheiro, ligando e desligando o
interruptor rapidamente. A luz que
vinha da fachada do pré dio era a
ú nica iluminaçã o do quarto. Nate
andava de um lado para outro
enquanto Dominika o observava de
braçoscruzados.
— Se você quiser mudar nosso
plano, tudo bem — disse ela de
repente. — Posso escrever no
relató rio que minha visita a seu
quarto durou menos de cinco
minutos, que o seu... ardor... foi um
tanto... como é mesmo que se diz
ukorachivatkratkiy?
—Breve—respondeuNate.
Suas cores cintilaram com a
brincadeira.
— Isso. — Dominika foi para a
porta da varanda e icou ali olhando
para o nada. — O pessoal de
Yasenevo vai adorar saber que os
agentesdaCIAnã otê mtantofô lego.
Seu desempenho vai ser a fofoca do
dialánacentral.
— Sempre adorei o humor
russo. Pena que seja tã o difı́cil de
encontrar—retrucouNate.—Masse
forpradarverossimilhançaaonosso
teatro,achoquevocê deveriapassar
anoiteaqui.
Pradarverossimilhançaaonosso
teatro,pensouDominika,edisse:
— Tudo bem, entã o. Durmo no
sofá e você no quarto. Com a porta
fechada,claro.
Nate
praticidade:
respondeu
com
—Voubuscarumcobertoreum
travesseiro pra você . Temos um
longo dia pela frente amanhã .
Fazendonada.
Dominika esperou que ele se
retirasse para o quarto e só entã o
tirou o vestido e se acomodou no
sofá .Maisumanoitedeluar,pensou
amargamente,olhandoparaaluzque
invadia o quarto. Chegou a se
levantarparafecharascortinas,mas
desistiunomeiodocaminhoevoltou
asedeitar.
Estava cansada de ser usada
feito uma bota velha por todos eles:
osvlatsi—herdeirosdaantigaUniã o
Sovié tica
—,
Korchnoi,
os
americanos.EstavafartadeNatelhe
dizer o que fazer, o que era mais
e iciente, o que nã o era. Como era
possı́vel que Korchnoi tivesse
suportadoaquiloportantotempo?E
ela, quanto aguentaria? Aguçou os
ouvidos, tentando detectar algum
ruı́donoquartodeNate.Precisavade
algo mais por parte de todos eles.
Estava cansada de ter os pró prios
sentimentosnegligenciados.
Faltava pouco para as trê s da
madrugadaquandoNate,meiozonzo,
teve a impressã o de que algué m
havia aberto a porta de seu quarto.
Uma luz difusa vinha da rua,
atravessando a transparê ncia das
cortinas.
Ergueu
a
cabeça
ligeiramente e deparou com a
silhuetadeDominika,quecaminhava
paraajanelacomseuinconfundı́vele
gracioso manquejar. Ela abriu as
cortinas, assim como a porta de
correratrá sdelas,edeixouabrisada
noite in lar os panos, enroscando-os
nela.Emseguidaseaproximoudelee
icouparadaaoladodacama.Natese
ergueu, apoiando-se num dos
cotovelos.
— Algum problema? —
perguntou.—Tudobemcomvocê?
Dominika nã o respondeu e
continuoualiempé,olhandoparaele.
Por força da pro issã o, Nate cogitou
seelatinhaouvidoalgumbarulho,se
elesseriamobrigadosafugirdalino
meio da noite. Sabia que havia uma
escadadefundos,já tinhaestudadoo
lugarmaiscedo.VendoqueDominika
nã odirianada,elesesentounacama,
pegouamãodelaeindagou:
— Domi, o que foi? O que está
acontecendo?
Numfiapodevoz,eladisse:
— Quando nó s izemos amor,
você colocou isso nos seus
relatórios?
—Doquevocê está falando?—
quissaberNate.
— Em Helsinque e em Roma,
quandoagentefezamor,você contou
paraosseussuperiores?
—Oqueagentefeznã ofoinada
pro issional. Contrariamos todas as
regras. Mas a culpa foi minha.
Coloqueiemriscoasuasegurança,a
integridadedaoperação.
Dominika o encarou por alguns
segundosemsilêncio,depoisfalou:
— A operaçã o. Você está
dizendo que... a gente colocou em
risco a continuidade darazvedka.Do
fluxodeinformaçõesdeinteligência.
— Olha — retrucou Nate —, o
queagentefezfoiumaloucura,tanto
em termos pro issionais quanto
pessoais. Quase perdemos você uma
vez, quando foi pra Moscou. Eu
pensavaemvocêotempotodo.Ainda
penso.
— Claro. Você pensa na
operaçã o. Em Dominika,o ativo
nacional.
— Ainda nã o entendi sobre o
quevocê está falando.Oquequerque
eudiga?
— Eu quero que por alguns
instantes a gente pare de pensar na
operaçã o, que sejamos só você e eu
—devolveuela,opeitoarfandosobo
sutiã.
Nate se levantou e a abraçou.
Em sua cabeça, o desejo que o
consumialutavacontraoinstintode
sobrevivê ncia.Elesentiuocheirodo
cabelodela,apressã odeseucorpo.O
Sr.AgenteOperadorestavaprestesa
escorregarumaterceiravez.
— Dominika... — balbuciou,
cientedoperigoquecorria.
— Você vai violar as regras de
novo?—perguntouela.
Podia ver o efeito que o desejo
tinha sobre o violeta da aura dele,
queagoraardiaforteobastantepara
iluminaroquarto.
—Dominika...—repetiuele,ea
olhounosolhos.
Os cı́lios dela pareciam tremer
aosabordabrisa.Nateviuorostode
Forsyth, sé rio, bravo, ameaçador.
Nateaqueriamaisdoqueeracapaz
deresistir.
—Dessavezeuqueroquevocê
viole as regras... comigo... nã o com a
sua informante. Quero que você me
viole—provocouDominika.
Emseguida,desabotoouosutiã
derenda.Elescaı́ramjuntosnacama,
eladebruços,elesejogandoporcima
dela, pesado e quente, ofegando em
s e upescoço, entrelaçando os dedos
nos dela. Dominika apertou as mã os
dele com força. Nate prendeu os
quadris dela com as pernas e a
respiraçã o de Dominika se tornou
maispesada.
—Trahnimenya...—gemeuela,
esticandoobraçoparabaixoa imde
tocá-lo.
— Quantas regras você vai me
obrigar a quebrar? — sussurrou ele
noouvidodela.
Dominika virou o rosto para
Nateemsilê ncio,querendoverseele
estavabrincandocomela.
— Cinco? Dez? — prosseguiu
Nate.
Mantendo a boca pró xima ao
ouvido dela, começou a contar até
dez bemdevagar, cada nú mero
seguidodeumaestocada:
—Odin...dva...tri...
Dominika estremecia de prazer,
ocoraçã obemmaisaceleradodoque
antes.
—Chyetirye...pyat...shest...
Elaesticouosbraços,agarrando
oslençóis.
—Syem...vosyem...dyevyat...
Osdedosagoraeramgarrasque
enrolavam as cobertas em volta dos
pulsos.
—Dyesyat, dez — disse Nate, e
ergueu o tronco das costas de
Dominika, a i nda de nt ro de la ,
o lha ndo pa ra s e u do rs o s ua do ,
s ua s ná de g a s empinadas.
Elaenterrouorostonoslençó is,
ofegante,emêxtase.
O luar agora se esparramava
dentrodoquarto.Deitadoaoladode
Dominika, Nate segurou-a pelo
queixo e beijou-a na boca. Com
delicadeza, Dominika afastou a mã o
deleefalou:
—Sevocê disseracoisaerrada,
incoumaunhanoseuolhodireitoe
jogovocêláembaixo.
—Nã oduvidonada—retrucou
Nate, acomodando a cabeça no
travesseiro.
—Eissomesmo.Eseeuquiser
mais,vouseduzirvocêdenovo.
—Tudobem,tudobem,nã ofoi
issoqueeuquisdizer.Masagoraserá
que a gente pode dormir um pouco?
Promete que vai icar boazinha pelo
menosporumtempinho?
— Claro — retrucou Dominika.
— Os bons agentes sempre seguem
asinstruções.
A BERINJELA RECHEADA DA
TABERNA XINOS
No azeite quente, refogar carne
de cordeiro moída com cebolas e
tomates picados. Temperar bem,
deixar esfriar, depois adicionar queijo
ralado, salsinha, pão
dormido
reidratado e um ovo ba do. Cortar as
berinjelas em duas, ao comprido, e
refogá-las no azeite até que amoleçam.
Re rar a polpa e reservar. Rechear a
casca com o cordeiro moído. Cobrir
com molho Mornay, borrifar com
azeite, levar ao forno num refratário
(com a polpa e um pouco de água no
fundo) e assar até dourar. Servir à
temperatura ambiente.
CAPÍTULO 37
ZYUGANOV SEGURAVA COM
FORÇA o fone do aparelho
criptografado. Era quase tã o grande
quantosuacabeça.
— Claro que eles vã o estar
atentos à vigilâ ncia — disse ele. —
Você nã o vai conseguir segui-los.
Mantenha o plano original. Já está
comtodoomaterialpreparado?Você
só vai precisar de quinze minutos.
Consegue o nome, con irma comigo,
depoisliquidaafatura.
Ele girava na cadeira enquanto
ouviaarespostadeseuinterlocutor.
Depois:
— Olha, nã o estou dizendo pra
vocênãosalvá -la,masonomeé mais
importante do que qualquer outra
coisa, mais do quequalquer um.
Entendido?
Quero
resultados.
Resultados, está me ouvindo? Agora,
aotrabalho.
***
No ú ltimo dia deles em Atenas,
os raios de sol já estavam fortes à s
nove da manhã . Cansados, moles e
meio zonzos, eles desceram a Rua
Pindarou,pararamnumdoscafé sda
PraçaKolonakieseacomodaramem
uma mesa na calçada. Pediram um
suco de laranja e brioches. Ficariam
na rua o dia todo, ensaiando o que
Dominika deveria reportar à central.
Eladeuumamordidaemseubrioche
e lambeu os dedos depois. Sentia-se
bemmelhordoquenavéspera.
—Será queeudigoquevocê me
forçou,ouqueeucoloqueiumavenda
nos seus olhos e o tranquei nu num
armário?
Ela arrancou um pedaço do
pã ozinho e o levou à boca de Nate.
Elevirouacabeçaparaooutrolado.
—Trancaralgué mnumarmá rio
nã oserianovidadenenhumanoSVR
—devolveuele.
Sentia-se irritadiço, culpado,
sem nenhuma paciê ncia para os
gracejos depois da noite de amor.
Dominika icoudesanimadaaoouvir
isso. Largou o brioche no prato,
encarou-oedisse:
—Vocêestásendoinsensível.
Masoespı́ritodocontradeNate
já estava a postos. Ele sabia muito
bemoquesentiaporDominika,mas
també m conhecia suas obrigaçõ es, e
tinha consciê ncia do que ela queria
dele, do que ele podia oferecer, do
queaCIAlhepermitiriaoferecer.Sim,
ele estava apaixonado, mas ainda
assim nã o podia deixar de se
recriminar por ter permitido,mais
uma vez, que os sentimentos
falassemmaisalto.Elogonavé spera
do dia em que Dominika teria de
voltar a Moscou e enfrentar seus
interrogadores. Na hipó tese de que
algodesseerrado,aculpaseriatoda
dele, por nã o ter sido capaz de dizer
“nã o”nanoiteanterior.Ah,osrussos,
aquelesromâ nticos.Dominikaqueria
algum tipo de relaçã o amorosa, mas
ambos eram agentes secretos e nã o
poderia haver nada entre eles que
lhestirasseofocodotrabalho.
Eleolhouparaela—seuú ltimo
pensamento foi que achava que a
amava — e Dominika leu seus
pensamentos. Viu os demô nios dele,
ohaloroxoemvoltadeseusombros,
e percebeu que a conexã o da noite
passadanãoexistiamais.
Visualizou a culpa e o
arrependimentoqueelesentia,assim
como as cores desbotadas a seu
redor. Seus pró prios demô nios
també mhaviamescapadodacaverna
feito morcegos ao anoitecer, e aos
poucos ela voltava a seu papel de
caboEgorova,sentindoopeitoarder
com agoryachnost, a irritabilidade
para a qual o general Korchnoi já a
alertara.Elaselevantouedisse:
—Voupassarnomeuhotelpara
tomarumbanho,trocarderoupa.
—Negativo—retrucouNate.—
E o ú nico lugar em que eles podem
encontrar você . Encontrar a gente.
Benfordfoiclaroaofalar...
—GospodinBenfordpodemuito
bem icarsembanhoesemtrocarde
roupa.Eunã o.Emdezminutosestou
devolta.
Nate pensou rapidamente nas
possibilidades.Ircomela?Deixá -lair
e marcar um encontro para mais
tarde? Aquela altura ele já conhecia
bem os sinais de Dominika e sabia
que ela estava furiosa. O mais
prudente seria acompanhá -la. Era
bem possı́vel que a garota sumisse
do mapa apenas para afrontá -lo, e
nesse caso... o que ele reportaria a
Washington?
— Tudo bem. Dez minutos, nã o
mais que isso — retrucou, em
seguidaatomoupelobraço.
Ela tirou o braço do dele com
todaadelicadeza.
O hotel Grande Bretagne
resplandecianaPraçaSyntagma,com
seus corrimã os de metal dourado e
suasportescochèresdeferrofundido.
Eles subiram para o quarto e Nate,
um tanto sem jeito, icou esperando
naenormeantessalacheiademó veis
e luminá rias tã o elegantes quanto o
espesso carpete Wilton. De onde
estava ele podia ver Dominika se
despindo no quarto, deixando à
mostraamesmalingeriederendada
vé spera, com a cama king size ao
fundo. Ao se sentar para tirar as
sandá lias, Dominika percebeu que
Nateaobservavaeoencaroucomar
de desa io. Sabia que sua quase
nudez mexia com o americano.
Levantou-se e foi para a porta do
quarto.
— Está aproveitando? — disse,
erguendo os braços sobre a cabeça,
provocando-o.
— Dominika, para com isso —
devolveuNate.
— Confessa, vai — continuou
ela,agoraapertandoosseioscomas
mã os. — Você ica desorientado
comigo, nã o ica? Meu plano está
funcionandodireitinho,nãoestá?
—Deformaadmirá vel.Você nã o
poderia estar se saindo melhor na
sua missã o, cabo Egorova —
respondeu
Serguei
Matorin,
emergindodoclosetque icavaentre
oquartoeobanheiro.
Falara em russo, em uma voz
rascante. Estava vestido todo de
preto, desde o blazer até os
mocassins. Com displicê ncia, ele
arremessouumasacolaeumabainha
defeltrosobreacama,ambospretos,
depoiscomeçouatiraroblazer,sem
desviarosolhosdeNate.
O quarto icou em silê ncio por
um momento e de repente, como se
despertada por um choque elé trico,
Dominika arremeteu para desferir
uma joelhada certeira na virilha do
russo.Natenã opô dedeixardenotar
a musculatura das pernas e das
ná degas dela, acentuada pela renda
preta da calcinha. Matorin ainda
gemia de dor quando desferiu um
murro no pescoço de Dominika, na
alturadaglote,eelacaiudecostasno
tapete do quarto, debatendo-se para
encherospulmões.
Nate demorou um pouco mais
para reagir. Quando se moveu,
parecia estar em câ mera lenta.
Alguém vai ter que morrer aqui,
pensou, porque o homem tinha
ouvidoaconversadelespoucoantes,
e agora bastaria um simples
telefonemaparaqueomundoviesse
abaixo.Comosetivessecheiradoum
vidro de amô nia, Nate saiu de seu
torpor,irrompeunadireçã odorusso
ejogou-secontraele.Osdoiscaı́ram
sobreumacadeirapró ximaeofrá gil
mó velseespatifoucomopesodeles,
fazendo-os desabar no chã o. Assim
que conseguiu se levantar, Nate
sentiu no rosto o efeito de trê s
pedradas, bum, bum, bum, e
imediatamentereconheceuaté cnica
da mã o aberta das brigadas russas.
Osgolpesodeixaramzonzo,masnã o
obastanteparaimpedi-lodedesferir
umachavedebraçoechutarorusso
napartedetrá sdosjoelhos.Matorin
caiu no chã o e rolou algumas vezes
antes de se reerguer com os punhos
emriste,umsorrisolargoestampado
no rosto. Tateando à sua volta, Nate
encontrou uma peça de mobiliá rio
qualquer e arremessou-a contra as
canelas do russo. Movido pela
adrenalinaquecorria em suas veias,
procurou relembrar o que sabia
sobre té cnicas de corpo a corpo,
avançouparacimadohomemecom
a almofada da mã o desferiu uma
verdadeira bomba no queixo dele,
lançando-o ao chã o mais uma vez.
Matorin se arrastou até a cama,
recuperouabainhaquehaviajogado
ali e numa questã o de segundos já
estavadepé novamente,comofacã o
em punho, desenhando com ele
pequenoscı́rculosnoar.Nateviuque
precisavarecuar,quenã opodiafazer
nada contra um facã o a menos que
encontrasse alguma arma por perto,
enã ohavianenhuma,tampoucoalgo
compridoecortanteosu icientepara
serusadocomoarma.
Dominika en im deu sinal de
vida:porsortenã ohaviasucumbido
ao murro no pescoço. Ela ergueu
acima da cabeça um vaso grande de
porcelanaemtonsdeazulebrancoe
alguns segundos depois espatifou o
pequeno tesouro nas costas de
Matorin, que caiu sobre um dos
joelhos,lú cidoosu icienteparagirar
o facã o num gesto rá pido. A lâ mina
assobiou no ar antes de abrir um
risco vermelho na pele alva de
Dominika,umcortequecomeçavana
coxa, continuava na barriga, na
diagonal,ejá começavaasangrar.Ela
cambaleou para trá s e desabou no
chã o, em seguida ergueu o tronco
para examinar a perna banhada em
sangue.
O abajur de metal dourado era
pesado o bastante para fazer algum
estrago, e Nate nã o pensou duas
vezes antes de arremessá -lo contra
Matorin, mas o russo o aparou com
um gesto impressionante, rá pido o
bastanteparaembaralhar-lheavista.
Pelo menos ele havia deixado
Dominika de lado. Com a mesma
rapidezdeantes,Matorinsereergueu
numsaltoeuminstantedepoisNate
sentiualâ minanobraçoenabarriga.
O sangue escorreu para dentro de
suas calças, quente e abundante,
dando a impressã o de que ele tinha
mijado nas pró prias pernas.
Precisava fazer alguma coisa para
deteraquelemalditofacã o.Comoum
domador de circo, Nate ergueu uma
poltrona e nesse momento sentiu
mais um rasgo na camisa, agora no
braçoesquerdo,eosanguecomeçou
aescorrercopiosamenteparaochã o.
Ele viu a ponta do facã o rasgar o
brocado da cadeira e avançou o
má ximo possı́vel, enquanto ainda
tinha forças. Tentou chutar o joelho
dorusso,masapernabambeou.Mau
sinal,pé ssimosinal,tã oruimquanto
as pegadas vermelhas que ele
deixava à s suas costas no carpete,
quantoocheirodeferroquefarejava
noar.
Dominika acompanhava a cena
do outro lado do quarto: Matorin
dançando com seu facã o Khyber
enquanto Nate cambaleava para o
lado com as roupas empapadas de
sangue. Quanta burrice ter voltado
para aquele hotel. A culpa era toda
d e l a .Idiotka. Nate continuaria
lutando até morrer, lutandopor ela.
Nã o havia mais dú vida de que ele a
amava.Aconstataçã odesseamorfoi
oquebastouparaqueela,tomadade
fú ria,encontrasseforçasparareagir.
Ficou de pé e cambaleou até a cama
para vasculhar a sacola preta que
Matorindeixaraali.Precisavadeuma
arma.Qualqueruma.
Matorin respirava sem a menor
di iculdadequandodesferiumaisum
golpe de facã o no bı́ceps de Nate.
Num gesto impensado, o americano
fechouosdedosemtornodalâminae
imediatamente sentiu-a escorrer
pela palma de sua mã o. O russo o
encarava enquanto ele fazia o
possı́vel para irmar os joelhos
bambosa imdenã ocair.Omonstro
semdú vidajá arquitetavaopró ximo
golpe, talvez um rasgo vertical no
abdô men, fundo o bastante para
eviscerá -lo, ou talvez algo mais
simplescomoumtapã onalateraldo
pescoço.
FoientãoqueDominikaavançou
nadireçã odelescomumdosseiosà
mostra,umaversã omenoscomposta
d aLiberté, de Delacroix, e cravou as
canetas vermelha e amarela que
havia encontrado na sacola nas
nádegas de Matorin. Num gesto
instintivo, o russo girou para
derrubá -la com um murro e ainda
teve tempo de vê -la bater com a
cabeça no chã o antes de sentir o ar
lhe fugir completamente dos
pulmõ es, obrigando-o a desabar no
carpete. Ofegante, e ainda com as
duas seringas espetadas no traseiro,
ele engatinhou na direçã o do
precioso facã o, mas logo seus
membros pesaram e ele começou a
sacudir a cabeça de um lado para
outro, o diafragma paralisado pelos
barbitú ricos, o cé rebro boiando nos
narcó ticos, o olho bom revirando na
ó rbita, os calcanhares tamborilando
contra o carpete numa espé cie de
chocalho da morte. Nate cogitou
decapitá -loapenasporgarantia,mas
em vez disso foi para perto de
Dominika e icou aliviado ao
constatar que o coraçã o dela ainda
batia,aoverosolhosdelaseabrirem.
Estava prestes a desmaiar quando
lembrouquetinhaalgoimportantea
fazer:darumtelefonema.
***
Dominika tomou o celular da
mã o mutilada de Nate e informou a
Bratokalocalizaçãodeles.Empoucos
minutosMartyGablejáestavaàporta
do hotel com um socorrista da
embaixada, que esperou no carro
com o kit de emergê ncia. O que ele
fez para limpar os ferimentos dos
dois e tirá -los do hotel foi
praticamente
um
milagre.
Transformou lençó is em ataduras,
vestiuopaletó fedorentodeMatorin
em Nate, penteou os cabelos de
Dominika. Pediu que ela recolhesse
as seringas espetadas no morto,
vasculhasse os bolsos dele e
recolocasse o facã o na bainha de
feltro. Colocou o braço de Nate em
volta do pró prio ombro e saiu com
ele para o corredor. Fez um gesto
paraqueDominikatrancasseaporta
doquartoejogasseachavenumvaso
de plantas. Os trê s desceram juntos
pelaescadadeserviçodohotel.
FeitoBonnieeClyde,Dominikae
Natesejogaramnobancotraseirodo
carro de Gable e o socorrista,
assustado, imediatamente tratou de
estancarosferimentosdosdoiscom
bandagens de alta compressã o
israelenses.Emseguida,aoverqueo
pulso de Nate estava bastante fraco
por causa da hemorragia, deitou a
cabeça dele no colo de Dominika,
tirouumabolsadeplasmadeseukit
deemergê nciaelogoencontrouuma
veiaparaespetaracâ nula.Dominika
segurava a bolsa em silê ncio
enquanto Gable enfrentava as
complexidadesdotrâ nsitoateniense,
cuspindo palavrõ es, esmurrando o
volantedocarro.
Em alguns minutos eles
entraramemZografos,umdistritode
subú rbioalestedocentro,à sombra
do Monte Ymittos. Ali, na
tranquilidade
de
uma
á rea
essencialmente residencial, icava o
apartamento clandestino da estaçã o.
Gable e o socorrista ajudaram os
feridosasubireinstalaramNatenum
dos quartos. O socorrista icou com
ele até a chegada do mé dico da
embaixada.
Ambos
estavam
autorizados a atender os agentes
secretos da estaçã o, mas Gable
queria que os dois saı́ssem dali o
maisrá pidopossı́vel.Dominikalevou
vinte pontos em seu ferimento e
Nate, o triplo disso. Gable apoiava a
russa pelo ombro, olhando-a por
cima dos ó culos, mas depois de
pouco tempo ela se desvencilhou e
foiparaooutroquartoselimparcom
uma esponja ú mida. A contragosto,
lembrou-sedeUstinov.Muitaá guajá
haviacorridodesdeentã o,masainda
assimelaprecisouprenderochoro.
Gableagradeceuaomé dicoeao
socorrista (por mais curiosos que
estivessem, ambos sabiam que nã o
deviam fazer perguntas) e os
dispensoucomdelicadeza.Dominika
agora estava ao lado de Nate,
ouvindo-orespirar,eGabletambéma
tirou dali. Levou-a para a cozinha e
ofereceu-lhesopaepã o,maselanã o
aceitou nenhum dos dois. Entã o
deixou que a jovem fosse ao outro
quarto e ouviu quando a porta foi
fechada. Cinco minutos depois, no
entanto,escutou-avoltarparaolado
deNateeresolveudeixá-laempaz.
Mais tarde, Gable entreabriu a
portadoquartoeviuDivasentadana
camafalandoalgocomeleemrusso.
Nate ainda estava sob o efeito de
sedativos e parecia melhor, mais
corado. Tudo aquilo tinha sido uma
baita confusã o, mas graças a Deus
eleshaviamsobrevivido.
Forsyth apareceu na noite
seguinte, disfarçado sob uma barba
postiça e um par de ó culos com
armaçã o metá lica. A polı́cia grega
conhecia o rosto dele, e agora havia
umagrandeoperaçã oemcursopara
encontrar a jovem russa que sumira
do Grande Bretagne, deixando para
trá sumpresuntonoquarto.Afotode
passaportedeDominikacirculavaem
todos os jornais e noticiá rios de TV.
Sabia-sequeelaestavaacompanhada
de um ocidental de cabelos escuros,
possivelmente um americano. Antes
demaisnada,Gableprecisoudizera
Forsyth que aquela barba e aqueles
ó culos o deixavam igualzinho a um
psiquiatra vienense, desses que
curamtraumassexuais.Emseguidao
colocouapardosacontecimentosno
hoteledoestadodeNateeDominika.
Forsythseacomodounosofá ejogou
uma pilha de jornais sobre a mesa à
sua frente. O circo que a imprensa
vinha fazendo em torno do
assassinato no Grande Bretagne
pareciaexcessivoaté mesmoparaos
padrõ es gregos. Os tradutores da
estaçã o haviam fornecido uma lista
demanchetes:
“MatadoradaKGBtrazpânico
à cidade” —Kathimerini (centrodireita)
“GuerraFriaproduzvítimano
hotelGrandeBretagne”—ToBhma
(centro)
“Beldaderussaprocuradapor
homicídiosexual” —Eleftherotiypia
(centro-esquerda)
“Descaso americano com
patrimônio histórico grego” —
Rizospastis(comunista)
“Assassinato na baixa estação
deum‘abatedouro’cincoestrelas”
—TribunaShqiptare(jornaldelı́ngua
albanesa)
Eles procuravam nã o fazer
muito barulho enquanto esperavam
Dominikasairdoquarto.Daliameia
hora, Forsyth decidiu bater baixinho
à porta dela. Sem abrir, Dominika
disse que nã o estava se sentindo
bem,queprecisavadormir.Nã o,nã o
era necessá rio chamar o mé dico.
ForsythvoltouparaoladodeGablee
falou:
— Sei lá . Acho que tem alguma
coisaerradaaí.Nãoésóochoque.
Pouco depois ouviram um
barulho e viram Nate emergir do
quarto e se arrastar sala adentro,
apoiando-senasparedes.Oroxodos
hematomas cobria uma das faces, o
laranja do antissé ptico manchava as
bordasdasataduras.Elesesentouna
poltronamaispró xima,fazendouma
caretadedor.
— O que você s estã o fazendo
aqui? — balbuciou. — Alguma
emergência?
— Como está se sentindo? —
devolveu Gable, ignorando a
pergunta. — Alguma tontura? Quer
comeralgumacoisa?
Natefezquenã ocomacabeçae
Forsythcomeçouafalar:
— Os chefõ es de Washington
estã o todos no meu pé . Fui
convocado pra falar com o
embaixador umas seis vezes, e ele,
coitado,foichamadoduasvezespelo
ministro de Relaçõ es Exteriores da
Gré cia. A polı́cia grega inteira está
atrá s da russa fujona, tentando
identi icar o morto, e a embaixada
russa diz que nã o faz ideia do que
está acontecendo. O pré dio do
Ministé rio de Relaçõ es Exteriores
ica na mesma rua do Grande
Bretagne,algunsquarteirõ esà frente,
e os holofotes das equipes de TV
estã o ligados há 24 horas na Praça
Syntagma.
—Issoétudooqueagentepode
querer numa operaçã o clandestina:
holofotes de TV — ironizou Gable,
olhandoparaNate.
— Em Washington as pessoas
estã oputasemdiferentesnı́veis:tem
os putos, os muito putos e os que
estã o espumando de tã o putos —
prosseguiu Forsyth. — Chovem
acusaçõ esdetodososlados.Porque
ningué m previu essa investida do
SVR?Porqueningué mtirouvocê do
caso? Por que Marble nã o alertou
ningué m sobre o matador russo?
Muita coisa sem pé nem cabeça.
Quase tudo, aliá s. Hoje de manhã
recebiume-maildochefedaEuropa.
O almirante Nelson está sugerindo
que é hora de “virar a embarcaçã o
paraoutrolado”nocasoDiva.Aoque
parece, C/ROD disse ao homem que
ele era um grande incompetente. Na
frente do diretor. Mas tudo isso é
contorná vel. Aı́, ontem à noite,
Benford me ligou. Puto, també m.
Perguntandoquepartede“nã olevar
Dominika pra cama” você nã o tinha
entendido.
Explicar
o
seu
desempenho
pra
ele,
especi icamente, talvez seja mais
difı́cil, mas isso, meu caro, é
problemaseu.Tudovaidependerdo
humor dele. Da vontade que ele
estiverdearrancaroseucouro.
—Minharecomendaçãoparaele
foi arrancar o seu couro — disse
Gable.
— Mas nem tudo está perdido.
Benford disse que esse incidente
criou uma pequena janela de
oportunidade; ele estava bem
animado. Vai chegar aqui amanhã à
noitee,até lá ,querquevocê sumade
circulaçã o.—Forsythfoiaté aporta
da varanda e espiou atravé s de uma
frestanacortina.—Éimportanteque
Dominika permaneça escondida pra
que o pessoal de Moscou assuma o
pior:queelafoidescobertapelaCIA,
que agora sabemos o que eles
querem fazer com você . Temos
apenas alguns dias de prazo, nã o
maisqueisso.
Gable se levantou, atravessou o
pequeno corredor do apartamento e
bateuà portadoquartodeDominika.
Pediu para entrar, e dessa vez ela
permitiu. Forsyth e Nate ouviram a
vozdebarı́tonoquevinhadoquarto
e em dez minutos ele reapareceu.
Sentou-senovamenteesussurrou:
— Problemas. Ela está nervosa.
Nã o histé rica, mas puta dentro das
calças. Furiosa. Você s conhecem o
temperamentodela.Masdessavezé
sé rio. Ela nã o sabe mais em quem
con iar: na gente, em Marble... nos
russosentão,nempensar.
Natetentouselevantar.
— Pode icar com o rabo
sentado aı́ — ordenou Gable no
mesmo instante. — Parte do
problema é que ela está se culpando
por você ter quase morrido. A
primeira coisa que fez foi perguntar
porvocê.
— Ela salvou minha vida —
disseNate.—Aqueleaçougueirome
pegoudejeito.
— Você s vasculharam o quarto
quandosubiram?—perguntouGable,
eNatedesviouoolhar.—E,imaginei
que nã o. Ela agora está falando em
nã ovoltarmaispraRú ssia,emfugir,
em desertar. Está com os nervos à
lor da pele, se sentindo traı́da. E
como se isso nã o bastasse, o
ferimentonapernanã oparadedoer.
Tadinha. Tudo isso em apenas dois
dias na companhia do nosso
conquistadoraqui.
Nate nã o botaria mais lenha na
fogueiradizendoqueelestinhamido
paraacamadenovo.
Forsythficoudepé.
—Marty, iquecomagarotaaté
Benfordchegar.Nate,amanhã vamos
tentar contrabandear você para
dentrodaestaçã o.Queroquecomece
a escrever seu relató rio, contando
direitinho o que aconteceu. Benford
vaiquerersaberdetudo.
Natefezquesimcomacabeça.
— Por enquanto, vamos deixar
que Diva respire um pouco. E bem
possívelquetenhamosperdidonossa
informante. Só vamos saber depois
queelativertempoparapensar.
Assim que Forsyth saiu, Gable
foi à cozinha, vasculhou os armá rios
e a geladeira, depois voltou à sala
dizendo que iria até a esquina
comprarumagarrafadevinho,pã oe
queijo.
— Fique longe daquela varanda
—falou.Aporta,tirouumapistolado
bolsodopaletó eaarremessoupara
Nate. — E uma PPK/S. Arma de
mulherzinha.Trouxepravocê.
Acertaaltura,foiaté oquartode
Nate, sentou-se na beira da cama e
icou ali, vendo-o dormir. Sabia
exatamenteoqueacontecera.Seutio
Vanya cansara de esperar que ela
conseguissearrancardoamericanoo
nome do traidor russo, entã o
despachara Matorin para resolver o
problema, o que era essencial para
suasambiçõ espolı́ticas.Emnenhum
momento pensara nela, no risco que
elacorreriacasoestivessecomNate
quando o matador aparecesse para
fazer seu trabalho. Será que ele a
queria morta també m? Nã o havia
como saber, mas por ora ela
assumiria que a resposta era “sim”.
Maisumatraiçã oporpartedeVanya
esuacorja.
Ela dissera aBratok que nã o
sabia ao certo se queria continuar
sendoespiã.EstavaforadaRússia,no
Ocidente, e talvez pudesse desertar.
Bratok, gentil como sempre,
respondera que ela izesse o que
julgasse melhor. Embora nã o
houvesse nenhum motivo para
calma, ao dizer aquilo a aura dele
tinhaumatonalidadeescuraderoxo,
eelatinhagostadodisso.
Era a segunda noite, já tarde, e
os faró is das torres de transmissã o
no topo do Ymittos eram os ú nicos
pontosdeluznobreuqueseestendia
damontanhaaté aszonasurbanasde
Zografos e Papagou. Forsyth e
Benford estavam sentados em
cadeirasnasalaenquantoDominika,
vestindo um roupã o de banho,
encontrava-se deitada no sofá , onde
podia icar com a perna para o alto.
ElaouviraNateiremboramaiscedo,
mas nã o saı́ra do quarto para falar
comele.
Benford chegara tarde, depois
de ter insistido em ir direto para o
apartamento clandestino. Apó s ler o
relató rio do ataque, pedira que as
seringasdoSVRfossemenviadaspor
maloteaoDepartamentodeServiços
Mé dicos em Washington. No carro a
caminho do esconderijo, dissera a
Forsyth que era muito importante
agiremcomrapidez.
—Comovocê está se sentindo?
— perguntou a Dominika. — Acha
queconsegueandar?
Ela se levantou e caminhou um
poucoemtornodosofá ,correndoos
dedospelospontosnaperna,queera
a mesma da qual mancava. Muito
estragoparaumapernasó.
— Desculpe, mas eu precisava
saber — prosseguiu Benford. —
Vamosterqueirà rua,pravocê fazer
uma ligaçã o pra Moscou. — Vendo a
caretadedorqueDominikafezaose
sentar,pousouamã onoombrodela
e disse: — Nã o tenha pressa. Quero
falar com você antes. Domi, preciso
saber se você está disposta a dar
continuidadeà relaçã oqueiniciamos
emHelsinque,avoltarpraMoscoue
continuartrabalhandodelá.
— E se eu nã o estiver? —
perguntou ela. — O que vai ser de
mim?
Conheciaaqueleshomens,masa
con iançaquetinhaneles,eemtodos
os demais, já nã o era a mesma. Eles
eram pro issionais, precisavam de
resultados, trabalhavam para uma
organizaçã o que, para todos os
efeitos, ainda era a oposiçã o. Tanto
Benford quanto Forsyth eram
envoltos em uma luz azulada, a
mesma que tingia as palavras que
saı́amdabocadeambos.Homensde
inclinaçã o
artı́stica,
sensı́veis,
engenhosos.Plenamentecapacitados
a convencer algué m a agir como
quisessem. Ela sabia que tinha que
tomarcuidado.
— O que vai ser de você ? Bem,
você irá para os Estados Unidos e
conversará comodiretorempessoa,
que lhe dará uma medalha e uma
conta bancá ria com dinheiro
su iciente para que compre a casa
quequiser,desdequesejasegura.No
confortodesuanovaresidê nciavocê
poderá acompanhar tudo o que está
acontecendonaRú ssiaenorestodo
mundo,livredasintrigas,dosriscose
dos perigos da vida dupla de uma
informante.
Dominikaviaoazulquepulsava
acimadacabeçadele.Benforderaum
homem muito inteligente. Parecia
conhecê -la do avesso, embora só a
tivessevistoumavez.
— Caso eu me disponha a
continuar trabalhando pra você s, o
quequeremqueeufaça?
— Nesse caso, eu gostaria que
você desse um telefonema — disse
Benford.—ParaoseutioVanya.
Forsyth
acompanhava
a
conversadesua cadeira em silê ncio,
mas com a mesma aura azulada de
sempre. Dominika achava que podia
confiarnele,pelomenosumpouco.
—Equalseriaanaturezadessa
ligaçã o? — indagou ela. Tinha plena
consciê ncia de que estava sendo
conduzida a algum lugar, pouco a
pouco, um passo de cada vez. — O
quevocêsesperamdela?
—Forsythmefaloubrevemente
sobre o incidente no hotel —
retrucou Benford. — Sobre como
você salvou a vida do Nate. Muito
obrigado,Dominika.
Ele ainda nã o respondera à
pergunta.
— E a ligaçã o pra Moscou? —
insistiuDominika.
— Depois de todo esse drama,
precisamos preparar sua volta pra
casa, maximizar as chances de que
você consiga
uma
posiçã o
importante na central. Pressupondo,
claro,
que
queira
continuar
trabalhandoparanós.
— Se eu decidir voltar, tenho
certeza que o general Korchnoi vai
conseguir alguma coisa pra mim.
Somosmuitopróximos.
— Claro. Aliá s, estamos
contando com isso — falou Benford.
— Mas você s devem operar
separados.
Dominika
cabeça.
assentiu
com
a
—Umdia,você ocupará olugar
dele.
Dominikaanuiunovamente.
— Mas para que tudo isso seja
possı́vel,é precisoquevocê façaessa
ligaçã o
para
Yasenevo,
um
telefonemadeemergê ncia,contando
tudooquepassou,dizendoqueestá
exausta, a lita, que subornou algué m
pra costurar seus ferimentos, um
veteriná rio,
um
farmacê utico,
qualquer coisa assim. Fale que o
capangadoSVRquasematouvocê ,e
por sorte Nate conseguiu escapar. E
importante que eles pensem que foi
Nate quem matou o homem. Você
estáligandodarua,fugindodapolícia
e dos americanos que estã o no seu
pé . Entã o você vai pedir a seu tio
queridoquesalvevocê.
— Entendi — respondeu
Dominika. —Gospodin Benford, tem
certeza que nã o mora um russo aı́
dentrodessacarcaçaamericana?
— Acho difı́cil — retrucou
Benford.
— Eu nã o icaria surpresa —
disseela.
—Temmaisumacoisaquevocê
precisariafazer—prosseguiuele.—
Nessetelefonemavocê deveespalhar
um pouco dedesinformação. Sabe o
queéisso?
—Claro.Dezinformaciya.
— Isso mesmo. Diga que a
operaçã o contra Nash foi por á gua
abaixo, mas que você ainda teve
tempodetiraralgumacoisadele.
— O que você quer que eu diga
nesse... teatro? — perguntou
Dominika.
— Que você s tiveram uma
discussã o, que mais uma vez
trocaramfarpassobre a Guerra Fria,
um acusando as operaçõ es de
espionagem do paı́s do outro.
Durante essa discussã o, Nate deixou
escapar que os americanos
conseguiram pegar uma pessoa
muito importante que vinha
repassandosegredosdeEstadopara
a Rú ssia, um informante muito
importante que a central vinha
operandoativamente.
—Issoé verdade?—quissaber
ela, já ligando uma coisa a outra,
deduzindo que talvez fosse isso que
tivessedeflagradoairadeVanya.
— A mais absoluta verdade —
respondeu Benford. — Você deve
dizer a eles que, segundo Nate, a
central tinha tentado atrapalhar as
investigaçõ es americanas por meio
de uma armadilha, espalhando o
boatodequeoinformantehaviafeito
umacirurgianoolho.Umapistafalsa.
Benfordfezumapausa.
— Desculpe, mas qual é o
objetivo desse ú ltimo passo? —
indagouDominika.
Nessa altura ela já nã o
conseguia ler direito a aura de
Benford,queporalgummotivohavia
desbotadoquaseporcompleto.
—Dominika,essesdetalhessã o
importantes.Queremosqueacentral
saibaquevocê percebeutodoojogo.
Por isso é importante que você
mencioneapistafalsadacirurgiano
olho. També m queremos que a
central pense que você fez um belo
trabalho e que venha tirá -la desta
confusão.Vocêentendeutudo?
— Entendi, mas vou dizer que
f u ieu quem matou Matorin —
retrucouela.—Porqueeleiriamatar
nó s dois. Agora Nash fugiu e a culpa
detudoé exclusivamentedomeutio,
nã o minha. Foi por causadele que a
operaçãofracassou.
— Impressionante — elogiou
Benford, constatando que Marble
tinha razã o ao a irmar que a garota
eraespecial.—Umrefinamentosutil.
— Tomei a iniciativa de anotar
alguns detalhes — atalhou Forsyth.
— Onde você está escondida, essas
coisas.Emseguida, podemos fazer a
ligação.
Eles examinaram as sugestõ es
dele, depois Dominika saiu para se
trocarnoquarto,deixandoForsythe
Benfordsozinhosnasala.
— Ela nã o vai icar nem um
pouco contente quando descobrir
que omitimos o fato de queela vai
colocar a corda no pescoço do
general—comentouForsyth.
— E o ú nico jeito — disse
Benford, rı́spido. — També m nã o
gosto nada disso. Mas ela nã o pode
hesitar, muito menos saber da
armadilha.
— Vai acabar deduzindo —
argumentouForsyth.—Eseela icar
magoadaapontodecairfora?
— Nesse caso vamos ter de
engolir um iasco de proporçõ es
napoleô nicas.Esperoqueelaentenda
onossolado—comentouBenford.—
E a polı́cia grega? Você já cuidou de
tudo?
—Tudopronto.Elavaiserpresa
namanhãseguinteaotelefonema.
FEIJÃO À MODA GREGA —
GIGANTES
Refogar cebola e alho no azeite.
Acrescentar tomates picados, salsa e
caldo de carne. Deixar engrossar,
depois
adicionar
os
feijões
previamente cozidos, misturar bem e
levar ao forno médio. Esperar até que
os feijões estejam macios e a camada
superior se torne crocante, quase
queimada. Servir à temperatura
ambiente.
CAPÍTULO 38
VANYA EGOROV TRABALHAVA
ATETARDEemseugabinete.Anoite
caı́rasemqueelepercebesse,poissó
o que o vice-diretor via em seu
monitor de tela plana eram as
interminá veis reportagens sobre o
incidenteemAtenas,maté riasnã osó
dasemissoraslocais,mastambé mde
diversos canais internacionais:
Eurovision,BBC,Sky,CNN.
A rezidentura de Atenas
con irmara que o morto era Serguei
Matorin. Vanya sentira um bolo se
formar na barriga ao ser informado
p e l orezident de que os gregos,
inexplicavelmente,
já haviam
cremado o corpo, tornando
impossı́vel qualquer investigaçã o
f o r e n s e .Inexplicavelmente porra
nenhuma,elepensara.Faziaanosque
aCIAtinhaosgregosnobolso.
Mas nada disso importava
agora. Vanya sabia que algué m
autorizara a lambança em Atenas,
algué m despachara o psicopata
caolho para a Gré cia. Nã o o diretor,
nemseusparesnoFSB.Nemmesmo
oanã oZyuganov.Só haviaumnome
possı́vel. Como se adivinhando seus
pensamentos,
o
telefone
criptografado tocou, fazendo o vicediretor saltar na cadeira. Do outro
lado da linha, uma voz que ele já
conhecia, ao mesmo tempo brutal e
plácida.
— A operaçã o em Atenas foi
umadesgraça—dissePutin.
— Sim, senhor presidente —
concordou Egorov, cogitando se o
homem estaria descalço como na
ú ltima vez em que o recebera no
Kremlin.
Semcamisa,talvez?
— Fui bastante claro ao falar
que nã o deveria haver nenhuma
tarefaespecial.
Nã o havia necessidade de dizer
queele,Egorov, nã o autorizara nada
daquilo.Putinsabia.
— Sim, senhor presidente, eu
vouinvestig...
— Eu esperava mais de você ,
Egorov. A perda da senadora foi
muitograve.Oinformantenoquadro
de funcioná rios do SVR continua
ativo. Que diabo você está fazendo
paraeliminaressetraidor?
Se o senhor tivesse resistido aos
seusimpulsos, pensou Egorov,a essa
alturaelejáestariaforadecirculação.
—
Como
sabe,
senhor
presidente, designei uma agente
muito habilidosa para explorar o
operadoramericano.Aliá s,euestava
esperando receber
informação...
dela
uma
—Sim,asuasobrinha.Ondeela
estáagora?
Egorovpreparou-separaopior.
—Elaestá...desaparecida.
Silê nciodooutroladodalinha.E
depois:
—Qualé aprobabilidadedeque
estejamorta?
— Estamos aguardando alguma
notícia.
Mais um longo silê ncio.
Dominika era, naquele momento, a
maior pedra no sapato presidencial,
maior do que o iasco com a
senadora,maiordoqueapresençade
umtraidornoSVR.
— Ela precisa voltar para casa
—falouPutin.—Cuidedisso.
O que signi icava:Certifique-se
dequeelanunca,jamais,vádarcoma
língua nos dentes sobre o assassinato
deDimitriUstinov,custeoquecustar.
Opresidentedesligou.
Dominikatinhadesaparecido;se
nã o estivesse morta, entã o estaria
escondida em algum lugar. Para
Egorov era assombroso que uma
moçasemnenhumauxíliopudessese
esconder da polı́cia na capital grega.
Suasobrinhaeramesmoumapessoa
de muitos recursos. Os noticiá rios
diziam que havia um cordã o de
carros da polı́cia em torno da
embaixada russa em Psychiko. Era
bastante prová vel que uma fugitiva
russa buscasse abrigo junto aos
conterrâneos.
As notı́cias també m falavam de
um homem na companhia dela, mas
nã o citavam o nome de Nash. Será
queDominikatinhaconseguidotirar
alguma informaçã o do americano?
Teria sido capturada ou morta pela
CIA? Se estivesse viva, Egorov teria
de trazê -la de volta. Ainda haveria
alguma salvaçã o para aquele
imbróglio.
Otelefoneemsuamesaestrilou.
Eraalinhaexterna;portanto,nadade
importante.
—Quefoi?—rugiuele.
EraDimitri,seuassessor.
— Uma ligaçã o de fora
transferida pelo plantonista, senhor
—informouele.
—Quepalhaçadaéessaagora?
— Uma chamada de fora,
senhor. Da Gré cia, segundo o
rastreamento.
Egorovsentiuacabeçaformigar.
—Podepassar—ordenou.
Segundos depois, escutou a voz
deDominika.
—Tio?Tio?Estámeouvindo?
— Estou, sim, meu bem. Onde
vocêestá?
— Nã o posso demorar. Está
muitodifícilaqui.
Elapareciacansada,masnã oem
pânico.
—Podemedizerondeestá ?Vou
mandaralguémbuscarvocê.
— Qualquer ajuda será muito
bem-vinda.Estouumpoucocansada.
—Algué mirá buscarvocê .Onde
podemosencontrá-la?
— Tio, eu preciso lhe contar
que aquele meu amigo, aquele
jovem,começouafalar.Fizumbom
progresso, como o senhor queria.
Mas o seu homem, aqueled’javol,
quasenosmatou.
—Oqueaconteceu?
— Eles brigaram. Meu amigo
fugiu,nãoseiondeeleestá.
— O frangote americano
derrubou um guerrilheiro treinado
pelas
Spetsnaz?
— Nã o, tio. Fuieu quem o
matou.Antesqueelemematasse.
Fez-seumsilê nciodooutrolado
dalinha.MeuDeus,pensouEgorov.
Comoaqueladiabinhapodiater
liquidadoumhomemcomoMatorin?
C o mas mã os ú midas de suor, ele
disse:
— Entendi. O que seu amigo
contou?
— Uma coisa muito estranha.
Ele icou se gabando de que os
americanos tinham acabado de
colocar as mã os em uma
informante do SVR, uma mulher
aparentementemuitoimportante.Eu
faleiquenãoacreditava.
Poisdeviateracreditado,pensou
Egorov.
— Ele contou que você s
tentaram confundir os americanos,
dizendo que a informante estava
doente,foradecirculação.
Egorov estava prestes a gritar
de impaciê ncia, louco para que a
idiota fosse direto ao que
interessava. Sentia a tê mpora latejar
contraofone.
— Muito interessante. Ele falou
maisalgumacoisa?
— Disse que a tal informante
nã o havia feito nenhuma cirurgia no
olho,que se tratava de uma pista
falsa e que os americanos
perceberam a jogada. Ele estava
todo orgulhoso porque tinham
conseguido pegar a mulher —
continuouDominika.
Imaginoque icarã obemmenos
orgulhosos quando perderem o
informantedeles, pensou Egorov.
Korchnoi.
— Mais alguma coisa? —
perguntouele.
— Nã o, nada. Nossa conversa
teria prosseguido se nã o tivé ssemos
sidointerrompidos.
— Sim, claro. Mas agora
precisamosdesligar.Ondevocê está ?
Voumandaralguémbuscá-la,masaté
lávocêprecisacontinuarescondida.
—Estounoapartamentodeum
homem que conheci. Ele prometeu
que nã o ia me entregar se eu fosse
boazinhacomele.Foipraissoqueo
senhormetreinou,nãofoi?
Egorov
sarcasmo.
nã o
percebeu
o
—Você pode icarcomelemais
um dia? E do telefone dele que você
estáfalando?
— Acho que posso icar, sim.
Masprecisosairpraligar.Meucelular
icou no hotel. O cara nã o tem uma
linha ixa, só um celular, que acho
melhor nã o usar. Tem um telefone
pú blico do outro lado da rua. E dele
queestoufalando,comumcartão.
Ela lhe deu o endereço do
pré dio, que icava num bairro
populardePatissia,anortedaPraça
Omonia.
—Estejaaı́ pertodessetelefone
pú blico amanhã ao meio-dia em
ponto — orientou Egorov. — Um
carro vai apanhá -la. O motorista se
identi icará comomeunome.Vamos
trazer você de volta pra casa.
Enquanto isso, nã o saia do
apartamento.
Entãoeledesligou.
Caso fosse possı́vel trazê -la de
volta, pensou, ele estaria salvo.
Cobririaagarotademedalhasassim
que Korchnoi fosse engaiolado.
Agora,precisavaprimeiroenviarum
telegrama para aqueledurak em
Atenas e rezar para que o pateta
fosse capaz de resgatar uma agente
emfuga.Emseguida,tinhaquearmar
umesquemadevigilâ nciaemtempo
integral para Korchnoi. Sem fazer
alarde, para que nenhuma extraçã o
por parte dos americanos fosse
possível.
Preparando-se para as longas
horasdeesperaqueestavamporvir,
VanyaEgorovpensounovelhocolega
queotraı́raeajudaraosamericanos
adescobrirSwan.
— Ligue para Zyuganov —
ordenouaDimitri.
O cabograma redigido pelo
rezidentdeAtenaschegouaYasenevo
no dia seguinte, no im do
expediente. Segundo ele informava,
dois o iciais do SVR haviam sido
despachados para Patissia e, ao
chegarlá ,deparadocomnadamenos
queseiscarrosdapolı́ciagrega.Vinte
policiaisdecapacetebrancoecolete
à provadebalarondavamatalcabine
telefô nica. Nã o havia como se
aproximar muito, apenas o bastante
para ver que duas o iciais da guarda
feminina ajudavam uma mulher
algemadaasubirnatraseiradeuma
van da polı́cia. A prisioneira era
magra e tinha os cabelos escuros.
Nã o era possı́vel a irmar que se
tratava de Dominika, mas essa era a
hipó tese mais prová vel. Ela estava
nasmãosdosgregos.
Nã o haviam se passado nem
dois minutos desde a chegada do
cabogramaà mesadeEgorovquando
o telefone criptografado dele
começou a tocar com seu som
medonho.
***
Passava da meia-noite. Das
janelas de Korchnoi via-se o rio
Moscou serpenteando como uma
faixa negra entre os pré dios
iluminados de Strogino. Os edifı́cios
da margem oposta eram recentes,
alguns ainda inacabados, com
guindasteselevando-senohorizonte.
Marblejantouumpratodemassaque
ele mesmo preparou, um espaguete
alla mollica, misturada com
anchovas, farinha de rosca e limã o.
Depoisdelavaralouça,elefoiparaa
sala com uma taça de conhaque,
conferiu as horas no reló gio e se
aproximou da estante que cobria
uma das paredes. Com o auxı́lio de
uma
faquinha
de
cozinha,
desencaixou o tampo da prateleira
superioreelaseabriufeitoumaurna
funerá ria,
revelando
um
compartimentonãomuitoprofundo.
Dessa cavidade ele tirou trê s
caixas
metá licas
cinzentas,
embrulhadas em pedaços de tecido.
Asduasprimeiras eram do tamanho
deummaçodecigarroseaterceira,
mais larga e mais ina. Korchnoi
acoplouasduasmenorespormeiode
um conector de passagem. Depois,
ligou a mais ina (na verdade, um
teclado minú sculo de caracteres
cirı́licoscomumacanetaespecialna
lateral) à s outras duas por um cabo.
Com a canetinha, Korchnoi soltou
dois botõ es embutidos que
acenderam trê s minú sculos LEDs. O
primeiro era o indicador de
liga/desligaenı́veldebateria;nacor
verde,oconjuntoestavaprontopara
ouso.Osegundoindicavaseaantena
integral do primeiro componente
estava ou nã o captando o sinal do
saté lite geossı́ncrono US Milstar
BlockII.Oterceiro,por im,indicava
se a transmissã o de dados havia ou
nã osidorealizadacomsucesso.Esse
ú ltimo
tinha
um
apelido:
rukopozhatie, ou “aperto de mã o”, e
quando amarelo indicava que a
transmissãoestavaemespera.
Ainda com a canetinha,
Korchnoi digitou uma mensagem de
rotina.Umtextoconcisoeabreviado,
sem espaços ou pontuaçã o,
economias aprendidas ao longo de
muitosanosnacomposiçã odetextos
secretos. Ele ainda sentia falta do
aspecto tá til dos procedimentos de
antigamente: esfregar o papel,
preparar as tintas, a leveza
necessá ria na impressã o das letras
deforma.
Ele havia se acomodado na
poltrona da sala, sob a luz do abajur
de chã o, parecendo um velho de um
quadrodeVermeer,debruçadosobre
seu trabalho. O silê ncio à sua volta
eraabsoluto.Terminadaamensagem
(assinada com “niko”, sinal de que o
textoforaredigidodelivre-arbítrio),
Korchnoipressionouobotã ode
transmissã o e icou observando a
luzinha amarela. Numa transmissã o
em rajada de altı́ssima frequê ncia
(bandaKa),suamensagemalçouvoo
rumo aos sensores do saté lite e
apenas trê s segundos depois a
respostapré -armazenadafoiativada
e lançada de volta num sinal
atenuado na banda Q. Moscou
dormia, as janelas de Lubyanka
estavam escuras, mas Korchnoi
permanecera acordado para se
corresponder com o Principal
Inimigo. O terceiro LED icou verde:
transmissã o
concluı́da,
mã os
devidamenteapertadas.
Korchnoidesenrolouocaboque
se alojava num nicho no teclado e o
ligouaumaportadeentradaatrá sda
pequena televisã o em cores que ele
recebera de um agente da CIA
durante um encontro clandestino
trê s anos antes. O aparelho fora
modi icado
pelos
americanos.
Korchnoi ligou-o, sintonizou-o num
canal especı́ ico pré -programado e
pressionou trê s teclas com sua
canetinha, fazendo com que a tela
esbranquiçada escurecesse, piscasse
uma vez e escurecesse de novo,
exibindo um curto comunicado em
caracteres
estreitos:Soobshenie:
nikto. Mensagem: nenhuma, sem o
ponto inal, querendo dizer que o
jogocomeçara.
Korchnoi
desligou
a
TV,
devolveuocaboaseunicho,desligou
atomadae desmontou a engenhoca.
Embrulhou os componentes nos
pedaços de tecido, guardou-os
novamente na falsa prateleira e
recolocou a tampa. De volta à
poltrona, com seu livro no colo, deu
um gole no conhaque, desligou o
abajur e icou sentado no escuro,
admirando as luzes da cidade e o
contornonegrodorio,certodequeo
SVR vira e gravara tudo o que ele
fizeranosúltimostrintaminutos.
***
De agosto a outubro de 1962, o
coronel Oleg Penkovsky, da GRU, foi
submetido a um esquema de
vigilâ ncia permanente da KGB que
incluı́a o interior do apartamento
dele, à s margens do rio Moscou. A
é poca ele vinha contrabandeando
para o Ocidente um volume
signi icativo de informaçõ es sobre o
programa sovié tico de mı́sseis
balı́sticos. Os o iciais da unidade de
vigilâ nciadoFSBqueagora,maisde
cinco dé cadas depois, vigiavam
Vladimir Korchnoi eram jovens
demaisparaselembrardaquelecaso
da Guerra Fria, mas as medidas que
vinham empregando para reunir
provas contra o general eram quase
idênticasàsdeseuspredecessores.
Empoleiradas num dos pré dios
ainda em construçã o do outro lado
do rio e munidas de enormes
binó culos navais montados em
tripé s, trê s equipes observavam
Korchnoi enquanto ele apontava seu
equipamento a um azimute de 13
graus para se comunicar com o
saté lite.Noapartamentoemcimado
dele, outra unidade de vigilâ ncia
havia feito pequenos canais no teto
de trê s cô modos para instalar
microfonesemicrocâ merasligadosa
gravadores digitais, por meio dos
quais assistiram ao general acessar
seu esconderijo na estante, montar
os componentes e digitar sua
mensagem no teclado. Nã o havia
â ngulo para que eles lessem as
palavras na tela do aparelho de TV,
entã obaixaramumavigade ibrade
vidropeloladodeforadopré dio,na
altura da janela da sala, para que
outracâmerapudessecaptaregravar
o texto no monitor. Ao contrá rio do
caso
Penkovsky,
nã o
foram
necessá riostrê smesesdevigilâ ncia.
Omaterialcoletadoerasuficiente.
***
A meia-noite, do outro lado da
cidade, uma equipe diferente
vasculhava o gabinete de Korchnoi
no Departamento das Amé ricas, no
segundo andar do pré dio em
Yasenevo. Alé m de uma meticulosa
buscanasgavetase