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ROLETARUSSA Red Sparrow JasonMatthews Desde pequena, o sonho de Dominika Egorova era fazer parte do Bolshoi, o balé mais importante da Rússia. Após ser vítima de uma sabotagem, porém, ela vê sua promissora carreira se encerrar de formaabrupta.Logoemseguida,mais um golpe: a morte inesperada do pai, seumelhoramigo. Desnorteada, Dominika cede à pressão do tio, vice-diretor do serviço secretodaRússia,oSVR,eentrapara a organização. Pouco tempo depois, é mandada à Escola de Pardais, um instituto onde homens e mulheres aprendem técnicas de sedução para finsdeespionagem. Em seus primeiros meses como pardal, ela recebe uma importante missão: conquistar o americano Nathaniel Nash, um jovem agente da CIA, responsável por um dos mais in luentes informantes russos que a agência já teve. O objetivo é fazê-lo revelar a identidade do traidor, que pertenceaoaltoescalãodoSVR. Logo Dominika e Nate entram num duelo de inteligência e táticas operacionais, apimentado pela atração irresistível que sentem um pelooutro. CAPÍTULO 1 APOS DOZE HORAS DE RDV (Rota para Detecçã o de Vigilâ ncia), Nathaniel Nash nã o sentia nada da cintura para baixo. As pernas eram toras de madeira que percorriam os paralelepı́pedos de uma rua secundá ria de Moscou. A noite já caı́ra havia muito e ele ainda provocava os vigilantes russos, tentando atraı́-los para fora da toca. Até o momento, nada — nenhuma unidadeseesgueirandopeloscantos, ningué m rastejando no chã o ou surgindo repentinamente das esquinasatrá sdele,nenhumareaçã o a seus movimentos. Será que nã o havia mesmo ningué m? De acordo comanaturezadoJogo,nã odetectar operaçõ es de vigilâ ncia era pior do quesedescobrircercadoporespiões. Era inı́cio de setembro, mas havia nevado entre a primeira e a terceira hora da rota, o que fora muito ú til para acobertar a fuga de Nate. No im daquela manhã ele saltara do Lada Combi em movimento conduzido por Leavitt desdeaestaçã o.Semdizernada,seu parceiro erguera trê s dedos para sinalizar o tempo de que Nate disporiaparapularassimqueaperua dobrasse a esquina seguinte. Os agentes do serviço federal de segurançarusso,conhecidopelasigla FSB, que vinham logo atrá s, nã o notaram a fuga realizada naqueles rá pidos trê s segundos, passando direto por Nate — que se escondera atrá s de um banco de neve — para continuar seguindo o automó vel. Ele deixara seu celular da embaixada, parte de seu disfarce, dentro do veı́culo — o FSB que icasse à vontade para rastrear o aparelho pelaspró ximastrê shoras.Durantea manobra, ao rolar pela calçada, Nate machucara o joelho, que enrijecera nas primeiras horas mas agora estava tã o dormente quanto o resto deseucorpo.Enquantoescurecia,ele haviapercorridometadedeMoscoua pé,semdetectarnenhumesquemade vigilâ ncia. Tudo indicava que ele estavainvisível. Nate pertencia a um pequeno grupo de agentes da CIA treinados especi icamente para operar sob vigilâ ncianocampoinimigo.Quando estava em açã o nas ruas, nã o havia nenhum momento de dú vida ou hesitaçã o, nenhum espaço para apreensõ es de qualquer natureza, muito menos para o medo do fracasso. E naquela noite nã o estava sendo diferente. Volta e meia ele dizia a si mesmo:Ignore o frio que comprime seu peito, continue dentro de sua bolha sensorial e deixe que ela expandajuntocomoestresse.Avisã o estavaboacomosempre.Mantenhao foconasmédiasdistâncias,identi ique os pedestres e veículos recorrentes. Observe cores e formatos. Chapéus, casacos, carros. Sem pensar muito, eleiaregistrandoosruı́dosdacidade queescureciaà suavolta:ozum-zum dos ô nibus elé tricos correndo pelos cabossuspensos,osibilardospneus na rua molhada, o crepitar do pó de carvã oqueelemesmoiapisandoao caminhar. A atmosfera recendia a ó leo diesel e carvã o queimados; de algum exaustor vinha o cheiro barroso de uma sopa de beterraba sendo preparada. Nate era um diapasã o que reverberava no ar geladodanoite,alertaeprontopara reagir,masestranhamentecalmo.Ao inaldedozehorasdeRDVnã ohavia maisdúvida:eleestavainvisível. No reló gio: 22h17. Faltavam dois minutos para o agente de 27 anosseencontrarcomumalendada contraespionagem, o homem que paraaCIAeraajoiadacoroa,oativo mais valioso do seu patrimô nio de informantes. Marble estava a 300 metros dali, numa rua discreta. Com 60epoucosanos,oso isticadorusso era major-general do SVR, o serviço deoperaçõesexternasdeinteligência que havia substituı́do a Primeira DiretoriaGeraldaKGB.Marblevinha prestando seus serviços havia catorzeanos,umtempoconsiderá vel levando-se em conta que à é poca da Guerra Fria os informantes russos nã o duravam mais que dezoito meses. As fotos granuladas dos agentes do passado iam passando pelas retinas de Nate à medida que ele esquadrinhava a rua: Penkovsky, Motorin, Tolkachev, Polyakov... e outros tantos, todos já mortos.Este, não. Não no meu turno. Ele nã o falharia. Marble era agora chefe do Departamento das Amé ricas do SVR, um posto que lhe permita acesso quase irrestrito. Formado pela cartilha antiga da KGB, ele colhera seuslouros(eestrelasdegeneral)ao longodeumacarreiraqueserevelara espetacular nã o só por conta dos inú merossucessosoperacionaisque obtivera no exterior, mas també m por ter sobrevivido a todo tipo de expurgos, reformas e disputas de poder dentro do pró prio Kremlin. Nã o tinha nenhuma ilusã o quanto à naturezadosistemaaoqualservia,e havia adquirido uma antipatia natural pela falsidade, mas era um pro issional dedicado e leal. Aos 40 anos, já coronel e servindo em Nova York,receberaumarespostanegativa ao consultar a central para saber se podia levar a esposa a um oncologista americano, e por conta de mais essa demonstraçã o de intransigê ncia sovié tica, ela morrera numhospitalmoscovita,abandonada nos corredores de uma enfermaria qualquer.Depoisdisso,Marblelevou oitoanosparasedecidireencontrar uma abordagem segura junto aos americanos a im de se oferecer comoinformante. Nasuaestreiacomoinformante estrangeiro (ou agente, segundo a nova terminologia da CIA), Marble reportara-se calmamente a seus superiores (ou operadores), desculpando-se em tom autodepreciativo pela escassez das informaçõ es de que dispunha. Na sede da CIA em Langley, o espanto fora geral. O russo lhes presenteara comumverdadeirotesourodedados sobreasoperaçõ esdaKGBedoSVR, e sobre o alcance que tinham nos governos estrangeiros. Depois disso, sempre que possı́vel ele aparecia com as pé rolas mais cobiçadas: os nomes dos americanos que espionavam para a Rú ssia. Dessa forma, tornara-se um informante singulareinestimável. No reló gio: 22h18. Nate dobrou a esquina e foi caminhando pela calçada esburacada da rua estreita, pré dios residenciais em ambos os lados, as á rvores sem folhas e cobertas de neve. Mais à frente, contra as luzes que vinham do cruzamento, uma silhueta familiar surgiu na esquina seguinte e veio a seu encontro. O velho era um pro issional: chegara exatamente na hora marcada, nem um segundo a maisouamenos. Nate se animou ao vê -lo e até esqueceu o cansaço. No mesmo instante,começouavarreraruacom os olhos em busca de algo fora do co m um .Nenhum carro. Olhe para cima. Nenhuma janela aberta, nenhuma luz acesa. Olhe para trás. Cruzamentos tranquilos. Nenhum moradorvarrendoacalçada,nenhum mendigo zanzando por perto. Apesar detodasashorasqueelededicaraa sua rota, de todas as tá ticas de provocaçã o e toda a espera no frio, bastaria um ú nico descuido de sua parte para que o informante russo fossedescobertoeaniquilado.Oque paraeleseriamaisdoqueaperdade umafontepreciosaeoinı́ciodeuma crise diplomá tica: seria a morte de um homem que ele aprendera a admirar.Não,Natenãoiriafalhar. Marble vinha sem nenhuma pressa. Eles haviam se encontrado duas vezes antes. O velho agente já trabalhara com uma longa sé rie de operadores americanos e disciplinara cada um deles com maioroumenorgraudesucesso.Em alguns ele detectava uma burrice galopante; noutros, via uma espé cie de langueur, um desinteresse que cedooutardepoderiaserevelarfatal. Nate era diferente. Era interessado. Tinha uma chama interna, um rigor, uma capacidade de concentraçã o, uma necessidade de acertar sempre. Ainda era um tanto imaturo, e bastante impulsivo també m. Marble reconhecia isso, mas via com bons olhosaquelefogoqueodiferenciava dosdemais. Ficou contente ao avistar o jovem americano. Nate tinha altura mediana, porte esguio e cabelos pretos emoldurando um rosto de nariz reto e olhos castanhos que agorasemoviamdeumladoaoutro, nã o nervosos, mas atentos a tudo o quesepassavaàscostasdovelho. — Boa noite, Nathaniel — cumprimentouorusso. Tinha um ligeiro sotaque britâ nico, adquirido nos anos que passara em Londres e atenuado naqueles em que vivera em Nova York. Falara em inglê s como um capricho, uma demonstraçã o de consideraçã o com seu operador, apesar de Nate ser praticamente luente na lı́ngua russa. Marble era um homem atarracado, de olhos escuroseprofundosladeandoonariz gordo. As sobrancelhas brancas e fartas combinavam à perfeiçã o com sua juba ondulada e lhe conferiam o aspecto tı́pico de um cosmopolita elegante. As normas ditavam que eles usassem seus respectivos codinomes, mas isso seria ridı́culo. Marbletinhaacessoà sfotosdetodos os membros da diplomacia estrangeiraesabiamuitobemcomo Natesechamava. — E um prazer revê -lo. — Ele avaliou o mais jovem por um instante, depois disse: — Você está bem?Parececansado.Quantashoras durouarotadehoje? Eram perguntas gentis, claro, mas ainda assim ele queria saber. Marblenuncadavanadaporcerto. — Dobryj vecher, dyadya — respondeuNate.Começaraatratá -lo como “tio”, em parte para demonstrar respeito, em parte porque gostava mesmo do homem. Eleconferiuoreló gio.—Dozehoras. Asruasmeparecemlimpas. Nate sabia que o mais velho tinha bons motivos para se preocuparcomorigordesuaRDV. Marble nã o fez nenhum comentá rio. Os dois caminharam juntos em meio à s sombras que as á rvores projetavam na calçada. A noite estava gelada, ainda que nã o ventasse. Eles tinham cerca de sete minutosparaareunião. Nateouviamaisdoquefalava,e ouvia com atençã o. O mais velho falava rá pido, mas sem precipitaçã o, ummistodefofocaepoliticagensdo trabalho, quem vinha ganhando prestígionacasa,quemandavacoma corda no pescoço. O resumo de uma operaçã o recente, um recrutamento realizadocomsucessopeloSVRnum paı́s estrangeiro. Os detalhes estavamtodosnosdiscos.Emborase tratassedeumrelató riopro issional, a conversa entre eles poderia muito bem ser confundida com um papo informalentredoisamigos.Otomde voz de ambos, o contato visual, as risadinhas de Marble. A ideia era exatamenteessa. Enquanto andavam, tanto Nate quanto o informante refreavam o impulsodesedarosbraçoscomopai e ilho.Ambossabiamquenã opodia haver nenhum contato fı́sico entre eles.Ossosdoofı́cio:semprehaviao risco de uma contaminaçã o com metka, o pó que a espionagem russa usava para marcar e seguir seus suspeitos.Foraopró prioMarbleque reportaraumprogramasecretopara polinizar agentes da CIA supostamente in iltrados na embaixada americana em Moscou. Tratava-se do nitrofenil pentadienal (NPPD), um composto quı́mico de tom amarelado e aspecto granuloso. Espargido em roupas, capachos e volantes, era concebido para se espalharfeitoopólenpegajosodeum narcisoapartirdeumsimplesaperto de mã o, por exemplo, e daı́ passar paraumalapela,umafolhadepapel, o que fosse. O pó marcava invisivelmentetudoaquiloquefosse tocado por um agente americano. Portanto, um o icial russo cujas mã os,roupasoumesaserevelassem luorescentes com o NPPD — prova de que ele tivera contato com o agentepolinizado—estariaemmaus lençó is. Marble havia deixado Langleyempolvorosa ao relatar que diversas variantes demetka eram usadasempolinizadosdiferentes,de modo que cada um pudesse ser identificadocomprecisão. A certa altura da caminhada, Natetiroudo bolso uma embalagem plá stica. Baterias novas para o equipamento de comunicaçã o secreto de Marble: trê s maços de cigarro cinzentos e pesadı́ssimos. O equipamento era usado para transmitir notı́cias importantes e mantercontatoduranteosintervalos entre cada encontro pessoal. No entanto, essas reuniõ es ao vivo, apesar de breves e muito perigosas, eram in initamente mais produtivas. Era nelas que Marble passava seus discos e pen drives com rios de informaçõ es de inteligê ncia. Era nelas també m que equipamentos e rublos eram reabastecidos. Alé m disso, havia o contato humano, a oportunidade de trocar algumas palavras e renovar aquela parceria quasereligiosa. Nateabriuaembalagemplá stica diante de Marble e o russo pescou com todo o cuidado as baterias previamente embaladas num laborató rio esterilizado na Virgı́nia. Emseguida,depositoudoisdiscosna mesmaembalagemedisse: —Calculoquehajauns5metros lineares de arquivos nestes discos. Comosmeuscumprimentos. Nate notou que o velho espiã o aindausavametroslinearesnolugar debytesparamedirosarquivosque roubava. — Obrigado — falou. — Incluiu osresumos? Osanalistasamericanoshaviam suplicado a Nate que lembrasse Marble de acrescentar pequenos sumá rios a cada grupo de arquivos demodoqueelespudessempriorizar a traduçã o e o processamento das informações. — Sim, dessa vez eu lembrei. També m acrescentei um novo organograma no segundo disco, algumas pequenas mudanças de pessoal,nadademuitoassustador.E uma agenda dos meus planos de viagem para o ano que vem. Tenho inventadomotivosoperacionaispara viajar. Está tudo aı́ — concluiu, apontandooqueixoparaosaquinho plástico. —Vaiser ó timo encontrar com você fora de Moscou — comentou Nate. O tempo corria. Eles haviam alcançado o im da rua e agora voltavam devagar pela mesma calçada. Marble icou pensativo, depois disse: — Sabe... tenho re letido sobre minha carreira, sobre a relaçã o com meus amigos americanos, sobre o futuroquemeespera.Eprová velque eu ainda tenha alguns anos de trabalho antes da aposentadoria. Polı́tica na velhice... o pior dos equı́vocos. Talvez ainda ique na ativa por mais trê s ou quatro anos, quem sabe dois. As vezes acho que seria agradá vel me aposentar em Nova York. O que você acha, Nathaniel? Nate parou e se virou ligeiramente para ele. Ficou preocupado. Que conversa era aquela?Seriapossı́velqueseuagente estivesse em algum tipo de apuro? Marble ergueu a mã o como se fosse apertar o braço dele, mas parou a meiocaminho. —Porfavor,nã osepreocupe— falou. — Estou só pensando em voz alta. Nateolhoudeesguelhaparaele. Viu que o russo parecia mesmo tranquilo.Eranaturalqueumagente pensasse na aposentadoria, que sonhasse com o im dos riscos e perigosdeumavidadupla,comodia emquenã oprecisassemaissea ligir cada vez que batessem à sua porta. Essetipoderotinasemprelevavaao cansaço,eocansaçosempreacabava acarretandoerros.Nateseperguntou se de fato detectara uma nota de exaustã onavozdeMarble.Teriaque ser cuidadoso ao descrever todas as nuances daquela conversa no relató rio que enviaria no dia seguinte. O mais comum era que os eventuais problemas de um caso fossem imputados ao operador designado, problemas dos quais ele nãoprecisava. — Tem alguma coisa errada? Algum problema de segurança? — perguntouNate.—Você sabequehá uma conta bancá ria à sua espera. Pode se aposentar onde quiser. E contarsemprecomonossoapoio. — Nã o, está tudo bem. Ainda temos trabalho pela frente. Depois poderemos descansar — retrucou Marble. — E uma honra trabalhar com você — disse Nate, e foi sincero. — Sua contribuiçã o tem sido inestimável. O velho olhava para baixo enquanto eles seguiam pela rua escura.Oencontrojá seestendiapor seisminutos.Horadepartir. — Está precisando de alguma coisa?—quissaberNate,efechouos olhos para se concentrar. Baterias entregues, discos recebidos, sumá rios incluı́dos, agenda das viagensparaoexterior.Aú nicacoisa que faltava era marcar o pró ximo encontro. — Acha que podemos nos reverdaquiatrê smeses?Dezembro, inverno brabo. De repente podemos nos encontrar nesse local novo, o Eagle,pertodorio. —Sim,claro—disseMarble.— Mando uma mensagem com uma semana de antecedê ncia para confirmar. Elesseaproximavamdamesma esquina de antes, caminhando devagar rumo à luz mais intensa do cruzamento. Um letreiro de neon indicavaaentradadometrô dooutro ladodarua. Nate sentiu um frio sú bito percorrer a espinha quando avistou umcarroatravessandolentamenteo cruzamento,umsedã Ladadecré pito com dois homens na frente. Ele e o russoserecostaramà fachadadeum pré dio, sumindo por completo numa sombra. Marble també m vira o sedã — era tã o experiente em esquadrinhar as ruas quanto seu jovemoperador.Umsegundoveı́culo, um Opel mais novo, atravessou na direçã o oposta com dois homens olhando para o outro lado. Ao virar para trá s, Nate viu que um terceiro automó vel acabara de dobrar a esquina e vinha descendo a rua em baixa velocidade, apenas com os faroletesacesos. — E uma varredura — sussurrou Marble. — Você nã o estacionouporaqui,estacionou? Nate balançou a cabeça em negativa. Nã o, porra, claro que nã o. Seucoraçã oretumbavanopeito.Por um rá pido instante ele olhou para Marble e em seguida os dois agiram em total harmonia, como se fossem uma só pessoa. Ignorando ometka, esquecendo de todo o resto, Nate ajudou Marble a despir o casaco escuro ao mesmo tempo em que o virava pelo avesso, transformando o trajeduplafaceemoutrototalmente diferente, mudando o corte e deixando-o com uma cor bem mais clara, manchado e puı́do nas costuras.Depoisoauxiliouavesti-lo de novo. De um bolso interno do pró priocasaco,Natetirouumchapé u de pele roı́do pelas traças (parte de seu disfarce) e o enterrou na cabeça do informante. Em seguida, Marble colocou os ó culos que ele mesmo levara, um par pesado com uma das hastes colada com ita adesiva. Por im, Nate en iou a mã o em outro bolso e pescou lá de dentro uma bengalaretrá tildetrê spartes,abriuacomumsacolejoeaposicionouna mãodorussocomtodaarapidez. O moscovita de meia-idade nã o estava mais lá ; fora substituı́do em oito segundos pelo aposentado maltrapilho que agora coxeava rua abaixocomoauxı́liodesuabengala. Nate conduziu o informante gentilmenteparaaentradadometrô do outro lado do cruzamento. Sabia quenã oeraoprocedimentocorreto, quecorreriaoriscodeseracuadono subsolo de uma estaçã o, mas se Marbleconseguisseescapardaliteria valido a pena. O disfarce do russo precisariabastarcontraasinú meras câ meras de segurança ao longo da plataforma. — Vou tirar esse pessoal daqui — disse Nate enquanto Marble se preparava para atravessar o cruzamento. Oespiã oveteranovirou-separa ele,sé rioporé mafá vel,esedespediu com uma piscadela.Esse homem é umalendaviva,pensouNate.Masnã o havia tempo para tietagem. Sua prioridade agora era distrair aquela pequena frota de vigilâ ncia, chamando-a para si e afastando-a o má ximopossı́veldeMarble.Demodo algum poderia ser detido, pois, se aqueles homens encontrassem os discos que ele levava no bolso, a consequê ncia seria a mesma da detençã o do pró prio Marble: o informanteseriaeliminado. Nãonoturnodele. Nate sentia a cabeça e a garganta queimarem com o ar frio que inalava. Os mú sculos do abdô men se contraı́am pelo mesmo motivo. Erguendo a gola do casaco, atravessouaruadiantedocarroque percorrera metade do quarteirã o. Decerto eram homens do FSB, que operavaexclusivamentenoterritó rio da Federaçã o Russa. Estavam jogandoemcasa. Omotoristaacelerouomotorde 1200cc do Lada e acendeu o farol alto, que resplandeceu na rua molhada. Nate correu para o quarteirã oseguintee,aochegarlá ,se jogounopoçodaescadaquelevavaa um apartamento de subsolo, um lugar imundo que fedia a mijo e vodca.Ouviuoveı́culoseaproximar, entã o se deu conta de que nã o poderia icarali,queteriaqueseguir fugindo pelos becos da vizinhança, pelas passarelas de pedestres, pelas escadas que levavam ao rio.Procure barreiras,linhasferroviárias,mudede direção assim que sumir de vista. Engane os algozes, se esgueire para o outro lado das barricadas. Reló gio: quaseduashoras. Exausto, ora ele corria, ora caminhava,oraseagachavaentreos carros estacionados, ouvindo os motores se aproximarem em um momento, se afastarem no seguinte, depois voltarem a se aproximar, tentando chegar perto o bastante para ver o rosto dele, colocá -lo de bruçosnochã ocomorostocontrao asfalto, enterrar as mã os em seu bolso. Ele podia ouvir a está tica dos rá dios que eles usavam, os berros quedavam,seudesesperocrescendo. Seu primeiro instrutor de vigilâ ncia durante o perı́odo de treinamento lhe dissera:Você deve sentirarua,Sr.Nash.Nãoimportaseé a Wisconsin Avenue ou a Tverskaya: você precisa sentir a rua. Era exatamente isso que ele fazia agora, mas os russos eram muitos, ainda que nã o soubessem sua localizaçã o exata. Pneus cantavam nos paralelepı́pedos molhados enquanto os carros zanzavam de um lado a outro. A boa notı́cia era que eles ainda nã o tinham coordenadas su icientesparapersegui-loapé ,ea má notı́cia era que o tempo corria a favor deles. Ainda bem que continuavam na sua cola, o que signi icava que nã o estavam focados em Marble. Nate fez uma rá pida oraçã o, agradecendo por ter conseguidodespacharovelhoparao metrô e por aquela equipe de vigilâ ncia nã o o ter seguido desde o inı́cio, pois isso signi icaria que um segundotimeestariaatrá sdeMarble naquele exato momento. Nã o, ningué m botaria as mã os no agente, seuagente,tampouconosdiscosque ele havia lhe passado e que eram nitroglicerina pura. Os pneus sibilantes inalmente se afastaram e o silê ncio tomou conta da rua de novo. Reló gio: mais de duas horas. Com as pernas e a coluna em frangalhos, a visã o turvada nos cantos, Nate seguiu por uma ruela, esgueirando-se no escuro, torcendo para que eles tivessem ido embora, imaginando os carros de volta na garagem, enlameados, estalando de tã o quentes enquanto os homens recebiam uma merecida descomposturanogabinetedochefe. Fazia vá rios minutos que Nate nã o via carro algum, e deduziu que já estivesseforadoperı́metrodebusca daequipe.Anevevoltaraacair. Pouco depois, no entanto, um carro parou de repente na esquina, deu ré e entrou na ruela, os faró is iluminandoos locosquecaı́am.Nate se espremeu contra a fachada mais pró xima, tentando reduzir a pró pria silhueta e os contrastes, mas estava certo de que o tinham visto. Assim que os faró is o localizaram, o motorista acelerou em sua direçã o, aproximando-se do lado da ruela onde ele se encontrava. Perplexo, Natemalacreditouquandooveı́culo continuouacelerandocomaportado passageiroapoucoscentı́metrosdas fachadas, os limpadores de parabrisa trabalhando a pleno vapor e, atrá sdeles,doisrostosconcentrados. EssesanimaisdoFSB...Seriapossı́vel que nã o o estivessem vendo? De sú bito,Natesedeucontadequeeles oviammuitobemequeseuobjetivo parecia ser esmagá -lo contra a parede.É uma regra tácita que as equipes de vigilância nunca, jamais, usem de violência quando seu alvo é um diplomata estrangeiro, os instrutores haviam dito. Nesse caso, bem, que diabo aquela gente estava fazendo? Nate olhou para trá s e viu que a entrada da ruela estava longe demais. Sinta a rua, Sr. Nash. Foi entã o que elesentiu,poucoà frente,ocano de escoamento que se prendia à fachada de tijolos por meio de grampos metá licos, um só lido cano deferrofundidonoqualelesejogou para depois escalar, usando os gramposcomoapoio.Já estavaaltoo bastantequandoergueuaspernaseo carropassouporbaixodele,batendo ruidosamente contra o cano e achatando-o na base. O motor morreu e Nate, sem forças para continuar pendurado, saltou para o teto do carro e de lá para o chã o. A porta do motorista se abriu e um homem grande, usando chapé u de pele, começou a sair. Equipes de vigilâ ncia jamais usam de violê ncia? Nate nã o estava disposto a pagar para ver. Sem hesitar, bateu a porta na cabeça do homem, ouviu o berro dele,viuseurostocontorcidodedor e deu mais duas pancadas fortes e rá pidas.Osujeitocaiudevoltaparao interior do carro e o companheiro dele,sempoderdescerporseulado, já estava se espremendo rumo à porta traseira. Hora de voltar a correr,pensouNate,edisparouruela aforaatédobraraesquina. Uns trê s pré dios adiante ele se viu à porta de um restaurante minú sculo e imundo, aberto apesar da hora, as luzes vazando para a calçada. Ao escutar o carro rugir de novonaruela,talveztentandosairde ré , ele rapidamente entrou no restaurantevazioefechouaportaà s suas costas. Um ú nico cô modo, nã o mais que um balcã o de serviço nos fundos, algumas mesas decré pitas, paredesmanchadaseumacortinade renda encardida sobre a janela. Do outroladodobalcã o,umavelhacom apenas dois dentes pontudos lia seu jornal enquanto ouvia um rá dio de sinalmuitofraco.Aseulado,emcima de um fogã o elé trico, duas panelas surradas de alumı́nio quase transbordavamcomasopaquehavia nelas.Oambienterecendiaacebola. Fazendoumesforçoparaqueas mã os parassem de tremer, Nate caminhou até o balcã o e, em russo, pediuumpratodesopadebeterraba à mulher de olhar vazio. Em seguida serecostouà janelafechadaeaguçou os ouvidos. Um carro passou na rua, depois outro, e só . No rá dio, um comediantecontavaumapiada: Krushchev visitou uma fazenda deporcosefoifotografadoporlá .Na redaçã o do jornalzinho da cidade, houve uma acalorada discussã o sobre a melhor legenda para a foto. “Camarada Krushchev entre os Porcos”? “Camarada Krushchev e os Porcos”? “Porcos e o Camarada Krushchev”? Nã o, nada disso estava bom. Por im o editor bateu o martelo: “Camarada Krushchev, o terceirodaesquerdaparaadireita.” A velha riu do outro lado do balcão. Apó s mais de doze horas sem comeroubebernada,Natedevorava sua sopa grossa com uma colher trê mula. A velha o itou por algum tempo, depois se levantou e contornouobalcã oparairaté aporta da frente. Nateacompanhou o movimento dela de esguelha. Ela entreabriuaporta,olhouparaambos osladosdaruaedepoisafechoude novo. Voltou a seu lugar atrá s do balcã o e pegou o jornal que deixara ali. Assim que terminou de comer, Nate se levantou e deixou alguns copeques sobre o balcã o. A velha encarquilhada contou as moedas, varreu-asparadentrodeumagaveta, ergueuoolharparaeleedisse: —Estácerto.VácomDeus. Nateevitouencará -laeentã ofoi embora. Dali a uma hora, encharcado de suoretrê mulodecansaço,eleen im atravessouaguaritadocomplexoda embaixada americana. Os discos de Marbleestavamen imemsegurança. Aquele nã o era o modo correto de encerrarumanoite de trabalho, mas ohorá riomarcadoparasuacoletajá passara havia muito tempo. Sua entradafoidevidamenteprotocolada eemmeiahoraoFSB(elogodepois o SVR) foi informado de que tinha sido o jovem Sr. Nash, do setor econô micodaembaixadaamericana, quempassaraboapartedanoitefora de alcance. E eles achavam que sabiamporquê. SOPA DE BETERRABA DA VELHA Derreter manteiga numa panela grande; refogar cebolas picadas até que fiquem transparentes; acrescentar três beterrabas raladas, um tomate picado, caldo de carne, vinagre, açúcar, sal e pimenta. O caldo deve ficar agridoce. Deixar ferver e cozinhar por uma hora. Servir quente com uma colherada de creme azedo e endro picado. CAPÍTULO 2 NAMANHASEGUINTE,OCLIMA nã oeranadabomemdoisgabinetes diferentes, em pontas opostas de Moscou. Na sede do SVR, em Yasenevo, o primeiro vice-diretor Ivan(Vanya)DimitrevichEgorovliao relató rio sobre as operaçõ es da equipe de vigilâ ncia do FSB da vé spera. Brandos raios de sol atravessavam as grossas vidraças que davam para a loresta de pinheirosemtornodopré dio.Alexei Zyuganov,odiminutochefedaLinha KR de contrainteligê ncia, estava de pé diante da mesa de Egorov — nã o foraconvidadoasesentar.Osamigos mais pró ximos (ou talvez apenas a mã e) chamavam o peçonhento anã o de“Lyosha”,masnãonaquelamanhã. Aos65anos,VanyaEgoroverao major-general mais antigo no SVR. Tinha uma cabeça enorme com uma coroa de cabelos grisalhos, olhos castanhoseafastados,bocacarnuda, ombros largos, uma pança respeitá vel e mã os grandes e fortes. Tudo isso lhe conferia o aspecto de um gigante de circo. Estava usando um elegante terno escuro de tecido pesado,feitosobmedidanoateliê de Augusto Caraceni, em Milã o, com uma gravata azul-marinho e sapatos de verniz novinhos em assinadosporEdwardGreens. folha Como tantos outros, Egorov começara a carreira como o icial de campo da KGB, mas, depois de um sem-nú mero de missõ es nos con ins mais tó rridos da Asia, chegara à conclusã odequenã oeraexatamente talhado para o trabalho em campo. DevoltaaMoscou,souberadriblaras virulentas disputas de poder na organizaçã o e ocupara diversos postos de grande visibilidade, a princı́pio no setor de planejamento, depois na administraçã o e, por im, no recé m-criado posto de inspetor geral. Exercera um importante papel na mudança da KGB para SVR em 1991, escolhera o lado certo das trincheirasporocasiã odofracassado golpe de Kryuchkov contra Gorbachev,em1992,eem1999fora notado pelo apá tico vice-primeiroministro Vladimir Vladimirovich Putin, um escorpiã o de cabelos louros e lâ nguidos olhos azuis. No ano seguinte, Yeltsin estava fora, e Putin, contrariando todas as expectativas,assumiraocomandodo Kremlin. Vanya Egorov icara esperando o telefonema que sem dúvidanãotardaria. “Quero que você cuide das coisas pra mim”, Putin lhe dissera durante uma entrevista de apenas cinco minutos no imponente gabinete presidencial do Kremlin, a exuberante madeira dos lambris re letindo-se de um modo sinistro nosolhosdonovopresidente.Ambos sabiam que “coisas” eram aquelas, e Vanya voltara para Yasenevo, a princı́pio como terceiro vice-diretor, depois como segundo, até que passara a ocupar o gabinete do primeirovice-diretor,bememfrente à suı́te de salas do diretor. Fazia um anoqueestavalá. O clima icara tenso antes das eleiçõ esnoú ltimomê sdemarço,os malditosjornalistase os partidos de oposiçã opraticamentesemcontrole, oquenuncaaconteceraantes.OSVR procurara alguns dissidentes, operara com discriçã o nas diversas zonas eleitorais e enviara relató rios sobre alguns parlamentares da oposiçã o. Um oligarca colaboracionista havia sido orientado a formar um novo partido apenas com o intuito de canalizar votosedividirocontingenteinimigo. Vanya, por sua vez, arriscara tudoaosugerirpessoalmenteaPutin que os ocidentais, sobretudo os americanos, fossem responsabilizados por insu lar as inú meras manifestaçõ es populares que haviam precedido as eleiçõ es. O candidato adorara a sugestã o e a aceitara sem pestanejar, já contemplandooretornodaRú ssiaao cená rio internacional. Chegara ao ponto de cumprimentar Vanya com tapinhas nas costas, talvez porque e l e stivessem trajetó rias tã o parecidas, talvez porque ambos houvessem realizado tã o pouco comoo iciaisdeinteligê nciadurante suasbrevesmissõ esforadopaı́s,ou talvez porque um informante fosse capaz dereconhecer outro nashnik. Fosseoquefosse,Putingostavadele, e Vanya Egorov sabia que seria recompensado. Estava pró ximo das alturas. Tinha tempo de serviço e poder para continuar subindo. E era issoqueelequeria. Ocorre que o capataz de uma fazenda de cobras inevitavelmente será picadosenã oagircomextrema cautela. O Kremlin atual era todo ternos e gravatas, sorridentes reuniõ esdecú pulaecomunicadosde porta-vozes, mas qualquer um com tempo su iciente de casa poderia atestar que, na essê ncia, pouco ou nadahaviamudadodesdeostempos de Stalin. Amizade? Lealdade? Proteçã o? Bastava um ú nico tropeço operacional ou diplomá tico, ou pior, alguma falha que colocasse o presidenteemmauslençóis,paraque uma tempestade desabasse na cabeçadoinfeliz,umaburyacontraa qualnãohaviaqualquerabrigo. Vanya balançou a cabeça.Chert vozmi. Merda. Aquele episó dio com Nash era exatamente o que elenão precisava. — Nã o havia outra equipe de vigilâ ncia menos incompetente? — rugiuele.Tinhaohá bitodeexagerar um pouco no drama quando estava diantedesubordinados.—Nã ohá a menordú vidade que esse merdinha americano foi se encontrar com alguma fonte ontem à noite. Como é possı́vel ele ter icado fora do nosso radarpormaisdedozehoras?Aliás,o queessesvigilantesestavamfazendo naquelapartedacidade? — Parece que estavam procurando por tra icantes chechenos.Só DeussabeoqueoFSB anda fazendo ultimamente — explicouZyuganov.—Aquelebairro... aquiloláéumantro. —Maseabatidanaruela?Que diabofoiaquilo? — Nã o está claro. Eles acreditavamteracuadoumchecheno armado. E o que estã o dizendo, mas acho difı́cil. O mais prová vel é que tenham se deixado levar pelo entusiasmodabusca. — Kolkhozniki. Camponeses teriamsesaı́domelhor.Voupedirao diretor que converse com o presidentenapró ximasegunda-feira. Nã o podemos permitir que diplomatas estrangeiros sejam achacados na rua, mesmo que estejam se encontrando com traidores russos — disse Egorov, e bufou.—OFBIvaicomeçaraatacar nossos operadores em Georgetown se esse tipo de coisa voltar a acontecer. —També mvouenquadrarmeu pessoal,general.Osvigilantesvã ose emendar, ique tranquilo. Sobretudo, se me permite sugerir, se lhes arranjarmos pequenas temporadas dekatorga. Egorov encarou seu chefe de contrainteligê ncia com o rosto impassı́vel, notando que por pouco ele nã o salivara ao usar o termo tsarista paragulag. Por Deus. Alexei Zyuganoveraumcarabaixoedepele escura, com orelhas de abano e um rosto achatado que mais lembrava uma frigideira. Dentes podres e um risinho perene completavam o arqué tipoLubyanka.Apesardetudo, era um subordinado con iá vel e malévoloquetinhalásuautilidade. — Podemos até criticar o FSB, mas uma coisa eu lhe garanto: esse americano está se encontrando com algué mimportante.Umpeixegraú do que aqueles imbecis nem sequer tiveramcapacidadedeidenti icar.— Egorov jogou seu relató rio sobre a mesa.—Portanto,Zyuganov,você já pode imaginar qual será sua missã o daquiprafrente,nã opode?—Elefez uma pausa, e depois: — Descobrir. Quem. Ele. E — falou, batendo o indicador gordo no tampo da mesa para pontuar cada palavra. — Quero que você me traga a cabeça desse ilho da puta traidor dentro de um cestodepalha. — Será minha prioridade — retrucou Zyuganov, ciente de que, sem o mı́nimo de informaçõ es para seguiremfrente,semqualquerpista especı́ icadoinformantenaCIA,sem alguma sorte nas ruas, eles nã o teriamalternativaanãoseresperar. Por ora ele nã o poderia fazer mais que investigaçõ es e interrogató rios, apenas para nã o perderocostume. Egorovolhoumaisumavezpara o relató rio inú til. O ú nico fato con irmado era a identi icaçã o de Nathaniel Nash ao portã o da embaixada.Nã ohavianingué mmais que o tivesse visto para fornecer algumadescriçã o.Omotoristadeum doscarrosdaequipe(cujafoto,com um curativo sobre o olho esquerdo, fora incluı́da no documento, talvez para justi icar o incidente na ruela) reconhecera o americano, assim como a sentinela à porta do complexoresidencialdaembaixada. Aquela histó ria poderia acabar muito bem ou muito mal, pensou Egorov. Muito bem se um badalado caso de espionagem fosse resolvido pormé ritodeleeparaadesgraçados americanos. Muito mal se um iasco viesse acender o pavio curto de seu padrinho no Kremlin, o que seria o im de sua carreira. Dependendo da ira do presidente, era bem possı́vel que ele fosse parar num beliche ao lado de Khodorkovsky, o oligarca arruinado, na Colô nia Penal Nú mero 9deSegezha. Ao avaliar morbidamente as oportunidades e consequê ncias polı́ticas de toda aquela confusã o, naquelamanhã elehaviarequisitado e lido oliternoye delo, ou arquivo operacional, de Nate: “Jovem, disciplinado, dedicado, luente em russo. Nenhum excesso com mulheres ou á lcool. Sem vı́cio em drogas.Aplicadocomochefedosetor econô mico da embaixada. E icaz no trabalho de espionagem; jamais telegrafa o intuito de suas missõ es.” Molokosos,resmungaraEgorovaoler tudoisso.Ianquezinhodemerda. Ergueu os olhos para seu chefe de contrainteligê ncia. Zyuganov sentiuoscabelosseeriçaremnanuca e achou que devia demonstrar um pouco mais de entusiasmo. Ivan Egorov nã o tinha muita experiê ncia em operaçõ es de campo, mas pertencia a uma espé cie bastante comum na fauna do SVR: a dos burocratas politicamente ambiciosos. — Sr. vice-diretor, o melhor caminho para descobrirmos a identidade do traidor que está vendendonossossegredosé fecharo cerco em torno desse ianque que se achaumheró i.Segui-loaondeelefor. Colocartrê sequipesnacoladele,24 horas por dia. Ordenar, ou melhor, pedir ao FSB que aumente a vigilâ ncia. Vamos deixar que eles monitorem o homem e depois, no momento certo, entramos com nossasequipes.Temosquedescobrir onde será o pró ximo encontro. Porque sem dú vida haverá outro encontrodaquiatrêsouseismeses. Egorov gostou do que ouviu. Repetiria aquilo quando fosse falar com o diretor mais tarde no mesmo dia. — Muito bem, entã o. Ao trabalho. Me avise assim que tiver mais detalhes do que pretende fazer para que eu possa manter o diretor informado sobre a nossa estraté gia — ordenou Egorov, e abanou a mã o paradispensarseusubordinado. “Sobre anossa estraté gia?”, pensouZyuganov,esaiu. O complexo da embaixada americana icava a noroeste de Yasenevo, no distrito de Presnensky, entreoKremlineumacurvabastante acentuada do rio Moscou. Naquela mesma tarde, outra conversa desagradá vel acontecia no gabinete do chefe de estaçã o da CIA, Gordon Gondorf. Assim como o chefe da LinhaKR,Natenã oforaconvidadoa sesentareagoraestavadepé diante damesadeGondorf.Osjoelhosainda doíamdanoiteanterior. Enquantooporteavantajadode Egorov lhe dava uma aparê ncia de gigante de circo, a estatura e as feiçõ es angulosas de Gondorf o faziam lembrar, com assombrosa precisã o, um cã o de circo da raça Whippet.Tinha1,70metrodealtura, cabelosralos,olhosmuitoredondose pró ximos demais, pé s minú sculos. O que lhe faltava em estatura lhe sobrava em malı́cia. Gondorf (ou Gondork, como era chamado pelas costas, uma referê ncia à gı́ria americana para “panaca”) nã o con iava em ningué m, tampouco se davacontadaironiapresentenofato de ele mesmo també m nã o inspirar con iança. Vivia num inferno secreto que apenas seus pares de espionagempoderiamconhecer. — Li seu relató rio operacional de ontem — disse ele, mas em tom neutro,quasehesitante.—Deacordo comoqueescreveu,pareceque icou satisfeitocomoresultado. Nate sentiu um frio na barriga, antecipandoabroncaqueestavapor vir.Defendasuaposição,pensou. — O agente retornou em segurança. Acho que é um bom resultado,sim—afirmou. SabiamuitobemaondeGondorf queria chegar, mas deixaria que ele fizesseissoporcontaprópria. — Nosso ativo mais valioso e prolı́ ico quase foi preso ontem à noite.Porsuaculpa.Seuencontrofoi lagrado por uma equipe de vigilância,peloamordeDeus! Nateprecisouconteraraiva. — Fiz uma rota de doze horas ontem. Aliá s, uma rota quevocê aprovou. Con irmei meu status. Eu estava invisı́vel quando cheguei ao localdoencontro,eMarbletambém. — Entã o como você explica a presença das equipes de vigilâ ncia? — questionou Gondorf. — Nã o é possı́vel que acredite que elas estavamaliporacaso.Você nã oacha isso, acha? — emendou com sarcasmo. — Foi exatamente isso que aconteceu — retrucou Nate. — E impossı́vel que eles estivessem me procurando. Aquela merda toda na ruela...Elesnã ochegaramaliporque estavammeseguindodesdeoinı́cio. Nã oé possı́vel.Estavamaliporoutro motivo e reagiram. Nem izeram questã o de ser discretos. Marble foi emboraemcompletasegurança. Nate nã o pô de deixar de notar que para o chefe nã o havia a menor importâ ncia que o tivessem tentado esmagar contra uma parede. Outra pessoa já estaria na sala do embaixador,exigindo,dedoemriste, que a embaixada formalizasse um protestojuntoàdiplomaciarussa. — Nã o diga bobagens — devolveu Gondorf. — A noite de ontem foi um desastre completo. Onde você estava com a cabeça quando colocou nosso homem no metrô ? Aquilo é o mesmo que uma ratoeira! Alé m disso, ignorou todas as normas de procedimento quando oajudouavirarocasacopeloavesso. Eletinhaquefazerissosozinho,você sabe muito bem! E se neste exato momento ele estiver icando todo verdesobumalanternafluorescente? — Foi uma decisã o consciente. Julgueiqueaprioridadeeracolocá -lo num disfarce e tirá -lo dali o mais rá pido possı́vel. Marble é um cara experiente,semdúvidajáselivroudo casaco e da bengala. Podemos mandarumamensagempraele,eeu con irmotudoissononossopró ximo encontro—propôsNate. Aconversaeraangustiantepara ele, sobretudo porque o chefe nã o tinha o menor conhecimento das ruas. — Nã o haverá pró ximo encontro. Pelo menos nã o com você , visado do jeito que está . Ontem à noite você foi identi icado umas dez vezes! Sua fachada no Setor de Economiafoiparaobrejo,e,deagora emdiante,podeacreditar:metadedo serviço de vigilâ ncia de Moscou vai icar no seu pé — disse Gondorf, visivelmentesaboreandoaspalavras. — Eles sempre souberam da minha posiçã o de fachada. Sempre tive vigilantes no meu pé , você sabe disso. Posso muito bem continuar falando com os nossos ativos — argumentou Nate, apoiando-se no espaldardeumacadeira. Sobre a mesa do chefe havia uma granada esculpida em madeira com os seguintes dizeres na base: DEPARTAMENTODERECLAMAÇOES. PARA UM ATENDIMENTO MAIS RÁPIDO,PUXEOPINO. — Nã o. Nã o dá mais pra você continuar se encontrando com os agentes—decretouGondorf.—Você agoraéumímãdeproblemas. —Serealmentecolocaremessa gente toda no meu pé , eles vã o à falê ncia — raciocinou Nate. — Aliá s, a ideia até que nã o é má : icar zanzandodecarroporaı́duranteseis meses só pra sugar os recursos e o contingente deles. Quanto mais vigilâ ncia na minha cola, mais fá cil serámanipulá-los. Defendasuaposição. Gondorf nã o icou nem um pouco impressionado, muito menos convencido. O jovem á s da espionagem representava um enorme risco pessoal para ele, que havia muito tempo sonhava com a possibilidade de um posto no alto escalã o apó s sua volta para Washington.Aquelerisconã ovaliaa pena. — Nash, estou recomendando que sua temporada em Moscou seja abreviada. Você está muito visado neste momento, e é só uma questã o de tempo até ser apanhado com um dos nossos informantes. — Ele ergueuorostoparadizer:—Masnã o se preocupe. Faço questã o que obtenhaumaótimatransferência. Nate icouperplexo.Até mesmo umespiã ode primeira viagem sabia que uma temporada abreviada por umchefedeestaçã o—qualquerque fosse a razã o — era o bastante para umacarreirairporá guaabaixo.Alé m disso, nã o havia a menor dú vida de queGondorfespalhariaqueelehavia metido os pé s pelas mã os. Sua reputaçã o extrao icial receberia um golpe do qual seria muito difı́cil se recuperar. Os novos trabalhos e as possı́veis promoçõ es icariam seriamente comprometidos. Nate experimentou a velha sensaçã o de que estava afundando em areia movediça. Por outro lado, tinha a consciê nciaabsolutamentetranquila: nanoiteanteriorelesalvaraavidade Marble com uma decisã o rá pida e acertada. Olhou para baixo, para o rosto impassı́vel do chefe. Os dois sabiam muito bem o que estava acontecendoali,e por quê . Portanto, para Nate, nã o fazia sentido evitar levar aquela conversa até as ú ltimas consequências. — Gondorf, você é um covarde ilho da puta que se borra de medo das ruas. Resolveu me fritar só pra tirar o seu da reta. Sabe, foi muito educativotrabalharnestaestação. Ao sair da sala, observou que a ausê ncia de um ataque de fú ria por parte de Gondorf dava uma boa medidadequemeleera. *** Cortado antes do im da temporada. Melhor isso do que ser responsabilizado pela morte de um informante, por desvio de recursos ou pela falsi icaçã o de relató rios. Ainda assim, um desastre. Nate nã o sabiaaocertocomoissoafetariaseu futuro, mas tinha certeza de que a notı́cia se espalharia no instante em que o telegrama de Gondorf fosse recebido no QG. Alguns de seus colegasdetreinamentojá faziamseu segundo turno, subindo de degrau. Segundo ouvira dizer, um deles já ocupava o posto de che ia numa estaçã o menor. Os meses de treinamento adicionais em Moscou haviam lhe custado algum atraso, e agoraisso. Por mais que tentasse se convenceranãofazertempestadeem copo d’á gua, Nate nã o parava de se remoer. Crescera ouvindo que era importante nã o icar para trá s, que era fundamental vencer. A mansã o palladiana em que fora criado à s margens do rio James, na Virgı́nia, nã oeramuitodiferentedeumringue deluta,umringuepeloqualjáhaviam passado muitas geraçõ es da famı́lia Nash.Oavô deNateedepoisseupai, respectivamenteofundadoreosó cio majoritá rio do escritó rio de advocaciaNash,Waryng&Royallem Richmond, haviam se alternado na cabeceiradaamplamesadejantare aplaudido os irmã os mais velhos de Nate (um com seus cachinhos desgrenhados à la Jú lio Cesar e o outrocomasmadeixaspartidaspara oladocomtodoocuidado)enquanto eles se engal inhavam feito dois capetas nos tapetes da sala, aprendiam o bá sico do Direito, levavam ao altar beldades peitudas daquelas que se calam e erguem os olhosazuis,obedientes,assimqueos maridoschegamemcasa. Mas e quanto ao jovem Nate? O que vamos fazer com ele? Era isso que volta e meia se perguntavam. Formado em literatura russa pela Johns Hopkins, Nate havia buscado refú gio no campo espiritual e ascé tico de Gó gol, Tchecov e Turgenev,omundomaisdistantede Richmondqueconseguiraencontrar. Os irmã os, assim como o pai, achavam aquilo um desperdı́cio. Esperavam que ele també m se formasse em Direito pela Universidade de Richmond, para a qual fora pré -aprovado, e posteriormente se juntasse ao escritó rio da famı́lia como só cio jú nior.Odiplomaemletras,portanto, era um problema, e a subsequente candidatura para um posto na CIA havia causado uma grande crise familiar. “Tenho absoluta certeza de que você icará decepcionado com o serviçopú blico”,o pai dissera. “Com todaasinceridade,nã oconsigovê -lo feliz no meio daquela burocracia toda.” Tinha certa intimidade com a á rea, pois conhecia alguns ex- diretores da agê ncia. Os irmã os, no entanto,erambemmenoscautelosos ao criticarem. Durante um feriado particularmente animado, eles haviam feito um bolã o para saber quanto tempo Nate duraria em sua aventura na CIA. A previsã o mais otimistanãochegavaatrêsanos. Adecisã odeintegrarosquadros daagêncianãotinhanadaavercoma vontadedeescapardossuspensó rios e abotoaduras da vida de advogado, das colunatas de uma mansã o colonial à beira do rio, das previsibilidades sufocantes de Richmond. Tampouco estava relacionada a uma noçã o de patriotismo: Nate nã o era nem mais nemmenospatriotadoquequalquer americano.Emvezdisso,tinhatudoa ver com os saltos que seu coraçã o dera quando ele, aos 10 anos,se obrigara a caminhar pelo beiral da mansã oaumaalturadetrê sandares, cara a cara com os gaviõ es que plainavam sobre o rio, apenas para enfrentar o pró prio medo, o pavor que tinha do monstro do fracasso. Tinhaavercomatensã oentreeleeo pai, ele e o avô , ele e os irmã os que exigiam uma conformidade que eles mesmos nã o estavam dispostos a oferecer. Tratava-se dos mesmos saltos no coraçã o que ele sentira durantes as entrevistas iniciais na CIA, do tremor na voz que precisara controlar ao discursar sobre seu prazer em se comunicar com as pessoas,emenfrentarincertezas,em vencer desa ios. No entanto, ao conseguir conter os sentimentos e a voz,eletiveraagrataconstataçã ode que era capaz de agir com frieza e enfrentar as coisas sobre as quais nã o tinha controle. Trabalhar na CIA eraalgodequeeleprecisava. Mas o coraçã o de Nate deu o salto mais forte quando ele recebeu deumrecrutadoranotíciadequeseu pedido de ingresso na agê ncia di icilmente seria aprovado, em grande parte porque ele nã o tinha nenhuma “experiê ncia de vida” pó sformatura. Outro entrevistador, no entanto, mais otimista que o primeiro, con idenciara que o resultado excelente nas provas de russofaziadeleumó timocandidato. Foram trê s meses até que a CIA tomassesuadecisã o,enesseperı́odo as apostas da famı́lia já giravam em torno dadata exata do retorno de Nate para casa. A comoçã o foi a mesma quando o envelope chegou. Aprovado. Em seguida vieram a apresentaçã o no QG, interminá veis formulá rios para assinar, inú meros cursos para fazer, meses de treinamento, auditó rios com palestrantes sonolentos e uma in inidade de apresentaçõ es audiovisuais. Depois disso tudo, en im, a fazenda e suas estradinhas pavimentadas cortando as lorestas de pinheiros, os dormitó rios com piso de linó leo, as salas de aula bolorentas de carpete cinza, os assentos numerados que haviam pertencido aos heró is do ano anterioreaosdequarentaanosatrás, recrutas sem rosto ou identidade, espiõ esexı́miosounã o,ostraidores quehaviamdebandadoparaocampo inimigo, os que já haviam morrido muitotempoanteseeramlembrados apenas pelos poucos que os conheciam. Eles simulavam reuniõ es clandestinas, bem como recepçõ es diplomá ticas em que os novos recrutassemisturavamainstrutores sempre muito efusivos, trajando uniformes do Exé rcito Sovié tico ou paletó s compridos à la Mao TseTung.Embrenhavam-senosbosques com alguma engenhoca de visã o noturnaeiamcontandoospassosaté encontrarem num toco de á rvore o tijolo que haviam escondido num saco de aniagem. Nas simulaçõ es de blitz, eram ameaçados por instrutoresquesefaziampassarpor “guardas de fronteira” e os jogavam contra o capô do carro, esfregando papé is em suas caras e exigindo explicaçõ es. As vezes iam para uma fazenda perdida no meio do nada e, enquanto bebiam vodca, tentavam convencer algum pseudo-o icial a cometer traiçã o. Atravé s dos pinheiros,viamasuperfı́cienegrado rioseagitarcomomergulhodeuma águia-pescadoraduranteoanoitecer. Nate era bem-sucedido na maioria dos exercı́cios prá ticos. Nã o sabia dizer de onde vinham seus instintos, mas ele deixava para trá s toda a pressã o de seu passado familiaremRichmondeseentregava comcon iançaà ssimulaçõ esemque precisava driblar vigilantes para se encontrar com os pseudoinformantes, quase sempre fantasiados com os casacos e chapé us mais imprová veis. Diziam que ele tinha um olho bom e Nate começava a acreditar nisso, mas a descrença dos irmã os mais velhos ainda pairava sobre ele como um fantasma. Seu grande pesadelo era fracassar, ser dispensado do treinamento e voltar para Richmond comoraboentreaspernas.Recrutas eram mandados embora a todo instante,semnenhumavisoprévio. — Só nos interessam os alunos íntegros—dissecertavezoinstrutor de té cnicas de espionagem. — Nã o queremos saber de ningué m recorrendo a meios escusos para descobrir qual será a simulaçã o seguinte e se dar bem. — Ele quase berrava. — Se um de você s for lagradocomoblocodeanotaçõ esde uminstrutor,oucomqualqueroutro material de acesso restrito, será dispensado sumá ria e irrevogavelmente. Nate tinha a impressã o de que esse tipo de coisa era dito quase comoumdesafio. Apesar de serem um grupo, os novatos nã o se misturavam entre si, cada um acalentando os pró prios sonhos, imaginando uma primeira missã o em Caracas, Atenas, Tó quio ou Nova Dé li. A rivalidade entre eles icava ainda mais acirrada nos coqueté is oferecidos pelos diversos departamentos da agê ncia, uma espé cie de cerimô nia de recrutamento para jovens espiõ es. A tensã oeraamesmaqueosjogadores sofrem antes de algum campeonato em que sabem que vá rios olheiros estarãopresentes. Numadessasfestinhasde imde treinamento, Nate foi abordado por um homem e uma mulher e informado de que havia sido pré aprovado para a Divisã o Russa da CIA, de modo que nã o precisaria se candidataranenhumpostoemoutro lugar. Nate perguntou, com toda a delicadeza, se seu conhecimento da lı́ngua també m nã o poderia ser aproveitadoparalidarcomrussosno Oriente Mé dio ou na Africa, por exemplo, mas eles apenas sorriram, dizendo que o esperavam no QG antesdofimdomês. Ele conseguira. Estava praticamenteempregado.Faziaparte daelite. Em seguida vieram as palestras sobre a Rú ssia moderna. Falaram sobre os problemas do comé rcio de gá s natural com a Ucrâ nia, que afetavam toda a Europa, bem como sobre a velha mania do Kremlin de apadrinhar paı́ses do mal para fazer justiça quando sua real intençã o era fazer o mal e, em ú ltima aná lise, provarqueaRú ssiaaindanã oestava morta. Homens muito peludos discursaram sobre as promessas da Rú ssia pó s-Uniã o Sovié tica, sobre eleiçõ es, reformas no sistema de saú deecrisesdemográ icas,esobre atristepossibilidadedeaCortinade Ferrovoltarasefechardiantedeum pardeolhosazuisquenã odeixavam escapar nada. ARodina, a sagrada Pá triaMã edeterraescuraecé usem im,teriaqueresistirumpoucomais enquanto o cadá ver da Uniã o Sovié tica era içado do pâ ntano em queohaviamafundadoeseucoraçã o eraressuscitado,esó entã oasvelhas prisõ es poderiam ser enchidas de novo com os in ié is que nã o se emendavam. Uma mulher dura e in lexı́vel falousobreanovaGuerraFria,sobre as negociaçõ es veladas de desarmamento e os novos caças supersô nicoscapazesdevoardelado mas que ainda traziam uma estrela vermelha nas asas, sobre a fú ria de Moscou apó s a instalaçã o, por parte doOcidente,deumsistemadedefesa antimı́ssilnaEuropacentral(ah,que saudade daquela antiga e conveniente escravidã o!), sobre os sabresqueaospoucoseramsacados de suas bainhas enferrujadas, uma melodia que se ouviatodos os dias nos tempos de Brejnev e Chernenko. E o objetivo de tudo aquilo, diziam, de todo aquele aparato de espionagem, era a necessidade crescente de saber quais eram os planos e intençõ es por trá s da placidez daqueles olhos azuis e daquela ampla fronte dourada, segredos aparentemente diferentes, masosmesmosdesempre,segredos queprecisavamserroubados. Por im, um agente que mais parecia um tra icante da Rota da Seda, um senhor de olhos verdes e sorrisoenviesado,apareceuparaum bate-papoinformal. — Energia, declı́nio populacional, recursos naturais, paı́ses-clientes—disseelecomuma vozgraveeressonante.—Esqueçam tudo isso. A Rú ssia é o ú nico paı́s capaz de plantar um mı́ssil intercontinental na porta da Casa Branca.Oúnico,ealé mdissoelestê m um arsenal incalculá vel de armas nucleares. Fez uma pausa para coçar o nariz, organizou os pensamentos, depoisprosseguiu: — Os russos odeiam os estrangeiros quase tanto quanto odeiam uns aos outros. E já nascem conspiradores. Sabem muito bem quesã osuperiores,mastambé msã o inseguros: tê m a necessidade de ser respeitados, sobretudo temidos, exatamente como nos tempos da UniãoSoviética.Elesqueremestarno palco, querem ser aplaudidos. Tê m verdadeiro horror ao papel secundá rioaqueforamrelegadosno cená rio internacional. Por isso Vladimir Putin está montando sua versã o 2.0 da Uniã o Sovié tica. E ningué m vai se colocar no caminho dele. Ficou por um momento em silê ncio, avaliando as reaçõ es, e depoisretomouapalavra: — Sabem aquele garotinho birrentoquepuxaatoalhadamesae quebra a louça só pra chamar atençã o?Poisentã o.OKremliné esse garotinho birrento. Nã o quer ser ignorado, e aı́ vai quebrar toda a louça até que lhe deem ouvidos. Vai continuar vendendo armas quı́micas pra Sı́ria, doando combustı́vel nuclear pro Irã , ensinando a Indoné sia a criar seus pró prios sistemas de enriquecimento de urâ nio,construindoreatoresdeá gua leve na Birmâ nia... Pois é , pessoal, essa gente nã o conhece limites. O maior perigo, no entanto, é a instabilidade que tudo isso cria, o combustı́vel que essas atitudes injetam em toda uma nova geraçã o demalucosincendiários. AsegundaGuerraFriatemtudo a ver com o ressurgimento do Impé rio Russo, e nã o se iludam achando que Moscou vá cruzar os braços e icar esperando pra ver comoamarinhachinesasecomporta quando,enãose,ocaldoengrossarno estreitodeTaiwan. Eledeudeombrossobopaletó espalhafatoso,depoisconcluiu: — Dessa vez nã o será tã o fá cil. Você svã oterqueencontrarumjeito de desarmar essa bomba. Fico até com uma ponta de inveja. — Ele ergueu a mã o. — Boa caçada pra todosvocês!—desejou,eemseguida saiudasala. Todos permaneceram sentados emudos. Nate agora se achava irremediavelmente enredado nas maquinaçõ es de Moscou. Enquanto esperavaotã oaguardadodiadesua partida,elecumpriaaú ltimapartede um rigoroso treinamento especializado que incluı́a, entre outras coisas, aprender de um novo vocabulá rio operacional em russo. Obtiverapermissãoparaexaminaros “livros” — arquivos que continham as fotos de passaporte e també m os dadosmaisrelevantessobretodosos agentes com os quais teria que se encontrarsobasbarbasdavigilâ ncia russa.Vidaemortenaneve.Eleagora era a ponta de uma lança, e das grandes. Seus colegas de turma se dispersaram e logo Nate os esqueceria. Outras vidas eram mais importantes agora. Ele nem sequer cogitavaapossibilidadedefalharem suanovamissão.Nãopodiafalhar. *** Trêsdiasapóssuaconversacom Gondorf, Nate estava num pequeno restaurante do aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, esperando seu voo ser chamado. Havia escolhido um “sanwitz Cubano” e uma cerveja no cardá pio engordurado. A embaixada oferecera um facilitador administrativo para acompanhá -lo,a imdeajudarcomas passagenseocontroledepassaporte, mas ele recusara. Na noite anterior, Leavitt comprara umas cervejas no im do expediente e eles haviam icado conversando tranquilamente, evitando os assuntos mais ó bvios, sem dú vida nã o mencionando o que todos os outros o iciais estavam pensando: que a carreira de Nate, assim como sua reputaçã o, sofrera umdurogolpe. As despedidas foram bastanteartificiais. Aú nicanotı́ciaboaeraque,dois diasantes,emrespostaà noti icaçã o de dispensa enviada por Gondorf, o QG informara que uma posiçã o de agente na vizinha Finlâ ndia havia vagadoderepente.Dianteda luê ncia de Nate em russo, da abundâ ncia de russos na Finlâ ndia e da mobilidade queofatodesersolteirolheconferia, eles questionaram se ele se interessaria por uma designaçã o lateral em Helsinki, começando de imediato. Nate aceitara, apesar das objeçõ es iniciais de Gondorf, que depois acabara concordando. O convite formal para o novo posto haviachegado,seguidodeumbilhete informalassinadoporTomForsyth,o chefe da estaçã o de Helsinki, simplesmente lhe dando as boasvindas. O voo da Finnair foi chamado e Nate seguiu com os demais passageiros para o setor de embarque. Com suas respectivas lentes de longo alcance, uma equipe dedoishomensoobservavadoalto, numa sala privativa na torre de controle. A vigilâ ncia do FSB o seguira até o aeroporto para se despedir. O FSB, o SVR e, sobretudo, Vanya Egorov estavam convencidos de que aquela sú bita partida tinha um bom motivo. Enquanto Nate entrava na aeronave e era fotografado pelos vigilantes, Egorov queimavaosmiolosemseugabinete. Uma pena. Sua melhor pista para identi icar o informante traidor estava indo embora. Ele levaria meses, talvez anos, para encontrar umanovapista,seencontrasse. Nashaindaeraumapeça-chave, pensou o vice-diretor. O mais prová vel era que continuasse operando sua fonte fora da Rú ssia. Nã o poderia icar à solta. Egorov sabia muito bem que a designaçã o paraHelsinkinã oeraexatamenteum empecilho incontorná vel. O SVR podia operar quase sem nenhuma amarraemtodaaFinlâ ndiae,melhor ainda, tinha total independê ncia nas operaçõ es estrangeiras. Nã o haveria mais necessidade daquela chateaçã o de trabalhar em harmonia com as bichinhas do FSB. “Vamos ver”, pensouVanya.Omundoerapequeno demais para que algué m pudesse se escondernele. SANDUÍCHE CUBANO DO AEROPORTO DE MOSCOU Par r e abrir ao meio uma baguete de pão cubano de mais ou menos 30 cen metros. Umedecer com azeite do lado de fora e mostarda do lado de dentro. Rechear com tênder, pernil de porco, queijo suíço e picles fa ados bem finos. Fechar e prensar por dez minutos numa sanduicheira elétrica ou entre dois jolos embrulhados em papel-alumínio e aquecidos no forno. Cortar na diagonal em três pedaços. CAPÍTULO 3 DOMINIKA EGOROVA OCUPAVA UMA mesa privativa num dos restaurantes mais so isticados de Moscou, um opulento templo de cristal e má rmore chamado Baccara, nã o muito distante da praça Lubyanka. Os talheres de prata, as taças de cristal, a toalha branquı́ssima... ela nunca tinha visto nada igual. Embora estivesse ali a trabalho,divertia-secomtudoaquilo e dispusera-se a saborear cada garfada daquele jantar pecaminosamentecaro. Dimitri Ustinov estava sentado do outro lado da mesa, mal se aguentando de tanto tesã o. Alto, forte,comumabastacabeleiranegra e um maxilar quadrado, era um dos lı́deres da corja que dominava a exploraçã odepetró leoeamineraçã o na Rú ssia, um dos oligarcas que conquistara uma fortuna de bilhõ es de dó lares durante os anos de poderioapósaGuerraFria.Começara como um capanga do crime organizado,masconseguirasubirna vida. Ustinov trajava um impecá vel smoking de gola xale sobre uma camisa plissada branca com abotoaduras de diamante azul. O relógioeraum Tourbillon da Corum, um dos dez produzidos por ano pela marca suı́ça. As mã os enormes, duas patas de urso, estavam delicadamente apoiadas sobre uma cigarreira Fabergé de esmalte azul, fabricada em1908paraotsar.Acertaalturada conversa ele pegou um cigarro do estojo e o acendeu com um Dupont de ouro, que se fechou com aquele cliquemelodiosoquesó osisqueiros damarcaeramcapazesdeproduzir. Ustinovpossuı́aaterceiramaior fortuna da Rú ssia, no entanto, por maisricoquefosse,nã oeralá muito esperto. Havia comprado uma briga pú blica com o governo, sobretudo com o primeiro-ministro, Vladimir Putin,aorechaçarumasériedenovas regulamentaçõ es que ameaçava prejudicarseusnegó cios.Trê smeses antes, no auge da disputa, izera comentá rios obscenamente depreciativos sobre Putin durante um programa de entrevistas moscovita. Nos bastidores havia quem se espantasse por ele ainda estarvivo. Naquela noite, poré m, o bilioná rio nã o tinha cabeça para outra coisa que nã o fosse Dominika, que conhecera na emissora de televisã o um mê s depois da tal entrevista e cuja beleza e sensualidade inata o deixaram fascinado. Teria comprado a emissora ali mesmo só para ter a oportunidade de voltar a vê -la. Mas isso nã o fora necessá rio: ela nem sequer piscara antes de aceitar o convite dele para jantar. Olhando-a porcimadamesa,elesó pensavaem passarasmãosportodooseucorpo. Dominikatinha25anoseusava os cabelos castanho-escuros em um coque preso à nuca com um laço preto. O azul-cobalto dos olhos combinava com o da cigarreira esmaltada, e foi isso que Ustinov disse antes de empurrar a pequena joianadireçãodelaeemendar: —Pravocê. Ajovemtinhalá bioscarnudose braços elegantes que naquela noite estavam descobertos. Vestia um pretinho bá sico com um decote ousado o su iciente para deixar à mostra o colo espetacular. A luz difusa das velas iluminava uma pequenina veia azul sob a pele alvı́ssima de um dos seios. Ela pousou a mã o de dedos compridos sobre a cigarreira. Suas unhas eram curtas, quadradas e sem nenhum esmalte.Emseguidaergueuosolhos paraUstinov,quenomesmoinstante sentiu uma contraçã o nas profundezasdavirilha. Dominikasabiaobastantesobre ele para seguir seus instintos e ignorar a ná usea que lhe provocava. Sorrindo para o lagarto asqueroso, eladisse: — Dimitri... é lindo, mas nã o posso aceitar. E um presente generosodemais. — Claro que pode — retrucou ele,esforçando-separasercharmoso. —Você é amulhermaisbonitaquejá conheci, e ter aceitado meu convite foiopresentemaismaravilhosoque poderiamedar.—Elebebeuumgole do champanhe e imaginou o vestido preto jogado no chã o do seu quarto. — Estou gostando muito de você , sabia?—acrescentou. Dominika precisou se segurar para nã o rir. Aquelederevenshchina, aquele caipira, era tã o so isticado quantoosbrigõ esderuatã ocomuns nos cafundó s do paı́s. Aliá s, era exatamente isso que ele fora no inı́cio da vida. Mas, caramba, como havia icado rico! Durante sua semana de preparaçã o, Dominika receberaalgumasinformaçõ essobre o patrimô nio do homem. Iates. Mansõ esdecampo.Apartamentosde cobertura.Trê sjatinhosparticulares. Poços de petró leo e minas em diversas partes do mundo. Um exé rcito de seguranças que na verdade eram mercená rios pagos a pesodeouro. Dominika era a ilha ú nica de Nina e Vassily Egorov. Nina havia sidospalladaOrquestraSinfô nicade Moscou, uma virtuose em plena ascensã oqueestudaracomKlimove eratã otalentosa que fora designada para tocar o Kochanski, o magnı́ ico violino confeccionado por Joseph Guarneri del Gesù em 1741 e que agorafaziapartedoacervodoMuseu Glinka de Cultura Musical. Cerca de quinzeanosanteselaestavaparaser promovidaparaa Sinfô nica Nacional quando soubequeforapreteridaemfavorde Prokhor Belenko, um rabequista puxa-saco de terceira categoria que solicitara a vaga e fora atendido apenasporsercasadocoma ilhade um membro do Politburo. Todos sabiam o que acontecera, mas ninguémdisseranada. Alé m da habilidade com seu skripka de verniz vermelho, Nina Egorova també m era conhecida pelo temperamento in lamá vel, pelo vulcã o que trazia no peito e que entrava em erupçã o sempre que lhe pisavamoscalos.Porocasiã odeseu ú ltimo ensaio com a Sinfô nica de Moscou, sob o olhar perplexo de oitenta companheiros de orquestra, elahaviagolpeadoBelenkoacimada orelha direita com a estante de partituras de ningué m menos que o pró prio Belenko. Nã o tinha o costume de se arrepender, mas era uma mulher naqueles tempos de Uniã o Sovié tica. Tomaram de volta seu Guarneri. Ela se recusou a tocar um instrumento inferior. Passaramna para a terceira ila dos violinos. Ela os mandou à merda. Nã o demorou até que o diretor da orquestrafosseconvocadoparauma conversanoMinisté riodaCulturaea licença administrativa de Nina resvalasse irrevogavelmente para a demissã o. Assim acabara sua carreira. Agora, anos mais tarde, o elegante pescoço de violinista já envergara, as mã os fortes de inharam e os cabelos estavam quase todos brancos, presos num coque. OpaideDominikaeraocé lebre acadê mico Vassily Egorov, titular sê nior da cadeira de Histó ria da Universidade de Moscou. Era uma das iguras mais respeitadas e in luentes das letras russas, com o tı́tulo de professor emé rito. A medalhadouradaeazuldaOrdemde SantoAndré icavaemolduradanuma dasparedesdeseugabinete,eolaço cor de vinho que ele usava todos os diasnalapelaeraaMedalhaPushkin, recebida pelos serviços prestados à literaturaeàeducação.Ironicamente, Vasya Egorov nã o tinha a aparê ncia de um homem importante e in luente. Era baixinho e frá gil, com os cabelos ralos cuidadosamente penteados para o lado a im de esconderacareca. Ao contrá rio da mulher, Vassily sobreviveraà erasovié ticamediante um deliberado esforço para icar longedapolítica,dosconchavosedas polê micas. Isolado na universidade, faziaquestã odecultivaraimagemde umhomemrecatado,sensatoeleal.O queningué msabiaeraqueoemé rito camarada professor Vassily Egorov mantinha uma identidade paralela e secreta, uma consciê ncia totalmente diversaquenutriaportudooqueera sovié tico um asco ao mesmo tempo intelectual e moral. Como todos os russos, ele perdera boa parte da famı́lia nos anos 1930 e 40 para Stalin, tento resistido aos alemã es, aos expurgos e à katorga. Mas nã o era só isso. Vassily rejeitava a desigualdade e a irracionalidade do sistema sovié tico, desprezava o acintoso favoritismo doscheloveki, a preguiça e a autoindulgê ncia que haviam acachapado o espı́rito humanoeroubadoosrussosdesuas vidas, de seu paı́s e de seu patrimô nio. Era uma visã o que ele dividiaapenascomNina. Todos os russos acalentavam pensamentos secretos, já haviam se acostumado a isso. Assim era com Vassily e Nina, que jamais deixavam transparecer sua aversã o pela insu iciê nciadasmudançasnaRú ssia moderna. Mesmo quando Dominika já tinha idade su iciente para começar a entender um pouco as coisas, nem ele nem a mulher ousavam dividir com a ilha suas ideias mais ocultas. Ambos desejavam dar à menina uma visã o clara do mundo, deixando que ela enxergasse a verdade com os pró prios olhos. E, uma vez que nã o podiamfalardalamentá velevoluçã o daRú ssia(desdeafú riabolchevique atéapodridãosoviética,mesmoapós a glasnost, e de lá até o presente, a parası́tica ganâ ncia da atual Federaçã o), Vassily já se resignara a instilar na pequena Dominika a verdadeiranobrezadaRússia. Oespaçosoapartamentodetrê s quartos (que apó s a demissã o de Ninaelesreceberampermissã opara mantergraçasapenasà posiçã oeao prestı́giodeVassily)erarecheadode livros, mú sica, arte e conversas em trê s lı́nguas diferentes. Dominika já completara5anosquandoelesen im perceberamaprodigiosamemóriada menina, que ora repetia versos de Pushkin, ora cantarolava um tema inteiro de Tchaikovsky. Sempre que havia mú sica ela saı́a dançando descalça pelos tapetes orientais da sala, rodopiando e saltando sem jamais perder o equilı́brio, sempre em perfeita harmonia com o ritmo, os olhinhos brilhando, as mã ozinhas espalmadas no alto. Certo dia, espantadoscomoqueviam,Vassilye Nina se entreolharam, depois a mulherperguntouàfilha: —Ondefoiquevocê aprendeua dançarassim? —Eusigoascores—respondeu ela. —Comoassim,“ascores”? Muito sé ria, Dominika explicou queviacoresportodapartesempre queouviamú sicaouqueopailiaem vozalta.Coresdistintas,umasclaras, outras escuras. As vezes elas “pulavam no ar” e ela seguia atrá s. Era assim que conseguia se lembrar de tanta coisa. Quando dançava, ora saltavasobrebarrasdeumazulforte, ora seguia os pontos vermelhos que viapelochã o.Aoouvirisso,Vassilye Ninaseentreolharamdenovo. —Gostodovermelho,doazule do roxo — prosseguiu Dominika. — Quando o Batushka lê , ou quando a Mamulya toca, sã o as cores mais bonitas! —Equandoamamã e icabrava comvocê?—indagouVassily. — Amarelo. Eu nã o gosto do amarelo — retrucou a menina, folheando um livro. — E da nuvem pretatambémnão. Vassily achou melhor se informarsobreessahistó riadecores com um colega da faculdade de psicologia,quedisse: — Já li alguma coisa sobre um caso semelhante. Ver sons como cores... Muito interessante. Por que você nã otrazameninaaquiqualquer dia? Vassily icou aguardando no pró prio gabinete quando levou Dominika para conversar com o psicó logonumasaladeaulapró xima. A espera já se transformara de uma hora em trê s quando eles en im voltaram, Dominika saltitando alegremente, o professor com um semblantepensativo. — O que foi? — quis saber Vassily,preocupado. —Eupoderia icardiasinteiros conversando com ela — disse o homem, despejando fumo no cachimbo. — Sua ilha tem todos os atributos sinesté sicos. Algué m que percebe sons, letras ou nú meros comocores.Fascinante. Vassily olhou de relance para a menina, que agora coloria alguma coisaàmesadele. —MeuDeus—falou.—Euma doença?Umproblemamental? — Doença, fardo, maldiçã o... Quem pode dizer? — Ele acendeu o cachimbo. — Por outro lado, Vasya, talvezsejaumdom. Vassily, o brilhante homem das letras,sentia-seperdido. — Tem mais — prosseguiu o professor, olhando para Dominika, debruçada sobre seu desenho. — Parece que a sinestesia dela se estendeà sreaçõ eshumanas.Elanã o vê apenas sons e palavras como cores, mas també m os diferentes conteú dos emocionais. Contou que costuma ver algo parecido com um halo colorido em torno da cabeça e dosombrosdaspessoas. Vassilyarregalouosolhosparao amigo. — Talvez ela cresça e se torne uma espé cie de cientista das intençõ es humanas — continuou o homem. — Sem falar em sua memó ria extraordiná ria. Sua ilha repetiudiversasvezes,semumú nico erro, nú meros de mais de vinte dı́gitos. Nã o chega a ser raro em casosassim—observou.—Maspra vocêissonãoénenhumanovidade. —Não,nãoé—disseVassily. —Outracoisa,esta,sim,menos comum: sua ilha tem certa inclinaçã oparaobuistvo.Paraafú ria, a impetuosidade, o pavio curto, seja lá que nome você queira dar. Jogou toda a minha papelada no chã o quando nã o conseguiu resolver um problema. E um traço que ela terá que aprender a controlar no futuro, suponho. — Bozhe — foi o ú nico comentáriodeVassily. Entã o ele correu de volta para casaecontoutudoàmulher. — Esse gê nio ruim é coisa da sua famı́lia — resmungou para Nina quando o aparelho de som foi desligadoeDominikaimediatamente armou um beiço, contrafeita, os olhinhos faiscando no rosto vermelho. Sejá eraassimaos5anos,oque esperardelanofuturo? Quando, aos 10, ela se candidatouauma vaga na Academia Pú blica de Coreogra ia de Moscou, deixou os jurados muito impressionados.Nã otinhanenhuma té cnica, nenhuma educaçã o formal, mas já naquela idade exibia toda a intensidade, o talento natural e os instintos de uma grande bailarina. Quandolheperguntaramporqueela queria dançar, Dominika respondera “Porque eu posso ver a mú sica”. Os jurados pararam de rir assim que viram uma sombra tomar conta do rostinhobonitodamenina,queagora os fulminava atravé s das pá lpebras semicerradascomoselhesdesejasse algummal. Com uma mistura de insolê ncia etalento,Dominikafoitrilhandoseu caminho na academia que era o principalceleirodedançarinosparao Bolshoi. Saı́a-se excepcionalmente bem, apesar de todo o rigor do método Vaganova. Aquela altura, já se habituara à s cores. As visõ es que tinha, fosse dançando, ouvindo mú sica ou conversando com as pessoas, agora pareciam mais re inadas, talvez um pouco mais domesticadas. Alé m disso, Dominika começara a decifrá -las, associandoas com emoçõ es ou estados de espı́rito.Paraela,essahabilidadenã o era um fardo, apenas algo com que precisavaconviver. O sucesso da menina nã o se limitava à dança. Suas notas foram excelentes em todas as maté rias até o imdesuaformaçã o,oquesedevia em grande parte à espantosa memó ria com a qual nascera. Tudo aquilo era novo para ela, que ouvia com atençã o absoluta as palestras sobre polı́tica e ideologia, a histó ria docomunismo,aascensã oeaqueda do Estado socialista, a histó ria do balé sovié tico.Excessoshaviamsido cometidos, claro, mas apenas para serem corrigidos depois. E agora a Rú ssia moderna continuaria a crescer,sempremaiorqueasomade suas partes. Sua jovem cabecinha acreditava piamente em toda aquela cantilena. Aos 18 anos, Dominika ingressou na primeira turma de alunos da academia e passou a coordenarosestudospolíticosdeseu grupo. Todas as noites voltava para casa e contava ao pai o que eles haviamdescoberto.Horrorizadocom o que ouvia, Vassily tentava contrabalançar o crescente entusiasmo da ilha com doses maioresdeliteratura e histó ria. Mas Dominika estava no auge da adolescê ncia e insistia em decidir sozinha o rumo de sua incipiente carreira. Se percebia a natureza das mensagens que o pai, desesperado, tentava lhe passar, se traduzia de forma correta as cores que via em torno dele, nã o dava nenhum sinal disso. Vassily nã o podia ser mais direto com a ilha — ainda nã o ousava falar abertamente contra o sistema. Nina, claro, encantava-se com o rá pido progresso de Dominika na turmadejovensbailarinos.Apreciava o fato de a menina ter um futuro garantido. Mas, assim como o marido, icava desapontada com a transformaçãodajovemnumacidadã exemplar da Rú ssia moderna, ultranacionalista,umamoçaaltaede cabeloscastanhosqueandavacoma elegâ ncia de uma bailarina e se comportava como umaapparatchiki dosvelhostempos. Dominika estava sentada no tapete da sala enquanto a mã e escovava seus cabelos com gestos delicados e ritmados. A escova de tartaruga, com seu cabo comprido e ligeiramente curvo, pertencera à bisavó de Nina e era um dos poucos objetos,juntocomumporta-retratos e um samovar de prata, que eles haviam conseguido resgatar da elegante casa que a famı́lia habitara na Sã o Petersburgo pré -bolchevique. As cerdas de pelo de porco produziam um discreto chiado que Dominika enxergava num tom fechado de vermelho. Alongando-se apó sumdiadebalé ,comoscabelos radiantes, ela interrompeu a fala mansa do pai e começou a relatar o queouviranaescola: —Pai,você sabiaqueinfluências externas estã o ameaçando o paı́s? Que um nú mero cada vez maior de dissidentes está advogando ocaos? Por acaso você leu o artigo que V.V. Putinescreveusobreossionistasque estãotrabalhandocontraoEstado? Como se tivessem levado uma facada, tanto Vassily quanto Nina olharamparaa ilha.Gospodipomiluj! Pelo amor de Deus...O Estado. V.V. Putin.Dissidentes. Dominika ainda se alongava no tapete. Aquele corpo de bailarina, tã o esguio e lexı́vel, já podia ser considerado um instrumento do sistema, o mesmo que aos poucos també m se apoderava daquela cabecinha tã o esperta.AvontadedeNinaeradizer o que achava ali mesmo e alertar a ilha sobre todas as armadilhas daquele sistema que havia ceifado suacarreirademusicistademaneira tã o brutal, que obrigara um homem tã o brilhante quanto Vassily a calar suasmaisprofundasconvicções. Percebendo as intençõ es da mulher, Vassily balançou a cabeça e disse: —Não.Nemagora,nemnunca. Aos 20 anos, Dominika foi escolhida por unanimidade como primeira-bailarina da turma. Diante detamanhovigoratlético,seumestre a havia comparado a “uma jovem Galina Ulanova”, a prima ballerina assolutadoBolshoidopó s-guerra.As cores que ela agora via enquanto dançava nã o se apresentavam em formas e tons elementares, mas em complexas ondas de luz que pulsavamedançavamjuntocomela, alçando-a à s alturas, combinando-se à perfeiçã ocomostonsdesé piaque cercavamseusparceiros.Comaforça quepossuı́anaspernasenascostas, os movimentos de Dominika eram absolutamente precisos, de uma plasticidade incontestá vel. Era alta e linda, sempre quente ao toque. Seu mestre insistia que já era hora de começaraprepará -la para a audiçã o anualdoBolshoi. Enquanto se tornava cada vez mais forte e lexı́vel, Dominika percebia algo novo brotar em seu corpo, uma consciê ncia da pró pria feminilidade. Nã o era exatamente lascı́via, uma vez que guardava a pró pria sexualidade apenas para si. Eraumaespé ciededespertarı́ntimo que ela já decidira investigar sem o menor traço de pudor. Até onde podiaperceber,nenhumdospaisera assim, tã o desprovido de vergonha, entã otalvezelativesseherdadoessa caracterı́stica de algum libertino desconhecido de sua á rvore genealógica. Emseuquartoescuro,quandoo corpoachamava,elaiaexplorandoas diferentes sensaçõ es com a mesma seriedadecomquefaziaosexercícios de barra, fechando os olhos para o vermelho da respiraçã o ofegante, estremecendo de tanta excitaçã o. Nã o se tratava de um fetiche ou de um vı́cio, mas de um eu secreto que icava cada vez mais ruidoso à medida que ela crescia. Dominika gostava dessa identidade secreta. Mas nem tudo era só curiosidade juvenil. Certa noite, durante uma violenta tempestade, ela sentiu necessidade de algo mais ousado, algo proibido, entã o pegou a escova de suaprababushka, a de cabo comprido e ligeiramente curvo, e a fezpassearemsuaspartesmolhadas, maravilhando-se enquanto dava estocadas ao ritmo dos raios do outro lado da janela, apertando os olhosdetantoprazer.Daliemdiante passouaescovaroscabelostodasas noitesapósobalé. Embora conhecesse muita gente, Dominika nã o tinha nenhum amigodeverdadeentreoscolegasde academia.Apesardisso,eraalı́derde seu grupo e nã o pensava em outra coisa que nã o fosse o pró prio progresso, a construçã o de um currı́culodeexcelê ncia,osucessonas competiçõ es com as outras escolas, sobretudo as de Sã o Petersburgo, centro espiritual do balé imperial russo.Dominikasemprefalavasobre a pureza da Escola de Moscou e sua natureza essencialmente russa, uma ladainha que seus colegas já nã o aguentavam mais. Chamavam-na pelas costas deklikusha, a demonı́aca, a gladiadora, a estrela, a devota, a faná tica, a Nova Mulher Russa.Ah,dáumtempo,garota!,erao que eles tinham vontade de dizer, masouviam-naemsilêncio. Aos 22 anos, era prová vel que SonyaMoroyevativesseapenasmais um ano para ser promovida da academia para o Bolshoi, mas, com Dominika Egorova como concorrente, suas chances nã o eram asmelhores.Dançavadesdepequena e, ilha de um membro integral da Duma, era uma moça mimada e vaidosa. Estava, a bem da verdade, desesperada. Vinha dormindo com umgarotodaturma,Konstantin,que alé m de muito louro tinha um belo pardeolhosdelince.Eraumagrande irresponsabilidade, pois se o caso viesse a pú blico os dois seriam sumariamenteexpulsosdaacademia. No entanto, apó s quinze anos frequentando aquela escola, Sonya sabia muito bem quais eram os horá riosmaisvazios,quandoasauna icavadeserta,etambé motempode que eles dispunham para seus suarentos encontros. Fazia uma semana que, durante esses encontros,elavinhatentandoatrairo namorado para o plano que arquitetara:aomesmotempoemque entrelaçavaaspernasnogaroto,que remexia os quadris contra ele e lambia seu suor, falava que o amava muito e suplicava que ele salvasse suacarreiradebailarina,assimcomo suavida. No balé , os alunos mais experientes sabem tanto de anatomia, articulaçõ es e lesõ es quanto um mé dico. Insu lado pelos hormô nios e os ardores do sexo, Konstantin esperou pacientemente até sua vez de formar par com Dominika. Certo dia, numa sala apinhada de alunos, ele fazia umpas de deux com sua parceira quando pisoufortenocalcanhardeladurante uma ponta, fazendo com que o pé vergasse para a frente. Dominika desabounochã onomesmoinstante e se encolheu de tanta dor, as cores sangrando à sua frente. Foi levada à enfermariasoboolharassustadodas colegas que praticavam na barra — Sonyaeraamaispá lidadetodas.Ao olharparaelaantesdesair,Dominika intuı́ra toda a verdade ao ver sua expressã o de culpa, o miasma cinzentoqueaenvolvianumaespiral invisívelaosdemais.Seupéagoraera um volume preto e roxo que se dobrava para trá s, grotesco, e a dor, lancinante,irradiavaparaaperna. — Fratura-luxaçã o de Lisfranc nomediopé—sentenciouomédico. Apó s uma sé rie de exames ortopé dicos, uma cirurgia de emergênciaeumabotadegessoatéa altura do tornozelo, Dominika foi dispensadadaacademia.Numpiscar de olhos sua carreira de bailarina havia chegado ao im. Os comentá rios de que ela seria a pró ximaUlanova icaramnopassado. Asprofessoras,ospreparadoreseos mestresdebalé já nemolhavammais paraela. Aquela altura Dominika já aprendera a represar sua inclinaçã o para a fú ria, mas agora nã o havia o que fazer. Era pedir demais. Num momento de histeria, cogitou denunciar Konstantin e Sonya pela sabotagem.Nã ohaviadú vidadeque eles també m seriam dispensados assim que a armaçã o viesse à tona. Masnofundoelasabiaquenã oseria capaz disso. Dominika ainda contemplava o pró prio futuro, atordoada, quando recebeu o telefonemadamãe. *** VassilyhaviasofridoumAVCde grandes proporçõ es e morrera a caminho da clı́nica Kremlyovka, em Kuntsevo, reservada aos privilegiadoseaosmuitoricos.Opai fora a pessoa mais importante na vida dela, seu guia, seu protetor, e agora nã o estava mais lá . Ela teria levado a mã o dele a seu rosto e contado sobre a dispensa da academia, a traiçã o dos colegas. Pediria conselhos, e ele encontraria as palavras certas a dizer. Dominika nã o tinha como saber disso, mas Vassily teria sussurrado à sua ilha idealistaqueumcidadã opodemuito bem se apaixonar pelo Estado, mas queoEstadonã ocorrespondenunca. Jamais. O apartamento agora estava apinhado de visitas. Dominika se acomodaranosofá dasalacomopé apoiado numa cadeira, os olhos já secos, a cabeça erguida. A seu lado estavaamã evestidadepreto,muda e tranquila. Acadê micos, artistas, autoridades do governo, polı́ticos, todos tinham ido prestar condolê ncias. O vozerio preenchia o cô modo com os tons mais elementares do verde, a cor que Dominika associava à tristeza e ao sofrimento. Ela mal conseguia respirar. Havia comida por toda parte: os tradicionais blinis com caviar vermelho, esturjã o defumado, truta. No aparador, jarros de á gua mineralesucodefruta,uı́sque,vodca gelada e um fumegante samovar de prata. De repente tio Vanya surgiu diantedosofá esecurvouparadaros pê sames à cunhada Nina. Os irmã os Egorovnuncahaviamsidopró ximos, com personalidades e temperamentos quase opostos. Dominikanã osabiaaocertooqueo tio fazia no trabalho, mas as siglas KGB ou SVR quase nunca eram pronunciadas à sua volta. Dali a poucoohomenzarrãosesentouaseu lado, perto demais, invadindo seu luto, avaliando-a da cabeça aos pé s. Dominika se retesou no mesmo instante, e a mã e, percebendo o que se passava, pousou a mã o na perna delacomosedissesse“Controle-se”. —Meusmaissincerospê sames, Dominika. Sei que você era muito ligada a seu pai — disse Vanya, e puxou a sobrinha para um abraço paternal, deixando no rosto dela o cheiro forte de seu perfume, Houbigant de Paris. Em seguida, apontando com o queixo para o pé engessado, continuou: — També m sintomuitopelalesã o,peloqueisso significaprasuacarreira. Elaassentiu. — Sei que você era uma excelente aluna, tanto na dança quantonaescola.Seupaitinhamuito orgulhodevocê. Ele se recostou no sofá quando outroamigodafamı́liaseaproximou paraoscumprimentosdepraxe. Até aquele momento, Dominika aindanãodisseraumasópalavra. — E agora, quais sã o os seus planos? — perguntou ele. — Universidade,talvez? Eladeudeombroseretrucou: —Aindanã oseidireito.Adança era minha vida. Preciso achar outra coisa. Podia sentir que o tio a encarava. Vanya endireitou a gravata, ficoudepéeolhouparaasobrinha. —Dominushka,querolhepedir um favor. Estou precisando da sua ajuda—falou. Dominika ergueu os olhos para ele,assustada. — Nã o é nada misterioso — prosseguiuVanya,dandodeombros. — Preciso que você faça uma coisinha pra mim, em cará ter extrao icial.Nã oé muitocomplicado, masbastanteimportante. — Pro serviço secreto? — quis saberela,aindamaisespantada. Vanyalevouoindicadorà bocae estendeu o braço para que ela o acompanhasse até outro canto da sala.Erabempossı́velqueeletivesse escolhido aquele dia para abordá -la, o dia do enterro do pai dela. Era assimqueelesagiam,nãoera? — Preciso do seu talento, dorogaya moya, e da sua beleza també m — disse ele. — Algué m de minhainteiracon iança,algué mcom a sua discriçã o. – Aproximou-se ainda mais, e Dominika teve a impressã o de que os elogios se misturavamaocalordocorpodotio. — E uma tarefa simples, quase um jogo: encontrar-se com um homem, conhecê -lo melhor. Eu lhe darei os detalhesdepois. Zmeya. Uma serpente, pensou Dominika. — Entã o? Vai ajudar seu tio querido ou nã o? — concluiu Vanya, pousando as mã os nos ombros da sobrinha. Uma serpente que tateava o ar comalíngua.Queeletivessecoragem de propor algo assim naquele momento era, para Dominika, bem mais que uma simples falta de tato: era uma aberraçã o, uma monstruosidade.Elasentiaocoraçã o pulsar em compasso com o pé que latejava. Umhaloamarelofulgiaemtorno dacabeçadeVanyacomoseelefosse um santo bizantino. Era isso que Dominika via quando, tomada de uma sú bita calma, decidiu aceitar a proposta do tio só para contrariar a recusaqueele sem dú vida esperava. Vanyaaindaaencaravacomosolhos estreitados, sondando-a, e ela simplesmente o itava de volta sem dar nenhuma pista. Tomando o silê ncio da sobrinha por um “sim”, Vanyafoilogodizendo: —Otimo!Você sabequeseupai icaria muito orgulhoso, nã o sabe? Ningué m neste paı́s é mais patriota doqueelefoi,eestouvendoqueele soube fazer da ilha uma patriota também.Umapatriotarussa! Continuefalandodomeupaieeu arrancoseuslábioscomosdentes,ela pensou.Masselimitouaabriraquele sorriso cujo poder de seduçã o descobriraapenasrecentemente. — Agora que minha carreira de bailarina foi pro espaço — retrucou —, acho que posso, sim, fazer uns servicinhossecretospravocê. O rosto de Vanya foi tomado pelaemoçã o,depoiseleserecompô s eretirouasmãosdosombrosdela. —Venhamevernasemanaque vem—pediu,ebaixouosolhospara opé engessadodasobrinha.—Quer dizer,seestiveremcondiçõ es.Posso mandar um carro para buscá -la. — Emseguidaabotoouopaletó ,tomou a mã o de Dominika entre as suas, puxou-a para perto e concluiu: — Agoravenhacá emedê umbeijinho dedespedida. A jovem colocou as mã os nos ombros de Vanya e plantou duas bitocas rá pidas em suas bochechas. Entre uma e outra, olhou sorrateiramente para os lá bios grossosemolhadosdotio.Cheirode lavanda, halo amarelo. Ele sussurrou noouvidodela: — Nã o espero que você me ajude sem receber nada em troca. Acho que posso intervir na questã o desteapartamento. Dominikarecuou. — Sua mã e poderia continuar com ele, mesmo depois da morte do seupai.Seriaumgrandeconsolopara ela. Vanyasoltouamã odasobrinha, se empertigou e saiu da sala. Perplexa, Dominika o viu fechar a porta à s suas costas.Meu primeiro contatocomaopressão,pensou. Em seu Mercedes, Vanya sinalizou para que o motorista seguisse adiante, depois se recostou no banco traseiro, pensando: Pêsamesdados,missãocumprida.Meu irmãoVassilyeraumabestalhado,um acadêmico que vivia no passado. A mulher, então... uma sumashedshij, uma lunática. Mas minha sobrinha... Quedeusa!Perfeitaparaoquepreciso. Ainda bem que me ocorreu chamá-la. Agora que arruinou o pé, só lhe resta aprender coisas novas, buscar outra carreira.Aqueleapartamentopoderia servendidoporumapequenafortuna. Sorte delas que eu esteja aqui pra ajudar. Mas... família é família. É o mínimoquepossofazer. *** Asvisitasjá tinhamidoembora, eagoraDominikaestavasozinhacom a mã e na sala escura, ouvindo Bach tocar baixinho e se sobrepor aos ocasionais estertores do samovar quasevazio.Dominikanã oprecisava de luz: ondas volumosas de um vermelho escuro pulsavam à sua frente, vindas da mú sica. Nina sabia que a ilha via “suas cores”. Estava com as duas mã os dela entrelaçadas nopró priocoloeprecisouapertá -las para interromper aquele devaneio e fazer a menina lhe dar ouvidos. Inclinando-senadireçãodela,falando muito devagar e quase sussurrando as palavras, foi relembrando passagens da vida do falecido marido, consolando-se com as reminiscê ncias. Depois Dominika contou à mã e o que de fato acontecera na academia de balé . Nina, entã o, relembrando momentos da pró pria vida, começou a falar amargamente sobre sonhos nã o realizados, traiçã o e vingança. Duas mulheres entre os vermelhõ es de Bachnumasalaescura;duasklikushy nasentranhasdeumadensa loresta, evocandotempestades. Dois dias depois, Dominika voltouà escoladebalé parafalarcom os mé dicos e buscar seus pertences. Já aviamcomoalgué mquenã ofazia parte daquele universo, como se estivessem esperando sua saı́da. Tentandopassardespercebida,elase acomodou numa cadeira perto da portae icou vendo Sonya Moroyeva e Konstantin dançarem, a perna direita de Sonya impossivelmente alta e reta numpenché perfeito, Konstantin girando-a num lento promenade, os olhos ixos na virilha que se insinuava sob a malha preta daparceira.Anoitejá ameaçavacair quando,terminadaa prá tica, os dois saı́ramparaocorredoreseguiramna direçã o da sauna. Havia boatos a respeito deles, claro, mas à quela altura Dominika tinha certeza absolutadoquesepassava.Ela icou onde estava, esperando, vendo as sombras se espicharem no parquete dosalã oaté sugaremporcompletoo queaindasobravadatarde.Sabiaque faltava pouco para um acesso de fúria,entãoprocurousecontrolar. Opré dioestavaemsilê ncio,eas luzes já haviam se apagado nas diversassalasadministrativas.Via-se apenas uma claridade difusa na extremidade do corredor escuro. Pé ante pé , Dominika foi em direçã o à antessala da espaçosa sauna seca reservadaaosalunos,atravessou-ae, redobrando os cuidados para nã o fazernenhumbarulho,espiouatravés da pequena escotilha da porta de cedro. Sonya e Konstantin estavam nusnodegrausuperiordasauna,mal iluminados pela ú nica lâ mpada que pendia do teto. Konstantin acabara de levantar o rosto que enterrara entre as pernas escancaradas de Sonya, avultando-se sobre ela como umanimalselvagem.Sonyaoagarrou pela cabeça e jogou as pernas para cima dos ombros dele. Atravé s do vidro, Dominika pô de ver todo o estrago que o balé havia feito naqueles pé s: um calo ali, um calombo acolá , dedos extremamente tortos. Refestelada nas ripas de madeira, Sonya se retorcia e gemia, embora o som nã o conseguisse atravessaraespessaportadasauna. Dominika recuou um passo e mais umavezrespiroufundoparaaplacar a fú ria. Precisava pensar com frieza. Bastaria aumentar a temperatura da sauna e travar a porta com uma vassoura para que os amantes apagassem ali mesmo, assados naquelefornoimprovisado.Masnã o. Ela queria algo mais elegante, mais maligno, algo de initivo e que evitasse uma possı́vel investigaçã o. Aqueles dois haviam dado um im à suacarreiraeagoraelaacabariacom a deles també m, mas sem deixar rastros, sem levantar qualquer suspeitadevingança. Abriu a porta da antessala e acendeu a luz mais pró xima, iluminando o corredor. Em seguida abriuumadasjanelasquedavapara a rua e deixou o ar gelado da noite formar uma corrente até a sala da governanta. Minú sculas partı́culas azuladas foram dançando corredor aforacomoumatrupedevaga-lumes. Por im, ela entrou numa das salas administrativas e se escondeu ali, recostadaàparede. Bastaramtrê sminutosparaque a governanta (qual delas estaria ali à quela hora?, perguntou-se Dominika)sentisseacorrentegelada esaı́ssedoescritó rioparainvestigar. Imediatamente estranhou ao ver a janela aberta e a luz acesa na antessala da sauna. Resmungou algo para si mesma, e Dominika teve a impressã o de que era a voz de madame Butyrskaya, um dos mais severos e brutais cã es de guarda da academia. Ela esperou em silê ncio, contandoossegundos,edaliapouco ouviu os berros da mulher, que em seguida se misturaram aos choramingosdesesperadosdeSonya, aos protestos de Konstantin. Mais gritos e mais lamú rias, agora no corredor. Depois disso nã o haveria papainaDumaquepudessesalvaro pescoçodatraidora. Na sala em que se escondia, Dominika ergueu as mã os diante do rostoe,apesardaescuridão,pôdever que elas estavam irmes e secas. Notou també m que os pulmõ es já voltavam a se encher de ar, como se de repente algué m tivesse aberto a vá lvula de um tanque de oxigê nio. Espantou-se com a ausê ncia de emoçã o depois de ter arruinado a vida de duas pessoas — estava simplesmente satisfeita com a elegâ ncia e a naturalidade do que izera. Mas entã o pensou no pai e ficouumtantoenvergonhada. *** O gesso fora retirado. A ideia dosplanejadoresdoSVRerabalançar DominikadiantedonarizdeUstinov naemissoradetevê ,naesperançade que ele a convidasse para sair. Nã o chegaramapedirqueelafosseparaa camacomooligarca—segundoeles isso nã o seria necessá rio —, mas Dominika sabia muito bem que o sexo estava implı́cito. Quanto cinismo, pensou, e achou estranho que nã o se importasse nem um poucocomisso.Osagentesa itavam com alguma apreensã o, desconcertados pelo olhar irme e o sorriso plá cido que viam, sem saber aocertooquetinhamnasmãos. Finalmente, explicaram que precisavam saber mais sobre o empresá rio:asviagensprogramadas para fora do paı́s, seus contatos, coisas assim. Disseram que ele estava sendo investigado por fraude edesviodedinheiropú blico.Embora as palavras saı́ssem pá lidas, desmaiadas, como se ainda nã o estivessem formadas por completo, Dominika a irmou ter entendido o que se esperava dela e garantiu ser capaz de fazê -lo. Os agentes se entreolharam,depoisvoltarama itá la. Eram todos tã o transparentes, pensou Dominika, que vinha se divertindo bastante com sua mais recentedescoberta:oserviçosecreto russo.Umbandodetolos,todoseles. Conforme lia os relató rios, que eram um turbilhã o de cores, ela decidiu que faria tudo o que fosse preciso para silenciar aqueles tolos presunçosos e, de quebra, apagar o sorrisodoslá biosdeseuqueridotio Vanya.Aindaselembravadoperfume enjoativo dele, da inacreditá vel cara de pau: “Puxa, minha sobrinha, que tragé dia... Como se nã o bastasse perder o pai, você també m perdeu a carreira de bailarina. Mas... será que nã o dava pra você quebrar um pequeno galho pra mim? Sei lá , de repente sua mã e pode até continuar neste apartamento...”Ochen horosho. Muitobom. *** As velas cintilavam à mesa e os cristais tilintavam. Vendo Ustinov comer, Dominika foi tomada por um desprezo cada vez maior pelo homem,até queseviunumestadode absoluto distanciamento, de total frieza.Estavadispostaacumprirsua missã o e sabia muito bem o que precisavafazerparaisso. Vinha procurando ser o mais encantadora possı́vel desde o inı́cio da noite. Educada, atenciosa, envolvente.Acertaaltura,correndoo indicador pelo pró prio pescoço, observou o tom alaranjado das pará bolasqueseformavamemtorno dos ombros do oligarca e pensou: interessante, o amarelo da falsidade misturado ao vermelho da paixã o. Zhitvotnoe.Animal. Ustinovmalconseguiadisfarçar aereçã o.Dominikapodiaverqueele arfavasobacamisadosmoking,que bebia o champanhe com a sede de algué m muito excitado. Ao im do jantar,eledissequetinhaemcasaum conhaque de trezentos anos, melhor quetodososqueorestaurantepodia oferecer,eperguntou se ela gostaria deexperimentá-lo. Com um brilho malicioso no olhar, Dominika o encarou e se inclinou na direçã o dele, os seios se apertando um contra o outro sob a luzdasvelas. — Nunca tomei conhaque — disse. Ustinov sentiu o coraçã o vir à boca. BLINIS SERVIDOS NO VELÓRIO DE VASSILY EGOROV Temperar uma xícara de farinha com fermento e sal kosher. Acrescentar leite, um ovo, manteiga clarificada e bater até formar uma massa homogênea. Cozinhar uma colher de massa de cada vez em fogo baixo até que o blini fique dourado de ambos os lados. Servir com caviar vermelho, salmão, crème fraîche e endro fresco. CAPÍTULO 4 A BORDO DE UM BMW BLINDADO, eles deixaram o restaurante e foram para o apartamento de Ustinov, que icava num imponente pré dio de arquiteturaneoclássicanapartemais rica de Arbat. A cobertura era na verdade a junçã o de dois apartamentoscontı́guos,umpalacete com piso de má rmore italiano, mó veis de couro branco e molduras folheadas a ouro nas paredes. A cidade se desdobrava do outro lado dasvidraçasqueiamdochã oaoteto ecobriamtodooespaçodeumadas fachadas. O ambiente recendia a incenso. Enormes luminá rias chinesas formavam ilhas de luz ao longo da amplasala.Umquadroemparticular se destacava: a igura abstrata de uma mulher que se reclinava nua, mã os, pé s e olhos apontando em todas as direçõ es. Sem dú vida, um Picasso.Essaaísoueudaquiaquinze minutos,pensouDominika. Ustinov fez um gesto para seu destacamento de seguranças e os homens se retiraram. Num aparador de é bano, entre uma loresta de garrafas, Dominika identi icou o frasco achatado de um conhaque, provavelmente o tal de trezentos anos.Ustinovserviuumadosenuma taça de cristal da Boê mia do sé culo XVII e insistiu que ela provasse. De outra bandeja ela pescou uma torradinha e també m experimentou o patê , que tinha um gosto terroso mas com uma deliciosa nota de limão. Dali a pouco, Ustinov tomou-a pela mã o e a conduziu atravé s da galeria de quadros iluminados que margeava o amplo corredor. Trê s degraus largos os levaram à penumbradasuı́teprincipal.Ustinov nã o notara que Dominika mancava ligeiramente por conta de seu pé recé m-curado: estava ocupado demaisadmirandooscabelosdela,o pescoçoesguio,osseiostenros. Bastouqueentrassemnoquarto para que as luzes da sanca se acendessemautomaticamente.Ainda à porta,Dominikaseespantoucomo que viu: o cô modo era bastante espaçoso, tã o amplo quanto o salã o de um rei, quase todo decorado em tons de branco e preto. Mantas de pele tinham sido jogadas com displicê ncia sobre a enorme cama redonda que icava em cima de uma plataforma central. As paredes eram quase todas revestidas de espelhos. Ustinov pegou um controle remoto, apertou um dos muitos botõ es e, no teto, painé is de tecido foram se abrindo aos poucos para revelar o cé ucheiodeestrelasdooutroladode umaclaraboia. —Possoacompanharaluaeas estrelas enquanto elas se movem no cé u—disseele.—Você vai icarpra verosolnasceramanhã,nãovai? Dominika se obrigou a sorrir. O svin’ya em sua pocilga particular. Comoerapossı́velquetantodinheiro se concentrasse nas mã os de uma ú nica pessoa quando tantas outras aindaenfrentavamfilasparacomprar pã o? O quarto tinha uma atmosfera pesada, cheirava a sâ ndalo. Num aparador lateral, a prataria de uma coleçã o brilhava sob as luzes do ambiente.Umspotisoladoiluminava um painel de Ebru com as linhas sinuosas da caligra ia á rabe. Vendo que Dominika o admirava, Ustinov disse: —SéculoXVII. Ele dava a impressã o de estar prestes a tirar o quadro da parede parapresenteá-la. Agoraqueestavamnoquarto,o jogo havia icado um pouco mais sé rio e de nada serviam para Dominika os artifı́cios de seduçã o que ela tirara da cartola no restaurante.Nã oeraosexoemsique a assustava. Dominika nã o era exatamenteumadonzelaingê nua.No entanto, se perguntava o que perderiacasofosseparaacamacom aquele homem. Por im, concluiu: nada.Ustinovnã opoderiatirarnada dela, tampouco os patos do serviço secreto, ou o perfumado tio Vanya com seus pê sames de araque. “Um trabalho sé rio para o serviço”, ele dissera.Bobagem, pensou Dominika. Isso não passa de um jogo político para desbancar um rival, mas de qualquer modo esse blyad, esse porco banhadoaouro,mereceperdertudoo que tem e apodrecer numa cela de cadeia. A vontade de Dominika era degolarodesgraçado.Aı́,sim,seutio Vanya saberia exatamente quem haviarecrutadoparaoserviço. Ela deixou a pashmina cair de seus ombros para o chã o e se aproximouparabeijardeleveaboca do oligarca, acariciando-lhe o rosto. Ustinovapuxouparasieretribuiuo beijocomoutrobemmenospueril.A imagem deles se multiplicavaad infinitumnosdiversosespelhos. Ustinovseafastouumpoucoea encarou com os olhos lamejantes. Seu corpo era um nervo exposto; o cé rebro parecia ter se desprendido das amarras do crâ nio. Ele se desvencilhoudopaletó edagravata- borboleta e largou-os no chã o. O sagaz empresá rio que conquistara sua fortuna passando a perna em tanta gente perigosa, manipulando mercados e até mesmo, quando necessá rio, eliminando a concorrê ncia, agora nã o via outra coisaàfrentequenãofossemaqueles belos olhos azuis, aquele cacho de cabelo escuro que caı́a pelo pescoço alvı́ssimo, aqueles lá bios ainda molhadosdobeijorecebido. Dominika pousou as mã os no peitodeleesussurrou: — Dushka, espere por mim na cama.Voltoemdoisminutos. No banheiro quase todo dourado, olhando-se no espelho, Dominika pensou:Foi você mesma quesecolocounestasituação.Foivocê quem topou a proposta de Vanya, foi vocêquemdisse “sim” a esse medved, esse porco babão. Só para se testar. Agora aguente e acabe logo com isso. Elaesticouasmã osparaascostase abriu o zı́per do vestido, deixando-o cair no chã o em seguida.Seduza o imbeciledescubraoqueelespediram, disse a si mesma enquanto itava o pró prio corpo no espelho. Ela fora avisada de que Ustinov era um homem perigoso, que já cometera assassinatos.Tudobem. Na manhã seguinte ele estaria comendo na mã o dela, revelando todos os seus segredos para depois serjogadonumaprisã oelá terminar seusdiasdeex-oligarca.Só entã oela selembroudealgoqueosagenteslhe deram no dia da reuniã o: um estimulante, disseram. Dominika abriu a bolsa, encontrou o comprimido de benzedrina e o engoliuaseco. Ustinov a esperava deitado, apoiado nos cotovelos, vestindo apenas sua cueca boxer de seda preta. Dominika caminhou lentamente até o pé da cama, sem saber direito como começar. Lembrou-se de como era bom quandoospreparadoresdaacademia massageavam os pé s dos alunos, sempre in lamados, entã o icou de joelhosecomeçouacorreropolegar contraasoladopé deUstinov,quea itou com o rosto inexpressivo. Idiotka, ela pensou,que bela cortesã você está se saindo. Desesperada, ouviu a pró pria intuiçã o e passou a lamber os dedos do pé dele. Ustinov gemeu de prazer e deixou o tronco desabar na cama. Agora sim. Com a mã o trê mula, ele alcançou um console junto à cama e imediatamente uma luz vermelha banhou todo o quarto enquanto pontinhos rosados dançavam por toda parte, re letindo-se nos espelhos, pintalgando os corpos de ambos. A cama começou a girar.Era sóoquefaltava,pensouDominika. Ustinov resmungou algo e estendeu a mã o na direçã o dela. De repente cada um dos pontinhos rosados se dividiu em dois, depois em trê s, sempre girando em torno delaedoquarto.Dominikajá estava icando tonta com a profusã o de cores e luzes. Ustinov permanencia com a mã o estendida, e as obscenidades que dizia eram vistas porelacomocentelhasdeumlaranja escuro, e essas centelhas, por algum motivo, passavam sempre por baixo dospontinhosrosa,nuncaporcima. Dominika itou-o com os olhos semicerrados, cogitando se devia lamberospró prioslá biosatı́tulode efeito. Ustinov girava feito um bolo nomicroondas,semdesviarosolhos dela. Dominika sabia que precisava subjugar tanto o corpo quanto a mente dele, fazer com que continuasse a desejá -la no dia seguinte, e depois també m. Por quanto tempo? Uma semana, duas semanas, dois meses? Quanto mais, melhor, eles disseram. També m a irmaram que a calçada diante do pré dio de Ustinov era manchada de ponta a ponta com as lá grimas das mulheres que ele despachara apó s a primeiranoite. Ustinov se reposicionou lentamenteaté icardejoelhosdiante deDominika.Emseguida,içou-apela cintura e a jogou de costas na cama ao mesmo tempo em que lhe arrancava a calcinha. Curvou-se por cima dela como uma gá rgula e começou a fazer amor com ela de modoapaixonado,quasebrutal. A luz vermelha os dentes dele, antes perfeitos e muito brancos, tornavam-seazuisecomumbizarro contornopreto.També merabizarro o contraste que eles faziam com os pontinhos rosados que circulavam sobre os dois corpos entrelaçados. Dominika jogou a cabeça para trá s e fechouosolhos,sentindonosseiosa respiraçã o quente de Ustinov. Determinadaafazê -loperderojuı́zo, incou os dedos nos braços dele, ergueuosquadrisearremeteucontra ele a cada estocada que recebia. Ustinovtambé mjogouacabeçapara trá s, prestes a explodir. Dominika gemeuinvoluntariamentequandoele aumentou a força e a rapidez dos movimentos. Surpreendeu-se ao notar que o pró prio corpo, seu “eu secreto”,reagiaaosestı́mulosapesar de toda a luz vermelha, dos dentes bizarros, dos rosnados selvagens. Talvez fosse a benzedrina que já estivesse fazendo efeito. Olhou para alé mdosombrosdele,paraotetode vidro, mas nã o viu nenhuma estrela. Ondeestavamasestrelas? NolugardelashaviaumAnjoda Morte, que de inı́cio nã o passava de um borrã o na claraboia. Mas depois esse borrã o se transformou numa sombraque veio deslizando para a cama, algo semelhante a um volume demercú riopretoquesederramava in initamente nos diversos espelhos. Dominika sentiu o ar se deslocar quando a apariçã o lutuou sobre a cabeça de Ustinov. Revirando os olhos de prazer, alheio a tudo o que se passava à s suas costas, ele nem sequernotouquandoum iometá lico envolveuseupescoço.Masdeuporsi tã ologoo iocomeçoualhecortara carne e arregalou os olhos, desesperado, tentando se desvencilhar do garrote que o sufocava.Seurostopairavaapoucos centı́metros do de Dominika, cuja boca estava aberta em um grito silencioso. Ustinov a itava com os olhos injetados, completamente aturdido,umaveiasaltandodatesta, os dedos tentando, em vã o, aliviar o aperto do garrote. Um io preto de sangue escorreu de sua boca para o rosto de Dominika, e nã o demorou para que ele começasse a convulsionar, estremecendo como um peixe no anzol. Dominika se deu contadequeeleaindaestavadentro dela. Virando o rosto para evitar os perdigotos e o sangue, plantou as mã os contra o peito dele e tentou empurrá -lo para se libertar. Mas Ustinov era um homem grande, pesado demais, e ela nã o conseguiu se desvencilhar. Restava-lhe apenas cruzar os braços sobre os olhos e icar ali, sentindo o sangue escorrer em seu pescoço e seus seios, minando a vida do corpo de Dimitri Ustinov. Ele parecia gorgolejar, a respiraçã o estorvada pelo lı́quido vermelho que lhe vazava garganta adentro.Dominikasentiuquandoele estremeceu uma ú ltima vez, os pé s batendo duas ou trê s vezes contra a cama antes de se paralisarem por completo.Acamacontinuougirando nosilênciorosadodoquarto. Por um aterrorizante minuto, nada aconteceu. Dominika abriu apenas um dos olhos e deparou-se comorostodeUstinovcontraoseu, osolhosarregalados,alı́nguavisı́vel na boca entreaberta. O vulto escuro ainda estava ali, imó vel, pintalgado derosa.Oqueseriaaquilonascostas dele? Um par de asas negras ou apenas um efeito dos espelhos? A imagem de trê s corpos imó veis giravasempararjuntoà cama.Como numa açã o coordenada, Ustinov escorregou para fora dela e o vulto negro, com um ú nico movimento, o empurrouparaolado,derrubando-o no chã o. Ignorando o cadá ver, ele encontrou os controles da cama e desligou o mecanismo que a fazia girar.AoverqueDominikaameaçava selevantar,pousouamã onoombro delae,delicadamente,obrigou-aase deitar de novo. Dominika tremia da cabeçaaospé s,nuaeencharcadade sangue. Puxou um dos lençó is e começouaselimparcomele. Nã o se atrevia a olhar para o assassino, mas sabia que ele estava junto da cama, imó vel. Por algum motivo,tevecertezadequeelenã oa machucaria. Ofegante e em choque, elaparoudetentarselimpare icou apenas segurando o lençol. Nesse momento, notou que o homem olhavaparaumdeseuspé s.Quando ele ameaçou tocá -lo, ela começou a recolhê -lo, mas, em seguida, obedecendo a algum instinto primitivo, voltou a estendê -lo, e o homemoacaricioudeleve.Amaioria daspessoastrocaumapertodemã o quandoseconhece,mascomMatorin ascoisaseramumpoucodiferentes. *** Formalmente, Sergei Matorin eraumo icialdoSVRcompatentede majore iliaçã o ao Departamento de Açã o Executiva (Departamento V). Informalmente, era umchistilshchik, um “mecâ nico”, um carrasco do serviço secreto russo. Na era KGB, seu departamento tinha outros nomes:Departamento13,LinhaF,ou apenasmokroyedelo,“trabalhosujo”. NoaugedaGuerraFria,atalLinhaF fora responsá vel por sequestros, interrogató rios e assassinatos, mas emteoriaaçõ esdessetiponã oeram nem propostas no novo SVR, muito menos aprovadas. Sim, volta e meia algum jornalista rebelde aparecia morto num elevador em Moscou, ou algum crı́tico do regime sucumbia a altas concentraçõ es de polô nio no fı́gado,masissonã otinhanadaaver com o moderno serviço secreto do país. Durante a invasã o sovié tica do Afeganistã o, Matorin servira como comandante num grupo de elite, o GrupoAlfadeOperaçõ esEspeciais,à é poca sob a liderança da KGB, e em algum momento dos cinco anos que passara nos vales daquele paı́s um parafuso se soltara em sua cabeça. Dali em diante nã o houve quem conseguisse apertá -lo de volta. Os oito homens de sua equipe seguiam ordens, mas Matorin nã o gostava muitodeobedeceraningué m.Tinha se transformado em um lobo solitá rio que apreciava matar pessoas. Durante um combate, ele fora atingido por uma metralha que o deixara cego do olho direito, e o globoocularagoraseresumiaauma massa leitosa e opaca. Alto e magro feito um caniço, tinha o rosto marcado por cicatrizes de varı́ola e de guerra, nariz adunco e cabelos grisalhos que usava sempre empapadosdegel.Pareciamuitoum coveiro. Apó s a retirada do Afeganistã o, vez ou outra podia ser vistozanzandocomoumfantasmana sede do SVR, indo de um gabinete a outronoDepartamentoV.Oso iciais mais jovens olhavam com fascı́nio para aquele deus em forma de homem. Os mais velhos desviavam deseucaminho. Embora ainda fosse convocado ocasionalmente para “missõ es especiais”, Matorin sentia saudades de sua vida no Afeganistã o. Volta e meia se lembrava dela. Era capaz de voltarparalá empensamento,dever as paisagens, ouvir os barulhos e sentir os cheiros. As lembranças vinham de forma espontâ nea em determinados momentos, e essas viagens inesperadas eram as melhores, as mais vı́vidas, que por vezesincluı́amaté mú sica: ele podia ouvir com perfeiçã o o staccato das notasdeumrubab,abatidacadavez maisrápidadastablas. Matorin acariciou o pé de Dominikadomesmomodoque izera com o daquela afegã zinha que eles haviam imobilizado certa tarde no valedorioPanjshir.Suaequipetinha jogado uma lona sobre as pá s do helicó ptero Mi-24 e amarrado as pontas no chã o para criar um amplo espaço de sombra onde os homens pudessem icar. Mais cedo naquele dia,haviammetralhadoumgrupode mujahedeen na estrada e depois pousaram para pilhar seus bens. Foi entã o que encontraram a menina, escondidaentreaspedrasà margem docaudalosorio. Ela nã o devia ter mais de 15 anos. Cabelos escuros, olhos amendoados, vestida com trapos imundos. Sem dú vida era a putinha itinerante dos guerrilheiros mortos. Qualquer sovié tico em serviço no Afeganistã o já tinha ouvido falar sobreoqueasmulheresafegã seram capazes de fazer com os russos capturados, entã o nã o haveria misericó rdia com a menina. Ela lutava contra as cordas que lhe envolviam o pulso, mas um laço frouxo em torno do pescoço ameaçava estrangulá -la caso ela izesse algum movimento mais brusco.Adiabinhaxingava,gritavae cuspianosoitointegrantesdoGrupo Alfa que a cercavam. Matorin se agachou diante das pernas dela, escancaradas e presas pelos tornozelos, e levou a mã o a um dos pé s imundos de areia para acariciá lo. Assim que foi tocada, a garota começou a fazer um escâ ndalo, pedindo socorro a algum companheiro que ainda estivesse escondidonasimediações. Quantagritariaporumasimples carícia.Aindahaviamuitopelafrente. Nos quinze minutos seguintes, Matorin picotou as roupas dela com toda a calma, usando uma faca de lâ mina curta, até despi-la dohijab. A meninaseretorcianochã oenquanto, noalto,alonatremulavaaosabordo vento. Um dos homens jogou á gua para limpar o rosto da prisioneira, e elaretribuiunomesmoinstantecom uma cusparada. Foi entã o que Matorin sacou o facã o Khyber que trazia nas costas, uma elegante lâ minade60centı́metros,retadeum lado e ligeiramente curva do outro, brilhandodetãoafiada. Esgueirando-sedooutroladode um rochedo cerca de 100 metros encosta acima, um adolescente afegã obaixousuaAK-47eespiouna direçã o do helicó ptero, que ele reconhecia apenas como um Shaitan Arba.Podiaveroshomensagrupados sob a lona estendida nas pá s do giganteverde.Apesardoruı́dodorio e do vento, ele podia ouvir os gritos que vinham de lá , os berros apavorados e incessantes de uma garota. Ele fez uma oraçã o e foi embora.Sabiaquenaquelevalehavia algobemmais aterrorizante que um simplesgrupodeheregesrussos. Matorin recebeu o apelido de seushomensnaqueledia,pelomenos daquelesquetiveramestô magopara vê-looperarofacão. Agora,“Khyber”baixouosolhos para Dominika (inclusive o direito, que mais lembrava um ovo pochê ), afastouamãodopédelaedisse: — Vista-se. Seu tio Vanya está esperando. O PATÊ RÚSTICO DE USTINOV Caramelizar gado de galinha, pance a e alho, depois deglaçar a panela com conhaque. Picar manualmente a mistura e acrescentar salsa, alcaparras, cebolinhas, raspas de limão, suco de limão e azeite até obter uma textura grossa. Servir com torradas e limão. CAPÍTULO 5 DOMINIKA FORA CONVOCADA PELO tio para uma reuniã o na sede do SVR em Yasenevo. No saguã o do pré dio, foi conduzida até um dos elevadores e ao entrar nele deparou com a cé lebre insı́gnia do serviço secreto, a estrela e o globo, em uma das paredes. Ainda estava com um gosto metá lico na boca, ainda sentia osangueescorregadiodeUstinovna pró pria pele. Por uma semana ela tentaraafastardacabeçatodoaquele horror, sem conseguir dormir, resistindo ao impulso de esfolar a pele dos seios e da barriga. Os pesadelos já tinham parado, mas agora ela estava doente, deprimida, inconformada com a manipulaçã o grosseiradaqualforavítima. Nunca estivera em Yasenevo, dentro do quartel-geral do SVR, e muitomenosnoquartoandardaalta direçã o. Ali reinava o mais absoluto silê ncio—nã oseouvianadaportrá s das inú meras portas fechadas ao longo do corredor. Uma das paredes ostentava os retratos visivelmente retocados de diversos ex-dirigentes da KGB, cada um com seu discreto spot de luz: Andropov, Fedorchuk, Chebrikov, Kryuchkov (Alemanha, Hungria, Checoslová quia, Afeganistã o); na parede oposta icavam os retratos dos novos dirigentes do SVR: Primakov, Trubnikov, Lebedev, Fradkov (Chechê nia, Geó rgia, Ucrâ nia). Onde estariameles?Nocé uounoinferno? A sequê ncia de veteranos parecia acompanhar Dominika com os olhos à medida que ela avançava pelo carpetevermelho. A direita icavam as portas imponentesdogabinetedodiretor.A esquerda, portas idê nticas davam paraogabinetedeVanya,oprimeiro vice-diretor. Dominika en im entrou nasaladotio,instaladodooutrolado de uma mesa de madeira clara envernizada,comumespessotampo de vidro. A frente dele, na escrivaninha,nã ohavianadaalé mde um risque-rabisque de couro vermelho. Uma mesinha lateral abrigava vá rios telefones brancos. Com o piso coberto por um carpete azul-escuro, a ampla sala també m dispunhadeumconfortá velconjunto desofá epoltronasjuntodasvidraças panorâ micas com vista para a lorestadepinheiros.Deforavinhaa luzdeumlímpidocéudeinverno. Vanya sinalizou para que Dominika se acomodasse numa das cadeirasdiantedamesaeobservou-a com atençã o. Ela usava uma saia justa azul marinho com uma camisa brancaparaforaeumcintinhopreto por cima. Linda como nunca, apesar das olheiras e da palidez acentuada. Usá -lanocasodeUstinovhaviasido uma cartada de mestre. Pena que paraelaaexperiê nciaforaumtanto... radical.Umainfelizobradoacasoque as ordens urgentes do Kremlin tivessemcoincididocom a morte do pai dela e o im da carreira de bailarina. A princı́pio, nenhum dos dois falou. Os relató rios informavam que eladesempenharaseupapeldemodo absolutamenteeficaz,seduzindo Ustinov a ponto de fazê -lo dispensarossegurançase,comisso, abrindo caminho para que Matorin chegasseaté oalvo.Nã osucumbiraa uma crise de histeria, mas sem dú vida havia passado por maus bocados, pensou Vanya. Matorin era um pouco demais para os nã o iniciados. Com sorte, ela superaria tudoaquilo. — Dominika, eu gostaria de parabenizá -la por seu ó timo desempenho na nossa missã o — começou ele, encarando a sobrinha. Entã oseinclinouparaafrente.—Sei quedevetersidodifı́cilpravocê ,um choque. Mas acabou. Já pode esquecer toda essa situaçã o desagradá vel. E nã o preciso nem dizer que nã o pode contar nada a ningué m. Jamais. Nã o só por uma questã o de dever, mas de responsabilidade. A mã e de Dominika já lhe alertara a ter cuidado quando estivesse perto de Vanya. Estava tensa,comumnó nagarganta.Vendo a aura amarelada que cercava o tio, balbuciou: — Pra você foi apenas uma “situaçã o desagradá vel”. Um homem foiassassinadoapoucoscentı́metros domeurosto.Está vamosnus,eleem cima de mim, como você bem deve saber. Fui banhada com o sangue dele. Meu cabelo icou todo empapado e até hoje está fedendo a sangue.—Elaergueuorostoparao tio e detectou nos olhos dele uma centelha de irritaçã o. Viu que precisava ter cuidado. Amansando a voz, disse: — Você falou que se tratavaapenasdeumpequenofavor. Uma pequena ajuda. — Ela sorriu e emendou:—Aquelehomemdeveter feitoalgodemuitograveparavocê s omatarem. Quanta impertinê ncia. Vanya jamais discutiria polı́tica com a sobrinha, jamais falaria sobre o narcisismo patoló gico de Putin, tampouco sobre a necessidade de fazerdeUstinovumexemploparaos outros rebeldes. Nã o. Ele convocara Dominikapordoismotivos.Primeiro precisava avaliar o estado psicoló gicodagarota,verseelaseria capaz de manter a boca fechada, de esqueceroincidente,deserecuperar do trauma. E dependendo da resposta, teria que considerar mais duashipóteses. Caso Dominika se levantasse e fosse embora descontrolada, sem querer ouvir, ela nã o poderia sair daquele pré dio com vida. Matorin cuidaria disso. Ainda que nã o se desse conta, ela testemunhara um assassinato polı́tico que os inimigos de Putin teriam o maior prazer em divulgarparaorestodomundo.E,se isso acontecesse, ele, Vanya Egorov, icaria em maus lençó is. Naquele exato momento, certos ó rgã os do governo estavam cuidando para que a morte de Ustinov fosse divulgada como obra de algum rival nos negó cios. Todos sabiam a verdade: aquilojá eraesperado.Massedeuma hora para outra a sobrinha do vicediretor do SVR aparecesse para contaroquesabia,esobretudocomo icarasabendo,seria um prato cheio paraaimprensadaoposição. No entanto, caso Dominika reagisseatudoaquilocomsensateze ummínimodetranquilidade,elefaria o que fosse preciso para continuar contando com a discriçã o dela. Sua longevidade polı́tica dependeria diretamentedobomcomportamento dagarota.Foipensandonissoqueele já decidiratrazê -laparatrabalharno serviço,ondeela seria submetida de forma permanente à disciplina e à supervisã o da casa. Nã o teria di iculdade para conseguir algo assim.Umaposiçã onoarquivogeral, porexemplo.Depoisderecrutada,ela passaria por um perı́odo de treinamento no qual aprenderia as normaseosprocedimentosdosetor. Semprehaveriaalgué mdeolhonela. Dependendo de como se saı́sse (quanto a isso ele nã o esperava muita coisa), ela poderia ser designada para um posto de secretá ria num dos departamentos, um mero enfeite na antessala de algum general. Mais tarde, talvez, poderia ser transferida para o exterior e sumir de vista em alguma rezidentura na Africa ou na Amé rica Latina.Aocabodecincoanos(aessa altura ele já teria sido promovido a diretor),poderiaaté serdemitidapor justacausa. — Dominika, como cidadã , sua obrigaçã oé sersemprelealeservira seu paı́s de modo exemplar — disse Vanya com toda acalma. — Nã o há espaço para indiscriçõ es. Acha que isso pode ser um problema entre nó s?—perguntou,batendoascinzas docigarroquejáameaçavaseapagar. Dominika sabia muito bem que seufuturodependiainteiramenteda resposta que ela resolvesse dar naquele momento. O amarelo habitualdohalodeVanyaescurecera, como se manchado de sangue, e o timbre de sua voz tornara-se mais grave. Talvez por algum prodı́gio de telepatia ela tenha ouvido, em sua mente, o conselho que a mã e lhe sussurrara em casa:Zaledenet. Aja com a frieza de uma pedra de gelo. Mais uma vez ela ergueu os olhos paraotio,quecomeçavaadetestar,e tambématemer. — Você s podem contar com a minhadiscrição—retrucou,seca. — Eu sabia — falou Vanya, satisfeito ao comprovar que a sobrinha era uma moça inteligente, que tinha instintos e sabia ouvi-los. Aquele era um bom momento para adoçarsuaboca.—Bem,já quevocê sesaiutã obem,tenhoumaproposta alhefazer.—Recostou-senacadeira, acendeu mais um cigarro. — Que tal uma posiçã o de iniciante aqui dentro?Eugostariamuitoqueviesse trabalharconosco. Dominika fez um esforço consciente para nã o demonstrar surpresa. Gostou de ver a perplexidadenosolhosdotio. — Aqui dentro? — respondeu afinal.—Nuncatinhapensadonisso. — Seria uma ó tima oportunidade para você neste momento. Um emprego ixo, uma pensã ogarantidanofuturo.Seentrar para o serviço, posso garantir que sua mã e continue no apartamento. Alé mdisso,oquemaisvocê poderia fazer?Trabalharcomoprofessorade dança? — concluiu ele, cruzando as mãossobreamesa. Dominika marcou mentalmente olocalnopeitodotioondecravariao lá pis que jazia na mesa. Em seguida baixouosolhoseavozparadizer:— É...ajudaramamãeseriaimportante. Vanyafezumgestocomasmã os quesignificavaClaroqueseria. —Poroutrolado—acrescentou Dominika—,achoqueseriaestranho trabalharaqui. — Nem tanto. Poderı́amos trabalharjuntos,porquenão? Dominika podia ver as palavras pairando acima da cabeça do tio, mudandodecorsobaluzqueentrava pelas janelas.Ah, claro, ela pensou, umainiciantetrabalhandocomovicediretor.Acontecetododia. — Trabalhar em exatamente?—perguntou. quê Sabia o bastante para adivinhar aresposta. — Você teria de começar por algo mais bá sico, claro — retrucou Vanya—,mastodasasfunçõ esaqui tê m em comum uma necessidade primordial: informaçã o. Registros, pesquisas, arquivos... Um departamento de inteligê ncia sobrevive ou sucumbe dependendo de como suas informaçõ es sã o gerenciadas. O que ele queria era vê -la enterrada no terceiro subsolo daqueleprédio,issosim. —Nã oseiselevojeitopraesse tipo de coisa, tio — comentou Dominika.—Achoquenã omesairia bem. Vanya precisou engolir a irritaçã o. Restavam-lhe apenas duas opçõ es com relaçã o à sobrinha: ou Matorin dava cabo dela ainda antes do almoço ou ele conseguia convencê -laaentrarparaoserviçoe lá permanecersob seu controle. Nã o havia um meio-termo. Nã o podia deixá -la à solta em Moscou, alimentando má goas e pensando em sevingar.Sookinsyn. — Tenho certeza que você aprenderá rá pido—garantiuele,mal acreditando que havia se rebaixado à quilo,apersuadiraquelaidiota.—E umtrabalhomuitoimportante. — Sei lá . Acho que icaria mais interessada em outra parte do serviço—insistiuDominika. Ainda estava sentada com as costas e a cabeça muito eretas, assustadacomaproposta. Vanyavoltouaencará -lacomas mã oscruzadassobreamesa,imó vel. Nã o falou nada, apenas esperou. Foi Dominika quem quebrou o silê ncio, dizendo: — Eu gostaria de fazer um está gio na Academia de Inteligê ncia Externa. —NaAVR...—respondeuVanya, lentamente. — Você quer se tornar umaoperadoradeinteligência? — Quero. Acho que me sairia bem — disse Dominika. — Você mesmo disse que eu iz tudo certo para conquistar a con iança de Ustinov. Amençã oaUstinoveraumbom argumento.Vanyaacendeuoterceiro cigarro em trê s minutos. Com exceçã o das mulheres que exerciam funçõ es de apoio, houvera apenas duas—talveztrê s—nosquadrosda Primeira Diretoria-Geral da extinta KGB, e uma delas era uma bruxa velhadoPresidium.Nenhumajamais fora admitida na Escola Superior da KGB, tampouco no Instituto AndropovounaatualAVR.Asú nicas mulheres envolvidas nas operaçõ es decampoeramasesposascooptadas dos o iciais rezidenturi e as vorobey, os “pardais” treinados para seduzir osalvosderecrutamento. Mas em trinta segundos Vanya fez as consideraçõ es necessá rias. Na posiçã o de candidata à AVR, Dominika seria submetida a um controle ainda mais rı́gido. Seu desempenho,suaatitude,seudestino no futuro pró ximo, tudo isso seria constantemente monitorado. Ela passaria longos perı́odos fora de Moscou. Se desse algum passo em falso,se icassetentadaaabrirobico, seria submetida à jurisdiçã o disciplinar do serviço. Bastaria uma simples assinatura para que fosse dispensadaouatémesmopresa. Sonhando mais alto, Vanya percebeuquepoderiaangariaralgum lucro polı́tico ao sugerir o nome da sobrinha como candidata à AVR. Seria visto como o vice-diretor consciencioso que pela primeira vez havia apresentado uma mulher (atlé tica, estudada, poliglota) para um treinamento formal no moderno SVR.Oschefõ esdoKremlinsaberiam reconheceromarketingbené icoque tudoaquilooriginaria. Do outro lado da mesa, Dominikaavaliavaaexpressãodotio, lendo o que se passava na cabeça dele.Podiaapostarqueagoraviriao relutante “sim”, seguido das inevitáveisadvertências. — Você está pedindo muito — começou Vanya. — Terá de passar por uma prova de seleçã o, que tradicionalmentetemumbaixı́ssimo ı́ndicedeaprovaçã o,edepoisporum longoerigoroso treinamento. — Ele girounacadeiraeficouolhandopelas vidraças,re letindo.En imsedecidiu: — Acha mesmo que está preparada pra seguir esse caminho? — perguntou. Dominika assentiu com a cabeça. Nã o tinha certeza de nada, claro. Mas uma possı́vel carreira no serviço seria um desa io, e ela gostava de desa ios. Alé m disso, era uma cidadã leal, amava a Rú ssia e sabia que o SVR era uma das organizaçõ es mais importantes do paı́s. Quem sabe nã o poderia contribuir de alguma forma? O assassinato de Ustinov a deixara enojada, mas també m mostrara, em uma ú nica noite, que ela tinha inteligê ncia e coragem su icientes para levar a cabo uma missã o secreta. També m havia mais uma coisa, ela sabia. Algo um tanto inde inido, um sentimento que vinha crescendo em seu peito. Eles a tinham usado. Agora ela queria entrar no mundo d a q u e l e sdomovladel’tsy, aqueles burguesesqueabusavamdosistema edopovo.Perguntava-seoqueopai achariadisso. — Vou pensar no assunto — decretou Vanya, girando a cadeira para voltar a encarar a sobrinha. — Caso decida propor seu nome, e se você for selecionada, seu desempenho na AVR re letirá diretamente no meu prestı́gio aqui dentro, e no nome da nossa famı́lia també m.Você temconsciê nciadisso, nãotem? Ah, sim, a famı́lia. O apreço que ele tinha pelos familiares nã o o impedira de empurrá -la para os braçosdeUstinov. Dominika quase disse: “Fique tranquilo,nã ovoujogarseunomena lama.”Masrefreouaraivaeassentiu, agorajá maisconvictadequequeria mesmoentrarparaaacademia. Vanyaselevantou. —Tomareiminhadecisã oainda estatarde—disse.—Enquantoisso, por que nã o vai almoçar no restauranteláembaixo? Ele teria de consultar o diretor doSVR(umexercíciodepersuasão)e intimidar o diretor de treinamento (umprazer).MasolugardeDominika estaria reservado, e assim que o martelo fosse batido seu problema com a sobrinha, resolvido. Esperou que ela saı́sse e fez um rá pido telefonema. Dominika foi acompanhada até oelevadorporumfuncioná rio.Tinha a impressã o de que os ex-diretores haviam aberto um discreto sorriso emseusretratos. No amplo refeitó rio, serviu-se deumfrangoà Kiev,umpã oitaliano e uma garrafa de á gua mineral. O lugar estava um pouco cheio, e ela precisou procurar por um assento vago.Avistouumamesaemqueduas mulheres de meia-idade ocupavam uma das cabeceiras. Elas ergueram os olhos para a moça bonita com aparê ncia cansada e crachá de visitante, mas nã o disseram nada. Dominikacomeçouacomer.Ofrango estava uma delı́cia, dourado e ligeiramente empanado, temperado com alho e estragã o. Um torrã o de manteigaderretiaaospoucossobrea carne quente. Mas de repente o frango se metamorfoseou na garganta de Ustinov e a manteiga adquiriu a cor vermelha. Dominika largou os talheres com as mã os trê mulas.Fechouosolhoseprocurou controlaraná usea.Asduasmulheres à cabeceira a encaravam. Nã o era todo dia que viam uma garota como ela. Nem sequer imaginavam quanto tinhamrazão. Dominika ergueu o rosto e por pouco nã o desmaiou quando viu SergeiMatorinsentadomaisadiante, debruçadosobreumatigeladesopa, osolhosinexpressivossempiscar.O homema itavaaomesmotempoque comia, assim como os lobos que continuam à espreita depois de mataremasedenorio. FRANGO À KIEV DO RESTAURANTE DO SVR Fazer uma mistura de manteiga, alho, estragão, salsa e suco de limão e levar à geladeira. Socar os peitos de frango até obter filés bem finos. Enrolar os filés com a mistura de manteiga e amarrá-los com barbante. Passar em farinha temperada, depois em um ovo ba do com um pouquinho de leite e polvilhar com farinha de rosca. Fritar até dourar. CAPÍTULO 6 DOMINIKA ENTROU PARA A ACADEMIAdeInteligê nciaExternado SVR pouco tempo depois do enterro do pai. O nome da escola mudara diversasvezesduranteaGuerraFria, passando de Escola Superior de Inteligê ncia a Instituto Bandeira Vermelha e depois a AVR, mas os veteranos a chamavam simplesmentedeEscola101.Durante dé cadas, localizara-se numa ampla á rea a norte de Moscou, perto do vilarejodeChelobityevo.Aosetornar AVR,ocurrı́culo foi modernizado, os crité rios de admissã o icaram mais liberais e o campus foi transferido para uma clareira em uma densa loresta na altura do quilô metro 25 da Rodovia Gorky, a leste da cidade. Porisso,muitaspessoasachamavam de“Quilômetro25”ou“Floresta”. Ao mesmo tempo empolgada e cautelosa, Dominika, a ú nica mulher da turma de treze pessoas, era transportadacomoscolegasabordo de um micro-ô nibus de janelas escuras aos diversos locais em Moscou e nos subú rbios da cidade para a primeira parte do treinamento. De modo geral, esses lugares eram complexos murados sem nenhuma placa na entrada, dentro dos quais funcionava algum laborató rio, centro de pesquisa ou acampamentodaJuventudePioneira. As aulas eram basicamente sobre a histó ria da Rú ssia, dos serviços secretos, da Guerra Fria e da Uniã o Soviética. Enquanto o principal atributo para admissã o na ex-KGB era a lealdadeaoPartidoComunista,oque oatualSVRexigiadeseusestagiá rios era uma devoçã o incondicional à Federaçã o Russa e o comprometimentoemprotegê -lados inimigosinternoseexternos. Durante o primeiro perı́odo de doutrinamento, os estagiá rios eram avaliados em termos nã o só de aptidã o,mastambé mdaquiloquena antiga KGB costumava ser chamado de “con iabilidade polı́tica”. Dominika se destacava tanto nas discussõ es em sala de aula quanto nos trabalhos escritos. Apresentava umaligeiratendê ncia à liberdade de espı́rito e certa impaciê ncia com as fó rmulas e os dogmas tradicionais. Um instrutor observou que a cadete Egorova costumava hesitar um segundo diante de alguma pergunta, “como se estivesse decidindo se ia responder ou nã o”, e depois retrucavadeformasemprebrilhante. Dominika sabia o que eles queriam ouvir. Os slogans nos livros e nos quadros-negros eram caleidoscó pios de cores, fá ceis de categorizar e guardar na memó ria. Palavras de ordem sobre lealdade, dever cı́vico, defesa do paı́s. Como todososcolegas de treinamento, ela estava ali na esperança de um dia fazer parte da elite da Federaçã o, a EspadaeoEscudodeontem,oGlobo e a Estrela de hoje. Sua ideologia de adolescente havia horrorizado o pai livre-pensador. Agora ela tinha consciê ncia disso, e já nã o aceitava assim, de forma tã o incondicional, a ideologia o icial. Entretanto, queria sesairbem. Terminada a primeira parte do curso, Dominika e os colegas foram transferidos para o campus do Quilô metro 25, um agrupamento de pré dios baixos e compridos com telhados de duas á guas cercados de pinheiros e bé tulas. Amplos gramados separavam os pré dios, e caminhos de cascalho levavam ao complexo esportivo nos fundos do terreno. O campus icava a um quilô metro da Gorkovskoye chuche, uma rodovia de quatro pistas, e separandoosdoishavia,emprimeiro lugar, uma paliçada alta, pintada de verde para se confundir com as á rvores.Apó sesta“cercaviva”,uns3 quilô metros para dentro da loresta, dois alambrados corriam paralelos, de modo que uma matilha de pastores-belgas pudesse transitar livremente no espaço entre eles. Os cachorros podiam ser vistos das janelasdaspequenassalasdeaula.A noite eram ouvidos, latindo ou ofegando, dos alojamentos de dois andares onde os estagiá rios dormiam. Dominikaeraaú nicamulherno dormitó rio. Recebera um quarto só para si ao im do corredor, mas dividia com doze homens o ú nico banheiro do lugar e por isso era obrigada a aguardar as horas mais tranquilas da manhã e da noite para usá -lo. A maioria dos colegas era inofensiva, ilhos privilegiados de famı́lias importantes, rapazes com conexõ es na Duma, nas Forças ArmadasounoKremlin.Algunseram muito inteligentes; outros, nem tanto. També m havia os mais atirados, que, ao ver aquela silhueta femininadooutroladodacortinado boxe, e acostumados a ter o que queriam, dispunham-se a colocar tudo em risco em nome de uma brincadeira. Certa noite, ao terminar o banho, Dominika estendeu a mã o para a toalha que pendurara no gancho do lado de fora do boxe e constatou que ahaviam roubado. Nesse momento, um colega de cabelos louro-claros, o fortã o de Novosibirsk, invadiu o boxe e a imobilizou contra a parede, prendendo-apeloscabelosmolhados epelacintura.Dominikapodiasentir que ele estava nu à s suas costas. Ouviamasnãoentendiaascoisasque ele sussurrava; nã o via as cores. Ao sentiramã odelesubirdesuacintura para os seios, cogitou se o homem era capaz de perceber seu coraçã o disparado,suarespiraçã oofegante.O rostodeDominikaestavaespremido contraaparededochuveiro,easeus olhos o branco da cerâ mica já começava a se transformar em vermelho-escuro. Lembrando-sedequeatorneira daá guafriaestavafrouxa,Dominika começouasacudi-laaté sentirquea empunhadura metá lica de cerca de 10 centı́metros havia se soltado da rosca. Ofegante, ela virou-se como pô de até icar de frente para seu agressor, os seios espremendo-se contraopeitodele. — Espere balbuciou. um pouco — O homem ainda sorria quando ela cravou a torneira bem fundo no olho esquerdo dele. Foi o tom esverdeado de um vô mito que Dominika enxergou ao ouvir seu pavorosogritodedor. — Pedi pra você esperar um pouco, nã o pedi? — disse ela, olhando-o do alto, vendo-o escorregarparaochã ocomasmã os norosto. “Tentativadeestuproelegı́tima defesa” foi o veredicto secreto dos dirigentes da academia. A cidade de Novosibirskganhouummotoristade ô nibus caolho e a diretoria recomendou que Dominika fosse dispensada do treinamento. Ela argumentouquenã o izeranadapara provocar o incidente, e os membros dabancadeliberativa(doishomense uma mulher) simplesmente continuarama itá -lasemdizernada. Mais uma cilada em que ela caı́ra: primeiroforaaescoladebalé ,depois Ustinov e agora a AVR. Dominika ameaçou registrar uma reclamaçã o formal. Mas onde? Com quem? A notı́ciaen imchegouaYasenevo,eo vice-diretor Egorov berrou tã o alto aotelefoneque,seestivessedooutro lado da linha, Dominika teria visto o aparelho cuspir centelhas coloridas. Nã o demorou para que ela fosse informada de que eles haviam pensado melhor e decidido lhe dar uma segunda chance em cará ter experimental.Daquelediaemdiante os colegas passaram a ignorá -la, a evitaraklikushaque viam zanzar de um pré dio a outro com as costas eretas,ospassoslongoseelegantes, quaseimperceptivelmentemancos. *** A terceira parte do programa aconteceu em salas de aula com cadeiras de plá stico, isolamento acú stico e enormes projetores pendendodoteto.Moscasmortasse empilhavamentreasvidraçasduplas dasjanelas.Osassuntosagoraseriam economia mundial, polı́tica, energia, relaçõ es internacionais, Terceiro Mundo, “problemas globais”... e os Estados Unidos. Ningué m se referia mais ao paı́s como o maior inimigo da Rú ssia, mas como seu maior concorrente. Isso era tudo o que a Rú ssiapodiafazerparasemanterno mesmopatamardesuperpotência.As aulas sobre esse assunto costumavamserasmaisinflamadas. Os norte-americanos faziam questã o de ignorar os russos, achavamquesabiamtudosobreeles e tentavam manipulá -los. Haviam interferido nas ú ltimas eleiçõ es, felizmentesemsucesso.Apoiavamos dissidentes russos e nã o tinham o menor pudor em instilar a discó rdia naquele delicado perı́odo da reconstruçã o russa. Forças militares americanas desa iavam a soberania russa desde o Bá ltico até o mar do Japã o. A recente polı́tica de “recomeçar do zero” (a tentativa de angariar o apoio dos paı́ses rivais para garantir o alcance dos pró prios objetivos)erauminsulto:nãohaviao que recomeçar. A questã o era simplesmenteesta:aRú ssiamerecia respeito; aRodina merecia respeito. Poisbem,sealgumdiaDominika,na qualidadedeagentedoSVR,viessea travarcontatocomalgumamericano, mostraria a ele que seu paı́s tinha queserrespeitado. A ironia disso tudo, diziam os professores, era que os Estados Unidos estavam em franca decadê ncia, já nã o eram mais a potê ncia de outros tempos. Depauperando-se com as guerras prolongadas, sofrendo com os indicadores econô micos, o suposto berço da igualdade vinha chafurdandoemcon litosdeclassee numa nociva polı́tica de ideologias con litantes. E os tolos ainda nã o se davamcontadequemuitoembreve precisariamdaRú ssiaparacortaras asinhas dos ambiciosos chineses, precisariam da Rú ssia como aliada numafuturaguerra. Mas caso os americanos decidissem medir forças com a Rú ssia, dando por certo a pró pria superioridade, icariam surpresos. Um aluno da turmadiscordou, sugerindoqueasnoçõ esdeOrientee Ocidente já haviam icado obsoletas. Alé m disso, a Rú ssia fora derrotada nafamigeradaGuerraFria.“Bolapra frente, pessoal”, disse ele. Seguiu-se um burburinho na sala. Outro aluno icoudepé e,comosolhosfaiscando, decretou: “A Rú ssia nã o perdeu a GuerraFria.Dejeitonenhum.Porque a Guerra Fria nunca acabou.” Dominika viu as palavras vermelhas ascenderem para o teto. Palavras belas,fortes.Interessantes.“AGuerra Frianuncaacabou.” *** Pouco tempo depois, Dominika foi separada do resto de sua turma. Nã o precisava aprender lı́nguas — podiadaraulasdeinglê sefrancê s,se quisesse.Tampoucoeratalhadapara o lado burocrá tico do serviço. Os instrutores haviam percebido seu potencialefalaramsobreelecomos diretores da academia, que por sua vez entraram em contato com Yasenevo e pediram a permissã o da central para que Dominika Egorova, sobrinha do primeiro vice-diretor, ingressasse na fase prá tica, ou operacional, do treinamento. Seria uma das raras mulheres a serem treinadas pelo SVR como operupolnomochenny (o icial de operaçõ es). Nã o foi necessá ria nenhuma espera. A aprovaçã o da centralfoiimediata. Dominika fora admitida no treinamento operacional, na zona da açã o, no jogo. Ingressara na fase especial, o ú ltimo está gio dentro do casuloantesdecriarasasasquelhe permitiriam servir à Pá tria Mã e. O tempopassaraantesqueelasedesse conta. Uma estaçã o dava lugar a outrasemqueelapercebesse.Aulas, palestras, laborató rios, entrevistas... As atividades se sucediam numa velocidadealucinante. O programa começava com os assuntos mais ridı́culos: sabotagens, explosivos,in iltraçõ es,coisasquejá eramensinadasdesdeostemposem que Stalin reinava e a Wehrmacht sitiava Moscou. Em seguida vinham as aulas prá ticas, e aqui eles foram duroscomDominika.Faziam-nacriar personas que lhe servissem de disfarce nas ruas, percorrer rotas externas para detectar vigilantes no campo inimigo, encontrar esconderijos, transmitir mensagens cifradas, simular encontros com informantes, arquitetar abordagens de recrutamento. Ela praticava com comunicaçõ es, sinais e dispositivos de armazenamento digitais. Os instrutores icavam boquiabertos comamemó riadelaparaosdetalhes, paracadaliçãoaprendida. Os instrutores de combate nã o armado també m icaram impressionados com a força e o equilı́brio de Dominika. Assustaramseumpoucocomaintensidadedela, com a rapidez com que a jovem se reerguia apó s ser derrubada no tatame.Todosjá tinhamouvidofalar do incidente no chuveiro, e os homens da turma redobravam o cuidado, sobretudo com os pró prios testı́culos, quando treinavam em duplacomela.Dominikaobservavao rostodeles,viaaauraesverdeadado medo e da censura enquanto eles arfavam e bufavam no giná sio da academia. Ningué m se aproximava delaporiniciativaprópria. O treinamento també m incluı́a simulaçõ esnocentrodeMoscou,nas ruas que se transformavam numa enorme sala de aula onde eram colocados em prá tica os princı́pios aprendidos nas dependê ncias cheias de mofo nos arredores de Yasenevo. Nessas atividades os instrutores e r a mpensionerki, espiõ es da velha guarda aposentados há dé cadas, alguns com mais de 70 anos. Eles tinham di iculdade em acompanhar Dominikaà medidaqueosexercı́cios setornavammaisrá pidos,e icavam para trá s enquanto ela avançava pelas calçadas mal iluminadas de Moscoucomsuaspotentespassadas debailarina.Omanquejar,sequelado pé machucado, era apenas um charme a mais. Dominika era uma aluna motivada, determinada a ser bem-sucedida. Estava sempre com o rosto molhado de suor, a camiseta escurecidaentreosseiosenaaltura dascostelas. As cores a ajudavam na rua: os azuis e os verdes das equipes nas vansdevigilâ nciapermitiamqueela seorientassemelhornamultidã onos bulevares. Ela deixava as equipes de vigilâ ncia totalmente perdidas, calculava com meticulosidade o tempo dos encontros-relâ mpagos nas plataformas de metrô , ia se reunir com falsos agentes em becos imundos à meia-noite, assumia o controle desses encontros, lia o que se passava na cabeça dos interlocutores.Osveteranossecavam osuordorosto,depoisdiziam: —Fanatichka! Comoscabelospresosnaaltura da nuca, os ombros retos, Dominika ria deles, lendo as cores da admiraçãonosvelhinhosexaustos. — E aı́, seus dinossauros enferrujados, vã o desistir? — provocava. Os dinossauros a adoravam, e elasabiadisso. Esses mesmos instrutores deveriam colocá -la a par das condiçõ es que ela encontraria no exterior, do que Dominika poderia esperar das ruas. Eram eles que a ensinariam a operar nas grandes capitais.Quanta estupidez, pensou e l a ,achar que esses homens que saíramdopaíspelaúltimavezquando Brejnev ainda enviava tropas para o Afeganistão tenham alguma coisa a dizer sobre como operar nas ruas de Londres,NovaYorkouPequimhojeem dia.Elateveaousadiademencionar essa incongruê ncia a um dos coordenadores do curso, que a mandou calar a boca e reportou a impertinê ncia aos canais superiores da linha de comando. Dominika saiu da sala do homem com o rabo entre as pernas, recriminando-se, morti icada por ter sido tratada daquela maneira. Mais uma liçã o aprendida. *** Dominika começou a ter aulas sobre psicologia da coleta de informações,psiquedosinformantes, identi icaçã o de motivaçõ es e vulnerabilidades. Mikhail, seu instrutor, chamava tudo isso de “desvendar a alma humana”. Era o psicó logodacentral,tinha45anose apenas Dominika como aluna. Andava com ela pelas ruas de Moscou, ambos observando as pessoas, analisando as interaçõ es. Dominikanã olhedisseranadasobre as cores que era capaz de ver: havia muitotempojuraraà mã equejamais falariadissocomalguém. — Mas com base em quê você pode a irmar uma coisa dessas? — perguntou Mikhail certa vez, surpreso,apó sDominikaa irmarque o homem no banco ao lado do deles estavaàesperadeumamulher. — Sei lá , é o que parece — respondeu ela, e icou silê ncio quando o roxo da paixã o se intensi icou em torno do homem assimqueeleviuatalmulherdobrar aesquina. Mikhaildeuumasonorarisadae olhou perplexo para Dominika quandoateoriadelaseconfirmou. Nodecorrerdocurso,Dominika percebeu com sua re inada intuiçã o que o psicó logo estava atraı́do por ela. A princı́pio ele tinha se comportadocomoosisudoinstrutor daDiretoriaTdoSVR,masagora,nã o raro, ela o lagrava olhando furtivamente para seu corpo, forçando alguma situaçã o para que eles se esbarrassem, tocando-a no ombrosemnenhummotivoaparente ou pousando a mã o nas costas dela aoconduzi-laporumaporta. Seria um risco terrı́vel ir para a cama com ele. Mikhail era um instrutor. Mais que isso, era o psicó logo encarregado de avaliá -la em termos de personalidade e aptidã o para o trabalho operacional. Mesmo assim, Dominika sabia que ele nã o diria nada, tinha consciê ncia de que exercia sobre ele um vago poder, e transar com um instrutor, por maior que fosse a transgressã o, ou talvez por isso mesmo, era algo que provocava nela uma excitaçã o queiamuitoalémdoprazerfísico. Certa tarde, apó s um exercı́cio de campo, eles icaram sozinhos no apartamentoqueMikhaildividiacom os pais e o irmã o, que naquele momento estavam fora. Nã o demorou para que se atracassem e fossem para a cama dele. Depois de jogar as cobertas longe, Dominika icou por cima de seu instrutor e começou a cavalgá -lo com as coxas trê mulas, os cabelos caindo em desalinho sobre o rosto, sentindo os espasmos correrem por sua espinha até os dedos do pé , sobretudo os do pé dani icado.Elasabiaexatamenteo que queria apó s tanto tempo negligenciando seu eu secreto por causa das aulas e do treinamento, que consumiam todo o seu tempo. Ela o imobilizou na cama (quem estava comendo quem?) e concentroutodoopesodocorponas estocadas do quadril, aproveitando ao má ximo. Delicadezas, gemidos e beicinhos poderiam icar para depois. O que importava ali era concentrar-se na busca daquilo que elatantoqueria,dapressã oquedalia poucoaumentouaté en imexplodire lhe roubar por inteiro a consciê ncia, fazendo-a cair para a frente, sem forças, alheia à s câ imbras nas panturrilhas e nos pé s. Mikhail jazia sob ela em silê ncio, com os olhos arregalados, um mero observador quenã osabiaaocertooqueacabara detestemunhar. Mais tarde, na cozinha, volta e meia ele a espiava furtivamente enquantoesperavaaá guaferverpara o chá . Embrulhada num sué ter, Dominika o itava da mesa com um olharplá cido.Opsicó logoemMikhail já haviasedadocontadequeaquela transanã otiveranadaavercomele. Sabia que a garota nã o diria nada a ningué m. Nunca. Sabia també m que jamaishaveriaumasegundavez.Ede certomodoficoualiviado. O ú ltimo dos trê s mó dulos operacionais que compunham o treinamentoestavachegandoao im. Os instrutores aposentados de Dominika tinham lhe dado o apelido carinhoso demushka, que alé m de signi icaralgonos moldes de “linda” també m era o nome dado à mira dianteira de uma arma de fogo, a primeira a captar o alvo. Nas avaliaçõ es individuais que preencheram, mencionaram o espı́ritocombativo,ainteligê nciaea esperteza da candidata, bem como a intuiçã o por vezes inexplicá vel que ela demonstrava em campo. Sua lealdade e dedicaçã o à Rodina eram inquestioná veis. Alguns observaram queelaeraumpoucoimpaciente,que algumas vezes manifestava uma inclinaçã o excessiva a discussõ es e que precisava de um pouco mais de lexibilidade nas abordagens de recrutamento.Somenteumescreveu que,apesardodesempenhosuperior, ela dava indı́cios de que seu patriotismo nã o era muito profundo e de que cedo ou tarde seu espı́rito livre falaria mais alto que a devoçã o ao paı́s. Tratava-se apenas de uma impressã o, ele nã o tinha nenhum exemplo a citar. O comentá rio foi descartado como a opiniã o equivocadadeumvelhoranzinza.De qualquer modo, Dominika jamais teriaacessoàssuasavaliações. Agora restavam apenas os exames inais:umaprovaprá ticanas ruas,umaescritaeoutraoral.Faltava pouco para que o treinamento fosse dado o icialmente por encerrado. Antes que isso acontecesse, no entanto,paraaconsternaçã odeseus instrutores, Dominika sumiu por completo de vista apó s uma reuniã o paraaqualforaconvocadanacentral. “Requisitada para uma missã o especial”,foioquetodosdeduziram. *** Dominika foi instruı́da a subir ao quarto andar do pré dio de Yasenevoeseguiratéaúltimasalado corredor, que icava perto dos retratos dos diretores. Ela bateu à portademognoeentrou.Tratava-se de uma pequena sala de jantar com paredes de madeira, carpete cor de vinho e nenhuma janela. O verniz da parede e dos aparadores re letia a iluminaçã o indireta. Sobre a mesa, uma toalha alvı́ssima, pratos de porcelana Vinogradov, taças e copos de cristal. Vanya Egorov levantou-se da cabeceira assim que viu a sobrinhaentrar,foiaoencontrodela edeu-lheumforteabraço. — A formanda está de volta! — exclamou, ainda com as mã os nos ombrosdela.—Aprimeiradaturma, as maiores notas nas provas em campo.Eusabia! Ele a soltou, ofereceu-lhe o braço e foi andando com ela sala adentro. Haviaumhomemsentadoperto da cabeceira da mesa, fumando tranquilamente um cigarro. Aparentava uns 50 anos e tinha um monte de varizes no nariz. Os olhos eram sombrios e lacrimosos e os dentes encardidos apresentavam uma textura á spera. Ele esparramara-se na cadeira com aquele ar displicente de autoridade talhado ao longo de muitas dé cadas de funcionalismo pú blico. A gravata estava torta sob o terno marrom desbotado,quetinhaamesmacordo haloqueDominikaviaaseuredor.O problema nã o era o marrom em si (embora os tons de preto, cinza e marrom fossem maus pressá gios), mas o modo pá lido como ele o e n v o l v i a .Um maníaco, pensou Dominika. Umbluzhdajushiy que nã o merecianenhumaconfiança. Ela se acomodou à frente do desconhecido e nem sequer piscou quando ele a encarou com um olhar de avaliaçã o. Vanya voltou para seu lugar à cabeceira e cruzou as mã os enormes de forma solene sobre a mesa. Ao contrá rio do homem a seu lado, Vanya estava elegante como sempre num terno cinza-perolado com uma camisa azul de colarinho engomado e uma gravata azulmarinho de bolinhas brancas. Na lapela, usava uma pequena ita vermelha com uma estrela azulcelestenaponta,umacomendapelas contribuiçõ es prestadas à defesa da pá tria (Za Zaslugi Pered Otechestvom ). Ele acendeu um cigarro e em seguidafechouseuisqueirodeprata ruidosamente. —Esseé ocoronelSimyonov— disse, apontando com o queixo o desleixado de marrom. — Chefe do QuintoDepartamento. Simyonov nã o falou nada, apenas se inclinou para a frente e bateu o cigarro num cinzeiro de cobreaoladodoprato. — Identi icamos uma oportunidade operacional bastante singular — prosseguiu Vanya —, e o Quinto Departamento foi escolhido para realizá -la. Garanti ao coronel que você seria a pessoa ideal para ajudá -lo nessa operaçã o, sobretudo depoisdeter sido tã o bem-sucedida notreinamentodaacademia.Porisso a chamei aqui, para apresentá -la a ele. Dominika olhou do tio para o homem. Que diabo estava acontecendoali? — Muito obrigada, general — retrucou, tendo o cuidado de nã o chamarVanyadetionafrentedeum o icialgraduado—,masaindafaltam duassemanasparaterminarocurso, algumasprovase... — Sua avaliaçã o inal está completa — interrompeu Vanya. — Você nã o precisa mais voltar para a AVR.Naverdade,queroquecomeceo maisrá pidopossı́velumtreinamento adicionalcomopreparaçã oparaesta suaprimeiramissãocomSimyonov. Elebateuocigarronocinzeiroa seulado,idênticoaodocoronel. —Possosaberqualé anatureza da missã o, general? — perguntou Dominika, e itou os rostos indecifrá veis dos dois homens na sala. Ambos eram experientes demaisparadeixaralgotransparecer no olhar, mas nenhum deles sabia dos poderes sinesté sicos que ela possuı́a. Os halos que os cercavam estavam aumentando em torno de suascabeças. — Por ora basta dizer que se trata de uma missã o razoavelmente importante—resumiuVanya.—Um casodelicadodekonspiratsia. — Quanto a esse treinamento adicional... o que seria, em detalhes? — indagou Dominika, mas num tom comedidoerespeitoso. Nesse instante uma porta nos fundos da sala se abriu e entrou um garçom com uma bandeja que continhaumatravessadeprata. —Oalmoçochegou—anunciou Vanya,endireitando-senacadeira.— Continuamosnossaconversadepois. O garçom começou a servir os fumegantesgolubtsi, trouxinhas de repolho fritas mergulhadas em um molhoespessodetomatecomcreme azedo. —Omelhordacozinharussa— a irmou Vanya, vertendo o vinho tinto de um decantador de prata na taçadeDominika. Tudo aquilo cheirava a uma grande cilada. As antenas da jovem, recé m-treinadas, estavam completamente em pé . E aquela comidapesadanã olheapetecianem umpouco. Oalmoçoduroumeiahora,mas parecia interminá vel. Simyonov nã o dissemaisquetrê spalavrasdurante toda a refeiçã o, mas nã o tirou os olhos de Dominika, sentada à sua frente. Exibia uma expressã o acintosa de enfado, como se nã o quisesse estar ali. Assim que terminou de comer,limpou a boca comoguardanapo,afastouacadeira edisse: —Comsualicença,general. Antesdesair,olhouDominikade altoabaixomaisumavezeentã ose despediudeVanyacomumacenode cabeça. — Vamos tomar um chá na minha sala — falou Vanya, já se levantando da mesa. — E mais confortável. No escritó rio do tio, Dominika sesentoumeiorı́gidaaoladodele,de frente para a esplendorosa vista do bosquedeYasenevo.Comoscabelos presos no alto, ela vestia uma saia preta e uma camisa branca, o uniformeinformaldaacademia.Dois coposdechá fumegante,envoltosem antigos suportes de prata, aguardavamsobreamesadecentro. — Seu pai icaria muito orgulhosodevocê—começouVanya, edeuumgolenochá. —Muitoobrigada—respondeu ela,eesperou. — Estou muito feliz com seus resultadoseseuingressonoserviço. — O treinamento nã o foi fá cil, mas nã o poderia ter sido melhor. Estou pronta pra começar a trabalhar. Eraverdade.Muitoembreveela jáestarianalinhadefrente. — E sempre uma honra poder servir ao paı́s. Aliá s, nã o há gló ria maior — a irmou Vanya, e roçou a comenda na lapela. Em seguida deu mais um gole no chá , olhou para a sobrinha e disse: — Essa operaçã o com o Quinto Departamento... Nã o é todo dia que aparece algo assim. Sobretudo para uma agente que acaboudeseformar. —Nã ovejoahoradecomeçaro novo treinamento — comentou Dominika. —Bastadizerqueaoperaçã oé umaabordagemparaorecrutamento de um diplomata americano. E fundamentalquenenhumrastroseja deixado, nada que sugira que temos alguma coisa a ver com isso. O diplomata deverá ser neutralizado, completamente e sem nenhum tropeço. — Vanya quase sussurrava, e Dominika nã o conseguia ver com clareza as palavras, indistintas e pá lidas.—Comoeradeseesperar,o coronel Simyonov icou preocupado com a sua inexperiê ncia, mesmo sabendo do seu desempenho exemplar no treinamento. Garanti a ele que minhasobrinha — aqui ele estendeu a palavra para deixar claro que havia exercido sua in luê ncia — eraaescolhaperfeitaparaotrabalho. E ele, claro, logo reconheceu que faz sentido usarmos você , sobretudo quando mencionei o treinamento adicional ao qual você será submetida. Dominikajá nã oseaguentavade tanta curiosidade. Que diabo de treinamento seria esse? Recursos té cnicos? Idiomas? Algum tutorial especı́ ico? Vanya acendeu mais um cigarroesoprouafumaçaparaoalto. Sóentãodisse: — Você foi matriculada num cursoespecializadonoInstitutoKon. Dominika obrigou-se a permanecer calma e manter o rosto impassı́vel enquanto absorvia friamente o soco que acabara de receber na boca do estô mago. Conheciaosrumoresquecirculavam em torno do tal instituto: tratava-se da extinta Escola Quatro, mais conhecidacomoaEscoladePardais, onde homens e mulheres eram treinados nas té cnicas de seduçã o para ins de espionagem. O tio a estavamandandoparaumaescolade putas. — Por acaso esse instituto é aquele lugar conhecido como Escola de Pardais? — perguntou ela, procurando manter a voz irme. — Tio, achei que fosse entrar para o serviço como agente, que seria designada a um departamento e incumbida de alguma operaçã o de inteligê ncia.Essetreinamentoé para prostitutas,nãoparaagentes. Elamalconseguiarespirar. Vanyaaencarouedisse: — Procure ver o lado bom, Dominika. O curso lhe dará mais um recursoquevocêpoderáusar,ounão, quando começar a conduzir as própriasoperaçõesnofuturo. Eleserecostounosofá. — E essa operaçã o com o diplomata?Eparaserumaarmadilha sexual?Dominikalera,naacademia,a respeito de escabrosas operaçõ es que envolviam as manobras sexuais maissórdidas. — O alvo é muito tı́mido. Avaliamos as vulnerabilidades dele durante vá rios meses. O coronel Simyonov concorda que ele é suscetível. O corpo de Dominika icou rígido. — O coronel sabe de tudo isso que você quer que eu faça? Sabe da Escola de Pardais? — Ela balançou a cabeça.—Nã otirouosolhosdemim durante todo o almoço. Só faltou abrir a minha boca pra examinar os dentes. Vanya interrompeu-a, já com certaimpaciência: — Tenho certeza de que ele icou muito impressionado. E um o icial experiente. No entanto, toda operaçã o tem caracterı́sticas individuais, ú nicas. Ainda nã o tomamos uma decisã o inal sobre como proceder. Mesmo assim, Dominika, esta é uma oportunidade quevocênãopodedesperdiçar. —Nãovouconseguir—afirmou ela. — Depois daquela ú ltima operaçã o,ojeitocomoelaterminou... Levei meses pra esquecer o que aconteceucomUstinov. — Esse assuntode novo? Por acaso nã o fui claro o su iciente quando a instruı́ a esquecer esse episó dio e nunca mais voltar a falar nele? — retrucou Vanya. — Eu exijo obediê ncia absoluta neste caso, Dominika. — Nunca comentei nada com ningué m — garantiu ela. — Só que... se esta for mais uma daquelas operações,eupreferiria... —Preferiria?Você acaboudese formar na academia e agora é uma o icialjú niordoserviçosecreto.Nã o temquepreferirnada.Simplesmente acata ordens. Recebe uma missã o e fazoquetemdefazer,queé defender suapátria. — Estou sempre disposta a servir a meu paı́s, nã o é isso — devolveu Dominika. — Mas nã o sei por que fui escolhida pra essa operaçã oemparticular.Já ouvidizer que há pessoas no SVR que fazem isso com regularidade. Por que nã o usarumadelas? Vanyafranziuatestaedisse: — Cale-se. Nem mais uma palavra. Você nã o percebe a dimensã odaoportunidadequeestou lhedando.Está pensandoapenasem si mesma, nesses melindres infantis. Na qualidade de agente do SVR você nã o tem preferê ncias, nã o escolhe nada. Cumpre exemplarmente a missã o que lhe foi designada e pronto. Se nã o quiser participar dessa operaçã o, se preferir deixar queseuspreconceitosbobosacabem com sua carreira antes mesmo que ela comece, entã o fale já . Você será dispensada do serviço, seu arquivo será fechado, a pensã o de sua mã e será cancelada e seus privilé gios, retirados.Todoseles. Dominikamalacreditouaovero pescoço de Nina ser colocado na forca de novo. Quantas vezes isso ainda iria se repetir? O que mais iriam obrigá -la a fazer antes de deixá -la servir a seu paı́s em paz e com honra? Ela deixou cair os ombros,resignada. — Tudo bem — falou. — Posso iragora? Quando o tio assentiu, ela se levantou e passou diante das vidraçaspanorâ micasacaminhoda porta.Nessemomento, o sol realçou os traços clá ssicos de seu per il, o brilho dos cabelos. Vanya seguiu-a comoolhar—seráqueaviramancar um pouco? — e sentiu um frio na espinhaquandoelaparouà portaeo encarou por trê s longos segundos com aqueles olhos incrivelmente azuis, intensos e cortantes, olhos de umalobaà espreitanaescuridã o.Ele jamais tinha visto olhar semelhante. Nem sequer teve tempo de falar alguma coisa antes que Dominika desaparecesse do outro lado da porta. GOLUBTSI DO SVR Escaldar folhas de repolho e reservar. Refogar cebola, cenoura e tomates descascados e sem sementes até que amoleçam. Juntar uma porção de arroz e carne moída já cozidos. Colocar duas colheradas dessa mistura em cada uma das folhas de repolho e fazer trouxinhas grandes. Fritar na manteiga, depois cozinhar em fogo baixo por uma hora em caldo de legumes com molho de tomate e folhas de louro. Servir com o molho reduzido e creme azedo. CAPÍTULO 7 NATENASHDESEMBARCOUEM HELSINKI apó s um voo de duas horas. Assim como no Aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, enormes letreiros luminosos podiam ser vistos por toda parte no modernı́ssimo HelsinkiVantaa, anunciando perfumes, reló gios e pacotes turı́sticos. Lojas de lingerie, de produtos culiná rios e bancas de jornal se sucediam ao longo do arejadoterminal,masocheiroalinã o eraderepolhocozido,á guaderosas e lã molhada, como em Moscou. Roscas de canela eram assadas em algum forno pró ximo. Nate recolheu suaúnicamala,passoupelaalfândega efoiparaa iladotá xisemnotarem momento alguem que no saguã o de desembarque um homem baixo de ternoescurooobservavadelonge.O sujeito fez um rá pido telefonema de seu celular e se foi. Em meia hora, a 900 quilô metros dali, Vanya Egorov foiinformadodequeNathanielNash chegara à Finlâ ndia. O jogo estava prestesacomeçar. Na manhã seguinte, Nate se apresentou ao chefe da estaçã o de Helsinki, Tom Forsyth. O escritó rio dele era pequeno mas confortá vel, com uma pintura de tema ná utico acima da mesa e um pequeno sofá encostadonaparedeoposta.Sobrea mesinha lateral havia dois portaretratos,umcomafotodeumveleiro navegando as á guas de um mar calmo, o outro com o retrato de um jovemaolemequepareciapertencer à famı́lia Forsyth. As cortinas da ú nica janela da sala estavam fechadas. Forsyth era alto, magro e beirava os 50 anos. Tinha o queixo quadrado e os cabelos grisalhos começavam a rarear dos lados da cabeça, criando entradas. Assim que viu Nate à porta, ergueu os olhos escuros e intensos sobre os ó culos meia-lua, abriu um sorriso, jogou algunspapé isdentrodeumacaixae se levantou para cumprimentá -lo. Seuapertodemãoeraforteebreve. — Bem-vindo à estaçã o! — exclamouelecomavozsuave,depois gesticulou para que Nate se acomodasse numa das cadeiras de courodiantedesuamesa. —Obrigado,chefe—falouNate. —Você já temumapartamento? Onde a embaixada o acomodou? — perguntouForsyth. Naquela manhã o serviço de alojamentodaembaixadaoinstalara numconfortávelapartamentodedois quartos em Kruununhaka, e Nate icaramaravilhadoaoabrirasportas duplas da varandinha e se deparar comamarina,oterminaldasbalsas, a imensidã o do mar. Contou isso a Forsyth. — E uma parte bacana da cidade. Dá pra você vir a pé pro trabalho—disseochefe,edepois:— Bem,euqueriaquevocê passasseum tempinho comigo e com o Marty, parasefamiliarizarumpoucocomo quefazemosaqui. Marty Gable era o vice-chefe da estaçã o. Nate ainda nã o fora apresentadoaele. — Temos alguns casos bons, mas acho que podemos fazer muito mais — continuou Forsyth. — Esqueça os alvos internos. Os inlandesessã onossosaliados,nunca criamproblema.Marty e eu fazemos asligaçõ escomeles,entã ovocê nã o precisa se preocupar com isso. Os problemasvê mdefora.Osá rabesde sempre: Hezbollah, Hamas, palestinos. Todos eles tê m representantes na cidade. Nã o será fá cil se aproximar deles, portanto sugiro algum tipo de intermediaçã o com os iranianos, sı́rios e chineses. As embaixadas sã o pequenas e eles se sentem mais seguros aqui, na neutralidade da Escandiná via. E possı́vel que os persas estejam interessados em equipamentos embargados.Dêumaolhadanonosso sistema — concluiu, depois se recostounacadeira. — Quero correr atrá s de algo maior — retrucou Nate. — Marcar umgolimportante.Depoisdoqueme aconteceuemMoscou...Vocêsabe. Forsythsabiamuitobem.Podia ver a preocupaçã o no olhar do agente, a determinaçã o projetada no queixo. Nateseempertigounacadeira. — Eu entendo, Nate — disse Forsyth —, mas qualquer recrutamento que você izer, desde que seja produtivo, já será um belo gol. E pra pescar um peixe grande é preciso paciê ncia, trabalhar e gerar contatos su icientes que o levem a algumlugar. — Eu sei, chefe — respondeu Nate depressa. — Mas nã o tenho tempoaperder.Gondorfestá fazendo minha caveira. Se esta oportunidade aqui nã o tivesse surgido, neste momento eu estaria na Rú ssia, enterrado na frente de algum computador. Você nem imagina comoasuaconvocaçã oveioemboa hora. Forsyth lera a icha de Nate, enviada à estaçã o logo apó s a aprovaçã o da transferê ncia para a Finlâ ndia.Nã oerammuitososjovens agentes que tinham luê ncia quase total em russo. Nate tivera um excelente desempenho nã o só no treinamento na fazenda, mas també m no treinamento de “operaçõ es em condiçõ es adversas” em Moscou, a arte de operar sob vigilâ ncia ao mesmo tempo constante e agressiva. O arquivo també m fazia mençã o à boa performance dele na Rú ssia, sobretudo na gestã o de certo caso importante sobre o qual nenhum detalheerainformado. Mas o que Forsyth via agora à sua frente era um operador ressentido, com sede de vingança, e isso nã o era nada bom. Atitudes assimcriavamespaçoparatodotipo deacidentes,deprecipitações. — Nã o quero que você ique pensando em Moscou. Andei conversando com um pessoal aı́ do QGevocê nã otemnadacomoquese preocupar. Forsyth notou que Nate ainda ruminava os infortú nios recentes, perdidonosprópriospensamentos. — Escute o que eu digo — continuou, e esperou até ver que tinha a total atençã o do recé m- chegado.—Queroquevocê trabalhe direitinho, seguindo as regras, sem recorrer a nenhum atalho. Todo mundo quer um caso importante, é natural. Mas você está com um nas mã osagoramesmo.Nã ovouadmitir que en ie os pé s pelas mã os. Fui claro? — Ele cravou os olhos em Nate,sério,erepetiu:—Fuiclaro? — Sim, senhor — respondeu Nate. Ele havia entendido o recado muito bem, mas disse a si mesmo queiriaà luta,quesairiaà sruaspara encontrarseusinformantes,quenã o erahomemde icarmofandoatrá sde uma mesa como gerente de caso. A hipó tese de ser despachado de volta para casa simplesmente era inaceitá vel. De repente lhe veio à cabeçaaimagemassombrosadeum possı́vel futuro em Richmond: ele num country club qualquer, ao lado dealgumalouracomoslá bioscheios de botox e os cabelos entupidos de laquê ,osirmã os dando suas tacadas de golfe sobre o tapete xadrez do salãodoclube.Nemfodendo. — Muito bem — disse Forsyth. — Sua mesa ica na primeira sala à direita no corredor. Agora vá procurar o Gable — ordenou, já pescando de volta os papé is que jogaradentrodacaixa. Marty Gable, o vice-chefe da estaçã o,estavaemseugabinete,que era vizinho ao de Forsyth e tã o pequeno quanto o dele. Sentado ao computador, Gable queimava os miolos para escrever um cabograma diplomá tico ao QG sem usar a expressã o“ ilhodaputa”.Maisvelho que Forsyth (beirava os 60 anos), tinhaombroslargosefortes,cabelos brancos cortados à escovinha, olhos azuis e um nariz de aço. O rosto era bronzeado,quasevermelho,tı́picode um homem das ruas. Igualmente bronzeadas,asmã osenormesjaziam imó veis no teclado que parecia pequeno demais para elas. Ele detestava escrever mensagens, detestava digitar com dois dedos, detestava qualquer tipo de burocracia.Seulugareraemcampo. Nate parou à porta da sala, que nã o tinha nenhum adorno alé m de uma foto do Monumento a Washington na parede, dessas que existiam em todos os endereços do governo mundo afora. Sobre a mesa nã o se via nada. Antes que Nate pudesse tossir ou bater de leve à porta para anunciar sua presença, Gable girou em sua cadeira e o encaroucomatestafranzida. — Você é o cara novo, nã o é ? Cash? O sotaque vinha de algum lugar doCinturãodaFerrugem. — Nash — corrigiu Nate, e se aproximoudamesa.—NateNash. Gable estendeu-lhe a mã o do tamanhodeumafrigideiraeNatese preparou para ter os dedos esmagados. —Você demorou—comentouo vice-chefe. — E aı́, recrutou algum informantenocaminhodoaeroporto até aqui? — Ele riu. — Nã o? Entã o depois do almoço você cuida disso. Vamos lá . — A caminho da saı́da ele foi passando a cabeçorra de Rottweiler pelas diversas portas ao longodocorredor,paraveroqueos demais operadores da estaçã o estavam fazendo. Todas as salas encontravam-se vazias. — Otimo — disse.—Todomundocomorabona rua.Éassimqueeugosto. Gable levou Nate para almoçar numa espelunca de comida turca, uma portinha numa viela cheia de neve nas imediaçõ es da estaçã o ferroviá ria. O lugar enfumaçado nã o tinhamaisquemeiadú ziademesas, uma janela aberta para a cozinha e umretratoemolduradodeAtatü rk,o fundador e primeiro presidente da Turquia, pendurado na parede. As pessoas gritavam na cozinha, mas o tumultocessounomomentoemque Gablebateupalmasjuntoàjanela.Um homemmagrodepeleescura,bigode preto e avental emergiu atravé s da cortinadecontasquedavaacessoao salã o. Deu um abraço rá pido em Gable,queo apresentou como Tarik, o proprietá rio. O sujeito apertou a mã o de Nate vagamente, sem itá -lo nos olhos, entã o eles se dirigiram a uma mesa no canto. Gable puxou a cadeira em que queria que Nate se sentasse, contra a parede e virado para a porta, e depois se acomodou també m, com as costas viradas para aoutraparede.Emturco,pediudois kebabs Adana, duas cervejas, pã o e salada. — Espero que você goste de pimenta — disse a Nate. — Este buracotemamelhorcomidaturcada cidade. Há muitos imigrantes turcos poraqui.—Eleespiounadireçã oda cozinha,emseguidaseinclinoupara Nate e falou: — Fisguei o Tarik há maisoumenosumanocomoativode apoio, pra dar uma mã ozinha nas operaçõ es. Sabe como é : buscar correspondê ncias,pagaroaluguelde um esconderijo, bisbilhotar por aı́. Umas duzentas, trezentas pratas por mê s e ele está feliz. Sempre que é necessá rio a gente pode ir recolher informaçõ es na comunidade de expatriadosemHelsinki. Gable se endireitou na cadeira ao ver a comida chegar: dois kebabs compridos, bem tostados e salpicados de pimenta vermelha em cima de uma rodela grande de pã o á rabe besuntada com manteiga derretida. No canto do prato, uma saladadecebolascruascomsumagre esucodelimã o.Tarikdepositouduas garrafas de cerveja gelada sobre a mesa. — A iyet olsun. Bom apetite — falou,emseguidaseretirou. Natenemsequerhaviapegadoo garfo quando Gable começou a devorarseukebabcomafú riadeum crocodilo. — Nada mau, nã o é ? — comentou com a boca cheia, entã o despejou metade da cerveja goela abaixo. Depois, abocanhou mais um naco do kebab, espicaçando sua presasemmisericó rdia.Daliapouco, sem nenhum preâ mbulo ou constrangimento, perguntou a Nate que diabo acontecera em Moscou entreeleeaquelebostadoGondorf. Sem qualquer vontade de reabriraferida,Nateofereceu-lheum breveapanhadodosfatos. Gable apontou a faca para ele e falou: —Ouçacomatençã o.Temduas coisas que você precisa saber sobre nosso ramo. Primeiro: ningué m amadurececomooperadorsemfazer pelo menos uma grande cagada no caminho. Segundo: você é julgado pelas informaçõ es que traz e pela capacidade de proteger seus informantes. Nada mais importa. — Nesse ponto ele engoliu a outra metade da cerveja e pediu uma segundagarrafa.—Ah,temmaisuma coisa:Gondorfé umbunda-mole.Nã o sepreocupecomele. Elejá havia destroçado o kebab antes mesmo que Nate chegasse à metadedoseu. —Evocê ?—quissaberNate.— Jáfezalgumamerda? — Eu? Sou o rei da merda. Foi assim que vim parar aqui. Forsyth salvoumeupescoçodepoisdaúltima. *** Gable passara boa parte da carreiranaÁfricaenaÁsia,empaíses do Terceiro Mundo — o “tour do inferno”, como o conjunto formado por esses lugares era conhecido nas internas. Alguns operadores faziam seu trabalho em quartos de hotel e café s em Paris. O universo de Gable era bem diferente: encontros dentro de um Land Rover imundo, quase sempreà meia-noite,emalgumarua deserta de terra batida. Alguns operadores gravavam suas reuniõ es com ministros de governo; Gable anotavanumblocotoscoossegredos que ouvia de algum informante apavorado ao mesmo tempo que tentava fazer o desgraçado se concentrar — eles icavam no interior do carro com as janelas fechadas, o motor estalando de tã o quente, enquanto serpentes rastejavam no mato alto em ambos os lados do veı́culo. Nate já ouvira dizer que o homem era uma lenda viva.Lealaseusativos,aosamigose à CIA, nessa ordem. Nã o havia nada que ele nã o tivesse visto, e sabia reconhecer as coisas realmente importantes. Gable se recostou na cadeira, bebeuumgoledecervejaecomeçou a falar. Sua ú ltima missã o fora em Istambul, uma cidade enorme, com bons operadores. Seu conhecimento deturcoerarazoá vel,elesabiaaonde ir,comquemfalar.Empoucotempo recrutouummembro do PKK, grupo de curdos separatistas que vinham do leste do paı́s para aterrorizar a cidade, deixando bombas em caixas deengraxatenarua,emlatasdelixo na praça Taksim, em maletas nos prédiosdogoverno. Certodia,Gableentrounumtá xi conduzido por um rapaz curdo que devia ter uns 20 anos, no má ximo. Parecia inteligente, dirigia bem. Manterosolhossemprebemabertos é osegredodonegó cio,eGableteve umpalpite,umaintuição,entãopediu ao garoto que parasse na frente de um restaurante e o convidou para comercomele.Precisoufazercarade poucos amigos para o turco ilho da putaatrá sdobalcã o,quecomotodos osturcosodiavaoscurdos,os“turcos dasmontanhas”. O moleque parecia faminto. Começou a falar da famı́lia. Gable sentiuumcheirodePKKnahistó ria, entã o contratou o taxista por uma semanae icourodandocomelepela cidade. Seu palpite estava certo. O garotofaziapartedeumacé lulalocal, mas nã o concordava com aquela merda de terrorismo. Pronto, Gable conseguiuumbelorecrutamentopor um pouquinho de respeito e quinhentoseurospormê s.Tudopor ter mantido os olhos abertos dentro da porra de um tá xi. E assim que se faz. O garoto começou entregando só porcaria,coisasinú teis,masGable logotratoudecolocá -lonalinha(por isso que na academia eles tinham aula de “gestã o de informantes”), e dali em diante eles se concentraram nos lı́deres da cé lula, em como as ordens eram transmitidas, em como osmensageirosviajavam.Nadamau, mas bastou apertar o moleque um pouco mais para ele começar a revelar a localizaçã o dos galpõ es em que o PKK armazenava o Semtex, o Nitrolit polonê s, ou qualquer outro explosivo que estivessem usando no momento. Depois de um tempo o garotopassouainformaronomedas pessoasquefabricavamasbombas. A coisa foi icando cada vez melhor e a certa altura eles precisaram segurar as ré deas da Polı́cia Federal Turca, porque os caras queriam entrar em açã o imediatamente, colocar as mã os em todo mundo. O chefe da estaçã o em Ancara estava feliz da vida, os igurõ es do QG també m. Mas depois Gable icou se achando, perdeu o juı́zo. Uma liçã o para Nate: quando você começaaacharqueé ocara,aı́ dámerda. O jovem curdo morava em Tepebasi, um gueto de fundamentalistas do outro lado da colina de Pera, um antigo bairro europeu. Gable costumava se encontrar com ele no tá xi e icar rodando pela cidade sem parar, sempre à noite. Aı́ um dia resolveu ignorarosprocedimentosefoiaté a casa do moleque para conhecer a famı́lia dele. Nã o podia recusar o convite, podia? Seria um insulto. E preciso respeitar a cultura dos outros, ué . Nã o é ? Alé m disso, ele precisavasaberondeseuinformante morava.Umacoisaimportante:você tem sempre que saber onde os seus informantes moram; nunca se sabe quando vai ser preciso buscá -los lá poralgummotivo. Aruaeraı́ngreme,eascasasde arquitetura europeia já haviam perdido todo o antigo esplendor: as fachadas descascavam, as portas duplas tinham uma ou ambas as folhas quebradas, tapumes cobriam as janelas. Lixo por toda parte, um cheiro constante de esgoto. Em Istambulvocê acabaseacostumando comesseodor,é até meioadocicado. Bem,já estavaanoitecendoeasluzes começavam a se acender no interior das casas. As oraçõ es noturnas tinhamacabadodeterminar. Ele já havia se preparado para umavisitalongaeenfadonha:faltade assunto,olhostı́midosvoltadospara o chã o, muito chá . Paciê ncia. Ossos doofı́cio.Noentanto,já estavaquase chegando quando ouviu a gritaria. A portadafrenteencontrava-seaberta na casa de seu informante e, lá dentro, o maior quebra-quebra. Merda. Mau sinal. Os vizinhos nã o tardariam a chegar para ver o que estava acontecendo. Gable nã o dava dois minutos para aquilo virar um circo. Entã o começou a se afastar, decidido a ir embora. Já estava bem escuro,ninguémoveria. Dali a pouco, poré m, ele viu o taxistacurdoserarrastadoparafora por dois merdinhas esquelé ticos. Estranhou que ele nã o oferecesse nenhumaresistê ncia,masdepoisviu a arma que um deles tinha na mã o. Atrá sdostrê svinhaumagarotaque só podia ser a mulher do taxista, de pele escura e os olhos amendoados das tribos das montanhas Taurus: descalça e usando apenas uma camiseta amarfanhada, ela gritava e desferia socos nos dois agressores enquanto uma criancinha de uns 2 anos chorava à porta da casa, abandonadaecompletamentenua. Que merda, o garoto tinha se metidoemapuroscomoPKK.Talvez tivessedadoalgumabandeiracomo dinheiro extra que vinha recebendo, feitoalgumcomentá riosobreonovo amigo estrangeiro, vai saber. Uma coisa é certa: quando as coisas dã o errado, é assim, de uma hora para outra. O papel dos operadores també m é proteger esses caras, e à s vezes é preciso agir por eles. Ningué m quer estar na pele de um traidordoPKK:elesaindanãosaíram da Idade Mé dia quando o assunto é traição. Gablepoderiasimplesmenteter viradoascostas.Masviuacriancinha na porta, uma menininha linda, e pensou:Não, não dá pra ir embora. Atravessou o portã o do taxista, aproximou-se da varanda e sorriu paraosdoismerdinhas,quelargaram o jovem nos primeiros degraus da varanda. A esposa parou de gritar e encarouoyabanci,oestrangeiro ilho daputa.Osvizinhosjá começavama chegar, uns dez ou doze, todos curdos. Nã o se ouvia uma porra de um pio naquela rua, a nã o ser o esgotoquecorrialadeiraabaixo. De repente o merdinha armado berrou alguma coisa em curdo e começou a brandir a pistola ora na direçãodotaxista,oranadajovemde olhosamendoados.Nã ohaviadú vida dequeapagariaotraidorcasoGable nãofizessealgumacoisa.Dequalquer maneira, aquela fonte já havia secado: o moleque teria de sair da Turquiasequisessecontinuarvivo.O merdinha do PKK veio descendo e berrando na direçã o dele. Ignorando os olhos do garoto, que só faltavam pular para fora, Gable se concentrou na arma que ele empunhava. Os nó s dos dedos do ilho da puta já começavamaesbranquiçar,tamanha a força com que ele segurava a pistola.Quandoé assimvocê já sabe: nã otemmaisquetrê ssegundospara agir. O cano foi se levantando devagarinho. Gable tinha uma Browning HiPower na cintura. Sacou-a rapidamente e atirou trê s vezes no curdo, pum-pum-pum. Té cnica de Moçambique. De repente foi lá que inventaram esse troço. Você atira duasvezesnopeito,avaliaoestrago, depois dispara uma terceira vez na testa do infeliz, só por garantia. O merdinha arregalou os olhos ainda mais, desabou para trá s e bateu a cabeçanosdegraus da escada. Gable recolheuapistolaqueeledeixoucair eaarremessoudentrodeumbueiro pró ximo. Devia ter mais de um milhã o de armas nos esgotos de Istambul.Ocartuchodoterceirotiro aindanã otinhanemchegadoaochã o quandoosvizinhosfugiramfeitoum bando de animaizinhos assustados, cada um para um lado, janelas batendoàspressasaolongodetodaa rua. O taxista correu para abraçar a mulher. Talvez nem tivesse se dado conta de que nascera de novo, mas ela sim, percebia tudo, era visivelmente esperta, os mamilos marcados sob o pano da camiseta. Gable olhou para o outro PKK, que pareciatervistoJesus,ouMaomé ,eo merdinha ergueu os braços em rendiçã o, foi descendo os degraus devagarinho, depois desapareceu no breudarua. Gable deu cinco mil pratas ao taxista para ele sumir no mundo — nã o tinha conseguido mais que isso comopessoaldoQG.Nã osabiapara ondetinhamido,talvezAlemanhaou França. Cinco pirralhos curdos aprendendo alemã o. Quando izessem 20 anos, quem sabe o ilho deNatenã oirialá recrutá -los?Tudo muitolouco. Agora a moral dessa histó ria comprida.Oqueveiodepoisfoiuma tempestade de merda, sem nenhum exagero. Primeiro foi o cô nsul-geral, um poço de histeria, com uma vozinha ina e estridente, depois o embaixadoremAncara,emseguidao Departamento de Estado inteiro. Diplomata americano envolvido em homicı́dio. Todo mundo puto dentro das calças, um chororô dos infernos. Repercussõ es muito graves. Nã o dava para continuar em Istambul. A Polı́cia Federal Turca deu a Gable uma placa e um jantar de despedida —estavamadorandoaquilotudo.Os policiais turcos adoram ver o circo pegar fogo. Mas fora eles, todo mundoqueriaverGablepelascostas, e a investigaçã o o icial da CIA ainda nemtinhacomeçado. Depois disso, Gable montou acampamento na corregedoria de Washingtonporquaseummê s.Apó s quarenta horas de discussã o, eles chegaram ao veredicto de “má conduta operacional”. O chefe da estaçã o de Ancara simplesmente tirou o dele da reta — havia muitos fatorespolı́ticosem jogo. Nã o muito diferentedeGondorf.SegundoGable, Nate ainda iria topar com muitos bundõ es assim na carreira. Tudo indicava que tã o cedo Gable nã o receberiaoutraoperaçã onoexterior, ederepenteeleseviuenjauladonum cubı́culo no setor turco do QG em Washington, ouvindo a conversa do cubı́culo vizinho, uma novata de 23 anos usando a linha externa para contaraumaamigaqueen imcriara coragem para fazer um boquete no namorado naquele im de semana. Nenhum dos recé m-contratados usava um reló gio de pulso: eles olhavam as horas em um maldito telefone ou tablet, o que quer que issofosse. Gable nã o icava se lamentando —asoperaçõ eseramassimmesmo. Tudo isso tinha lhe acontecido, mas por um bom motivo. O resumo da ó pera era: nã o existe nada mais importante que um informante, a segurançadele,avidadele. Maisoumenosnamesmaé poca, Forsythestavasaindodesuapró pria tempestade de merda para ocupar a che ia de Helsinki. Ouvira dizer que Gable izera uma bela cagada, o que nã o chegava a ser nenhuma novidade,entã ooconvocaraparaser seu braço direito como nos bons tempos, quena verdade nunca tinhamexistido— nã o passavam de um grande mito. Quanto a Gable, foi comenormeprazerqueospalermas do QG o despacharam para a Finlâ ndia: ningué m mais queria ocupar aquele cargo e Washington nã o via a hora de se livrar daquela peste,aquelamáinfluência. — Entã o, cá estamos nó s. Trê s trapalhõ esexiladosnoCı́rculoArtico. Eu e você aqui, bebendo cerveja no pulgueiro de um turco. — Gable terminou sua cerveja e berrou: — Hesap. — Esperou Tarik sair da cozinha, apontou para Nate e disse: —Hojeéelequevaipagar. Nateriu,depoisfalou: — Espere um instante. Você falou que Forsyth també m passou porumatempestadedemerda.Oque aconteceu com ele? — Pegou alguns eurosnacarteira,entregou-osaTarik e emendou: — Pode icar com o troco. O homem agradeceu com um sorriso apagado e voltou para a cozinha. — Você exagerou na gorjeta, novato—avisouGable.—Assimeles icam mal-acostumados. E melhor deixá-loscomfome. Eleselevantouevestiuocasaco. —Bobagem—retrucouNate.— Você deucincomilpratasprotaxista curdo só pra tirá -lo daquela enrascada,evocê mesmodissequeo garoto já era carta fora do baralho, que nã o valia mais nada. Nã o precisavadarnenhumdinheiroaele. Nate itou Gable enquanto eles saı́am da viela e seguiam caminho diantedaestaçã oferroviá ria.Viuque ele nã o olharia de volta, mas à quela alturajá sabiaqueohomemeramais que apenas um cara durã o. De qualquer modo, nã o tinha a menor intençãodetestaroslimitesdele. Odiaestavafrio,eNateergueua gola do sobretudo para se proteger dovento. — Você nã o me contou sobre Forsyth—falou.—Oquehouvecom ele? Gable mais uma vez ignorou a pergunta. — Sabe onde ica a embaixada da Rú ssia? — perguntou. — E as da China, do Irã , da Sı́ria? Você precisa estarpreparadopraentrarnumcarro eirdiretopraqualquerumadelas.A gente nunca sabe quando vai ter de pedirasilopraalguminfeliz.Voulhe dar uma semana pra localizar todas elas. — Tudo bem, sem problema. Mas e Forsyth? Qual é a histó ria? — Nate desviava dos pedestres, que eram muitos à quela hora da tarde, enquanto Gable ia esbarrando em todos os que atravessavam seu caminho. A certa altura ele avistou um café do outro lado da rua e sugeriu: — Que tal um cafezinho? Vamoslá,éporminhaconta. Gableoolhoudeladoeassentiu comacabeça. Tomando um café com conhaque, ele en im desembuchou. Forsytheraumdoschefesdeestaçã o mais prestigiosos que existiam. Ao longo de uma carreira de 25 anos, construı́ra um currı́culo invejá vel. Logo no inı́cio, recrutara o primeiro informantenorte-coreanodahistó ria da CIA. Antes da queda do Muro, convenceraumcoronelpolonê salhe passar todos os planos de guerra do Comando Sul do Pacto de Varsó via. Alguns anos mais tarde, recrutara o ministro de Defesa da Geó rgia, que, em troca de uma conta bancá ria na Suı́ça, providenciara que um tanque T-80 de blindagem reativa chegasse exatamente à s trê s horas da madrugada a uma praia remota de Batumiesubissearampadonaviode desembarque pesado que a CIA alugaradosromenos. Nã o demorou para que Forsyth fosse visto como um dos o iciais seniores que mais entendiam do jogo, e um dos que melhor jogavam. Os operadores tinham verdadeira adoraçã o por ele. Embaixadores o procuravam em busca de conselhos. No QG, os igurõ es do sé timo andar depositavam nele uma con iança quase cega. Por conta disso, aos 47 anos Forsyth foi presenteado com a che ia de uma das mais cobiçadas estaçõ es do mundo, a de Roma, e, comoesperado,seusprimeirosanos nacidadeforamumenormesucesso. Oqueningué mesperavaeraque Tom Forsyth, um homem tã o experiente, izesse a besteira de mandar a arrogante assistente de certosenadoremvisitaaRomacalar aboca,duranteumaapresentaçã ona estaçã o.Recé m-graduadaemYaleem Ciê ncias Polı́ticas, com 23 anos e apenas vinte meses de experiê ncia no Capitó lio, a moça havia questionado a “pertinê ncia” de determinadaoperaçã odaestaçã ode Roma, uma manobra ao mesmo tempo controversa e complexa, e comoseissonã obastassecriticarao pró prio Forsyth pelas tá ticas empregadas, dizendo que elas haviam sido, “no mı́nimo, inadequadas.” Foi o su iciente para Forsythretrucarcomumsonoro“Vá à merda”edaliaalgunsdiasreceber uma noti icaçã o do QG informando que o senador reclamara e que seu perı́ o doem Roma seria abreviado porjustacausa. Passado algum tempo, com a protocolar carta de reprimenda já arquivada, os chefõ es do sé timo andar discretamente lhe ofereceram o comando de Helsinki. O principal objetivo da proposta foi mostrar ao CongressoqueoQGconcordavacom a reaçã o de Forsyth ao comportamento de senadores que usavam o trabalho como pretexto parafazercomprasemRomaeainda por cima constrangiam um de seus mais ié isededicadosoperadoresde campo. Na verdade, tratava-se de uma oferta quase nominal, porque ningué mesperavaqueForsythfosse aceitar. Alé m de muito menor que a estaçã odeRoma,adeHelsinki icava no que talvez fosse o menos importante dos quatro sossegados paı́ses da Escandiná via, posto mais adequado a um o icial em inı́cio de carreira. A expectativa era que Forsyth recusasse e permanecesse em Washington aguardando os dois anos que ainda faltavam para sua aposentadoria. —AoaceitarachefiadeHelsinki — disse Gable —, ele basicamente cagou na cabeça do pessoal do sé timo andar. Seis meses depois, mandou me buscar como vice. E ontem você chegou. Nã o que você seja um trapalhã o como a gente — acrescentou, rindo. — Você só tem famadetrapalhão. Gablenãopôdedeixardenotaro olhardistantedeNate.Já tinhavisto aquele ilme antes: o talentoso operador que, preocupado demais com o pró prio futuro e a pró pria reputaçã o, nã o conseguia relaxar e deixar as coisas luı́rem. Gondorf estragara o garoto, aquele ilho da puta. Agora Gable e a Forsyth precisariam consertá -lo. A ú ltima coisa de que a estaçã o precisava naquele momento era de um operador que nã o sabia a hora certa detentarrecrutaruminformante. ADANA KEBAB DO TARIK Fazer um purê com pimentões vermelhos, pimenta dedo-de-moça, azeite e sal. Adicionar carne de cordeiro moída, cebolas picadas, alho, salsa, cubos de manteiga, coentro, cominho, páprica, mais azeite, sal e pimenta. Amassar tudo, depois modelar os kebabs e colocá-los para grelhar. Servir com pão pide e cebolasroxas salpicadas com limão e sumagre. CAPÍTULO 8 O HIDROFOLIO VOSKHOD AZUL e branco se acomodou na á gua e foi se aproximando do cais, deixando atrá s de si uma mancha azulada de diesel queimado. Carregando apenas umamalapequena,Dominikadesceu pela rampa que se elevava acima do lamaçalà beiradorioeseguiuparao ô nibus mais à frente, estacionado numa estrada de cascalho. Onze jovens — sete moças e quatro rapazes—vinhamatrá sdela.Mudos e cansados, todos depositaram suas respectivasmalasnochã o,diantedo bagageiro do ô nibus. Ningué m dizia nada, nã o olhavam uns para os outros. Dominika virou para trá s e itou o imponente rio Volga e os pinheirais que cobriam ambas as encostas até a á gua. O ar estava ú mido e o rio cheirava a ó leo diesel. Trê s quilô metros ao norte, os campaná rios e minaretes nos arredores do Kremlin de Kazan podiamservistosemmeioà neblina matinal. Dominika sabia que se tratava de Kazan porque, depois de terem pousado no aeroporto, eles haviam atravessado a cidade até deixarem para trá s a ú ltima placa rodoviá ria. Isso signi icava que estavam no Tartaristã o, ainda na Rú ssia europeia. A meia-noite, tinham embarcado num aviã o em Moscou e voado 700 quilô metros até a escuridã o de um campo de pouso militar. Letreiros luminosos apagados informavam: BORISOGLEBSKOYE AERODROME E PARQUE AERONAUTICO DE KAZAN. Delá ,abordodeumô nibusdevidros trincados e cortinas encardidas, eles haviamatravessadoasruasdesertas da cidade até chegarem a um afastado porto luvial. O sol já despontava no horizonte quando enfimembarcaramnohidrofólio. Acomodados em silê ncio nas poltronas que pareciam as de um aviã o, eles ainda esperaram por quaseumahoranaabafadacabinedo hidrofó lio. O balançar descompassado do casco, o bater da á gua contra o pı́er, o roçar do cordame de ná ilon nos postes de amarraçã o, tudo isso deixava Dominika um tanto enjoada e sonolenta.Comexceçã odomotorista do ô nibus e de um homem no passadiço do barco, eles nã o tinham visto ningué m até entã o. Dominika contava os pá ssaros conforme o sol sederramavanorio. Finalmente, um Lada cinza estacionou pró ximo à prancha de embarqueeumcasalsaltoudocarro, carregando duas caixas de papelã o. Eles entraram no barco, acomodaram-nas sobre o balcã o na parte dianteira da cabine e abriramnas. — Sirvam-se — disse a mulher, e se sentou na primeira ila de assentos, de costas para o restante dospassageiros. Lentamente, eles se adiantaram até lá . Nã o haviam comido nada desde o café da manhã do dia anterior. Uma das caixas continha bulochki frescos e rosquinhas doces com uvas-passas, e a outra, garra inhas de laranjada morna. O homemesperouquetodosvoltassem a sentar, depois subiu ao passadiço para falar com o comandante. Dali a pouco os motores do barco começaram a roncar e o casco estremeceu.Arampadealumı́niofoi recolhidaeascordasforamsoltas. O barco seguia acima da superfı́cie da á gua, sustentado pelos fó lios, e tremia de proa a popa enquanto avançava. Dominika via o assento à sua frente vibrar e o teto chocalhar no alto, junto com os rebites. Os cinzeiros de metal zumbiam nos braços das poltronas. Para afastar o enjoo, ela olhava ixamente para o tecido imundo da poltrona à sua frente, mal acreditandoqueestavaatravessando oVolgarumoàsuamaiorhumilhação de todos os tempos: uma faculdade decortesãs. A bordo de um segundo ô nibus paraoú ltimotrechodaviagem,com amulheranô nimaocupandoobanco da frente, eles passaram por uma lorestadepinheirosaté chegarema um muro de concreto armado cheio de cacos de vidro no alto, que re letiamaluzdosol.Omotoristado ô nibus buzinou, depois atravessou o estreito portã o e seguiu por um caminho sinuoso até parar na frente de uma mansã o de dois andares em estilo neoclá ssico com telhado de ardó sia. O silê ncio era absoluto — nã oseouvianemumabrisa—enã o havianenhummovimentodentroou foradacasa. Dominika respirou fundo.Não adianta reclamar, falou para si mesma. Aquele lugar repulsivo era apenas mais um obstá culo, um sacrifı́cio,umtesteà sualealdade.Ela desceudoô nibuseesperouemmeio aospinheirosdiantedacasa.Acabara dechegaràEscoladePardais. Apó s a conversa com o tio, Dominika quase mandara todos eles à merda. Cogitara mudar-se com a mã eparaStrelna,à smargensdabaı́a do rio Neva, nas imediaçõ es de Sã o Petersburgo. Poderia encontrar trabalho como professora ou instrutoradeginá stica;comopassar dotempo,eumpoucodesorte,talvez até conseguisse uma posiçã o na AcademiaVaganovae voltar ao balé . Mas, por im, decidira nã o jogar a toalha. Levaria aquela histó ria adiante a qualquer custo. Nã o se deixariavencer.Oquelheensinariam naquela escola pertencia ao â mbito do fı́sico, e apenas do fı́sico. Nã o importava o que a obrigassem a fazer, ningué m conseguiria atingi-la noespírito. Por outro lado, conforme pensavanessascoisas,seueusecreto cogitava se ela nã o conseguiria ter algum prazer, por menor que fosse, na só rdida catequese a que se submeteria naquele lugar. Dominika odiava a ideia de uma Escola de Pardais,envergonhava-sedeestarali, masnoíntimoestavacuriosa. — Deixem suas malas no hall e venham comigo — orientou a mulher, depois subiu a escadaria paraabriragigantescaeantigaporta demadeiradamansão. Eles seguiram direto para o auditó rio. A julgar pelas prateleiras de livros, o lugar era uma biblioteca convertida em sala de palestras. Havia uma plataforma nos fundos, sobre a qual icava um pequeno pó dio, e, em frente a ela, diversas ileiras de bancos de madeira, que rangeramquandoosjovensalunosse sentaram. Trajando um terninho preto disforme, a mulher começou a distribuir envelopes aos presentes, dizendo: — Aı́ dentro você s encontrarã o onú merodoquartoreservadoacada um e o nome que deverã o usar durante todo o treinamento. Usem apenas este nome. Nã o revelem nenhum tipo de informaçã o pessoal aos colegas. Os que infringirem esta norma serã o sumariamente dispensados. Aparentando50epoucosanos,a administradora tinha cabelos grisalhos escovados para trá s, um rostoquadradoeonarizreto.Parecia Valentina Tereshkova, a primeira mulher a ir ao espaço. Suas palavras saíamemgotasdeamarelo. — Você s foram selecionados para um treinamento especializado — prosseguiu ela. — O que é uma grande honra. E possı́vel que a natureza deste treinamento pareça estranhaaalgunsdevocê s.Procurem se concentrar nas liçõ es e nos exercı́cios.Esó issoqueimporta.— Suavozecoavanosalã odepé -direito alto. — Agora subam para seus quartos.Ojantarserá servidoà sseis na sala do outro lado do corredor. A p r i m e i r asessã o do nosso treinamento será aqui mesmo, à s sete.Podemseretirar. No corredor do andar de cima, Dominika contou doze quartos, seis decadalado;todostinhamumaplaca esmaltada informando o nú mero. Entre as portas dos aposentos havia outrassemnú meroesemmaçaneta, que só podiam ser abertas com a chave correspondente. O quarto de Dominika era verde-claro, modesto mas confortá vel, com uma cama de solteiro, um armá rio, uma cô moda e uma cadeira. Era possı́vel sentir um discreto cheiro de desinfetante em toda parte: nas cobertas, no guardaroupa, nos lençó is empilhados na prateleira. Uma cortina de plá stico demarcava os limites do banheiro, que se resumia a uma pia enferrujada, um vaso sanitá rio e um chuveirodemã ologoacima.Noalto dacô moda icavaumespelhogrande demais para o estilo espartano da decoraçã o. Dominika colou o rosto contraasuperfı́ciedeleeoexaminou atentamente, tal como aprendera no treinamento.Logoviuquesetratava de um espelho de duas faces. BemvindaàEscoladePardais. A noite caiu, embora o cé u escuronã opudesseservistoatravé s do pinheiral. A mansã o estava na penumbra. Nã o havia reló gios em nenhum lugar da casa. Tampouco telefones. Nã o se ouvia nada nos corredores, nas escadas ou nos cô modos do andar de baixo. Nã o havia enfeites nas paredes, nem mesmoosdaguerreó tiposo iciaisde Lê nin e Marx, mas ainda eram evidentes os contornos dos quadros de outrora. Que famı́lia de tá rtaros teriamoradoaliantesdaRevoluçã o? Como seriam os nobres que cavalgavam e caçavam naquele pinheiral? Teria sido possı́vel ouvir dali o apito dos paquetes a vapor chegando de Moscou pelo rio? Que instinto sovié tico teria colocado aquelaescolatãolongedacapital? Dominika correu os olhos pelos outros onze “alunos” que tomavam, calados,aespessasopademacarrã o, o utokmach, que o garçom lhes servira em silê ncio de uma linda sopeiradeporcelanaazulebranca.A sopa se seguiria um prato de carne cozida. As mulheres e trê s dos homensaparentavamter20epoucos anos,masoquartorapazpareciaum adolescente pá lido e magro. Dominika cogitou se eles també m haviam sido treinados no SVR. Virando-se para a moça a seu lado, elasorriuedisse: —MeunomeéKatya. Era assim que ela se chamaria daliemdiante. — O meu é Anya — retrucou a jovem,sorrindodevolta. Tinha um porte miú do, cabelos lourosemaçãsdorostosalientes,nas quais se viam algumas sardas. Parecia uma elegante ordenhadeira de olhos azul-claros. Suas palavras tinham o tom azulado de uma centá urea, a cor da pureza e da ingenuidade. Timidamente, os demaisseapresentaramtambém. Quando terminaram de jantar, eles passaram à biblioteca, onde reinava mais absoluto silê ncio. De repente, as luzes se apagaram e um ilme em preto e branco começou a rodar no telã o armado sobre a plataforma, uma sucessã o de imagens brutais e selvagens, um atropelo de rostos crispados, corpos contorcendo-se e genitais por toda parte,algumasvezestã oemfocoque chegavam a icar irreconhecı́veis, sobrenaturais.O ilmeseinicioucom som no volume má ximo, assustando a todos, inclusive Dominika, que começou a icar tonta em razã o do remoinho de cores que girava à sua volta. Vermelho, violeta, azul, verde, amarelo: o arco-ı́ris da sobrecarga visual. Ela precisou fechar os olhos para escapar daquele tormento. Foi entã o que uma das caixas de som estourou e o volume passou do má ximo ao mı́nimo, dando a impressã o de que a mulher na tela sussurrava, ainda que seus cabelos estivessem grudados na lateral do rosto e o corpo se sacudisse freneticamente a cada estocada do parceiro. Dominika receou nã o ter estô magoparalevaraquiloaté o im. O que estariam esperando dela? O que fariam caso ela se levantasse e saı́sse dali? Seria dispensada do serviço?Nã o,nã odariaessegostinho a eles. Queriam um pardal, nã o queriam?Entã oeraissoqueelalhes entregaria. Ningué m sabia que ela visualizavacores.Mikhaildisseraque jamais vira algué m tã o bom na percepçã o de pessoas. Ela icaria. Aprenderiaoquelhefosseensinado. Disseasimesmaqueaquilonã o era amor. Aquela escola, aquela mansã o cercada por muros e cacos de vidro, nã o passava de uma má quina do Estado que institucionalizava e desumanizava o amor. Nada daquilo tinha importâ ncia, era apenas sexo, algo fı́sico. Um treinamento nã o muito diferente do balé que ensinavam na academia.Napenumbradabiblioteca bolorenta, Dominika disse a si mesma que chegaria ao im daquela histó ria nem que fosse como uma afrontaàquelesfilhosdaputa. As luzes se acenderam e os alunos se entreolharam, corados de vergonha. Com a voz inexpressiva, a supervisoradisse: — Você s izeram uma longa viagem. Vã o para seus quartos e procurem descansar. O treinamento recomeça amanhã à s sete horas. Podemseretirar. Nada no comportamento dela indicava,nemremotamente,queeles haviamacabadodeassistiranoventa minutos de sexo ininterrupto e explı́cito. Os alunos saı́ram em ila e foram subindo pela escadaria de balaú stres pesados e imponentes. Anya acenou um boa-noite antes de fecharaportadoquartoeDominika cogitou se ela e os demais alunos descon iavam de que seriam espiados enquanto se despiam, tomavam banho e dormiam, de que cada um daqueles aposentos intermediá rios abrigava um voyeur doInstitutoKon. Ela parou diante do espelho e começou a pentear os cabelos com sua escova de cabo longo, o ú nico pertencequehavialevadodecasa.A certa altura olhou para o objeto e teve a impressã o de que ele a itava de volta com um ar zombeteiro. Em seguida ela tirou a blusa, colocou-a num cabide de arame e pendurou-o displicentemente na quina do espelho, cobrindo boa parte dele. Pegou a mala, apoiou-a sobre a cô moda, abriu-a e lá se foi mais um terço do espelho. Por im, despiu a saia, virou-se para dar uma espiada rá pida nas ná degas sob as meias de ná ilon e, com a maior naturalidade possı́vel,jogou-asobreamoldurado espelho,cobrindooqueaindasevia dele.Namanhãseguinteelestirariam tudo dali, claro, talvez até a repreendessem, mas ela teria pelo menosumanoitedepaz. Dominika escovou os dentes, entrou debaixo das cobertas, que cheiravam a desinfetante de câ nfora e ó leo de rosas, e apagou a luz. A escovaficousobreacômoda. *** Oshomenseasmulheresforam separadosunsdosoutroseà medida que os dias passavam eles começaram a perder a noçã o do tempo. Manhã s tediosas eram dedicadas a palestras interminá veis sobreanatomia, isiologia,psicologia dos estı́mulos e das respostas sexuais. Alguns novos professores iam dando as caras. Uma mé dica falou por horas sobre as prá ticas sexuais de diferentes culturas. Depois vieram as aulas sobre a anatomia masculina, o funcionamento do corpo de um homem,oquefazerparaexcitá -lo— mais de cem té cnicas, posiçõ es e movimentos, tudo devidamente estudado, repetido e memorizado numa espé cie de Kama Sutra russo. Dominika icavaperplexacomaquela enciclopé dia monstruosa, com aquelasinformaçõ esqueaospoucos roubavam sua inocê ncia e minavam qualquer perspectiva de uma vida sexual normal no futuro. Como seria possı́vel fazer amor depois de ver e ouvirtudoaquilo? As tardes eram reservadas à s “atividades prá ticas”, como se o assunto em pauta fosse algo tã o banalquantopatinaçã o no gelo. Elas treinavam o modo correto de caminhar, conversar, abrir uma garrafa de champanhe. Num dos quartos da casa, aprendiam a se vestir com um deplorá vel acervo de roupas usadas, sapatos puı́dos e lingerie manchada de suor. També m aprendiam a falar umas com as outras, a ouvir, a demonstrar interesse, a bajular e, mais importante de tudo, a arrancar informaçõesduranteumaconversa. Certavez,numraromomentode descontraçã o, cinco delas se sentaram em cı́rculo no chã o da bibliotecaparapraticar,entremuitas risadasemuitofalató rio,o“linguajar dosexo”quehaviamaprendidocom osfilminhosnoturnos. —Eassim—falouumamenina de cabelos escuros e um forte sotaquedaregiã odomarNegro.Em seguida fechou os olhos e sussurrou numa linguagem cheia de erros: — Isso,gostoso,vocêmefazergozar... Todas elas começaram a gargalhar. Dominika olhou para aquelas moças ruborizadas e se perguntou quanto tempo levaria até que estivessem só de calcinha num quarto de hotel em Volgograd, esperando que algum ministro vietnamitatirasseseussapatos. — Katya, agora é sua vez — disseameninaaDominika. Desde o inı́cio elas haviam intuı́do que por algum motivo Dominika era diferente, especial. Anya agora a encarava, curiosa para veroqueelafaria. Semsaberdireitoporquê,talvez para mostrar à s outras, ou a si mesma, que era capaz, Dominika semicerrouosolhosemurmurou: — Isso, meu amor... assim, vai... vai, vai, vai... — Entã o, das profundezas do ser, ela tirou: — Aaaaaaaaaahhh... Seguiu-se um silê ncio de espanto, mas de repente as moças irromperam num entusiasmado aplauso, aprovando com unanimidade o desempenho de Dominika. Ao lado dela, Anya estava com os olhos arregalados, boquiaberta, alheia à comicidade da situaçãocomoumtodo. Anya e seu halo azul-centá ureo. Ela vinha tendo muitas di iculdades com o curso: horrorizava-se com os aspectos mais só rdidos e volta e meia procurava Dominika em busca de apoio e encorajamento. “Você precisa se acostumar”, dizia Dominika,masameninaainda icava terrivelmente constrangida nas sessõ es de cinema e apertava sua mã o enquanto o circo sexual in lamava o telã o à frente delas. Dominikatinhaquasecertezadeque acamponesinhanã ochegariaao im, via que as cores em torno dela já começavamadesbotar. Então,certanoite,apósumfilme especialmente pornográ ico que a izera chorar baixinho, Anya bateu à porta do quarto de Dominika e entrou com os olhos vermelhos e os lá biostrê mulos.Precisavadoconsolo da amiga, estava prestes a perder o juı́zo. Dissera a eles que queria desistir, mas eles retrucaram algo que só Deus sabia o que fora e ela seriaobrigadaacontinuar.Dominika puxou-aparaooutroladodacortina dobanheiro. —Você precisasermaisforte— sussurrou, sacudindo Anya pelos ombroscomdelicadeza. Choramingando, a garota envolveu o pescoço dela com os braços e a puxou para um beijo. A pobre idiota tremia, e Dominika nã o a repeliu. No instante seguinte elas estavam no chã o do pequeno banheiro, Dominika aninhando a outra nos braços, sentindo os tremores dela. Anya virou o rosto para um segundo beijo e Dominika cogitou recusá -lo, mas acabou cedendoeretribuiuacarícia. Encorajada, Anya pegou a mã o dela e a passou sob o roupã o de banhoquevestia,naalturadosseios. Ah, tenha santa paciência, pensou Dominika, que nã o sentia nada pela garotaanã osercertapena.Será que aquiloeraatalbissexualidadedeque haviam falado nas aulas? De repente ela icou preocupada. Talvez aquela cortina nã o bastasse para escondê las do voyeur do outro lado do espelho. Podia haver algum microfone escondido por perto. Talvez aquilo que estavam fazendo fosseumafaltagrave. Com os dedos fechados no punho de Dominika, Anya fez com que a mã o dela roçasse um de seus mamilos até que ele enrijecesse e, depoisdisso,comoroupã ocaı́do,foi descendo a mã o escravizada na direçã o da pró pria virilha. Dominika nã o oferecia qualquer resistê ncia. Perversã o? Generosidade? Alguma outracoisa?Alibertinaqueelatrazia em algum lugar da alma, fosse lá quem fosse, observava o que se passavaalielhediziaparaseguirem frente, até porque, à quela altura, talvez já fosse tarde demais para recuar. Com a leveza de uma pluma, Dominika traçou, com os dedos, cı́rculosminú sculoseperfeitosentre as pernas de Anya, que estremeceu de prazer com a cabeça arqueada paratrá s,opescoçodesenhandouma curvabonitaevulnerável. Dali a pouco, recostada nos azulejos do banheiro, Dominika sentiuarespiraçã odeAnyaentreas pró priaspernas.Nã oviumotivopara impedi-la. Foi orientada por seu eu secretoaseentregarà ssensaçõ es,a saborear o calor que as narinas dela emanavam e que se irradiava pela barriga. Com a cabeça jogada para trá s, Dominika ergueu o braço para seapoiarnapiaeencontrouaescova decabelodecabodetartarugadesua prababushka. Sua avó e sua mã e haviam se penteado com aquela mesma escova, que por im se transformara no brinquedinho secreto de Dominika nas noites de tempestade. Ela deslizou o cabo da escova pelabarrigadeAnyacomdelicadeza, bem devagar, até fazê -lo sumir dentro dela. A camponesinha entreabriu os lá bios e revirou os olhos. De repente ela se retesou e depois começou a acompanhar o lento vaivé m do cabo de tartaruga, em seguida ergueu o rosto para Dominika e, tentando reproduzir a faladosfilmes,sussurrou: — Isso, meu amor, assim, vou gozar. Dominika sorriu e observou a loirinha estrebuchar de prazer enquantoelamesmamandavaseueu secreto de volta para a toca de onde elenuncadeveriatersaído. Ao im de alguns minutos, Anya suspirou e se inclinou para mais um b e i jo .Chega, pensou Dominika, e disse: —Agoravocêprecisair.Rápido. Comorostocorado,Anyavestiu oroupã o,olhouumaú ltimavezpara Dominikaesaiuemsilê ncio.Será que algué m as tinha visto do outro lado do espelho? Será que seriam repreendidas na manhã seguinte? Cansada demais para se importar, Dominika voltou para a cama e apagoualuz. Aescovapermaneceuesquecida nochãodobanheiro. Na manhã seguinte, num dos cô modos do andar de baixo, um amplosalã ocomparedesdemadeira eumenormetapeteazulebrancodo Cazaquistã o, as moças foram instruı́das a se acomodar nas cadeiras posicionadas em cı́rculo no meio do aposento. Assim que se sentaram, uma delas, uma jovem morenacomomelodiososotaquede Novgorod,foiorientadaa icardepé , tirar as roupas e andar em torno do cı́rculo para ser avaliada pelas demais. Seguiu-se um silê ncio de perplexidade. A garota hesitou por ummomento,masen imobedeceu.A mé dica e sua assistente, ambas de jaleco, agiram como moderadoras, observandoospontosfortesefracos docorpodamoça,depoismandaramna voltar à cadeira e continuar nua. Em seguida foram chamando as demaisparaomesmoprocedimento, o que originou uma lenta procissã o de corpos trê mulos e incongruentes com o rosto ruborizado, a pele arrepiada e os lá bios mordidos. As roupas e os sapatos formavam montinhos deplorá veis debaixo das cadeiras. Por sorte nã o havia homens na sala. Anya apertou as mã os nervosamente quando en im chegou suavez,depoisolhouapavoradapara Dominika, que a ignorou. A mé dica rugiu para que ela se apressasse e tirasselogoacalcinha. Em seguida foi a vez de Dominika. Ignorando a pró pria ansiedade,elaselevantouassimque foi chamada. Achava uma monstruosidade ter de icar nua diante de tantas desconhecidas, mas obrigou-se a ir em frente. Ficou constrangida nã o só pela pró pria nudez,mastambé mpelosilê ncioque tomouasalaassimqueelacomeçou a caminhar pelo cı́rculo. Sentia claramente os olhos de Anya ixos nela. — A melhor da raça — sussurrouaassistente. — A melhor da exposiçã o — corrigiuamédica. Nodiaseguinteelasvoltaramao mesmo salã o, mas encontraram um homem no meio do cı́rculo de cadeiras,vestindoapenasumroupã o curtoquedaliapoucotirou.Osujeito precisava de um bom banho, assim comocortarasunhasdopé .Amé dica descreveueavaliouocorpodelepara asalunas,detalhepordetalhe.Nodia seguinte lá estava ele de novo, mas agora acompanhado de uma mulher baixinhaegorducha,decabelosbem ruivos, as faces e os cotovelos ressecados. Eles se despiram e começaram a fazer amor de forma mecâ nicasobreum colchã o no meio do cı́rculo de cadeiras. A mé dica comentou as diferentes posiçõ es sexuais, interrompendo o casal algumas vezes para ressaltar um ponto relevante ou apontar um detalhe fı́sico. Os modelos nã o demonstravam nenhuma emoçã o e os cı́rculos de cor em volta deles eram tã o desbotados que Dominika nem conseguia distingui-los. Pareciamnãoteralma. — Eu mal conseguia olhar pra eles — confessou Anya a Dominika. Elas haviam adquirido o há bito de fazer uma breve caminhada pelos jardins abandonados da mansã o nos poucos minutos livres de que dispunhamapó socafé damanhã .— Seilá ,nã otenhoestô magopraessas coisas.Simplesmentenãotenho. — Olha, a gente pode se acostumar com qualquer coisa na vida—disseDominika. Ficou se perguntando por que diabo haviam selecionado aquela caipira e em que roça a teriam encontrado. Em seguida pensou:E você, Dominika? É capaz de se acostumaraqualquercoisa? Talcomoelaprevia,ascoisassó pioraram na semana seguinte. De novo as moças foram conduzidas ao salã o, mas dessa vez eram homens queocupavamascadeirasemcírculo, sujeitos broncos, com paletó s apertadosdemaise cortes de cabelo medonhos. Elas foram obrigadas a icar nuas diante deles e ouvir as crı́ticas que o grupo tinha a fazer sobreocorpoourostodetodas.Em nenhum momento aqueles homens lhes foram apresentados, e os halos encardidos que os cercavam só contribuı́am para embaçar a atmosferadasala. Anyacobriuorostoinundadode lá grimas até que a mé dica lhe disse paraparardepalhaçadaeabaixaras mã os imediatamente. Como em um sonho, Dominika saiu do pró prio corpo, bloqueou os pensamentos e enfrentoucomresignaçã oosolhares dohomemqueaavaliava,umsujeito horrı́vel com o rosto coberto de cicatrizes de varı́ola. Os olhos dele tinhamamesmacorqueemanavade seu corpo, um amarelo tã o intenso quanto os de um gato no escuro. Dominika o itava sem piscar enquantoeraexaminada. — Tem pouca carne — a irmou ele,paraningué memparticular.—E osmamilossãopequenosdemais. Doisoutroshomensassentiram em concordâ ncia e Dominika os encarou até obrigá -los a desviar o olhar para acender um cigarro. Com alguma surpresa, constatou que aos poucossetornavaindiferenteatudo: à nudez,aos comentá rios obscenos, aos olhos que lhe devoravam os seios, o ó rgã o sexual e as ná degas. Elespodemfazeroquequiserem,disse asimesma,masnãovoupermitirque sustentem meu olhar. As demais alunas reagiram cada uma à sua maneira. Uma boboquinha de Smolensk, que falava um dialeto do sul do paı́s, fez caras e bocas e rebolou os quadris enquanto era examinada.Anyaseremoeudetanta vergonha. O cheiro de desinfetante quepermeavaamansã osejuntouao odor acre do corpo delas, um misto de almı́scar, suor, á gua de rosas e sabã o de coco. Quando as luzes se apagaram, os voyeurs suarentos voltaram para suas respectivas cabines e prosseguiram com suas anotaçõ es, certi icando-se de que nenhumadascâmerasfossetapada. Certanoite,Anyabateudeleveà porta de Dominika, que abriu uma frestaedisse: — Vá embora. Nã o posso mais ajudarvocê. Bastam meus próprios problemas, ela pensou.Tenho minha sanidadementalparatentarmanter. Anya lhe deu as costas e sumiu naescuridãodocorredor. Dali a alguns dias, um ô nibus chegou com os cadetes militares, os quetinhamtiradoasnotasmaisaltas em seus respectivos regimentos. As moçasjá esperavamemseusquartos e observaram, sentadas na cama, os homens magros e machucados se livrarem do uniforme. Precisaram aguentar irme quando eles se deitaram por cima delas com a rapidez de animais no cio. Quando a sirene tocou, todos eles saı́ram dos aposentossemnemolharparatrá se dali a pouco o ô nibus atravessou o mesmo portã o pelo qual havia entrado,levando-osembora. De volta à biblioteca na manhã seguinte, o projetor foi ligado novamente, mas, em vez dos ilmes de sempre, o que elas viram foi a aluna do aposento nú mero cinco na cama com um sujeito magro de cabeça raspada, o cadete da noite anterior.Malconseguiramolharpara o telã o. Aquilo era uma vergonha, umaindignidade,verasimesmacom as pernas entrelaçadas à s costas espinhentas de um desconhecido, as mã os cravadas nos ombros esquelé ticos feito as garras de um animal. Volta e meia a mé dica congelava a imagem para fazer um comentá rio ou sugerir um aperfeiçoamento. O pior era que à quelaalturatodasjá sabiamqueos ilmes seguiriam a ordem de numeraçã odosquartos.Anyabaixou acabeçaeenterrouorostonasmã os. Seu quarto era o onze, e ela teria de enfrentar nã o só os ilmes, como també m a longa espera. Quando chegouasuavez,correudevoltapara o quarto, aos prantos, assim que o ilmeterminou.Amé dicadeixouque ela se fosse e prosseguiu tranquilamentecomoscomentá rios, apontando os erros que vira, o que poderiasermelhorado. O quarto de Dominika era o doze, no im do corredor. Logo, seu exercı́ciocomocadetefoioú ltimoa ser mostrado. Ela acompanhou o pró prio desempenho sem nenhuma emoçã o, surpresa com aquele rosto inexpressivo, os gestos mecâ nicos e automá ticos, o puxã o de orelha com queafastaraogarotoapó soorgasmo dele.Sentia-seum pouco zonza, mas nã o de vergonha ou constrangimento. Via aquelas imagens com frieza e repetia a si mesma que era uma combatente do SluzhbaVneshneyRazvedki,oServiço Externo de Inteligê ncia do governo russo. Na manhã seguinte, Anya nã o apareceu para o café e duas moças subiram para procurá -la no quarto. Precisaram arrombar a porta, e encontraram-namortadooutrolado, penduradaaoganchodecasacospor uma meia de ná ilon em volta do pescoço. Tivera a força de espı́rito para manter as pernas erguidas até perder a consciê ncia e deixar que o peso do corpo cuidasse do resto. Dominika caminhava no jardim quandoouviua gritaria. Correu para o andar de cima da mansã o, abriu caminhoentreasduasgarotas,tirou Anya do gancho e a deitou no chã o. Sentia um misto de culpa e raiva. O que a imbecil esperava dela, a inal? Como explicar que ela tivesse coragem para se enforcar, mas nã o parasedeitarpormeiahoracomum rapaz? Quase nã o houve reaçã o. As alunas viram o corpo e depois lhe deram as costas. Anya foi levada da mansã onumamaca de lona, coberta porumlençolquedeixavaescaparem algumas pontas dos cabelos louros. Ningué m disse nada. As aulas prosseguiram como se nada tivesse acontecido. Ocursoestavachegandoao im. As garotas, que já podiam ser chamadasdepardais,sereuniramna saladejantarparareceberosquatro “corvos” que tinham sido treinados nocasarã omaisafastado.Trê sdeles se transformaram em especialistas na arte de seduzir as mulheres solitá rias e vulnerá veis que pudessemteralgumautilidadeparao SVR: a secretá ria solteirona do ministro, a esposa negligenciada do embaixador, a assistente subestimada do general. O quarto rapaz havia se especializado em outra arte, a de seduzir homens que buscavamsecretamenteacompanhia de outros homens: algum diplomata denívelsuperior,umadidomilitarou até mesmo um criptó grafo que preferiria a morte ao desmascaramento pú blico. Todos eles diziam, com certa soberba, que haviam sofrido durante o treinamento. Conseguir garotas para praticar nã o era fá cil, Dimitri sussurrou, e eles eram obrigados a treinar com as mulheres imundas que traziam dos vilarejos pró ximos ou alguma prostituta com cara de tuberculosa que importavam dos distritos industriais de Kazan. Dominikapreferiunã osabercomoe comquempraticavaoquartocorvo. — Mas agora sabemos tudo sobreoassunto.Somosespecialistas no amor — arrematou Dimitri, e abriu os braços ao correr os olhos porsuaplateiadepardais. Asmoçaso itavamemsilê ncio. Dominika notava na expressã o delas umacentelhadeceticismo,fatalismo oudescon iança,amesmaquejá vira nas prostitutas da Tverskaya Ulitsa, em Moscou.Os frutos da Escola de Pardais,pensou.AmortedeAnyanã o havia sido o ú nico custo daquela históriatoda. Eles saı́ram para o aeroporto à meia-noite, carregando suas malas vagabundas, sem olhar para trá s. A lorestadepinheirosestavaescurae silenciosa. A Escola de Putas permaneceria fechada até a chegada dopróximogrupo. O aviã o sobrevoou as chaminé s de Kazan e seguiu para oeste em meioà escuridã odanoite.Daliauma hora, passaram pelas luzes de Nizhniy Novgorod, cortadas pela faixa negra do Volga. Entã o a aeronave inalmente começou a descida em direçã o ao brilho da agitada Moscou. Jamais voltariam a sever. Dominika fora instruı́da a se apresentar no Quinto Departamento namanhã seguinteparacomeçarsua carreira como operadora de inteligê ncia jú nior. Pensou no chefe do departamento, Simyonov, e nos outros o iciais a que seria apresentada,imaginandocomoelesa olhariam e o que diriam. Bem, a cortesã tinha voltado das estepes e agora queria fazer parte do mundo deles. Asalaestava escura quando ela entrou em casa ainda antes do amanhecer, mas sua mã e surgiu no corredorvestindoumroupão. — Ouvi você chegar — disse Nina. Dominikacorreuparaabraçá -la, depoistomousuamã oeabeijoucom os mesmos lá bios que tinham sido treinados para destruir um homem —umatodeexpiação. SOPA TOKMACH DA ESCOLA DE PARDAIS Cozinhar em caldo de carne um punhado de batatas cortadas grosseiramente, fa as finas de cebola e cenouras. Acrescentar macarrão e aguardar até que fique no ponto. Servir em um prato de sopa por cima de pedaços de carne cozida. CAPÍTULO 9 DOMINIKASEAPRESENTOUNO QUINTO Departamento na manhã seguinte, ainda exausta do voo. Atravessou o longo corredor de paredesverde-clarasebateuà porta do gabinete de Simyonov, mas foi informada de que o coronel nã o estava e orientada a voltar mais tarde. Enquanto isso, mandaram-na ao Departamento de Recursos Humanos, ao Registro Geral e aos Arquivos. Quando virou o corredor, deparou com Simyonov, que falava comumhomemdecabelosbrancose terno cinza-escuro. Notou que o desconhecido tinha sobrancelhas grossas, um sorriso gentil, olhos castanhoselímpidos. — Essa é o cabo Egorova, general—disseocoronelaohomem. Entã o, dirigindo-se a ela: — General Korchnoi,chefedoDepartamentodas Américas. Dominika reconheceu o nome apenas vagamente; sabia que se tratava de um o icial graduado. Diferentemente de Simyonov, que tinha apenas uma aura pá lida em tornodacabeça,Korchoibanhava-se num manto lamejante de cor, um tomaveludadoderoxo,omaisbonito queDominikajáviraemalguém. —Ocabochegouontemmesmo do curso em Kazan — prosseguiu o coronel, com um sorriso malicioso. Todosnoserviçosabiamoqueaquilo signi icava. Dominika sentiu que ruborizava.—Elaestá nosassistindo na abordagem daquele diplomata, o caso de que eu lhe falava agora há pouco,general. — Mais do que apenas “assistindo” — disse Dominika, olhando para Simyonov. Para Korchnoi:—EumeformeinaAVR,na turmamaisrecente. Nã o fez nenhuma mençã o à Escola de Pardais, e sua vontade era cortar o pescoço de Simyonov. Entendiamuitobemaintençã odele, mas nã o tinha nenhuma intuiçã o quanto ao veterano de cabelos brancos,queeradifícildeler. — Ouvi falar do seu desempenho na academia, cabo — comentou o general enigmaticamente. — E um prazer conhecê -la — emendou, e a cumprimentou com um aperto de mãofirmeeseco. Simyonov observava a cena, ainda sorrindo, pensando que Korchnoiseriaoprimeirodemuitos o iciaisdealtapatentequetentariam desabotoar aquela blusa. Nã o dava seismesesparaqueamoçaestivesse trabalhandonogabinete(enosofáde couro) de algum general. Surpresa e envaidecida, Dominika agradeceu a Korchnoi e continuou seu caminho no corredor. Os dois homens a seguiramcomoolhar. —Ofogoalié maisaltodoque numasaunadeYakutsk—sussurrou Simyonov assim que ela se afastou. —Esobrinhadovice-diretor,sabia? Korchnoifezquesimcomacabeça. — Sobrinha ou nã o, vai ser um osso duro de roer — resmungou Simyonov. O general icou em silêncio. — Ela quer ser operadora — prosseguiuogeneral.—Masvocê viu aquele corpo. Talhado pra ser uma vorobey. Foi por isso que Egorov a mandouparaKazan. — E o francê s? — perguntou Korchnoi. Maisumrisinhoirônico. — Polavaya zapadnya. Este aı́ nó s vamos pegar pelas calças. Só precisamos de algumas semanas. E um cara aı́ do Setor Comercial. — Simyonov apontou o queixo para o corredor.—Elaquerleroarquivo,se envolver. Mas a ú nica coisa que vai ver é o que está entre as pernas do francês. Korchnoisorriu. —Boasorte,coronel—disse,e apertouamãodeSimyonov. —Obrigado,general. *** A saleta que tinham lhe reservado icava escondida num canto qualquer do Setor Francê s do Quinto Departamento. No cubı́culo sem janelas havia apenas uma mesa decré pita com uma bandeja organizadora també m caindo aos pedaços,naqualduaspastasgrossas haviam sido displicentemente jogadas.Simyonovacabaraliberando astaispastasparaqueelaodeixasse empaz.Ambastinhamumaorelhana capaazuldelistraspretasdiagonaise já estavam encardidas pelo manuseio. OalvoeraSimonDelon,48anos, primeiro-secretá rio do setor comercial da embaixada da França emMoscou.Deloneracasado,masa mulher permanecera em Paris e ele raramentevoltavaà Françaparasuas visitas conjugais. Na qualidade de solteiroemMoscou,foranotadopelo FSB assim que chegara ao paı́s. A princı́pio tinham designado apenas uma pessoa para vigiá -lo, mas apó s pouco tempo já havia uma equipe inteiraatrá sdele.Umgrupodedoze agentesoseguiaquandoelesaı́apara o trabalho e o acompanhava até o instante em que se deitava para dormir. Fotos transbordavam de um envelope localizado entre as pá ginas de um dos arquivos: Delon caminhando sozinho à beira do rio; sozinho vendo os patinadores no rinque Dynamo; sozinho num restaurante. Dominikapassouamãoporuma dasfotosamarfanhadasdaequipede vigilâ ncia. Eles haviam usado um espelho para registrar uma puta de pernas compridas alisando os genitais de Delon num barzinho de garotas de programa em Krymskiy ValUlitsa.Umaanotaçã odizia:“Alvo nervoso, constrangido, nã o quis (ou nã o pô de) contratar a garota.” Coitado, pensou Dominika,o lugar delenãoeraali. Uma escuta plantada numa tomada elé trica no apartamento do francê s havia produzido horas de gravaçã o:“2036:29,ruı́dosdepratos na pia da cozinha. 2212:34, mú sica tocandobaixo.2301:47,foidormir.” O telefone fora grampeado para monitorar as conversas semanais que Delon tinha com a mulher em Paris. Dominika leu as transcriçõ es emfrancê s:deumladodalinha,uma madameDelonimpacienteerı́spida; do outro, um Delon silencioso e humilhado. “Um casamento infeliz e assexuado com uma mulher impositiva”, algué m anotara na margemdatranscrição. Em dado momento o SVR havia tiradoocasodoFSBeotomadopara si, alegando que o alvo era estrangeiro e que, portanto, a jurisdiçã oeradeles.Asegundapasta começava com uma avaliaçã o operacional escrita de um modo abreviado e tosco, tipicamente sovié tico, do qual eles costumavam zombar na academia. “Potencial do alvo excelente para exploraçã o operacional. Nenhum vı́cio aparente. Sexualmente carente. Acesso a informaçõ es restritas bom. Avaliado como pacato e nã o agressivo. Suscetı́vel a chantagem devido ao casamento abastado.” E assim por diante. Dominika se recostou na cadeira,olhouparaaquelaspá ginase icou pensando no treinamento que recebera na academia. Estava claro que se tratava de um caso pequeno com um alvo pequeno e dividendos pequenos. Sim, o francê s era um homemsolitá rioevulnerá vel,masas informaçõ esà squaiseletinhaacesso naembaixadaeramdenı́velinferior. Seria possı́vel que o Quinto nã o tivesse nada melhor que aquele pé rapado? Simyonov estava aumentando a importâ ncia daquele caso,quantoaissonã ohaviadú vida. E ela? Tanta dedicaçã o naquela academia, tanto sofrimento naquela escola de putas... Paraquê? Apenas para ter que conviver agora com outrotipodeprostituta?Seriaesseo seufuturonoserviço? Ela desceu de elevador para a cafeteriadopré dio,pegouumamaçã efoisesentaraosolnoterraço,longe dosbancos,namuretaqueladeavaa cerca viva. Tirou os sapatos, fechou os olhos e icou ali, aproveitando o calordostijolosnasoladospés. — Posso sentar com você ? — disse algué m dali a pouco, assustando-a. Ao abrir os olhos, Dominika se deparou com o vulto impecá vel do general Korchnoi, do Departamento dasAméricas,paradoàsuafrente.Ele tinha o paletó abotoado de cima a baixoeospé sunidos,perfeitamente alinhados, como os de um maı̂tre de restaurante. A aura roxa icava mais escura sob o sol e adquiria uma textura quase discernı́vel. Dominika se empertigou no mesmo instante e seatrapalhouparacalçarossapatos. — Fique descalça, por favor — disse Korchoi, rindo. — Quem dera eu també m pudesse tirar os sapatos e encontrar um lago qualquer para poderrefrescá-los. Dominika riu també m, depois falou: —Porquenã otira?Ochã oestá umadelícia. Korchnoi itou aqueles olhos azuis, aqueles cabelos castanhos, aquele rosto sem nenhuma malı́cia. Que espé cie de o icial em inı́cio de carreira teria coragem de fazer semelhante sugestã o a um general? Quetipoderecé m-formadaseriatã o ousada? Mas entã o o chefe da diretoria do SVR, o homem responsá vel por todas as ofensivas de inteligê ncia no Hemisfé rio Norte, sentou-senamureta,tirouossapatos easmeiase icouali,aproveitandoo calordostijolosnasoladospés. *** —Comovaiotrabalho,cabo?— perguntou Korchnoi, olhando as árvoresdoterraço. — E minha primeira semana. Tenho uma mesa, uma bandeja de arquivos, e estou lendo o material sobreocaso. — O material sobre seu primeiro caso, suponho. Entã o, o queestá achando? — Interessante — retrucou Dominika, pensando no desleixo geral do material que havia recebido, nas conclusõ es dú bias, nas recomendaçõesequivocadas. — Você nã o parece muito entusiasmada — comentou Korchnoi. —Ah,nã o,estouentusiasmada, sim—respondeuDominika. —Mas...?—incentivouKorchoi, virando-seligeiramenteparaela. Suas sobrancelhas grossas projetavamsombrassobreasfaces. — Acho que preciso de um pouco mais de tempo pra me acostumar aos arquivos operacionais. — Como assim? — insistiu o general, mas com delicadeza, sem o menortraçodetruculência. Dominika sentiu-se à vontade paradizer: —Depoisqueliomaterial,nã o concordeicomaconclusã o.Nã ovejo comochegaramaela. — Do que exatamente você discorda? — Eles estã o monitorando um alvodenı́velinferior—falouela,sem entrarmuitoemdetalhes,atentaaos procedimentos de segurança. — E umhomemsolitá rio,vulnerá vel,mas nã o creio que justi ique todo esse esforço.Lá naacademia,voltaemeia algué mfalavasobreodesperdı́ciode recursosoperacionais,sobreosalvos nãolucrativos. — Houve um tempo em que as mulheres nã o tinham acesso à academia — comentou Korchnoi, testando-a. — Em que seria impensá vel um o icial jú nior colocar as mã os nos arquivos de uma operaçã o em andamento, quanto maiscomentararespeitodela. Ele apertou as pá lpebras contra osoldomeio-dia. — Desculpe, general — disse Dominika,comdelicadeza.Sabiaque o general nã o estava bravo. — Nã o tiveaintençã odecriticar,nemdeser impertinente. — Ela olhou para ele. Sentiaquepodiaseabrircomaquele homem. — Me perdoe. Eu só queria observar que o caso é fraco. Nã o entendocomoeleschegaramà quelas conclusõ es operacionais. Sei que ainda nã o tenho nenhuma experiê ncia, mas qualquer um pode verisso. Korchnoi virou-se para ela. Vendo que Dominika estava calmaeconfiante,eleriueretrucou: — Temos sempre que ler esses arquivos com olhos crı́ticos. E aquelesidiotasdaacademiatêmtoda a razã o: precisamos ser mais e icientes. Os velhos tempos já nã o existem mais. As vezes nos esquecemosdisso. — Eu nã o queria faltar ao respeito — a irmou Dominika. — Queroapenasfazerumbomtrabalho. — E está certa — disse Korchnoi,sorrindo.—Junteosfatos, organize os argumentos e levante a questão.Haveráquemnãogoste,mas nã o se deixe abater. Desejo-lhe boa sorte. — Ele pegou os sapatos e se levantou da mureta. — Ah, cabo... Como é mesmo o nome desse alvo? — Percebendo que ela hesitava em responder, emendou: — Só por curiosidade. Dominika logo percebeu que aquelenã oeraomomentodebancar a novata. Caso o general ainda nã o soubesseonomedofrancê s,poderia descobrirnumestalardededos. — Delon — respondeu ela, enfim.—Embaixadafrancesa. — Obrigado — respondeu Korchnoi, e se retirou, ainda com os sapatosnamão. *** Nã o que Dominika esperasse algo diferente, mas as di iculdades começaram logo nas primeiras reuniõ es de planejamento. Carregando as duas pastas de arquivo, ela entrou na sala de reuniõ eseseacomodouemtornode uma mesa descorada com mais trê s o iciais do Quinto Departamento, responsá veis por França, Benelux, Europa Meridional e Romê nia. Logo viu os tons de marrom e cinza que envolviam o trio e percebeu o nı́vel baixo da energia deles. Nã o havia nenhuma emoçã o naqueles homens. Nenhuma imaginaçã o, nenhuma paixão. Um enorme mapa da Eurá sia cobria por inteiro uma das paredes; diversos telefones se en ileiravam num aparador empoeirado no fundo dasala.Oshomenssecalaramassim que Dominika entrou. Os rumores sobre a beleza da nova formanda da Escola de Pardais já circulavam por todo o pré dio. Dominika os itou de volta,fazendoopossı́velparanã ose abalar com os semblantes carrancudos, os sorrisos que se insinuavam. Marrons e cinzas: cores sujasparamentessujas.Guimbasde cigarrotransbordavamdoscinzeiros baratos de alumı́nio no centro da mesa. — Alguma observaçã o preliminar?—perguntouSimyonovà cabeceiradamesa,tãoinexpressivoe desinteressadoquantonodiaemque Dominikaoconhecera. Ele olhou para os trê s homens na sala, um por um, e eles permaneceram calados. Em seguida sevirouparaDominika,desa iando-a afalar. Elarespiroufundo.Podiaouviro pró priocoraçã obatendonopeitoao dizer: — Com sua permissã o, coronel, eu gostaria de discutir o nı́vel de acessodonossoalvo. — Isso já foi devidamente avaliado — retrucou Simyonov. O tomdevozdavaaentenderquenã o era da alçada de Dominika preocupar-se com os meandros da operaçã o.—Eumalvoimportante.O que precisamos fazer agora é determinar a abordagem certa — emendou,olhandoparaoo icialaseu lado. — Receio que nã o seja bem assim—insistiuDominika. Todos se viraram para ela. Que diabo seria aquilo? Um motim? Por parte de uma recé m-formada? Um pardal? Os homens desviaram o olhar para Simyonov, curiosos para ver qual seria a reaçã o dele. A reuniã o prometia. O coronel se debruçou sobre a mesa e cruzou as mã os à sua frente. Irradiava um tom desbotado de amarelo. Nã o era homem de levar desaforoparacasa.Osolhosestavam injetados e aquosos, os cabelos grisalhosgrudadosàcabeça. — A camarada está aqui para colaborar naabordagem do francê s — disse. — Questõ es relativas a acesso, manuseio e produçã o sã o de responsabilidade exclusiva dos oficiaisdestedepartamento. Quando terminou de falar, inclinou-se ainda mais e encarou Dominika. Os homens se viraram para ela. Com certeza, davam o caso porencerrado. Dominika apertou as pastas de arquivo com irmeza, para nã o começaratremer. — Sinto muito contradizê -lo, camarada — retrucou, repetindo o anacronismo do chefe —, mas fui designadaparaparticipardestecaso como operadora, e como tal eu gostaria de ser incluı́da em todas as fasesdoprocesso. — Uma operadora, você disse? —perguntouSimyonov. — Isso mesmo — respondeu Dominika. —Quandovocêseformou? —Naúltimaturma. —Edepoisdissofez... Simyonov olhou para os companheirosdemesa,praticamente salivando. —Treinamentoespecializado. — Que tipo de treinamento especializado?—insistiuele,emvoz baixa. Dominika já havia se preparado paraessetipodesituaçã o.Simyonov sabia muito bem por onde ela passara.Estavatentandohumilhá-la. — Fiz o curso bá sico do Instituto Kon — respondeu Dominika,comoslábioscontraídos. Nã o se deixaria intimidar por aquele bando de vermes. Alé m do coronel, em seu ı́ntimo ela també m crucificavaotio. — Ah, sim, a Escola de Pardais —disseSimyonov.—Eéexatamente por isso que você está aqui. Para participardoardilquearmamospara nossoalvo,SimonDelon. Umdoshomenstentou,emvã o, abafarumrisinho. —Sintomuito, coronel, mas fui designadaaestedepartamentocomo membro integral da equipe — contestouDominika. — Sei — retrucou ele. — Por acasojáleuoarquivodeDelon? —Osdoisvolumes—informou Dominika. — Muito bem. E que observaçõ es preliminares você teria a fazer a respeito do caso e dos méritosdele? A fumaça dos cigarros ia subindo para o teto, pontuando o silê ncioquedominava o ambiente enquanto Dominika observava os rostos que aavaliavam.Por im,ela engoliuemsecoedisse: —Aquestã odonı́veldeacesso do alvo é discutı́vel. Na posiçã o de adido comercial de categoria intermediá ria, o acesso de Delon a informaçõescon idenciaisé limitado, oquenã ojusti icaumaoperaçã otã o delicadaquantoumachantagem. — E o que você entende de chantagens?—questionouSimyonov com todaa calma, quase se divertindo. — Considerando que acaboudesairdaacademia? — Delon simplesmente nã o compensa todo este esforço operacional—insistiuDominika. —Suponhoquealgunsanalistas da Linha R haverã o de discordar — retrucou Simyonov, começando a perder a paciê ncia. — Delon tem acesso aos dados comerciais nã o só daFrança,masdetodaaComunidade Europeia. Dados orçamentá rios, programas, estraté gias de investimento, polı́ticas de energia. Você jogaria no lixo todas essas informações? Dominika fez que nã o com a cabeçaeargumentou: — Mas sã o informaçõ es que poderı́amos conseguir direto de qualquer um dos nossos ativos de baixo escalã o nos ministé rios em Paris. Com certeza esse seria um caminho muito mais ló gico e que atenderia perfeitamente à s nossas necessidades. Simyonov, agora com uma expressã o de poucos amigos, se recostounacadeira. — Parece que você aprendeu muita coisa naquela academia. Está sugerindo, entã o, que o departamento nã o endosse a operaçã o?Queofrancê ssejadeixado pralá? — Estou dizendo apenas que o risco potencial de coagirmos um diplomata ocidental em Moscou nã o corresponde ao baixo potencial dele enquantofontedeinformações. — Volte pra sua sala, cabo Egorova, e leia todo o arquivo de novo — ordenou Simyonov. — Só volte aqui quando tiver algo construtivoaacrescentar. Todos encararam Dominika enquanto ela recolhia seus papé is e tomava a direçã o da porta com as costas eretas, os olhos focados na maçaneta. Começaram a rir antes mesmoqueelachegasseaocorredor. Na manhã seguinte, Dominika encontrouemsuamesaumenvelope branco de aspecto absolutamente comum. Abriu-o com cuidado e desdobrouafolhadepapelquehavia dentro.Escritacomumatintavioleta e uma caligra ia de traços clá ssicos haviaestaúnicafrase: Delon tem uma ilha. Siga sua intuição.K. No dia seguinte, Dominika voltouà saladereuniõ eseencontrou a mesa atulhada de fotogra ias e relató riosdevigilâ ncia.Oscinzeiros, comosempre,transbordavam.Elase acomodoueoshomensaignoraram: fumavam sem parar enquanto examinavam o per il de Delon com visı́veldesinteresse,umolhovoltado para o reló gio de parede, as auras descoradas. Analisavam os há bitos e padrõ es do diplomata francê s, pensandonoslugaresondepoderiam armar um contato. Entediado como sempre, Simyonov olhou para Dominikaedisse: — Entã o, cabo Egorova, alguma sugestã o para locais de contato? Quero dizer, caso tenha reconsiderado suas objeçõ es à operação. Dominika firmeza: respondeu com — Reli o arquivo, coronel, e aindaacreditoqueestehomemnã oé umalvoválido. Dessa vez os homens em torno damesanã osederamotrabalhode erguer a cabeça: continuaram imersos na leitura de seus papé is. Aquelavorobey nã o duraria muito temponoQuinto,talveznemmesmo noSVR. — Ainda insiste nisso? Interessante — retrucou Simyonov. —Entã odevemosabandonarocaso? Éessasuarecomendação? — Nã o foi o que eu disse — falou Dominika. — Acho, sim, que devemos continuar explorando o francê s, a vida solitá ria que ele leva. — Ela abriu uma das pastas que levara para a reuniã o. — Mas o alvo inal, o objetivo real de toda esta operaçã o, nã o deveria ser o pró prio Delon. —Quebobageméestaagora?— quissaberSimyonov. — Está tudo no arquivo. Só iz mais algumas pesquisas — falou Dominika. O coronel correu os olhos pelos homens sentados à mesa, depois voltou a encará -la e resmungou: — Este caso exaustivamentepesq... já foi — Descobri que Simon Delon tem uma ilha — interrompeu Dominika.—EumamulheremParis! Todosnósjásabemosdisso! —A ilhatrabalhanoMinisté rio deDefesadaFrança. — Bobagem! — disparou Simyonov. — A famı́lia inteira já foi rastreada. Arezidentura de Paris já vasculhoutodososregistroslocais. — Entã o deixaram isso passar. Ela tem 25 anos, é solteira e mora comamãe.OnomedelaéCécile. —Istoé umabsurdo—insistiu Simyonov. — Ela foi mencionada apenas uma vez nas transcriçõ es. Pesquisei osdiretó riosnabibliotecadaLinhaR — explicou Dominika, folheando os papé is à sua frente. — Cé cile Denise Delon está listada no registro-geral da Rue Saint-Dominique, isto é , o registro-geral do Ministé rio de Defesa. — Ela olhou para cada um doshomensqueaencaravam.—Isto sugere, pelo menos até onde pude determinar, que ela tem acesso aos boletins de defesa con idenciais que sã odistribuı́dosaogovernotodosos dias. Cé cile é uma das pessoas responsá veis pela custó dia dos documentos de planejamento das Forças Armadas francesas. Provavelmente cuida da distribuiçã o e do arquivamento de uma ampla variedade de documentos: orçamentos militares, dimensionamento de contingentes, avaliaçõesdeprontidão. — Até agora, sã o apenas conjeturas—retrucouSimyonov. — Nã o sabemos onde os franceses guardam seus segredos nucleares, mas eu nã o icaria surpresase... — Especulaçõ es desta natureza nã olevamalugaralgum—observou Simyonov. A neblina amarelada em torno do coronel começava a crescer e a escurecer. Dominika sabia que o homem estava frustrado, irritado, constrangido, e tinha consciê ncia de que sua petulâ ncia e insubordinaçã o bastariam para que ela fosse sumariamenteenxotadadoSVR. Seguiu-se um silê ncio sepulcral. Osantiquadosinstintossovié ticosde Simyonov encontravam-se agora em alertamá ximo;oladoburocratadele começou a fazer os cá lculos. De um segundo a outro, o coronel passou a pensar com a cabeça de um tı́pico funcioná riodaKGB:Essa tsarevnade sobrenome importante está querendo me fazer passar por negligente e burro. O que posso lucrar com o trabalho dela? Se essa maneken estiver certa, as recompensas podem ser enormes, mas os riscos também. UmaoperaçãocomalvonoMinistério de Defesa da França teria de ser aprovadapelotopodahierarquia. — Se isso for verdade,talvez haja mesmo um benefı́cio a mais — admitiueleacontragosto,mascomo sejá tivesseconsideradotudoaquilo muitotempoantes. Em seguida bateu as cinzas do cigarro. Dominika podia ler o que se passava no cé rebro escorregadio do chefe. — Concordo plenamente, coronel. Este é o real potencial de SimonDelon,oquedá sentidoatoda estaoperaçã o,oquejusti icaorisco derecrutarmosofrancês. Simyonov balançou a cabeça e falou: —A ilhaestá emParis,a2.500 quilômetrosdedistância. — Nã o é tã o longe assim — observou Dominika, e abriu um sorriso que desconcertou Simyonov. — Claro, vamos ter de elaborar um per il bem mais detalhado sobre a relaçãoentrepaiefilha. — Naturalmente — concordou Simyonov. Maisalgunsminutosdaquiloea garota assumiria o controle integral do Quinto Departamento. No entanto... ela que izesse todo o trabalho preparató rio que lhe desse na telha. Assim que a operaçã o deslanchasse, ele cuidaria para que elaacabassedepernasabertasnuma cama qualquer, sob a mira de uma câmera.Issodariaumjeitonela. — Muito bem, cabo Egorova, já que você descobriu esse detalhe tã o interessante, gostaria que continuasse trabalhando nisso até conseguirelaboraralgumaestraté gia decontatocomDelon. —Naverdade,coronel,já pensei em um plano para o primeiro contato.—Sei... Terminadaareuniã o,oso iciais afastaramascadeiraseapagaramos respectivos cigarros. Os boatos a respeito do novo pardal haviam se limitadoà belezadosolhosazuis,ao farto recheio do uniforme, mas ningué m dissera nada sobre os colhõ esdagarota.Elessaı́ramdasala deixando sobre a mesa toda a papelada para que a novata arrumasse. Dominika nã o se importou. Recolheu os documentos, empilhou-os sobre as pastas do arquivo de Delon e saiu també m, fechandoaportaatrásdesi. *** Nas imediaçõ es da Rua Arbat, maisprecisamentenonú mero12da Nikitsky Bulvar, icava um pequeno restaurante chamado Jean Jacques, um estabelecimento parecido com umbarfrancê s, um lugar barulhento em que a fumaça dos cigarros se misturava ao odor dos vinhos e dos cozidos. Toalhas alvı́ssimas sobre as mesas realçavam o xadrez preto e branco do piso de cerâ mica. Prateleiras com garrafas de vinho cobriamtodasasparedes.Bancosse en ileiravam diante de um balcã o de linhas curvas ecadeiras de madeira se apertavam em torno das mesas quase sempre cheias. Na hora do almoço, os moscovitas que estivessem desacompanhados eram obrigados a dividir a mesa com algumdesconhecido. Erameio-diadeumaterça-feira chuvosa. O restaurante estava ainda mais cheio que de costume. Sob o toldo da calçada e junto à porta, clientes se acumulavam à espera de um lugar. A confusã o era quase insuportá vel,eafumaçadoscigarros pairava no alto. Garçons circulavam entre as mesas abrindo garrafas, carregando bandejas. Apó s uma espera de quinze minutos, Simon Delon, da embaixada francesa em Moscou,foiconduzidoaumamesajá ocupadaporoutrocliente,umjovem que terminava tranquilamente seu cozido de carne. Limpando o molho dopratocomnacosdepã opreto,ele nem sequer ergueu o rosto quando Delonseacomodou. Apesar da confusã o e do barulho, o francê s gostava do lugar, queofazialembrarParis.Alé mdisso, graças ao há bito russo de compartilhar mesas durante o almoço, à s vezes ele dava a sorte de se sentar junto com uma universitá ria bonitinha ou com uma vendedora atraente. Algumas delas até sorriamparaele,equemosvisse de longe poderia pensar que formavamumcasal. Delon pediu uma taça de vinho enquanto examinava o cardá pio. O homem à sua frente pagou a conta, limpou a boca, vestiu o paletó que deixara no encosto da cadeira e se foi. Ao erguer o rosto, Delon avistou nomesmoinstanteabelamulherde cabelos escuros e olhos azuis que vinha em direçã o à sua mesa. Mal acreditou quando ela ocupou justamenteolugarquetinhaacabado de vagar. Ela estava com os cabelos presos no alto e usava um colar de pé rolas.Sobumacapadechuvaleve, vestiaumacamisadesedabege,uma saiamarromeumcinto inodecouro de crocodilo. Delon deu um longo gole no vinho e aproveitou a oportunidade para espiar o modo como a seda da camisa se movia sobreocorpodela. Assim que se sentou, ela pegou os ó culos de leitura na carteira de mã o de couro de crocodilo, equilibrou-os na ponta do nariz e começou a ler o cardá pio. Quando sentiuqueohomema itava,ergueu os olhos para ele. Envergonhado, Delon rapidamente desviou o olhar para o pró prio cardá pio, mas na espiadela seguinte ele notou os dedoselegantesdajovem,acurvado pescoço,oscílioscompridos. Dominika o lagrou mais uma vezedisseemrusso: —Izvinite,algumproblema? Delon fez que nã o e deu outro gole no vinho, ainda mais atrapalhado do que antes. Aparentava50epoucosanosetinha a cabeça grande demais para o pescoço inoeosombrosestreitose caı́dos. Usava os cabelos castanhos penteadosparaolado.Lembravaum rato, e os olhos muito escuros e pequenos, o nariz a ilado e o bigodinho ino por cima dos lá bios crispados contribuı́am para isso. Umapontadocolarinhoescapavada lapeladopaletó azul-escuroeonó da gravata, alé m de torto, era pequeno demais. Dominika precisou resistir ao impulso de endireitá -lo. Sabia a datadoaniversá riodele,amarcado analgé sico que ele guardava no armarinho do banheiro, a cor da colcha com que ele cobria sua cama tã o pouco visitada.Bem, ela pensou, com certeza ele parece um adido comercial. Percebeuqueelemalconseguia itá -la.Viutambé moesforçoqueele fazia para iniciar uma conversa. Delon respirou fundo e ela esperou. Sabiaqueaavaliaçã oque izeradele estava correta e que seu plano já estava em andamento. Quando ele en im deixou escapar algumas palavras,elassaı́ramnumsuavetom deazul,nã omuitodiferentedoazulcentá urea que ela vira em Anya na EscoladePardais. — Desculpe... — balbuciou ele. —Eque...eunã ofalorusso.Você fala inglê s? — Claro — respondeu Dominika. — Et français? — perguntou Delon. —Oui. — Otimo — gaguejou ele em francê s. — Nã o tive a intençã o de incomodá -la. E que... bem, achei que foi uma grande sorte você ter encontradoestelugarvago.Precisou esperarmuito? —Nemtanto—disseDominika, e correu os olhos à sua volta. — De qualquer modo, parece que o movimento já está bem mais tranquilo. —Quebomquevocê conseguiu sentar—foisó oqueelefoicapazde retrucar. Dominikaassentiucomacabeça e voltou à leitura do cardá pio. Sorte nã otinhanadaavercomofatodeela ter conseguido justo aquele lugar. Naquela tarde, todos os clientes no restauranteeramoficiaisdoSVR. Um segundo encontro supostamentecasualnoJeanJacques criou a oportunidade para ela se apresentarcomoNadiaaodiplomata. Dias depois, um esbarrã o na calçada diantedorestaurantefezcomqueele tivesse coragem su iciente para sugerir que almoçassem juntos. Depois disso os dois decidiram conhecer restaurantes diferentes. Delon era muito tı́mido e cortê s em excesso. Bebia com moderaçã o, falava pouco de si mesmo e disfarçadamente secava o suor da testaenquanto,perdidonospró prios pensamentos, observava Dominika colocaratrásdaorelhaumamechade cabelo. Conforme os encontros se sucediam,eleiabaixandoaguardana mesmamedidaemqueoazuldesua aura escurecia. Era isso que Dominikaqueria. Delon havia acreditado, sem pestanejar,queNadiaeraprofessora de lı́nguas na Liden & Denz, na Rua Gruzinsky.Decasopensado,nãodizia nada quando ela contava a respeito do marido distante, um geó logo que trabalhava nos con ins do Leste, em outra zona de fuso horá rio, e ingia desinteresse quando ela fazia mençã oaopequenoapartamentoem quemorava,comentandoqueoú nico pontofortedaquelecubı́culoeranã o ter de dividi-lo com ningué m. Delon icava em silê ncio, mas por dentro ardiaembrasa. Simyonov tinha pressa: queria que o homenzinho fosse seduzido o mais rá pido possı́vel, para ter controle total sobre ele. Dominika, por sua vez, resistia, inventando pretextos para ganhar tempo e beirandoasraiasdainsubordinaçã o. Sabiaqueo coronel pretendia usá -la comopardal,queelenã otinhaoutra estraté gia de recrutamento que nã o fosseumaarmadilhasexual,quenã o acreditava nem um pouco no potencial daquela operaçã o. Dominikadefendiacomveemê nciaa necessidadedeumprazomaiorpara que ela pudesse desenvolver uma relaçã o com seu alvo, o que era duplamenteimportanteemrazã odo potencial da ilha dele como uma informante de valor inestimá vel. O francê s teria de ser isgado com cautela, sem pressa. Simyonov precisava refrear a ira sempre que a gazelinha recé m-formada o procuravapararelatarseuprogresso esugerirnovospassos. AosolhosdeDominika,bastaria que ao longo das semanas seguintes ela continuasse o trabalho que já vinha fazendo. Ela e o francê s aos poucos passavam de meros conhecidos a amigos recentes, ele cadavezmaisà vontadeaoladodela, mais ı́ntimo també m, ainda que nã o desse nenhum sinal do desejo que sentia. Dominika lia a mente dele, procurava encorajá -lo, dava a entender que estava gostando cada vez mais dele. Delon mal acreditava naprópriasorte.Estavaloucoporela, mas Dominika sabia que ele era tı́mido demais para se declarar. Nã o haveria recrutamento nenhum caso elesesentisseludibriadoouinduzido a uma situaçã o de perigo. Ela só conseguiria recrutá -lo se tivesse por base uma relaçã o de amizade e desejo crescente: as coisas chegariam a um ponto, ela supunha, em que o francê s nã o teria mais forças para recusar nada do que lhe fossepedido. Aprincı́pioelesseencontravam apenas uma vez por semana, depois duas, entã o també m nos ins de semana,parapassearpelacidadeou visitar algum museu. Ambos eram naturalmente discretos, a inal, eram casados. Conversavam sobre a famı́lia dele, os pais, a infâ ncia feliz naBretanha.Dominikatinhaqueser cuidadosa. O francê s era uma tartaruga que nã o hesitaria em recolher a cabeça para dentro do cascoaomenorsinaldeameaça. Apó s algum tempo Delon se sentiu à vontade o su iciente para falar, ainda que com alguma hesitaçã o, sobre o casamento falido. Amulhererabemmaisvelhaqueele, alta e de traços aristocrá ticos, e gostava de dar as cartas. A famı́lia tinhadinheiro,muitodinheiro,eeles haviam casado pouco tempo depois do inı́cio do namoro. Delon contou que a mulher metera na cabeça que eleprecisavasubirnavida,afeitaque era a posiçõ es e tı́tulos, coisas da famı́lia dela. Ao perceber que se casara com um homem reservado e sem maiores ambiçõ es, desistira da relaçã o. Insistia em manter as aparê ncias, claro, mas nã o se importava com a distâ ncia imposta pela posiçã o que ele ocupava. A situaçã odelenacarreiradiplomá tica dependiadiretamentedela. Delontinhaadoraçã oporCé cile, a ú nica ilha do casal. Uma foto revelava que ela era uma garota de porte miú do, cabelos escuros e sorriso gracioso. Como o pai, era tímida, reservada e cautelosa. Coma crescente intimidade entre eles, Delonen imcontouaDominikaquea jovem trabalhava no Ministé rio de Defesa. Ele, claro, tinha o maior orgulho da incipiente carreira da ilha, mesmo sabendo que ela se devia à in luê ncia do sogro endinheirado. Falava com bom humor das esperanças que nutria paraCé cile:umbomcasamento,uma carreirasó lida,umavidaconfortá vel. Ofatodeterlhecontadosobrea ilha era um avanço importante no processoconduzidoporDominika. Certa tarde, durante um café , Dominika perguntou se ele nã o se preocupava com o futuro, se nã o temiaqueamulherodeixasse,quea ilha se envolvesse com o homem errado e passasse a levar uma vida melancó licacomoadele.Delonolhou para ela, o objeto de sua crescente afeiçã o, e pela primeira vez deve ter sentido o toque sedoso do SVR. Um sinal de perigo. Mas ele ignorou o alerta, distraı́do pelo azul daqueles olhos,peloscabelosquecaı́amparao lado, pelas listras da camiseta que ondulavam sobre os seios. No entanto, apesar de todo esse encantamento, nada acontecia para que a castidade daquela relaçã o chegasse ao im. Os encontros terminavam com despedidas constrangedoras, ambos corandoao trocarem apertos de mã o, a nã o ser porumaú nicavezemqueDominika arriscara um beijo rá pido e perfumadonorostodele,paragrande alegriadotímidofrancês. — O que você está esperando? — rugia Simyonov. — Nossa missã o é encurralarosujeito,nã oescrevera biografiadele. Numa dessas Dominikaretrucou: repreensõ es, —Nã oé horadesermosburros. — Sabia que estava cometendo uma falta grave de disciplina. — Deixe o francê scomigo.Cedooutardeelevai comer na minha mã o.Assim como a filha. Simyonov só faltava espumar. Umaneblinaamareladapulsavaaseu redor,oramaisforte,oramaispá lida. Dominika sabia que ele estava tramando algo, planejando algum bote. Apesar disso, continuava a enfrentá -lo com seus argumentos, por vezes chegando ao ponto de se interpor isicamente no caminho dele. Faltava pouco para que Delon fosse isgado,quantoaissonã ohavia a menor dú vida. O francê s queria espionarparaela,só nã osabiadisso ainda. Repetindo o que tinha ouvido dos veteranos aposentados que conheceranotreinamento,eladisse: — Fique tranquilo, camarada. Estabatatajáestáquaseassada. Ao falar isso, ela se sentiu uma veteranaaposentadatambém. — Nã o estou para brincadeiras — avisou Simyonov, de dedo em riste,eemendou:— Nã o perca mais tempo.Conclualogoestecaso.Minha paciênciaestáseesgotando. No entanto, ao mesmo tempo que se sentia na obrigaçã o de repreenderasubordinada,Simyonov podia perceber o requinte com que ela conduzia a operaçã o, as nuances que apontava e que ele mesmo jamais seria capaz de perceber sozinho. A moça tinha futuro, e isso nãoeranadabom. *** Dominikaen imconvidouDelon aseupretenso apartamento na zona norte de Moscou, pró ximo à estaçã o ferroviá ria Bielorrú ssia e nã o muito longedaescoladelı́nguasemqueela dizia trabalhar. Tratava-se de um quarto e sala em que tanto o quarto quanto a sala eram minú sculos, a cozinha era um diminuto anexo da sala e o banheiro, ou melhor, o lavató rio, se separava do resto do apartamentoporumarelescortina.O carpete era puı́do, e o papel de parede já estava desbotado havia muitotempoetinhabolhasportoda parte. Uma chaleira decré pita, velha demaisparaapitar,jazianofogã ode uma boca só . O lugar era pequeno e encardido,masemMoscouaindaera um luxo considerá vel o fato de nã o precisar dividi-lo com parentes ou colegasdetrabalho. Outra caracterı́stica do apartamento, que Delon nã o tinha comoconhecer,eraqueasparedes,o teto e os eletrodomé sticos estavam infestados de câ meras e microfones. Os dois apartamentos vizinhos, assim como o de baixo e o de cima, també m eram unidades controladas pelo SVR. A quantidade de energia elé trica consumida apenas por esse bloco de apartamentos era capaz, sozinha,defazervoarumaaeronave Tupolev Tu-95. As vezes, tarde da noite, era possı́vel ouvir o ronronar dosgeradoresnoporão. — Simon, preciso da sua ajuda — disse Dominika, abrindo a porta do apartamento. Com um buquê de loresazuisnamã oeumagarrafade vinho sob o braço, Delon icou imediatamente preocupado. Aquela era a terceira vez que ia ao apartamento de Nadia, e as visitas anteriores haviam se limitado a conversas,mú sicaevinho.Comuma nota de a liçã o na voz, Dominika explicou: — E que peguei um trabalho como inté rprete de francê s nafeiradecomé rciodaITFMnomê s quevem.Praganharumdinheirinho extra, sabe como é . Nem sei onde estava com a cabeça. Sou completamente ignorante nessas coisas de indú stria, energia, comé rcio... Nã o conheço o vocabulá rio nem em russo, quanto maisemfrancês! Delonsorriu,eelaviuemtorno dele uma aura azulada que irradiava con iança e afeto. Eles se acomodaram no sofazinho da sala. Delon sabia tudo a respeito da tal feira, era esse o seu trabalho. Do outro lado das paredes, pelo menos seis té cnicos do SVR observavam e gravavamacena. —Esó isso?—retrucouele.— Em um mê s posso lhe ensinar todas as palavras de que vai precisar. — Deu um tapinha na mã o dela e acrescentou:—Nãosepreocupe. Dominika se aproximou, tomou orostodeleentreasmã osedeu-lhe um beijo de agradecimento nos lá bios.Já haviacalculadoaduraçã oe a natureza desse beijo. No entanto, pormaisinfantileinó cuoquetivesse sido o gesto, essa foi a primeira vez que Delon sentiu os lá bios dela nos seus, o gosto do batom dela na própriaboca. — Nã o se preocupe — repetiu ele,aindaumtantoabalado. O azul das palavras agora tinha uma tonalidade mais uniforme e maisescura.Elehaviasedecidido. Dominika sempre demonstrara interesse pelo trabalho dele, pelos meandros da diplomacia, e Delon já seacostumaraadescreversuarotina, satisfeito com o fato de algué m se importar com ela. Agora ele poderia retribuir. Na noite seguinte, vindo direto da embaixada, chegou ao apartamento de Nadia com uma maleta em punho e tirou dela um relató rio de vinte pá ginas que ele mesmo preparara sobre as oportunidades de investimento na Rú ssia. Eles leram juntos todo o conteú do. As pá ginas estavam carimbadas com um acintoso Confidentiel. Mais encontros, mais documentos.Quandonã opodialevar os originais, ou uma có pia deles, Delon aparecia com fotos razoavelmente legı́veis que tirava comocelular.Elestrabalhavamcom os dicioná rios dele, em francê s, e os dela, em russo. Tal como seria esperado de uma professora de lı́nguas, Dominika aprendia o vocabulá rio té cnico com bastante rapidez,eelepercebia,comoorgulho de um tutor, que alé m das palavras ela també m aprendia com impressionante facilidade as questõ es mais amplas do comé rcio internacional e da energia. Delon decidiuqueensinariatudooqueela quisesse, que a treinaria, que faria dela uma especialista. Estava apaixonado. Para que Dominika pudesse estudarsozinhaemcasa,elepassoua deixar com ela as có pias dos documentos, o que para o SVR nã o era tã o importante em termos de espionagem,umavezqueascâ meras secretas eram poderosas o bastante para captar cada vı́rgula de toda aquela papelada. O que realmente importava era o fato de que o diplomataquebraratodasasnormas de segurança da embaixada à qual deviafidelidadetotal.Dominikasabia que o tinha nas mã os. Para Delon, a icçã o do “estudo de vocabulá rio” resvalara para outra icçã o, a de “treinar Nadia”, e esta se transformara numa devoçã o cega à sua nova discı́pula. Ele agora faria tudo o que ela pedisse, e essa motivaçã oerabemmaisfortedoque qualquer salá rio de informante que porventura lhe oferecessem, mais convincente do que qualquer chantagem sexual. Se ele sabia que estava lidando com a inteligê ncia russa,nãodavaomenorsinaldisso. Acompanhando de perto o progresso da operaçã o, Simyonov convocou mais uma reuniã o e, aos berros, exigiu que Dominika fosse mais rá pida, que levasse logo o homenzinhoparaacama. — Por quevocêsnã ovã oparaa cama com ele? — berrou ela em resposta a Simyonov e os homens à suavolta.—Qualdevocê squerdaro rabopraele? Silêncioabsoluto. Dominika tentou se acalmar e disse: — Olhem, o pró ximo passo é muito delicado. — Primeiro ela precisavapersuadirDelonaprocurar a ilha,edepois,commuitotato,fazê lo convencer a garota a fornecer os segredos de defesa do Estado francê s. Seria como se um titereiro controlasse um boneco que, por sua vez,controlasseumsegundoboneco. Assim que Cé cile desse o primeiro passo, bastaria que Delon assegurasse a participaçã o contı́nua dela. — Assim que os documentos franceses começarem a luir, a operaçãoestaráencerrada. Simyonov ouviu tudo isso com umacaradepoucosamigos,nemum pouco convencido. O plano era complicado demais, e aquela diletantka era uma insubordinada. Masresolveuesperarumpouco,eviu que estava certo ao encontrar o general Korchnoi e ter com ele mais umadesuasconversasdecorredor.O espiã o veterano concordava plenamente que era preciso acelerar o recrutamento e demonstrou compaixã o para com o coronel ao saber dos desaforos da petulante Dominika. — Ah, esses novatos... — comentou. — Entã o, me conte mais sobreessamoça. *** Ironicamente, foi o vagaroso Delon quem resolveu acelerar as coisas. Certa noite, sentado ao lado de Dominika no sofá da sala, examinando mais um documento de nivelmé diodecon idencialidade,ele cedeuaumimpulsoetomouasmã os delaentreassuas,depoisseinclinou para dar-lhe um beijo afetuoso. Talveztivesse icadomaissegurode sicomaintimidadedosencontrosde estudo, ou talvez mais fatalista, já intuindo que estava, aos poucos, sendo tragado pelo ralo da espionagem. A despeito do que o tivesse despertado, Dominika retribuiu o beijo com o mesmo carinho,acabeçafervilhandocomos cá lculos que precisavam ser feitos. Tratava-sedeummomentodelicado da operaçã o. Ir para a cama com ele agora, antes que a ilha tivesse sido cooptada,poderiacomprometertoda a transiçã o. Por outro lado, poderia fortaleceraindamaisocontroledela sobre ele. Dominika pensou nos barrigudos suarentos que estariam assistindo a tudo do outro lado da parede, con inados num cubı́culo quente. Comosepercebesseaindecisã o dela, Delon abrandou o beijo e abriu os olhos, ameaçando recuar no momento mais imprová vel. No entanto, o halo em torno de sua cabeça parecia arder em chamas. Ao ver isso, Dominika decidiu que precisava avançar, que eles tinham que se tornar amantes. Ela o conduziria ao longo do caminho, ajudando-oaseduzi-la. Dominikaaindatevetempopara umpouquinhoderemorso.Ofrancê s era um sujeito tã o doce, tã o con iá vel... Bem diferente do asquerosoUstinov.Masagoraelaera um pardal a serviço da pá tria, treinada nas artes da seduçã o. Algumas das quais, aliá s, pipocavam deformaautomáticaemsuacabeça. Ela levou a mã o à nuca dele e tratou de reacender o beijo (no 13: Sinalize com bastante clareza a disponibilidade sexual). Em seguida, começou a ofegar ruidosamente (no 4:Demonstrepaixãoparaestimulara paixãodooutro).Delonseafastouea itoucomosolhosarregalados.Elao itoudevolta,acariciou-lheorostoe conduziuamã odeleparaumdeseus seios. Vendo que o francê s icou sem açã o,começouaesfregaramã odele emsuapelecomsensualidade(no55: Demonstre desejo para alimentar a excitaçã o fı́sica). Dominika estremeceu. Delon ainda a encarava, estático. —Nadia...—sussurrouele. Agora com os olhos fechados, Dominika roçou o rosto no dele, aproximou a boca de sua orelha (no 23: Encorajamentos verbais são estimuladoresdodesejo)esussurrou: —Simon,baise-moi...Mebeije. No instante seguinte eles se levantaram do sofá e saı́ram tropeçando na direçã o do quartinho escuro (que na verdade estava mais iluminadoqueumestá diodefutebol, mas por raios infravermelhos invisı́veis).Dominikatirouasaiaea blusa, mas manteve o sutiã cavado. (no 27: A seminudez pode ser tão excitante quanto a nudez total. ) Começou a acariciar as pró prias coxas (no 49: Autoestimule-se para produzir feromônios) enquanto o atrapalhado francê s dava saltinhos ridículosparaselivrardascalças. Delon era como um passarinho na cama: leve, penugento, e parecia lutuar ao se colocar em cima dela e posicionaracabeçaentreseusseios. Dominikamalsentiaapresençadele ali,masarqueavaascostaseestirava as pernas (no 49: Gerar tensão dinâmica nas extremidades para apressar as reações nervosas) como se estivesse em ê xtase. Por um instante, olhou para o obturador escondido na lâ mpada do teto, mas viu que Delon erguia a cabeça de entreseusseiosparaencará -la,entã o baixou os olhos para os dele e o viu exalarumsuspiroantesdecomeçara seremexercommaisvigoremcima dela. Mais uma vez ela fechou os olhos (no 46: Bloqueie as distrações que possam atrapalhar o desempenho)epassouamurmuraro nome do francê s até sentir um tremorpercorrerocorpodele.Nesse momento,ajudou-oachegaraoá pice (no 9: Exercite o músculo pubococcígeo). —Nadia,jet’aime...Euteamo— balbuciouDelonaofimdetudo. — Lyubov’ moya. Meu amor — devolveuela,correndoosdedospelo pescoçodele. Nesse instante, a lâ mpada do teto se acendeu (uma lâ mpada pintada de laranja para favorecer o contrastedascâ merasdigitais)etrê s homens de terno irromperam no quarto,osolhosbrilhandofeitoosde um porco à cata de trufas numa loresta.Elesvinhamacompanhando a cena num dos apartamentos vizinhoseestavamsuadosefedidos. Dominika se ergueu na cama, abraçou o apavorado Delon como se ele fosse sua boneca predileta e berrouemrussoparaqueoshomens saı́ssemdali.Sabiaexatamenteoque estava acontecendo: Simyonov mandaraà sfavasapropostadelade uma abordagem mais sutil. Ele nã o era capaz de esperar, precisava agir de acordo com seu manual tosco. Tratava-se, claro, de uma represá lia contra ela. Aquele era o castigo por seus inú meros atrevimentos nas reuniõ es, pelas interrupçõ es e pelos comentá rios inconsequentes. Lembrava-se de ter tentado falar a linguagem da velha guarda (“Esta batatajá está quaseassada”),eagora essa mesma velha guarda estava lhe mostrando quem realmente comandavaaquelebarco. Os homens arrancaram Delon dos braços dela e o arrastaram de volta para a sala ainda nu. Em seguida, empurraram-no para o sofá ejogaramemcimadeleascalçasque haviam recolhido do quarto. O francê s os itava sem entender. Dominika ainda gritava na cama enquanto se enrolava num lençol antes de se levantar. Quase cega de fú ria, tinha a impressã o de que seu cé rebro explodiria. Estava determinada a expulsar os trê s brutamontes do apartamento e reassumirocontroledasituação. Antes que ela pudesse icar de pé , no entanto, um deles a agarrou pelospulsoseapuxouparaasala.Ao ver isso, Delon ameaçou socorrê -la, mas logo foi imobilizado no sofá . O homem que segurava Dominika a virou para si e desferiu-lhe um tapa norosto,dizendo: —Suaputa!Vagabunda! Emseguidaajogounochão. Poderia tratar-se de uma encenaçã o, mas ainda assim Dominika encarou o desgraçado que axingara,calculouadistâ nciaaté os olhosdeleeficoudepé,deixandocair o lençol. Todos se viraram atô nitos paraela,paraocorponu.Noinstante seguinteela intouumchute,esperou o homem inclinar o tronco para se proteger e imediatamente avançou contra ele, cravando as unhas do polegaredoindicadoremseunariz. Usandoamesmaté cnicacomumnas câ maras de tortura da NKVD na dé cadade1930,elapuxouomaldito pelo nariz e bateu a cabeça dele contra a quina da mesinha atulhada de documentos comerciais da embaixada francesa. O mó vel emborcou com o peso, os papé is voaram por toda parte e o homem desabou no chã o, onde permaneceu imó vel.Nosofá ,Delonmalacreditava noqueacabaradever. Tudo isso nã o consumira mais que dez segundos. Um segundo homem do SVR agarrou Dominika, saiu com ela para o corredor e a empurrouparaapartamentovizinho. — Tire as mã os de mim! — rugiu ela, enquanto o brutamontes batiaaportacomelaládentro. No interior do apartamento, alguémdisse: — Belo trabalho, cabo Egorova. Um ó timo inal para uma operaçã o muitoperspicaz. Ao virar o rosto, Dominika se deparou com Simyonov acomodado numsofá diantededoismonitores.O primeiromostravaoapartamentoao lado: um dos homens acudia o companheiro desfalecido no chã o enquantoooutropostava-seà frente de Delon, que tinha o rosto erguido como se rezando, as calças ainda na mã o. A segunda tela reprisava as imagens de Dominika com o francê s nacama.Semsom,osexoentreeles pareciaumatoclı́nico,encenado.Ela ignorouascenas. Embrulhou-se novamente no lençolegritou: — Zhopa! Seu idiota! Você arruinoutudo! Simyonov nã o respondeu. Seus olhos se alternavam entre um monitoreoutro. — Ele teria recrutado a pró pria filhapormim!—emendouDominika. Sem desviar o olhar das telas, Simyonovresmungou: —Eleaindavaifazerisso. Pegou o controle remoto e pressionou o botã o que fazia o som das imagens ao vivo voltar. Os dois homensdoSVRagoraberravamcom Delon, que permanecia imó vel no sofá . Dominika deu um passo na direçã o do coronel, cogitando seriamente furar o olho dele com o polegar. — Delon nã o vai ceder a chantagem nenhuma! Nã o tem coragem pra isso! Se você s estã o achandoque... Simyonov virou-se para ela enquantoacendiaumcigarro.Comos olhosfaiscando,ameaçou: — Nesse caso o fracasso da operaçã o será devidamente registrado noseu currı́culo. Pelo visto, você ainda nã o entendeu uma coisa, cabo Egorova. Nã o é você quem dá as ordens por aqui. O SVR nãoéoquintaldasuacasa. — Em seguida se voltou para o segundo monitor, no qual Dominika enlaçava as pernas na cintura de Delon. — Qual é a necessidade de reprisar essas cenas, camarada? — questionouela. Emvezderesponderà pergunta, ocoronelsoprouafumaçadocigarro paraoalto,depoisfalou: —LevandoemcontaqueSerov lhe deu um tapa, nã o vou abrir um processo disciplinar pelo que você fez com ele. — Apontou para o primeiro monitor, que mostrava o grandalhã o ainda caı́do no chã o, e emendou: — Você tem o sangue quente,vorobey. Poderá usar isso a seufavornestasuanovaprofissão.— Sorriu e apontou com o queixo na direçã o do cô modo adjacente, dizendo:—Temumamudaderoupa aı́. Pode se vestir. A menos que pre ira passar o resto da noite nua, claro. Dominika foi para o quartinho, en iou-se no vestido reto que encontrou ali, colocou o cinto de plá sticoecalçouossapatospretosde cadarços: o visual socialmente aprovado durante os ú ltimos cinquenta anos para a mulher soviéticamoderna. *** Dominika nunca mais voltou a ver Delon. O inal da histó ria viria à tona em partes. Um informante do SVR, que ocupava um posto burocrá tico na embaixada francesa, relatou que na manhã seguinte o homenzinho pediu uma audiê ncia com o embaixador e confessou ter tido “um relacionamento ı́ntimo e clandestino com uma moça russa”. Tiveramuitacoragemaodescrevera quantidade e a natureza dos documentos que havia compartilhado, copiado ou comprometidodeumamaneiraoude outra. O chefe da Direçã o Geral da Segurança Exterior em Moscou relatouocasoà matrizemParis,bem comoà Divisã odeContrainteligê ncia da Direçã o de Segurança Territorial. Nã o houve escâ ndalo. Uma mulher bonita,quoiPaire?Oquequalquerum faria? Semdú vidaosalemã esoteriam consideradoculpadoeocondenadoa trê sanosdedetençã o.Osamericanos teriam taxado o infeliz como mais uma vı́tima da espionagem sexual e encerrado o caso com uma pena de oito anos. Na Rú ssia, opredatel’, o traidor, teria sido liquidado. Os franceses, por sua vez, haviam registrado um simples caso de négligence. Delon logo foi mandado de volta a seu paı́s de origem e submetido a uma “quarentena” de dezoitomesesemumcargoquenã o lhe oferecia acesso a documentos con idenciais. Agora estava de novo emParis,maisumavezjuntoda ilha. No im das contas seu castigo se resumira a ter de voltar a morar na mansã o que a mulher tinha no 16o distrito, apenas com as lembranças, nas madrugadas de insô nia, de um apartamentinho encardido em Moscou e um par de olhos azul- cobalto. COZIDO DE CARNE DO JEAN JACQUES Polvilhar farinha temperada sobre cubinhos de carne e selá-los no óleo bem quente. Reservar. Refogar batatas, tomates e cenouras com pedacinhos de bacon, cebola picada e tomilho. Assim que os legumes verem amolecido, adicionar a carne, cobrir com caldo e deixar ferver até que esteja bem macia. Misturar com mostarda Dijon e um pouco de creme de leite. Reaquecer e servir. CAPÍTULO 10 VANYA EGOROV PRATICAMENTE ACENDIA um cigarronooutro,osGitanesfranceses queorezidentdeParislheenviavade temposemtempospormensageiros. Estavacomavistacansadaetinhaa sensaçã o de que havia uma bola de ferroesmagando-lheopeito.Sobreo risque-rabisque de couro vermelho jazia mais um relató rio de vigilâ ncia doFSB,oterceiroemtrê smeses.Um diplomataamericano(supostamente um agente da CIA) fora seguido duranteumaoperaçã odedozehoras duas noites antes. Vá rias equipes haviamsidodestacadasparavigiaro jovem ianque, e o contingente aumentara ainda mais com o anoitecer,quando icouevidenteque ele estava mesmo a caminho de um encontro secreto com algum informante.Asequipeshaviamficado entusiasmadasaosedaremcontade que o americano nã o detectara a presençadelas,oqueeramuitoraro. O nú mero inal de vigilantes chegaraa120,talcomoinformavao relató rio, com orgulho. As nevascas do dia haviam impedido a utilizaçã o de helicó pteros, mas as unidades terrestres avançaram aos poucos, revezando-se na posiçã o de “olho”. Ativos pedestres tinham sido distribuı́dos em todos os itinerá rios mais prová veis do americano, amparadosporequipesmotorizadas, e pelo menos um ativo está tico fora plantado em sessenta das 180 estaçõ es de metrô de Moscou na hipó tese de que ele mudasse de caminho de repente. Egorov lia com impaciê ncia as ú ltimas pá ginas do relató rio.Esses dolboyobido FSB..., pensou.Idiotas. O sol já se punha quando o americano en im entrou no parque Sokolniki, na zona norte da cidade. Alheioaofrioeàescuridãocrescente, eleatravessouoparquedediversõ es decré pito, passou pela roda-gigante enferrujadaeseguiupelolabirintode á rvoresnuasaté parardiantedeuma fonte ornamental seca. Empoleirouse na borda de cimento e icou ali, contemplandooscanteirosmortosà sua frente. As transmissõ es criptografadas de rá dio se intensi icaram. Con irmado: ele realmentesaı́raparaumencontro.Os agentesforaminstruı́dosamanteros ó culos de visã o noturna voltados para o ianque, mas permanecendo atentos a todos os pedestres.Todos. Entre eles haveria algum mais furtivo, nervoso, seguindo para a fonte. Ao ler o relató rio, Egorov podia imaginar os homens do FSB se esgueirando de uma á rvore a outra com os ó culos de visã o noturna, um bando de marcianos verdes e de olhos esbugalhados. Um cã o farejador fora levado para localizar qualquer material enterrado. O pastor-alemã oerausadoparaseguir americanos,treinadoparaidenti icar oscheirosespecı́ icos do sabonete e do desodorante que eles costumavamusar. Entã o eles esperaram. E o americano esperou. Muito alé m dos protocolares quatro minutos. Dez, vinte, trinta minutos se passaram e nada. O parque estava vazio. O cachorro refez o caminho do americano,masnã oencontrounada: nenhum tesouro enterrado, nenhum marcador incado no chã o, nenhum dispositivo.Oscarrosequipadoscom rá dio circulavam lentamente em torno do parque, anotando as placas decarro,maisdecem,paraqueelas fosseminvestigadas:nada.Por imo ianque deixou o lugar e, mais uma vez contrariando a tradiçã o da espionagem,foidiretoparacasa,sem sedaraotrabalhodetentardespistar umapossı́veleprová veloperaçã ode vigilâ ncia. Os rá dios do FSB se calaram. Egorov arremessou o relató rio na bandeja de documentos com visı́vel desdé m. O FSB se autoparabenizava por ter realizado uma operaçã o perfeita, já que o alvo nem sequer percebera sua presença. Grandemerda,pensouovice-diretor. Muito barulho por absolutamente nada. *** Vanya Egorov nã o sabia, mas o zum-zum em torno da operaçã o de vigilâ ncia dedicada ao americano havia sido tamanho que Marble, em vezdeseguirparaoparqueSokolniki para tentar um encontro com o americano, decidira esperar e observar, posicionado em um ponto deô nibuscobertonaMalenkovskaya Ulitsa,avá riasquadrasdaentradado parque. Seu extraordiná rio faro nas ruas foi con irmado quando trê s carros de vigilâ ncia estacionaram a uns100metrosdeondeeleestava,os homens desceram e começaram a fumareapassargarrafasdemã oem mã o, tentando despistar quem quer que os estivesse observando. Aquele era o erro clá ssico de uma operaçã o de vigilâ ncia em campo: icar batendo papo em rodinhas e zanzar deumladoparaoutrofeitoumbando debaratastontas. Bem,maisumadiamentonomeu projeto de aposentadoria, pensou Marble. Quantos outros ainda estariam por vir? Enquanto se afastava, ele pensou no que escreveria em seu relató rio naquela noiteeem quã o desesperado estava para achar um motivo que o izesse sair do paı́s. Ele precisava se encontrarcomNathanieloutravez. Na manhã seguinte, Zyuganov, chefe da Linha KR, enviou um memorando con idencial para o general Egorov, um texto cuidadosamente redigido para demonstrar que ele sabia de tudo e queestavanocomandodasituação. Seguem algumas explicações possíveis para as a vidades do diplomata americano: 1. Pode ter sido um exercício para atrair, e depois quan ficar, a capacidade de vigilância do FSB, incluindo a coleta de sinais de inteligência nas frequências criptografadas do serviço; 2. O americano detectou a operação e abortou o encontro marcado, seguindo para o parque apenas para confundir os vigilantes; 3. O informante simplesmente não compareceu, por razões desconhecidas ao americano. Essa inves da por parte dos americanos nos pareceu mal planejada e executada, vindo a confirmar a avaliação que desde o início fizemos do chefe de estação da CIA, Gordon Gondorf, como um oficial mal preparado para lidar com as complexidades de sua posição, fruto infeliz de uma an ga relação de apadrinhamento. Quem se importa com esse imbecil?,pensouEgorov.Comosenão bastassem os imbecis vaidosos, os incompetentes de costas quentes que temos aqui mesmo, na nossa própria casa. Vanya sabia, ou melhor, estava absolutamente convencido, de que maisumavezeleshaviammetidoos pé spelasmã os,dequeoinformante aindaandavaà soltaporaı́,traindoa Rú ssia, colocando em risco o futuro polı́tico que ele, Vanya, tanto vinha lutandoparaconstruir. Foi entã o que um telefonema o surpreendeu no meio da tarde, uma ligaçã o do Kremlin, a voz suave do presidenteronronandodooutrolado da linha criptografada. Putin estava ciente da operaçã o de vigilâ ncia realizada na vé spera, a ponto de repetir, praticamente palavra por palavra, as diversas hipó teses sobre o que acontecera. Vanya logo se deu conta de que o memorando de Zyuganov havia encontrado seu caminho para o gabinete presidencial. — Uma operaçã o de contraespionagem bem-sucedida seria muito valorizada neste momento—sussurrouopresidente. —Emtemposdecrisenapá triamã e, temos menos tempo para lidar com estashozjajki, essas donas de casa, que icam batendo panelas em protesto por aı́. — Seguiu-se um demorado silê ncio, mas Vanya sabia que a ligaçã o ainda nã o havia terminado. Conhecia muito bem as cadê ncias da fala de Putin. — Nã o podemos contar com o luxo do tempo, general — concluiu en im, e sóentãodesligou. Vanya icou olhando para o telefone por alguns segundos antes de colocá -lo no gancho.Sookin syn. Filho da puta. Pressionou um dos botõesdointerfoneedisse: — Ligue imediatamente. para Zyuganov O informante ainda estava à solta, mas se as reuniõ es clandestinasemMoscounãoestavam funcionando,omaisprová veleraque os novos encontros passassem a acontecerforadopaı́s.ENashestava logo ali do lado, na Finlâ ndia. Nathaniel Nash. Vanya pressionou o botã o do interfone mais uma vez e ordenou: — Egorova, minha sobrinha. Agora. Em vinte minutos Dominika já se encontrava à sua frente. Ao lado dela estava Zyuganov, chefe da contrainteligê ncia, as duas mã os plantadas nos braços da cadeira, os pé s mal tocando o chã o. Como sempre,obaixotehaviaabotoadode cima a baixo o paletó do terno vagabundo, e també m como sempre tinha no rosto aquele sorrisinho altivoquetantoirritavaVanya.Alexei Zyuganov,oanãozinhopeçonhento. Dominika, por sua vez, estava linda no terninho azul-marinho do uniforme,oscabelospresosnocoque regulamentar. Ao olhar de relance para Zyuganov, ela viu triâ ngulos negrosatrá sdacabeçadele.Nã oera tã o nova assim no serviço que nã o tivesse ouvido falar das façanhas daqueledemô nionascelasdetortura da KGB na é poca dos estertores da UniãoSoviética. As histó rias eram sussurradas pelos corredores, narrativas inacreditá veis, repetidas apenas entre amigos de con iança no SVR. NosvelhostemposZyuganovforaum dosdoisprincipaiscarrascosdaKGB, jovem demais mas perfeitamente talhado para o serviço, uma vez que era imune aos horrores envolvidos nele. Dizia-se que o anã o tinha verdadeiro fascı́nio pelo que fazia, que salivava de prazer ao pendurar um prisioneiro numa viga qualquer, ao torturar algué m numa mesa ou numa superfı́cie inclinada com a cabeça apontada para o esgoto. Comentava-se à é poca que ele manipulava seus prisioneiros como sefossembonecosdepano,virandoos de um lado para outro, reposicionando pernas e braços enquanto falava com eles. Dominika podia imaginar as roupas ensanguentadas, os hematomas por todaparte,os... —Parecequevocê eeuestamos semprenosencontrandoporaqui— disse Vanya, bem-humorado. — E muito bom revê -la, minha sobrinha. Dominika afastou da cabeça as imagens grotescas. Ao ver o halo amarelado em torno do tio, achou que a reuniã o poderia ser interessante. — Obrigada — respondeucalmamente. Esepreparouparaoqueestava porvir. —Fiqueisatisfeitoaosaberque o general Korchnoi lhe ofereceu um lugarnoDepartamentodasAméricas. Ora,desembuchedeumavez, ela pensou. — Quando o coronel Simyonov me dispensou do Quinto, iquei sem terparaondeir.Sougrataaogeneral pelaoportunidadequeestámedando —retrucouDominika. — Korchnoi falou que icou muito impressionado com seu trabalhocomofrancês. — Embora a operaçã o tenha sido um fracasso... — completou Dominika. —Todostemosnossossucessos efracassos—contemporizouVanya, banhado em amarelo, a simpatia em pessoa. Dominika levantou um pouco o tomdevoz: — A operaçã o contra Delon ainda estaria em andamento se o Quinto nã o tivesse agido tã o prematuramente. Poderı́amos ter conseguido acesso ao Ministé rio de DefesadaFrança. — Eu li o arquivo — interveio Zyuganov. — Havia mesmo essa possibilidade. Por que nã o foi explorada? Dominika precisou fazer algum esforço para nã o arregalar os olhos ao ver as pará bolas negras que se formavam atrá s dos ombros de Zyuganov, feito as asas de um m o rc e go .Shaitan, ela pensou. O demônio. — Isso o senhor vai ter de perguntar ao chefe do Quinto Departamento—respondeuela,sem itaroanã odiretamente,semquerer ver o que habitava o interior daquelesolhosdiabólicos. — Talvez eu pergunte — retrucouZyuganov. — Já chega. Recriminaçõ es nã o levam a lugar algum — falou Vanya. — Cabo Egorova, nã o cabe a você questionar as decisõ es dos seus superiores—emendousuavemente. Semtirarosolhosdotio,ecom a mesma delicadeza dele, Dominika disse: —Eporissoqueoserviçotem tanta di iculdade para continuar existindo. Graças a atitudes como essa, a o iciais como Simyonov, a Rú ssia nã o pode competir com os gigantes. Agentes como ele sã o sanguessugasgrudadasnabarrigada pá tria, sugando todo o sangue dela, impossíveisdeserretiradas. Osilê ncioseabateusobreasala enquanto Dominika e Vanya se encaravameZyuganovolhavaparaa jovem com as mã os imó veis na cadeira. —Ah,minhasobrinha,oqueeu vou fazer com você ? — disse Vanya a inal, icandodepé esedirigindoà s janelaspanorâ micas.—Seucurrı́culo é muito bom, seria uma pena que você colocassesuacarreiraemrisco. Omodocomoacaboudefalarcomigo bastaria para que fosse afastada do serviço.Então,gostariadeprosseguir comasreclamaçõ es? — Dominika já podiapreveroqueelediriaaseguir. Nãoseenganou.—Pensenasuamãe, minha querida. Ela precisa da sua ajuda. — Estou abusando do nosso parentesco, eu sei — admitiu ela. — Mas nosso trabalho é importante demais,nã opodemos deixar que ele continue sendo minado dessa maneira. Observando o tio diante das vidraças, Dominika teve certeza de duas coisas. Primeiro, ele nã o se importava com nada daquilo. Tinha em mente algum objetivo maior e precisava dela para alguma coisa, e só por isso ainda nã o a degolara. Segundo, Zyuganov sorvia cada palavra dela, irradiando seu calor comoumafornalhadosinfernos.Era desses que nã o icavam satisfeitos a menos que tivessem alguma presa para triturar. Dominika ainda nã o ousavaencará-lo. Olhando para fora, Vanya balançou a cabeça.Bem-vindo ao moderno SVR, pensou.Melhorias, reestruturações, relações públicas, agentes do sexo feminino, novatos criticandoveteranos. — Quer dizer entã o que você nã o aprova os velhos mé todos? — indagouàsobrinha. — Nã o gosto de ver uma operaçã o fracassar quando poderia ter sido bem-sucedida, só isso — rebateuela. — E acredita que está pronta praconduziraprópriaoperação? — Com o apoio e os conselhos deo iciaiscomoosenhoreogeneral Korchnoi... E do coronel Zyuganov també m, claro — respondeu Dominika, obrigando-se a incluir o diminutonecrófiloaseulado. Zyuganov virou-se para ela e assentiu. — Muitos diriam que você é jovem e inexperiente demais, mas veremos — falou Vanya. Dominika nã o deixou de reparar seu tom cordato, mas sabia que o bote nã o tardaria a vir. — Infelizmente você terá de abrir mã o do Departamento das Amé ricas caso aceite a missã o quetenhoemvistapravocê. — Qual é a missã o? — quis saberela. Daria um grito se ouvisse que teriadeseduzirmaisalguém. —Umaaçã oexterna—explicou Vanya. — Umarezidentura com trabalho operacional de verdade: uma missã o de recrutamento. — As lembrançasqueelemesmoguardava das açõ es externas eram muito vagas, mas Vanya falava como se tivessem sido as melhores de sua vida. —Umamissãonoexterior? Dominika nã o sabia o que pensar.NuncasaíradaRússia. — Na Escandiná via. Preciso de algué mnovoporlá ,umapessoacom a cabeça fresca, com os talentos que vocêtemdemonstradoatéagora. Meus talentos na cama, pensou Dominika.Vendooazedumenoolhar dela,Vanyalogotratoudeesclarecer: —Nã o,nã oé issoquevocê está pensando.Precisodevocê comouma operupolnomochenny, uma agente operacional. —Eissoqueeusemprequis— disse ela. — Fazer parte do serviço, trabalharpelaRússia. Zyuganov falou, e sua voz saiu oleosa, as palavras negras feito carvão: — Pois é exatamente isso que você fará . Trata-se de uma missã o delicada que demandará muita habilidade. Talvez a mais difı́cil de todas:neutralizarumagentedaCIA. *** De seu escritó rio, Maxim Vo l o n t o v, rezident do SVR na embaixada russa em Helsinque, viu Dominikaatravessarocorredorpara devolver as pastas pardas à sala de arquivo onde elas deviam pernoitar. Desde que chegara de Moscou, Dominikaretiravaessesdocumentos e os lia numa á rea reservada, em geral fazendo anotaçõ es num caderno. Ao im do dia todo o materialerarestituı́doaoarquivista, talcomopreconizavamasnormasda rezidentura. Alé m de Volontov, Dominika era a ú nica o icial com permissã o de acesso à quele arquivo em particular. Tratava-se de uma có pia de todo o material que o pessoaldoSVRemYasenevojuntara a respeito de Nathaniel Nash, o americanodaCIA. Aoveraspernasdebailarinada recé m-chegada, Volontov icou imaginando o corpo escultural por baixo daquela camisa de alfaiataria. Aos55anos,eraumhomemgordoe cheio de verrugas que cultivava, no topodacabeça,umvolumosotopete grisalho que devia usar desde a dé cada de 1950. Num dos molares Volontov tinha uma obturaçã o de ouro, visı́vel apenas quando ele sorria, ou seja, nunca. Seus ternos eram sempre escuros, largos demais e brilhantes em algumas partes. Enquanto os espiõ es atuais tinham acompanhado os sinais da modernidade, Volontov estacionara no passado no que se tratava de vestuário. Dominika observava com atençã ootomdaneblinaquecercava acabeçaovaldosujeito,olaranjada falsidadeedooportunismo,diferente do amarelo encardido dos moscovitas. Tratava-se de um macaco velho que sobrevivera a todas as di iculdades da KGB, um maria vai com as outras esperto o bastante para se adaptar aos novos tempos. Pois era esse mesmo instinto de sobrevivê ncia que lhe diziapara icarlongedasobrinhado primeiro vice-diretor do SVR, por mais que lhe custasse. Alé m disso, a gostosa tinha chegado a Helsinque com uma missã o especial, uma operaçã o bastante delicada. Apó s uma semana de preparaçã o, Dominika estava pronta para comparecer à recepçã o daquela noite, o primeiro compromisso diplomá tico que ela teria em sua incipiente carreira: a Festa Nacional da Espanha, na elegante embaixada espanhola, onde tentaria fazer o primeiro contato com o americano Nash. Volontov també m estaria presente, observando-a de longe. Seria interessante ver como ela se sairianarecepçã o.Eranissoqueele pensava quando de repente se lembrou dos deliciosos salgadinhos queosespanhóissempreserviam. Dominika havia sido alojada na parte antiga da cidade, num apartamento alugado à s pressas segundoasorientaçõ esrecebidasde Moscou, distante dos cubı́culos em queficavamosdemaisintegrantesda comunidade diplomá tica russa. Helsinque era, para ela, um paraı́so de ruas sempre limpas, de fachadas multicoloridas, de cornijas nas janelas e cortinas de renda por toda parte,inclusivenaslojas. Foi em seu confortá vel apartamentinho que Dominika se arrumou para a recepçã o dos espanhó is. Maquiou-se, vestiu-se e penteou os cabelos, sentindo o cabo da escova quente nas mã os, tã o quentequantoelaprópria,queestava pronta para a batalha. Barras de cor ondulavam à sua volta: vermelho, magenta, lilá s: paixã o, entusiasmo, desa io. Repassou mentalmente o que Volontov lhe instruı́ra a fazer comoamericano: na primeira noite, estabelecer contato; nas semanas seguintes, monitorar o alvo; em seguida, transformar os encontros em rotina, fortalecer os laços de amizade, estimular a con iança, descobrir padrõ es e há bitos. Fazê -lo falar. Ainda em Moscou, ela també m receberainstruçõesdeZyuganov: — Alguma pergunta, cabo? — disseraele,e,semesperararesposta, prosseguiu: — Espero que tenha entendido que nã o se trata de uma operaçã o de recrutamento, pelo menos nã o no sentido tradicional. Nosso principal objetivo nã o é a arregimentaçãodeuminformante.— Ele umedeceu os lá bios. Dominika nã o dizia nada, nem sequer piscava. — Nã o — prosseguiu Zyuganov. — Trata-se sobretudo de uma armadilha, uma arapuca. Precisamos apenas de uma indicaçã o, ativa ou passiva, de quando e como esse americanoseencontracomotraidor russo. Do resto, cuido eu. — Olhou para Dominika, inclinou a cabeça ligeiramente e falou: — Está entendendo? — Depois, num tom de voz mais amistoso, emendou: — Cabe avocê levá -lo a falar. Faça do jeitoqueacharmelhor. Ele a encarava. Dominika tinha certezadeque,dealgumaforma,ele sabia que ela conseguia ver cores. Seusolhospareciamdizer:Leia-mese for capaz. Ela agradeceu pelas instruçõ es e saiu da sala o mais rápidopossível. Nasheraumagentetreinadona CIA. Todo cuidado com ele seria pouco, até mesmo no primeiro contato. Mas a diferença era que a operaçã o agora eradela. Eraela quem estava no comando daquele barco. Dominika largou a escova, cravou as mã os nas bordas da penteadeira e se olhou no espelho, tentando imaginar como seria o americano.Perguntou-seoquefazer caso ele nã o gostasse dela. Haveria algum modo de se inserir nas atividadesdele?Aabordagemcorreta teria de ser determinada logo. Ela recordou suas té cnicas: identi icar, avaliar e manipular as vulnerabilidadesdoalvo.Emseguida, aproximando ainda mais o rosto do espelho, lembrou que Volontov estaria lá para observá -la. Mais que isso, todos os olhos em Moscou estariam voltados para o desempenho dela. Tudo bem. Ela mostrariadoqueeracapaz. Os americanos eram materialistas, vaidosos,nekulturny. Os instrutores da academia sempre frisavam que a CIA obtinha seus sucessos apenas com dinheiro e tecnologia, uma vez que era desprovida de alma. Dominika mostraria ao ianque o que era alma. O samerikanskiy també m eram moles,nã ogostavamdecon litonem de correr riscos. Dominika o faria con iar nela. A KGB havia dominado osamericanosduranteaGuerraFria de Krushchev, na dé cada de 1960. Pois agora era a vez dela. Dominika sentiu as mã os doerem, tamanha a força com que segurava a penteadeira. Vestiu o casaco e foi para a porta. O agente da CIA nem faziaideiadoqueoaguardava. *** Osalã opalacianodaembaixada espanhola resplandecia sob a luz de trê s gigantescos candelabros de cristal. Numa das fachadas, portas francesas davam para um jardim ornamental, mas estavam fechadas em razã o do frio daquele im de outono.Olugarseapinhavadegente, e uma centena de imagens passava diante de Dominika, que do alto de um degrau observava a multidã o: ternos, smokings, vestidos de gala, pescoços nus, penteadoselegantes, sussurros, risadas espalhafatosas, cinzas de cigarro nas lapelas, copos envolvidosemguardanaposdepapel. Dezenasdeidiomas eram falados ao mesmo tempo, e o vozerio era constante.Unsandavamdeláparacá, outros se aglomeravam diante dos bufê s à beira do salã o. Dominika se obrigavaaignorarocaleidoscó piode cores,receandoumaoverdose. Perguntava-se como faria para localizar Nash em meio à quele rebanho.Erapossı́velaté queelenã o estivesse lá . Minutos depois de descer para o salã o, ela já se via acuada por diversos homens mais velhos, sem dú vida diplomatas, que falavamaltodemais,chegavamperto demaiseolhavamparaodecotedela de forma acintosa demais. Dominika usava um terninho cinza e um colar de pé rolas. Estava com o paletó abotoadoeelevezououtradeixavaà mostraarendapretadablusinhaque vestia por baixo.Sensual sem ser vulgar. Comsofisticação. As escandinavas, sim, entendiam de vulgaridade. Prova disso era a loura escultural parada perto de uma das portas francesas, que mal cabia no top de caxemira que escolhera para valorizar os seios. Os cabelos eram quase brancos de tã o louros, e ela remexia neles enquanto ria de algo que acabara de ouvir de um jovem diplomata.O jovem diplomata. Ali estava Nash. Ela já vira aquele rosto centenas de vezes nas fotos do arquivo. Dominikaseguiunadireçã odas portasfrancesas,masosalã oparecia o metrô de Moscou em horá rio de pico.Quandoen imconseguiuchegar lá , Miss Escandiná via e Nash já tinham se afastado. Tentou localizar os cabelos platinados da mulher, mais alta que todos ali, mas nã o foi bem-sucedida. Tal como aprendera naacademia,percorreuosalã opelas bordas,emsentidohorá rio,sempreà procuradeNash.Daliapoucoavistou orezidentVolontov,quedevoravaum prato detapasjuntoaumdosbufê s, alheio a tudo e a todos. Ele agora abocanhavaumatortilha. Dominika continuou circulando. A certa altura avistou os ombros largos da amazona escandinava, que agora era cortejada por pelo menos quatro homens. Nash nã o estava entreeles.Elaen imolocalizoumais adiante,pró ximoaumdosbalcõ esde bebida. Dominika se aproximou de uma coluna e icou parada em uma posturacasual,foradavistadele. De cabelos escuros e porte atlé tico,oamericanovestiaumterno azul-marinho com uma camisa azulclara e uma gravata preta simples. Tinha um semblante franco e acessı́ v el.E um sorriso encantador, pensouela.Umsorrisoqueirradiava sinceridade. O mais espantoso de tudo, no entanto, era a cor da aura dele, uma das mais bonitas, um tom fechado de violeta que denotava honestidade,calidezesegurança.Um tom que ela vira em apenas outras duas pessoas: o pai e o general Korchnoi. Nash conversava com um homem baixo, calvo e de nariz batatudo que devia ter 50 e poucos anos. Dominika o reconheceu. Tratava-se de um dos tradutores da embaixadarussa.Comoeramesmoo nome dele? Trentov? Titov? Nã o, Tishkov. O inté rprete pessoal do embaixador. Falava inglê s, francê s, alemã o e inlandê s. Usando a multidã o como escudo, ela se aproximou do balcã o de bebidas, serviu-sedeumataçadechampanhe ecomeçouaentreouviraconversada dupla. Nash falava russo perfeitamente, quase sem sotaque, e até mesmo gesticulava como um russo nativo, abrindo e fechando as mã os como se as palavras precisassem de um empurrã ozinho. Impressionante. O suarento Tishkov empunhava um copo de uı́sque enquanto ouvia, nervoso, o que ele dizia, ora balançando a cabeça, ora erguendoosolhosparaoteto. Dominika deu um gole no champanhe e se aproximou ainda mais, espiando Nash por sobre a borda da taça. Ele mantinha alguma distâ ncia de Tishkov, sem sufocá -lo, mas inclinava o tronco para a frente ligeiramente quando precisava se fazerouviremmeioà quelaconfusã o. Contava ao homem a histó ria do cidadã o russo que estacionara o carronafrentedoKremlin. —Umpolicialveiocorrendona direçã o dele e disse: “Ficou maluco? Nã osabequemtrabalhaaı́?Todosos polı́ticos do governo!” Aı́ o outro respondeu:“Nã otemproblema.Meu carrotemalarme.” Tishkovtentounãorir. Da outra ponta do bufê , Dominika viu o americano pegar mais um uı́sque para o tradutor. AgoraeraTishkovquemcontavasua histó ria, segurando o braço de Nash ao falar. Nash ria, e Dominika podia ver muito bem o charme que ele destilava para cima do russo. Atencioso, simpá tico, discreto. Sabia como deixar seu interlocutor à vontade.Um espião de verdade, ela pensou. Deixando-os de lado por um instante, Dominika voltou os olhos para Volontov e viu que, do outro ladodosalã o,orezidentverruguento simplesmente ignorava aquele caso clá ssico da espionagem: o agente americano que tentava seduzir um alvo em potencial. A certa altura, Nashesquadrinhouosalã odeforma bem discreta e eles se entreolharam por uma fraçã o de segundo. Dominika logo virou o rosto e ele voltou a atençã o para Tishkov sem registrar a presença dela. Mas naquele instante mı́nimo Dominika sentiu um frio na espinha, o frisson natural de uma agente que cruza olhares com seu alvo pela primeira vez. Sua presa. Ou seu inimigo nú mero um, tal como diziam na academia. Elavoltouparapertodacolunae icou observando o americano de longe, fascinada com a naturalidade dele,comsuacapacidadedemantero interesse do interlocutor. Seguro, mas sem a petulâ ncia dos ogros que ela conhecera no Quinto Departamento.Sympatichnyi. Aquela altura, ela nã o tinha mais nenhum receio sobre a abordagem, que imaginaraqueseriamuitodifı́cil.Sua vontade era ir lá naquele mesmo instanteesefazernotarparadepois entrar na cabeça dele, tal como praticara com Mikhail em Moscou, usando o rosto e a linguagem corporalcomoiscas.Bastariachegar mais perto, apresentar-se rapidamentee... Não.Calma,Dominika.Enquanto Tishkov estivesse por perto, ela nã o poderia abordar ningué m. As instruçõ es de Moscou haviam sido claras. O contato entre eles deveria ser de natureza pessoal, nã o pro issional, e ningué m da embaixada deveria icar sabendo, excetoVolontov.Eladeveriaagircom frieza e pro issionalismo. Era isso queaoperaçã odemandavaeeraisso que ela pretendia fazer. Portanto, para se aproximar do americano seria necessá rio encontrar outra estraté gia que nã o fosse simplesmente bater ponto em todos os eventos diplomá ticos em Helsinquenospróximosdozemeses. *** Vá rios dias depois, o destino deu a Dominika a oportunidade de que ela tanto precisava, e num lugar que di icilmente teria previsto. Apesar da entrada discreta sob uma placadeneonquaseimperceptı́vel,a piscina pú blica de Yrjö nkatu, no centro de Helsinque, era uma joia neoclá ssica, construı́da nos anos 1920 nas imediaçõ es da estaçã o ferroviá ria. Luminá rias de cobre art dé co corriam ao longo do mezanino que sobrelevava a bela piscina, projetando sombras cinematográ icas sobre o má rmore cinzento das pilastras e a cerâ mica dopiso. Graças à s inú meras sessõ es de hidroterapia na escola de balé , Dominika era uma nadadora disciplinada e forte. Começara a frequentar a piscina pú blica, que icava a poucos quarteirõ es de seu apartamento, apenas como uma vá lvuladeescape.Haviaoptadopelo horá rio do almoço, uma vez que as ruas eram muito escuras e frias à noite, e a solitá ria caminhada de voltaparacasa a deixava deprimida. Alé m disso, ela vinha se sentindo cada vez mais sozinha e irritadiça. Volontov,re letindoaimpaciê nciade Moscou, nã o parava de pressioná -la para arranjar logo aquele primeiro encontro com Nash, sem levar em conta a di iculdade de se arquitetar uma “trombada” fortuita e plausı́vel, mesmo numa cidade relativamente pequenacomoHelsinque. A oportunidade de Dominika surgiu quando Volontov pediu que ela terminasse um relató rio urgente paraYasenevoeelaprecisoutrocaro horá rio da nataçã o. Apesar da escuridã o e do frio, foi à piscina depois do trabalho e justo nesse dia avistou Nate saindo do vestiá rio masculino com uma toalha pendurada no pescoço. Estava sentada numa ponta da piscina com as pernas na á gua. Sem nenhuma pressa, icoudepé ,seguiunadireçã o de uma das pilastras de má rmore e icou observando o americano dali. Elenadavacomtécnicaeeficiência. Dominika precisou conter o nervosismo, sem saber ao certo se deviapulardecabeçanaquelapiscina e naquela histó ria. Poderia simplesmente esperar e apaziguar Volontov dizendo que já identi icara um dos há bitos de Nash e agora bastaria conceber uma abordagem. Masissoseriavistoapenascomoum atraso desnecessá rio. Talvez fosse melhor entrar em açã o já , naquele mesmo instante. Ali estava uma oportunidade perfeita para um primeiro contato que pareceria fortuito e natural.Vamos lá, mãos à obra. Usando um recatado maiô de lycra e uma touca de borracha branca,Dominikavoltouparaaá gua efoilentamentepassandopelasraias até seaproximardeNate.Começoua nadar sem nenhuma pressa, deixando que ele a ultrapassasse duasvezes.Fezoscá lculosparaquea terceira ultrapassagem acontecesse na borda, esperou o americano dar suapreguiçosaviradaparapercorrer os pró ximos 25 metros e seguiu nadando ao lado dele sem grande esforço. Nenhum dos dois estava indo muito rá pido. Atravé s dos ó culoselapodiaverocorpodelesob a á gua, movimentando-se ao ritmo das braçadas de crawl. Os dois chegaram juntos à outra borda da piscina e foram nadando de volta para a parte funda. Só entã o Nate percebeuapresençadelaaseulado. Olhando sob a superfı́cie, viu que se tratava de uma mulher, elegante em seu maiô escuro, resoluta nas braçadas. Nate imprimiu um pouco mais de velocidade para ver se conseguia ultrapassar a misteriosa nadadora, mas Dominika nã o teve di iculdade paraacompanhá -lo.Maisumavezele acelerou, mas ela continuou irme a seu lado. Nate aumentou a rapidez das pernadas. Ela també m. Vendo que a borda estava pró xima, ele se decidiu por uma virada olı́mpica e um tiro inal na velocidade má xima. Vamos ver se ela topa o desa io, pensou.Entã oencheuospulmõ esde ar, fez a virada e seguiu nadando a toda, os braços perfeitamente arqueados, as mã os incando a á gua com a regularidade de um metrô nomo, os ouvidos retumbando com otchof-tchof-tchofdasbraçadas. Ao aumentar o vigor das pernadas, sentiu a onda que se formou em torno da cabeça e dos ombros. Ele agora respirava apenas para um dos lados, oposto ao de sua adversá ria. Haveriatempodesobraparaanalisá la quando ele alcançasse a borda e icasse esperando a chegada dela. Nos ú ltimos metros ele espichou o tronco o má ximo possı́vel e virou o rosto para olhar na direçã o da mulher, que devia estar no encalço dele.Maselaseencontravalogoalia seulado.Naverdade,bateranaborda com uma vantagem de alguns milé simos de segundo. Dominika icoudepé ,tirouatoucaesacudiuos cabelos molhados enquanto olhava paraele. — Você nada muito bem — observou Nate em inglê s. — Faz partedealgumaequipe? — Nã o — respondeu Dominika. —Nuncafiz. Nateobservouosombrosfortes dela, as mã os elegantes que se apoiavam na borda, as unhas curtas, osolhosazuis e eletrizantes. Pensou terpercebidoumlevesotaquebáltico ou russo no pouco que ela dissera. Muitos inlandeses falavam inglê s comumsotaquerusso. — Você é daqui mesmo, de Helsinque?—perguntouele. —Não,sourussa. Dominikaobservouorostodele em busca de alguma reaçã o de desprezo ou pouco-caso. Em vez disso, deparou com o lindo sorriso que já vira na recepçã o dos espanhó is.E então, Sr. CIA?, ela pensou.Oquevocêvaidizeragora? —Umaveztiveaoportunidade de ver a equipe de nataçã o do Dínamona Filadé l ia — comentou Nate. — Eram muito bons, sobretudo no borboleta.Aá guaseagitavaemtorno dos ombros dele, re letindo a aura violeta. — Claro — retrucou Dominika. — Os nadadores russos sã o os melhoresdomundo. Pensara em dizer “os atletas russos sã o os melhores do mundo”, mas achara melhor nã o exagerar. Precisavaseconcentrar.Ocontatojá fora feito, ele já sabia qual era a nacionalidadedela.Opassoseguinte seria jogar o anzol e esperar. Ela foi paraaescadinhaesaiudapiscina. —Você vemsempreà noite?— indagou Nate assim que ela se despediu. — Nã o. Meus horá rios sã o irregulares — respondeu Dominika. — Muito irregulares — emendou, e viu uma centelha de decepçã o no olhar dele. Bom sinal. — Nã o sei quandovouvoltar,masquemsabea gentesevêporaí? Caminhandoparaovestiário,ela sentiu o olhar quente do agente americanoàssuascostas. *** Elesvoltarama se encontrar na piscina dali a dois dias. Ele acenou com a mã o e ela respondeu com um discretomeneiodacabeça.Maisuma vez nadaram lado a lado. Dominika nã otinhapressa: ingiaindiferençae agiadeummodoformalereservado, umcontrapontopropositalàirritante informalidade dos americanos. Volta e meia dizia a si mesma que nã o precisava icar tã o nervosa. Via no olhardeNatequeelenã osuspeitava denada.Evibravacomisso.Oagente daCIAnã osabiacomquemestavase metendo.Quandoterminoudenadar, ela novamente saiu da piscina depressa. Mas dessa vez olhou de voltaparaNateeacenousemsorrir. Porenquantoeraosuficiente. Aolongodassemanasseguintes eles se encontraram mais cinco ou seisvezes,nenhumadelasporacaso. Quase todas as noites Dominika ia para o Torni Hotel e icava de sentinela no saguã o, de onde podia ver Nate chegar à piscina do outro ladodarua.Até ondesabia,nã ohavia nenhum esquema de vigilâ ncia para protegê-lo. Ela tentava esquentar as coisas com incrementos pequenos e imperceptı́veis. Com o passar do tempo,nadamaisnaturalqueelesse apresentassem. Nate disse que era diplomatanaembaixadaamericanae trabalhava no setor econô mico; ela falou que era assistente administrativa na embaixada russa. Ouviuamentiradele,depoiscontoua sua. Impressionada com a naturalidade de Nate, icou se perguntandoquetipodetreinamento ele poderia ter recebido. Era um americano tı́pico: ingê nuo, incapaz de uma boakonspiratisa.Elea itava semnenhumamalı́cia,oroxodaaura sempreomesmo. Nate, por sua vez, pensava:meu Deus, como ela é séria. Uma russa típica:morredemedodedarumpasso emfalso.Masgostavadadiscriçã oda moça, da sensualidade comedida, do modocomooencaravacomosolhos azuis. Apreciava sobretudo a forma como ela pronunciava seu nome: Neyt.Umapenanã ohaveralinenhum potencial de espionagem. Tratava-se apenas de uma secretariazinha bonitinha da embaixada. Moscovita, cercade25anos...Assimquepossı́vel ele espiaria o sobrenome dela na carteirinha do clube. Para ter saı́do de Moscou tã o nova, certamente era sustentada por algué m. A inal, com uma carinha daquelas... O corpo que seinsinuavasobomaiô també mnã o era nada mau. Inatingı́vel. Nate decidiu que solicitaria um rastreamento do nome dela apenas como medida protocolar. Sabia que aquilonãodariaemnada. ParaDominika,aquelaoperaçã o erabemdiferentedeumaarmadilha sexualcontrauminofensivoeuropeu emsolorusso:eraumaoperaçã oem soloestrangeirocontraumagenteda CIA.Sabiaqueteriaquesercautelosa e paciente. Já enviara um relató rio inicial para Yasenevo, detalhando os primeiroscontatoscomoamericano, masVolontovaindainsistiaparaque elaavançasse. Algumassemanassepassarame até entã o nenhuma resposta havia chegado de Washington sobre o rastreamento solicitado.Típico, pensou Nate. Mas e daı́? Para ele já estava su icientemente bom encontrá -la de vez em quando e se afogarnaquelesolhosazuis.Porduas vezes conseguira fazê -la sorrir, sabendo que ela falava inglê s bem o su iciente para entender uma piada. Nã o arriscaria assustá -la ainda mais comseusconhecimentosderusso. Certa noite eles se dirigiram juntos para a escadinha da piscina e seus corpos se aproximaram mais que de costume, roçando acidentalmente sob a á gua. Nate pô de sentir o coraçã o dela batendo fortesobalycradomaiô .Ofereceua mã o para ajudá -la a subir e ela aceitou.Amã odeDominikaeraforte, quente. Nate a segurou por um instanteamaisqueonecessá rio.Nã o viu nenhuma reaçã o em seu rosto, mas sustentou o olhar dela até vê -la tiraratoucaparasacudiroscabelos. Dominika sabia que estava sendo observada. Procurou mantersecalma,distante.Oqueoamericano diria se descobrisse que ela fora treinada como pardal, se soubesse o que ela izera com Delon e Ustinov? Dominika já decidira que nã o o levariaparaacama,mesmosabendo queouviria,emHelsinque,osberros que seriam dados em Moscou. Nã o, ela cumpriria sua missã o com disciplina e inteligê ncia. Achava que já erahoradedarumpassoadiantee começaradesvendaroamericano— hora de perturbar um pouco a irritante constâ ncia daquela aura violeta. Foi por isso que ela aceitou quando Nate, naquela mesma noite, convidou-a para tomar um vinho numdosbareslocais.Orostodelese iluminara, primeiro de surpresa, depois de felicidade. Ambos estranharam um pouco quando se viramvestidosdacabeçaaospé sna calçada. Acariciando sua taça de vinho, foi Dominika quem puxou conversa. DequepartedosEstadosUnidosele vinha? Tinha irmã os? Com que sua famı́lia trabalhava? Ela ia ticando as perguntas mentalmente, preenchendo as lacunas de uma hipotéticafichacadastral. Se Nate nã o soubesse que nã o era o caso, pensaria estar sendo submetido a um interrogató rio policial. Talvez ela estivesse um pouco nervosa, afogando-o em perguntasapenasparaevitarfalarde simesma.Assimeramosrussos:ora intensos demais, ora inexpressivos. Nate preferiu esperar até que ela se sentisse mais à vontade. Nã o queria forçar nenhuma barra, receando afugentá -la.Mas...afugentá -ladequê ? Ela nã o era um alvo em potencial e elenãoirialevá-laparaacama. Ele chamou o garçom e pediu umaporçã odepã opretocomqueijo. Queótimo, pensou Dominika,eledeve achar que é só isso que os russos comem.Elarecusouasegundataçade vinhoeen imdissequeprecisavair. Nateperguntousepodiaacompanhá laatéemcasa. A porta do prediozinho moderno, Dominika viu claramente que ele hesitava diante da enormidade que era se inclinar para um beijinho de despedida na bochecha. Os homens eram mesmo todos iguais. Antes que ele pudesse se decidir, ela estendeu a mã o, esperouqueeleaapertasseeentrou na portaria do pré dio. Atravé s da porta de vidro, viu-o partir com as mãosenterradasnosbolsos. A o icial de inteligê ncia do SVR, devidamente treinada na AVR e na Escola de Pardais, parabenizou a si mesma pelo sucesso da noite, pelos progressos obtidos, sobretudo pela cereja do bolo: nã o ter deixado que ele a beijasse à porta de casa. Em seguida, riu. A cortesã que já levara um magnata russo à morte e conduzira um diplomata francê s à pró priadesgraçaagoranã opermitia nem sequer um casto beijinho de boa-noite. *** — E aı́, Romeu? — cumprimentou Forsyth à porta da sala de Nate na estaçã o. — Já viu o cabogramaquechegoudoQGhojede manhã sobre a sua nadadora preferida? Ele se referia ao resultado do rastreamento que Nate solicitara a Washington com os dados de Dominika Egorova (local e data de nascimento: Moscou, 1989; ocupaçã o: assistente administrativa na embaixada russa). Fazia mais de um mê s que ele izera o pedido. Estava esperando uma resposta negativa, algo como “rastro zero no QG”, já que a moça nem sequer constavadobancodedadoslocal.Ela dissera que ocupava um posto administrativo qualquer nos nı́veis mais baixos da hierarquia. Nate també mhaviapassadoaWashington as circunstâ ncias do contato realizado, os encontros esporá dicos na piscina. A seu ver, um contato absolutamente inú til. Nenhum acesso,nenhumpotencial. —Nã o,aindanã o—respondeu Nate.—Estánoquadrodeleitura? — Aqui está a minha có pia. Dê umaolhadanisso—disseForsyth,e deixou escapar um risinho ao entregaropapel. Gable surgiu de repente à s costasdele. —Eaı́?—perguntou.—Nosso galãdeplantãojáleuasnovidades? Eletambémestavarindo. Sem olhar para eles, Nate deu inícioàleitura: Segundo rastreamento realizado, elemento é cabo do SVR, possivelmente na Diretoria I (Tecnologia e Disseminação de Informações). Data aproximada de admissão no serviço público: 20072008. Formado pela Academia de Inteligência Externa (AVR), 2010. Provável parentesco com primeiro vice-diretor do SVR, Ivan (Vanya) Dimitrevich EGOROV. Elemento estacionado na Finlândia não consta dos quadros do Ministério de Relações Exteriores da Federação Russa, o que sugere uma contratação temporária ou missão operacional específica com duração limitada. Comentário: o contato referido é de interesse do QG em razão do parentesco com a alta chefiado SVR, o que talvez lhe dê uma oportunidade única de acesso e sem dúvida justifica uma operação de recrutamento. Parabéns à estação pela diligência na localização e no desenvolvimento de novos alvos. Encorajamos que o agente iniciador dê sequência aos trabalhos de avaliação e progresso. QG à disposição para qualquer auxílio necessário. Saudações. Nate en im ergueu o rosto e olhouparaForsytheGable,queainda esperavamàporta. — Nunca houve um rastreamento com uma resposta melhor do que esta — observou Forsyth. — Isso pode levar a algo bastante importante se você conseguirfazerorecrutamento. Nate sentiu as pernas pesarem feitodoisblocosdecimento. — Nã o sei... Tem algo errado nisso,Tom.Onı́velhierá rquicodelaé baixo demais. Nem sei se ela é recrutá velounã o,issoagentesó vai saberdepois.Mas,seilá ,agarotame parece meio... distante, fechada. — Eleolhoumaisumavezparaopapel em suas mã os. — Aquela academia de Moscou icou mais de cinquenta anos sem aceitar mulher nenhuma. Eu poderia desperdiçar, sei lá , uns seismesesdetrabalhopradepoisdar com os burros n’á gua. Acho melhor encontraroutroalvoemeconcentrar nele. Gable deu um passo à frente e disse,rindo: —Ficoumaluco,nã o icou?Você só pode estar brincando. Uma gata daquela,eaindaporcimaparentede umchefã odoSVR?Emelhorvocê dar uma boa investigada, meu irmã o. Sem essa de procurar outro alvo. Porque você já tem um nas mã os, caindo de maduro, pedindo pra ser colhido. — Eu sei, eu sei — concordou Nate. — E que... ela nã o faz o tipo “agente do SVR”. E meio tristonha, meio travada, pelo menos na minha avaliaçã o — comentou, dando de ombros. — Faça a avaliaçã o que quiser, cara,masoquevocê temnasmã osé um belo prospecto de desenvolvimento—a irmouGable,e foi saindo para o corredor. — Me procure quando estiver pronto pra discutirumaestratégiaoperacional. Forsyth també m se retirou depois de se despedir com uma piscadela. Bem, vamos ver no que isso vai dar, pensou Nate. Ele achava tudo aquilo uma perda de tempo, mas procurou se animar. Dali em diante Dominika Egorova seria bem mais que um rostinho bonito: seria um alvoasertrabalhado. *** Mais adiante, na mesma rua da embaixadaamericana,naembaixada russa,VolontovrepreendiaDominika por conta da lentidã o de seu progresso. — Você começou muito bem, cabo Egorova, mas depois nã o avançou quase nada. Já recebi trê s solicitaçõ esderelató rioporpartedo general Egorov desde que você chegou. Você precisa redobrar os esforços no sentido de fortalecer a amizade com Nash. Mais encontros. Uma viagem de esqui. Passeios de im de semana. Use a imaginaçã o. O general recomendou mais uma vez que você cultive nesse americano uma dependê ncia emocional com relaçãoavocê. Volontovserecostounacadeira e correu os dedos gordurosos pelos cabelosengomadoscomvaselina. — Muito obrigada, coronel — retrucou ela. Primeiro o tio, depois Simyonov, e agora aquele caipira fedorento. — Só uma dú vida: o que exatamente o general Egorov quis dizercom“dependênciaemocional”? Comoolhar,Dominikadesafiava orezidentasugerirqueelaseduzisse oamericano. — Lamento, mas nã o estou autorizado a falar em nome do vicediretor — respondeu ele, esquivando-se da armadilha. — Seu papel é fazer essa relaçã o evoluir. Desenvolver laços de con iança — emendou, gesticulando com o braço como se de alguma forma isso ilustrasseoqueelequeriadizercom “laços de con iança”. — O mais importantedetudoé queelecomece afalardesimesmo. — E claro, coronel — disse Dominika, entã o se levantou. — Vou acelerar as coisas e mantê -lo informado. Muito obrigada pela valiosaorientação. A reuniã o com Volontov a deixou desanimada. O homem vivia num mundo só rdido, cheio de insinuaçõ eseeufemismos.“Laçosde confiança”,“dependênciaemocional”. Escola de Pardais. Até quando ela teriadelidarcomisso? Voltando a pé para casa, Dominika esbravejou consigo mesma:Supere isso. Ela estava em missã o num paı́s estrangeiro, vivendo numa cidadezinha de conto de fadas, morando sozinha no pró prio apartamento. Era o paraı́so. Alé m disso, tinha um importante trabalho a cumprir, uma missã o contra um o icial treinado pelo serviço de inteligê ncia americano. Bem, o sujeito até que nã o parecia tã o perigoso assim, mas era um agentedaCIA,eissobastava.Naquela noite ela o faria falar mais sobre si mesmo. Perguntaria qual era a opiniã o delearespeitodosrussos.Eleainda nã o admitira que era luente no idioma. Ela falaria de Moscou e ele teriadeadmitirquejá haviamorado nacidade.Caminhandopelasruasna direçã o de Yrjö nkatu, sem se dar conta de que mancava mais visivelmente, Dominika ansiava pelo próximoencontrocomoamericano. També m seguindo para Yrjö nkatu, Nate estava de tal modo perdido nos pró prios pensamentos quenemsequerobservavaasruasou obedeciaaosprocedimentosnormais de segurança. A certa altura pensou: Fique atento, cara. Hoje é a primeira noitedoseunovocaso.Aproveitouum sinalfechadoeatravessou,mudando de direçã o ao mesmo tempo que dava uma espiada nos carros à sua volta.Nã odetectounada.Andoumais trê s quarteirõ es e repetiu a té cnica. De novo, nada. Sabia que nã o podia vacilar. Nã o se tratava mais de um lerte inofensivo com uma eslavinha deolhosazuisemaiô delycra.Seela fosse mesmo uma agente do SVR (ainda tinha dú vidas), ele teria de proceder com cautela e aprofundar suasavaliaçõ es.Por Deus, seria bem mais fá cil se o alvo fosse Tishkov, o tradutor beberrã o. Pelo menos ele teriaacessoadocumentoseminutas de reuniõ es privadas. Um material valioso o bastante para causar algumaagitaçãoemWashington. Igualmente perdida em pensamentos, Dominika també m negligenciara os procedimentos de segurança e já estava a trê s quarteirõ esdapiscinaquandoen im sedeucontadisso.Paracompensara desatençã o,voltouatrá spelamesma ruela,umamanobraridı́culaquefaria os velhinhos aposentados que a haviam treinado em Moscou gargalharem. Os dois dobraram esquinas opostasechegaramjuntosà portado clube. A respiraçã o dela icou mais rá pida, o pulso dele també m, mas amboslembraramasimesmosoque precisavamfazercomooutro.Mãosà obra. *** Dominika se recostava na divisó ria de madeira, roçando os dedoslongosnahastedeumataçade vinho. Nate sentava-se à frente dela com as pernas esticadas e cruzadas na altura dos tornozelos. Ela usava uma blusa azul de tricô trançado, umasaiaplissadasobreumalegging escura e sapatos pretos de salto baixo; ele, um sué ter de gola em V e calças jeans. Nate notou que ela balançavaopésobamesa. — Os americanos nunca levam nada a sé rio — dizia Dominika. — Estãosemprefazendopiada. — Quantos americanos você conhece?—perguntouNate.—Já foi aosEstadosUnidos? —Naminhaescoladebalé tinha um garoto americano. Vivia brincandoarespeitodetudo. Dominika nã o se importava de mencionar o balé . Decidira incluı́-lo nasuahistóriadefachada. —Maseledançavabem? — Mais ou menos. O programa erabemdifı́cil,eelenã osededicava muito. — Devia se sentir muito solitá rio — comentou Nate. — Você saiucomelealgumavezpramostrar acidade,beberalgumacoisa? — Nã o, claro que nã o. Era proibido. — Proibido o quê ? Beber ou fazê -lo se sentir bem-vindo? — indagouNate,fitandoaprópriataça. Dominika itou-o por um instante,depoisdesviouoolhar. — Está vendo? — falou. — Semprefazendopiada. —Nã oé piada—devolveuNate. — Sei lá , ico me perguntando que tipo de lembrança esse garoto levou de Moscou, da Rú ssia. Lembranças boasdacidadeourecordaçõestristes desolidão,deabandono? Que coisa estranha de se dizer, pensouDominika. — O que você sabe sobre Moscou? — perguntou ela, mesmo conhecendoaresposta. — Vivi lá por um ano, acho que já comentei. Trabalhava na embaixada americana. Morava num complexo residencial perto da chancelaria. Nenhum interesse especial, nenhuma mudança na entonação. —Egostavadelá ?—quissaber ela. — Vivia muito ocupado, nã o tinhatempodeexploraracidade.— Nate deu um gole no vinho e, sorrindo, disse: — Pena que a gente nã oseconhecia.Você poderiaterme mostrado a cidade. A menos que fosseproibido. Quanta ingenuidade, quanta encenação. Dominika ignorou o comentário. —Porquevocêsóficouumano? Achei que os diplomatas icassem maistempoqueisso. A resposta dele estaria no primeiroparágrafodorelatóriodela. — De repente abriu uma vaga emHelsinque—falouNate.—Entã o vimpracá. Dominika notou que o roxo da aura nã o se modi icava quando ele mentia.Muitoprofissional. — Ficou triste quando foi embora?—perguntou. — De certo modo, sim — retrucouNate.—Mastambé m iquei tristepelaRússia. —TristepelaRússia?Porquê? —AGuerraFriaacabousemque agenteseexplodisse,nã oé ?Embora tenhasidoporpouco.Masosistema sovié tico, a despeito do que você s pensassem dele, isso, sim, explodiu. Achoquetodososrussosesperavam ver um novo paı́s, uma Rú ssia de mais liberdades civis, com uma vida melhorpratodomundo. — E você acha que a vida na Rú ssia nã o está melhor agora? — quissaberDominika,tentadoapagar davozaindignaçã oqueardiaemseu peito. — Em certos aspectos, sim, claro — respondeu Nate, dando de ombros.—Masachoqueaspessoas ainda tê m uma vida difı́cil. E uma crueldadeverumanovaerachegare depoisnãodaremnada. — Nã o entendi — disse Dominika. Vamos ver se ela morde a isca, pensouNate. —Nã omeleveamal,masacho que o governo russo atual está criando um sistema tã o repressor quanto o sistema sovié tico do passado.Nã oé tã ofá cildeperceber, porque é mais moderno, mais tecnoló gico,maisbonitonatelevisã o. Asnovasarmassã oopetró leoeogá s natural,masnos bastidores há tanta crueldade, tanta repressã o e tanta corrupçã oquantoantes.—Eleolhou para Dominika timidamente, levantouasmãosespalmadasedisse: —Desculpe.Nã oeraminhaintençã o criticar. Apesardetodootreinamentoe de toda a prá tica, Dominika jamais tivera conversa semelhante com um americano.Precisavalembrarqueele era um agente da CIA disposto a cutucá -la apenas com o intuito de provocar algum comentá rio proveitoso. Disse a si mesma para icarcalma.Nã oerahoradeperdera cabeça. Mas tinha que dar alguma resposta. —Tudoissoquevocê dissenã o é verdade — falou. — E a mesma postura anti-Rú ssia que sempre vemos por aı́. Simplesmente nã o é verdade. Pensando no rebelde da KGB envenenado com polô nio e na jornalista assassinada a tiros no elevador do pró prio pré dio, Nate terminouseuvinhoeconcluiu: — Diga isso para Alexander LitvinenkoeAnnaPolitkovskaya. Ou para Dimitri Ustinov, pensou Dominika, engolindo a culpa. Mesmo assim,estavafuriosacomele. TORTILHA DA EMBAIXADA ESPANHOLA Cortar cebolas e batatas em pedaços médios e refogá-los em bastante azeite até que amoleçam. Escorrer. Juntar ovos ba dos às batatas e às cebolas, despejar a mistura sobre uma frigideira untada com óleo e cozinhar em fogo médio até as bordas e o fundo começarem a dourar. Virar a tor lha para dourar o outro lado. CAPÍTULO 11 EMSUASALANAESTAÇÃO,Nate olhava atravé s das ré guas da persiana enquanto arremessava a cordinha na parede distraidamente, fazendo a ponta de plá stico ricochetear:clic, clic, clic. Na noite anteriorelecompareceraamaisuma festa nacional numa embaixada qualquer.Haviaagora meia dú zia de cartõ es de visita inú teis sobre sua mesa e um monte de nó dulos de tensãoemsuascostas. Pensou em nadar e se lembrou de Dominika. Ele a analisara com todaaatençã o,osdoistinhamsaı́do juntos inú meras vezes, mas mesmo assimocasoaindanã oderaemnada. A moça era uma rocha de crenças e certezas, nã o tinha nenhuma dú vida, nenhuma vulnerabilidade. Ele estava perdendotempo.Oscartõ esemcima da mesa pareciam zombar dele. Um ú nico papel (seu ú ltimo cabograma sobre os contatos com Dominika) jazia na bandeja metá lica sobre a mesa. Gablesurgiuàporta. — Ué , o que temos aqui? O prisioneiro na torre do castelo? Por que você nã o está na rua? Vamos lá , chame algué m pra almoçar e dê o foradaqui! — A noite de ontem nã o serviu pra nada — comentou Nate. — Só nesta semana foram quatro festas nacionais. Gable balançou a cabeça, aproximou-se da janela e fechou as ré guas da persiana com um sonoro plec. Sentou-se na borda da mesa de Nateedisse: — Muito bem, Hamlet, vou compartilhar uma pé rola de sabedoriacomvocê .Temumaspecto perversonestamerdaqueagentefaz. As vezes, quanto mais se tenta encontrar um alvo, mais ele foge de você . Impaciê ncia, agressividade e, no seu caso, desespero, tudo isso começaaexalarumfedorqueafasta as pessoas, aı́ ningué m quer falar, muito menos jantar com você . Você ficacheirandoaovopodre. — Acho que nã o estou entendendo—retrucouNate. Gable se inclinou para mais perto. —Você está comansiedadepré coito—desferiuele.—Quantomais icarolhandopropau,maismoleele vai icar. Continua tentando, cara, mastiraopédoacelerador. — Bela metá fora — ironizou Nate. — Acontece que já estou aqui há um tempo e ainda nã o iz nada importante. — Pare com isso, ou entã oeu vou começar a chorar. Preste atençã o, Nate. Aqui você só precisa agradaraduaspessoas:aochefeea mim. E nenhum de nó s está reclamando...porenquanto.Você tem tempo,cara.Estácedopradesistir.— Gable pegou o cabograma que Nate haviadeixadonabandeja.—Alé mdo mais, essa russinha é uma mina de ouro esperando pra ser explorada, pormaisquevocê penseocontrá rio. Tem que investir nela. Tenho uma ideia do que a gente pode fazer pra descobrirmaissobreessagarota. *** Gable sugeriu que eles colocassem a pequena equipe de vigilâ ncia da estaçã o na cola de DominikaEgorovaa imdedescobrir exatamente o que ela fora fazer em Helsinque.ParaNate, era um grande exagero. Ele vinha tentando dizer a ForsytheaGablequeamoçaeraum alvo de baixo nı́vel hierá rquico, uma burocrata sem acesso a nada que pudesseimportar. — Permita-me discordar — disse Gable. — Em outras palavras, caleaporradaboca. Forsythergueuamãoefalou: — Nate, já que você é nosso contatocomessamoça,porquenã o comanda pessoalmente o casal de espiõ es que vamos designar para segui-la? Com a experiê ncia que já tem com ela, você vai poder ajudar. Elessã omuitointeressantesemuito experientes. Conhecem os procedimentosdetrásparaafrente. Que dupla, pensou Nate. O primeiro sugeria uma equipe de vigilâ nciaeosegundooescolhiapara comandar essa equipe de forma a fazê -loseenvolvermaisnaoperaçã o. Realmente os dois sabiam trabalhar em conjunto, verdadeiros especialistasemmotivaraequipe. GableentregouoarquivoaNate, desa iando-o com o olhar a dizer qualquercoisa. —Aquiestá apastadeArchiee Veronica. — Pausa. — Sã o duas lendasvivas,estã onaativadesdeos anos 1960. Trabalharam em alguns doscasosmaiscabeludosdahistó ria, inclusive na deserçã o de Golitsyn. Mandeumabraçopraeles. Dalia24horas,apó sduashoras de uma rota para detecçã o de vigilâ ncia que o fez ir para o norte durante uma hora pela E75, depois para oeste pelas estradas secundá rias de Tuusula e de volta à cidadepela120,Natedeixouocarro no estacionamento na estaçã o ferroviá ria de Pasila e seguiu a pé para Lä nsi-Pasila, um distrito de arranha-cé us e pré dios comerciais, muitos deles com fachadas de tijolo aparente e varandas de vidro. Ele apertou o botã o do interfone marcado com o nome RAIKKONEN, esperou a porta da rua se abrir e pouco tempo depois tocou a campainha do apartamento do quartoandar. — Pode entrar — disse a senhoraàporta. Aos 70 e poucos anos, Veronica era bastante ené rgica e tinha um rosto de traços nobres que ainda conservava a beleza da juventude, com um nariz reto, lá bios irmes, olhosmuitoazuisebrilhantes,apele rosada e viçosa. Os cabelos fartos estavam presos num coque perpassado por um lá pis. Ela vestia calças de lã , um sué ter leve, e trazia os ó culos de leitura pendurados ao pescoço. Jornais e revistas se empilhavamnochã oaoladodeuma poltrona. — Está vamos ansiosos para conhecê -lo. Meu nome é Jaana — falou, e apertou a mã o de Nate com firmeza. Ela irradiava vitalidade e energia. Mã os fortes, olhos vivos, posturaereta. — Aceita um chá ? — ofereceu. Em seguida, conferiu as horas no reló gio que usava com o mostrador na parte inferior do punho, há bito tı́pico de um vigilante de campo. — Bem, o horá rio já permite algo mais forte.Prefereumdrinque? Tudoissofoiditonumatorrente degestosesorrisos. — Marty Gables mandou um abraço—disseNate. — Quanta gentileza — retrucou Jaana,abrindoespaçonumamesinha decentroatulhadadecoisas.—Eleé uma graça. Sorte sua tê -lo como supervisor. Ela foi à cozinha e voltou com copos e uma garrafa oval com um lı́quido transparente que Nate nã o soubeidentificar.O“drinque”. — Já tivemos uns chefes bem estranhos ao longo dos anos — comentou. — Tanto do lado de cá quanto do de lá . Os russos, claro, eram sempre os piores, bestas selvagens tentando sobreviver em meio à crueldade do sistema deles, que Deus os abençoe. Já nos proporcionaram experiê nciasmuito interessantes. JaanaRäikkönenserviuabebida, ergueu seu copo à maneira dos escandinavose,encarandoNate,deu oprimeirogole.Asalaerapequenae acolhedora, com mó veis estofados e prateleiras de livros nas paredes de madeira envernizada. O lugar recendiaasopadelegumes. —Seumaridoestá emcasa?— perguntouNate.—Eugostariamuito deconhecê-lo. —Elejá deveestarchegando— informou Jaana. — Estava na rua vigiandosuachegada.Achoquedeve ser uma deformaçã o pro issional da nossaparte. Nateriuinternamente.Ele izera umarotadedetecçã odeduashorase deixara passar despercebido o senhor nas imediaçõ es do pré dio. Semdú vidaeraporissoqueadupla haviaduradotantonaqueleramo. Nessemesmoinstante,eleouviu um tilintar de chaves à porta e viu Marcus Rä ikkö nen entrar. Archie trazia um cachorrinho marrom da raça Dachshund na coleira. O cã o farejou as pernas de Nate, depois seguiu para sua caminha e se acomodou nela. Chamava-se Rudy. Marcustinhaosombroslargoseera bem alto, com mais de 1,80 metro. Sobrancelhasfartasencimavamseus olhos azuis. Os cabelos, bem menos fartos,estavamcortadosà escovinha. O pescoço era forte e o queixo, anguloso. Ele usava um moletom azul-marinhoetê nis pretos. No lado esquerdo da blusa havia uma bandeirinha da Finlâ ndia. Tinha um jeito atlé tico de caminhar, á gil como amulher,eoapertodemã oera irme comoodela. — No quintal do outro lado da rua?—perguntouNate.—Nobanco, pertodosdegraus? — Muito bem — disse Marcus. —Penseiquenã otivessenotado.— Sorriuetambé mseserviudabebida. — A sua saú de — falou, depois esvaziouocopoenquanto itavaNate nosolhos. Nate relembrou o que já lera a respeito deles. Por quase quarenta anosArchieeVeronicahaviamsidoa essê ncia da equipe de vigilâ ncia unilateral da estaçã o de Helsinque. Ambos já estavam aposentados. A princı́pio, Archie trabalhara como investigador do isco inlandê s, e Veronica como bibliotecá ria. Eram e icazes porque uniam um talento especialparaosdisfarcesemcampo aumapuradoinstintoemrelaçã oao pró ximo passo dos alvos que seguiam. E claro que conheciam a cidade e o metrô como a palma da mã o — haviam crescido junto com Helsinque. Obstinados e discretos, com a paciê ncia e a perspectiva de quem tinha uma vida inteira pela frente, eles podiam trabalhar por meses com um mesmo alvo sem seremdescobertos. NateeosRä ikkö nentraçaramo plano de açã o para espionar Dominika, que devia ser vigiada em intervalos irregulares mas em momentos cuidadosamente selecionados — à noite apó s o trabalho e nos ins de semana, quando era mais prová vel que algo interessanteacontecesse. Depois que a vigilâ ncia começou, Nate via os dois em açã o, delonge.Numdia,usavamtoucasde lã , luvas e casacos pesados; noutro, trajes executivos e guarda-chuvas. Como transporte, bicicletas com buzina,umascootercomcestinha,um Volvopequenoecinza.Asvezeseles caminhavam juntos, de mã os dadas; em outras ocasiõ es cada um ia para um lado. Certo dia, Jaana usou um andador para seguir Dominika até uma loja. Archie e Veronica faziam todos os tipos de vigilâ ncia: mó vel, estática,paralela,cruzadaetc. Ao cabo de duas semanas, Nate voltou a encontrá -los no apartamento. Eles haviam tirado algumas fotos. Marcus resumiu os resultadosfazendoumrelatosucinto, preciso, enquanto Jaana incluı́a algumcomentárioaquieali. — Em primeiro lugar — começou o veterano —, temos certeza quase absoluta de que até agoraelanã odetectououdescon iou da nossa vigilâ ncia. — Deu de ombros e emendou: — E muito jovem, mas consideravelmente há bil nas ruas. Nunca recorre aos truques maisbanaisesedeslocamuitobem, aproveitando o ambiente. Tem um desempenho acima da mé dia, eu diria, e já conta com um conhecimentorazoá veldacidade.— Olhou para Jaana e continuou: — Identi icamos apenas um procedimento de praxe: ela vai ao TorniHotel,dooutroladodapiscina de Yrjö nkatu, e ica no mezanino aguardando você chegar. Espera algunsminutoseentratambém. —Marcusnã oconcordacomigo — falou Jaana —, mas nã o acredito que ela esteja em missã o. Nã o está coordenando informantes nem dando qualquer tipo de apoio operacionalàrezidentura. Quando terminou, olhou para o marido,jáesperandoaréplicadele. — Claro que ela tem alguma missã o — disse ele. — Só nã o descobrimosaindaqualé .Masé uma questãodetempo. — Uma coisa é certa — prosseguiu Jaana. — Ela tem uma vida solitá ria. Vai direto pra casa quando sai da embaixada. No mercado, faz compras apenas pra umapessoa.Passeiasozinhanos ins desemana. — Por acaso você s perceberam algumtipodevigilâ nciaporpartedos russos? — perguntou Nate. — Tem algué m da embaixada seguindo os passosdela? — Achamos que nã o — respondeuMarcus.— Em todo caso, vamosficardeolhonissotambém. — Vou sair com ela mais vezes — disse Nate. — Preciso que você s vigiem alguns dos nossos encontros depoisdanatação. Marcusassentiu. — As coisas vã o icar mais interessantes conforme você s forem se vendo com mais frequê ncia. Cedo ou tarde ela vai tentar falar com algumo icialdaembaixadadepoisde um dos encontros. Por telefone ou pessoalmente. Na medida do possı́vel, nos mantenha informados sobre seus planos. Se quiser, podemossugeriralgunslugaresonde vocêpoderáencontrá-la—ofereceu. — Uma ú ltima coisa — acrescentou Jaana, servindo-se de mais um copo. — Você vai me desculpar, mas... ela me parece uma boa pessoa. Está precisando de um amigo. Marcus olhou para ela e depois para Nate com as sobrancelhas arqueadas. *** Nate repassou com Gable as informaçõ es fornecidas por Archie e Veronica.—Otimo—disseGable.— Fiquedeolhonamoça,sobretudose ela tiver suporte de algué m da embaixada. Se vir algué m, entã o é porque ela está mesmo em missã o. Talvezoalvosejaatévocê. —Impossível—decretouNate. —Aindabemquevocê temtoda essacerteza.Sejacomofor,continue no pé dela. Vá com tudo, mas sem afobação. Nateestabeleceuametadesair com Dominika pelo menos uma vez por semana, fora a nataçã o. Vasculhouacidadetodaembuscade lugares em que poderiam se encontrarsemseremvistos.Quando saı́am à noite, iam a algum bar; quando tomavam o café juntos nas manhã sdesá badooualmoçavamaos domingos, iam a algum restaurante mais afastado. Sempre que possı́vel, Nate fazia com que ela se acomodasse em uma cadeira de costas para o salã o. A cidade estava apinhadaderussosquetrabalhavam na embaixada, e ele achava melhor nãodarnenhumachanceaoazar. Construirumarelaçã o,mantera clandestinidade. Sempre chegar e sair separados. Evitar os telefones, variar os padrõ es. Nate achava tudo issopuraperdadetempo. Dominika també m fazia seu trabalho. Procurava detectar vigilantes sempre que atravessava a cidade para os encontros. Os inlandeses olhavam admirados quando ela subia por uma escada rolante, entrava numa ruela suja ou deixava alguma loja pela porta dos fundos, sem suspeitar que a bela moça de cabelos escuros estava tentando ludibriar um possı́vel esquema de vigilâ ncia. Antes dos encontros ela icava esperando Nate do outro lado da rua, contando as cabeças, observando rostos, memorizandochapéusecasacos. Eles estavam começando a se conhecer melhor. Vinham conversando mais — conversando mesmo, de verdade, o que era um caminho natural apó s passarem tanto tempo juntos. Dominika avaliava Nate como um sujeito honesto,espontâneo,inteligente.Não era um ignorante qualquer. Era apenas... americano. Sempre evasivo quando falava de sua passagem por Moscou, claro, pois nã o podia dizer que estava ali para manipular um informante russo. Ela ainda se incomodavaquandoelefaziacrı́ticas à realidade de seu paı́s, mas sabia que ele tinha razã o em algumas coisas.Tinhaconsciê nciatambé mde que precisava se apressar. Passar maistempocomele,identi icarmais padrõ es. Precisava, sobretudo, saber em que momento ele estaria no pontoparaserneutralizado. A pressã o era grande. A equipe deMoscoueVolontovnã olhedavam tré gua.Dominikajá seperguntavase nã o seria melhor mudar de abordagem e tentar uma aproximaçã o fı́sica caso nã o conseguisse arrancar alguma informaçã o importante dele em breve.Nelzya! Nã o, nunca. Por mais atraente, simpá tico e autê ntico que fosseoianque. Quantas vezes eles já haviam saı́do?Nateestavaansiosoparavê -la de novo, mas ainda achava difı́cil tirardelaalgoproveitoso.Arussinha era osso duro de roer. Driblar uma centena de carros de vigilâ ncia em Moscounã o era tã o difı́cil quanto tentardescobriramotivaçã odaquela moça. Se ela estava realmente em missã o, ele ainda nã o havia percebido.Eracomoseelaestivesse em Helsinque apenas para adquirir um pouco mais de experiê ncia, mas issonã ofaziasentido.Aconexã ocom oSVReraimportante,eraoquefazia delaumalvodignodeserrecrutado. Ele precisava descobrir algo logo, antes que Forsyth perdesse a paciê ncia e Gable lhe desse uns cascudos. Uma coisa era certa: ele podia icar horas apenas olhando para aquele rostinho bonito.Por Deus, se concentre, cara!, ele se repreendia. Depois lembrava a si mesmo o que era preciso fazer: focar no desenvolvimento e na avaliaçã o do alvo, descobrir o que tirava a russa dosé rio.Aconversaentreelesagora luı́acommaisfacilidade,apesardas desavenças. Ela icava brava sempre que ele punha o dedo nas feridas da Rú ssia, mas algo lhe dizia que à s vezes concordava. Talvez tivesse alguma imunidade a todas aquelas balelaspropagandı́sticas.Quemsabe nã o seria essa a abertura de que ele tantoprecisava? Natefoiparaafrentedoespelho e penteou os cabelos. Naquele domingo havia sugerido um almoço em um pequeno restaurante de comida é tnica em Pihlajisto, um bairro no subú rbio, a noroeste do centro. Dominika concordara em ir de metrô e encontrá -lo lá . O lugar tinha sido sugestã o de Archie, que semanasantesdissera:“Lá você nã o correrá oriscodeencontrarnenhum dos amigos russos dela. Um de nó s irá nometrô comelaeooutro icará cobrindo você .” Nate vestiu um casacoimpermeá velporcimadeum sué ter de gola em V e calças de veludocotelê .Emseguidacalçouum par de sapatos de sola de borracha dentada pró prios para caminhada e saiudecasa.Descreveuumitinerá rio em zigue-zague pelas ruas de Kruununhaka,seguiumaisumpouco pelabeirad’á guaeen imcomeçoua traçaraverdadeirarotadedespiste. Do outro lado da cidade, Dominika també m se arrumava diantedoespelho,comosolhosbem abertos. Nã o passou perfume, mas deviaseradé cimavezqueescovava oscabeloscomsuarelı́quiadecasco detartaruga.Assimque icoupronta, foiparaajanelaeespiouaruaantes de descer e tomar o caminho para o metrô . Estava ansiosa para rever o americano, conversar com ele de novo, deixá -lo falar, aprender um poucomaissobreavidadele. Dominika usava um sué ter de gola rulê , um terninho de tweed e calças de lã . També m escolhera sapatos pró prios para o frio. Como uma velhababushka, enrolou uma echarpe na cabeça, saiu para o corredor e trancou a porta. Em seguida desceu para o porã o do pré dio, atravessou o depó sito de tralhas e entrou na sala da caldeira. Um pequeno corredor levava a uma janelaaltacomgradedeferroqueela descobrira algumas semanas antes. Sem dú vida se tratava do vã o onde costumava icar a calha de escoamento de carvã o. Duas noites antes, ela levara mais de uma hora para alcançar a grade e abrir o cadeado,oquenã oforafá cil,porque aú nicaferramenta com que contava era um grampo de cabelo. Dominika empilhoualgumascaixas,subiunelas e se espremeu janela afora.Belojeito decomeçarumencontro, pensou, e a imagem de Nate lhe veio à cabeça maisumavez. Terminada a manobra, ela fechou a grade, saiu para o beco e ergueu os olhos para as janelas do pré dio. Ningué m à vista. Com toda a calma,Dominikaseguiupelobeco,se espremeu entre um caminhã o estacionado e uma caçamba de lixo, pulou uma mureta baixa e só entã o chegou à rua. Já estava a um quarteirã o de seu pré dio. A gola erguida do casaco e a echarpe em torno da cabeça escondiam suas feiçõ es. Ela caminhou com ar indiferente na direçã o oeste, buscando rostos repetidos sempre que precisava olhar para os lados antes de atravessar uma rua. Dali a pouco alcançou o shopping Kamppi, entrounumalivrariaemaisumavez procurou possı́veis vigilantes; só entã odesceuparaaestaçã odemetrô no subsolo do shopping. Na escada rolante, icouatentaaosre lexosque via nos painé is de propaganda, mas nã o identi icou nenhum suspeito. Já estavaameiocaminhodaplataforma quandodetectou,à ssuascostas,uma senhora descendo pela mesma escada,usandoumacapadechuvae um chapé u desengonçado, carregando um maço de lores embrulhado em papel verde e uma sacolinha com duas maçã s. Veronica esperava um dia poder falar com a adorávelmocinhaealertá-laquantoà previsibilidadedetodososseusatos até entã o, sobretudo ao escolher a estaçã o de metrô mais pró xima de casa. Muito tempo antes, Nate tivera como instrutor de vigilâ ncia um sujeitochamadoJay, um ex-fı́sico de barba e cabelos louros e compridos. Certa vez ele dissera aos alunos: “Nem pensem em ser heró is. Tirem issodacabeça. Se detectarem algum esquema de vigilâ ncia, deem a noite por encerrada e abortem a missã o.” Entã odesenhouumalinhahorizontal no quadro-negro e continuou: “O objetivo de uma rota para detecçã o de vigilâ ncia é atrair os vigilantes para fora da moita. Nã o é provocar umconfronto.Nã oé matarningué m. Toda rota tem seu ponto crı́tico.” Nessa altura ele cortou a linha horizontal com uma perpendicular e falou: “Este é o ponto em que os bandidos tê m de decidir se vã o permanecer invisı́veis e perder seu alvodevista.”Limpouogizdasmã os e arrematou: “Se você s conseguirem fazer com que eles se mostrem sem nenhumconfronto,entã oforambemsucedidos. Apenas naquela noite. Depoistê mdecomeçartudodenovo. Dozero.” Que se foda esse tipo de cuidado, pensouNate.Sehouvessecarrapatos na sua cola, eles teriam de se mostrar. Ele escorregou pelo aterro que margeava os fundos da estaçã o detrem,escalouumacercadearame, saltoudooutrolado,emumaruela,e foidriblandooscarrosaté atravessar a rodovia E12. Pensou no que Dominika estaria vestindo. Ao longo de sua rota, tentou localizar Archie, masemvã o,porqueohomemeraum fantasma nas ruas, um protoplasma, fumaçadegeloseco. Archie estava fazendo a contravigilâ ncia de Nate, també m procurando vultos repetidos, medindo tempos e distâ ncias. O veterano pouco se importava com casacos e chapé us. Para ele, o que realmentemereciaserobservadoera o modo como as pessoas caminhavam,oritmodaspassadas,o portedosombros,oformatodonariz edasorelhas:coisasqueumvigilante nã opoderiamudar.Sapatostambé m. Vigilantesnãotrocavamdesapatos. Apó s trê s horas percorrendo quase metade da cidade, Nate en im localizou Archie e viu que ele carregava sua sacola na mã o direita, sinaldequeestavatudobem,deque eleestava“limpo”,livredevigilantes. O restaurantezinho era bem modesto, administrado por uma famı́liadeafegã os.Tapetesorientais decoravam as paredes caiadas do pequenosalã oealmofadascoloridas enfeitavam as cadeiras. Cada mesa tinha uma vela. Um rá dio velho tocavabaixinho.Olugarestavavazio, a nã o ser por um jovem casal de inlandeses acomodado no canto. Da cozinhavinhaumcheiromaravilhoso de cordeiro assado com ervas. Nate escolheuumamesajuntoà janelada frente. Dali a dois minutos, Archie e Veronicapassaram de braços dados na calçada, ambos olhando para a frente. Veronica coçou o nariz, sinal de que estava tudo bem. Archie achava aquele gesto absolutamente ridı́culo, mas já desistira de convencê -la a abrir mã o dele. Olhou paraamulher,revirouosolhoseeles sumiramdevista. Um minuto depois Dominika surgiu à porta, viu Nate e foi ao encontro dele. Segura de si, linda, descontraı́da. Nate puxou a cadeira para ela se sentar e fez mençã o de ajudá -la a tirar o casaco, mas Dominika cuidou disso sozinha. As duas taças de vinho que ele pedira foramservidas.OjoelhodeNatedoı́a em razã o do baque que sofrera ao saltardeumacercaemseucaminho acidentado, durante o qual també m arranhara a mã o esquerda descendo pelo aterro. A manga do terninho de Dominika havia rasgado no ombro quando ela icara presa na caçamba do beco; um dos sapatos e a meia estavam molhados da poça em que ela acidentalmente mergulhara ao emergir da estaçã o de metrô de Pihlajisto. —Quebomquevocê conseguiu encontrarolugar—disseNate.—E meio fora de mã o, mas um amigo falou que a comida é excelente. — Nãopôdedeixardenotarobrilhodos cabelosdela.—Esperoquenãotenha achadolongedemais. —Foitranquilo,nã otinhaquase ningué m no trem — retrucou Dominika.Você é que acha, pensou Nate. — Espero que goste daqui. Já provou alguma comida afegã ? — perguntou. — Nã o, mas há muitos restaurantes afegã os em Moscou. Todomundodizquesãoótimos. Dominikaviuohalodele,violeta como sempre, e mais uma vez se lembroudopai. — Sabe... cheguei a icar preocupadodepoisdeconvidarvocê aumrestauranteafegã o.Talvezvocê vissecomoumaprovocaçã o—falou Nate,sorrindo. Queriafazê-larelaxar. — Nã o vi provocaçã o nenhuma — respondeu Dominika. — Você é americano,nãoconsegueevitar.Acho que estou começando a entendê -lo, pelomenosumpouquinho. Ela mergulhou um pedaço de pã o á rabe na pasta de grã o-de-bico banhadaemazeite. — Desde que você me perdoe por ser americano... — devolveu Nate. —Euperdoo—disseDominika, osolhoscravadosnosdele. ComumsorrisodeMonalisa,ela deuumamordidanopão. — Que bom, ico feliz — retrucou Nate, apoiando-se nos cotovelosesustentandooolhardela. —Evocê,estáfeliz? —Queperguntamaisestranha... —Nãoestoumereferindoaeste momento, mas à vida em geral — explicouNate.—Vocêéfeliz? —Sou,sim—afirmouela. — E que à s vezes você me parecetã o...sé ria.Eudiriatriste,até . Sei que perdeu seu pai há alguns anos,queerammuitopróximos. Dominika já falara do pai. Respirou fundo, pois nã o queria voltaraesseassunto,tampoucofalar desimesma. — Ele era um homem maravilhoso.Professoruniversitá rio. Umapessoagentil,generosa. — O que ele achava das mudanças recentes na Rú ssia? Era a favor da dissoluçã o da Uniã o Soviética? —Sim,claro,comotodomundo. Era um patriota. — Dominika deu mais um gole no vinho, remexeu os dedosmolhadosdentrodosapato.— Mas... e você , Nate? — Ela nã o o deixaria dominar a conversa. — Como era o seu pai? Você disse que sua famı́lia é enorme, mas nunca falou do seu pai. Você s eram próximos? Natesuspirou.Elesavançavame recuavam naquele fogo cruzado de perguntas. Uma semana antes ele con idenciaraaGablequenã oestava fazendo nenhum progresso com a russa. Ela era fechada demais, cautelosa demais, e ele ainda nã o dera nenhum passo no sentido de aumentar a intimidade entre eles. “Você queria o quê ?”, respondera Gable. “Comer a garota logo no primeiro encontro? Ela é muito novinha, uma russinha tensa e esquisitona;nã otemossupervisores sensı́veis e prestativos que você tem.” Até esse dia Nate ainda nã o notara que Gable tinha na parede da sala um calendá rio chinê s de 1971. “Se abra um pouco com ela, mostre algumacoisapraverseelarelaxa.” — Meu pai é advogado — contou Nate. — Um pro issional muito bem-sucedido, que tem o pró prio escritó rio. E muito in luente tantonocampododireitoquantona polı́tica. E mais pró ximo dos meus dois irmã os mais velhos, que trabalham com ele. O escritó rio pertence à famı́lia há quatro gerações. Mais próximo dos irmãos mais velhos, registrou Dominika, e foi diretoaoponto: —Porquenã ofoitrabalharcom ele també m? Podia ser um homem rico. Todos os americanos querem serricos,nãoquerem? —Porqueachaisso?Seilá ,acho que quis seguir meu pró prio caminho, ser independente. Tinha interesse pela diplomacia, sempre gostei de viajar. Entã o achei que devia tentar alguma coisa sozinho antesdecorrerparadebaixodasasas dovelho. — Mas e seu pai? Nã o icou decepcionado por você nã o ter seguido o mesmo caminho dos seus irmãos? —Achoquesim,nã osei.Maso que eu queria mesmo era evitar ter sempre algué m me dizendo o que fazer,entende? Imagensespocaramnamentede Dominika. Balé , Ustinov, Escola de Pardais,tioVanya. — Mas será que basta fugir da famı́lia? Você nã o tem nenhuma ambiçãoprofissional?—insistiuela. Estava disposta a encostá -lo na parede. — Eu nã o fugi da famı́lia — retrucouNate,umpoucoirritado.— Tenho uma carreira. Estou ajudando meupaís. Ele podia ver a cabeça de Gondorfflutuandoacimadamesa. — Claro. Mas como exatamente você ajudaopaı́s?—disseDominika, ebebeumaisumgoledovinho. — De muitas maneiras — falou Nate. —Medêumexemplo. Vocêquerumexemplo?Bem,pra iníciodeconversaeucontroloomelhor ativo da CIA, um informante de altíssima patente nesse seu maldito serviçosecreto,umhomemquevainos ajudarasabotar,umporum,todosos planos que a Federação Russa e seu cruel presidente possam tirar de sua cartola de maldades, pensou Nate, masoquedissefoi: — Estou desenvolvendo um trabalho muito interessante na á rea econô mica, relacionado com a exportaçã o de madeira por parte da Finlândia. —É,muitointeressante—disse Dominika, piscando acintosamente. — Achei que você fosse me falar sobre a paz mundial — emendou, e viu o halo do americano arder em chamas. — Eu até falaria, se uma russa pudesseentenderoquesignifica“paz mundial” — devolveu ele, depois correu os olhos pelo restaurante afegã o e acrescentou: — Depois do Afeganistãoetudo... Dominika bebeu mais um gole dovinho. — Da pró xima vez vou levar você a um restaurantevietnamita ótimoqueeuconheço—retrucou. Eles icaramseencarandonuma espé cie de duelo de olhares.Que diaboestáacontecendoaqui?,pensou Nate. Ela conseguira irritá -lo um pouco. Lembrou-se de Veronica ter dito que talvez Dominika nã o possuı́sse nenhum alvo, que talvez nã o fosse esse o trabalho dela. Seria possı́vel que a veterana estivesse enganadaefosseeleoalvo?Dooutro lado da mesa, com os olhos mais azuis do que nunca, a russa nem sequerpiscava. — Está tudo bem — falou Dominika, lendo os pensamentos dele. — Só nã o deprecie a Rú ssia o tempo todo. Merecemos um mı́nimo derespeito. Muito interessante, observou Nate,eemseguidadisse: —Daquiaumtempoagentevai olhar pra trá s e se lembrar disso comoanossaprimeirabriga. Dominika deu uma mordida no pão. — Como você s mesmos dizem, vou guardar a lembrança com carinho. A comida chegou. Dominika havia pedido um cozido de cordeiro comlentilhas,quechegoufumegando numatigelagrande, com uma bolota de iogurte grosso derretendo por cima. Nate pedirabowrani, pedaços deabó boracaramelizadacommolho decarneeiogurte.Estavadelicioso,e ele fez questã o de que Dominika experimentasse uma garfada. Quando terminaram o vinho, pediramumcafé. —Apró ximavezserá porminha conta — decretou Dominika. — A gente devia ir a Suomenlinna antes queotempoesquenteeolugar ique cheiodemais. —Ésómarcar—retrucouele. Ela assentiu, itou-o por alguns instantes,depoisfalou: —Sabe,Nate,achovocê umcara simpá tico, engraçado, gentil. Um ó timo amigo. — Nate se preparou para o que viria a seguir. — Espero que me considere uma amiga também. Agoraelaquerserminhaamiga, elepensou. —Claroqueconsidero—disse. —Mesmoqueeusejarussa? — Especialmente por você ser russa. Eles icaram ali na penumbra, encarando-se,amboscogitandopara onde aquilo estava indo, como um poderiamanipularooutro. Quarenta e cinco minutos depois já estavam na plataforma do metrô , uma estaçã o a cé u aberto naquela parte longı́nqua da cidade. Escurecia e o clima estava frio, mas nã ocongelante.Natenã oseofereceu para levá -la de carro para casa, e de qualquermodoelanãoteriaaceitado. Ele nã o podia correr o risco de que algué m da embaixada russa a visse dentrodeumautomó veldiplomá tico daembaixadaamericana. O trem irrompeu na estaçã o e diminuiu a velocidade. Nã o havia ningué mnaplataforma,tampoucono trem. — Muito obrigada pela ó tima tarde — disse Dominika, virando-se paraNate. Eles se entreolharam e ela apertouamã odelecomocharmede um gladiador do SVR. Nate decidiu testá -la um pouco, entã o se inclinou para a frente e a beijou no rosto. Muito encantador, pensou Dominika, emborajá tivessevistobemmaisque isso na sua incipiente carreira. O sinaltocoueelaentrounovagã osem sorrir, mancando um pouco quando se virou para acenar atravé s das portasquesefechavam. Enquanto o trem deixava a estaçã o, Nate avistou uma senhora de parca, com um cesto de tricô no colo, no vagã o seguinte. Apesar da velocidade, ele ainda teve tempo de vê -la coçar o nariz. A plataforma estava deserta. Como Veronica tinha conseguido embarcar naquela composição? Ao longo de suas respectivas viagensdevoltaparacasa,tantoNate quantoDominikadeveriamcatalogar suasimpressõ es,relembrardetalhes, compor o relató rio que teriam de entregar na manhã seguinte. Em vez disso, Nate pensava no beijo que havia roubado na estaçã o, na elegâ ncia com que ela saltara para dentro do vagã o. Dominika, por sua vez, se lembrava das mã os dele, do arranhã oavermelhadoemumadelas, da expressã o dele quando ela rebatera Afeganistã o com Vietnã , uma expressã o nã o só de surpresa, masdedeleitetambém. KADDO BOURANI – ABÓBORA À MODA AFEGÃ Dourar pedaços grandes de abóbora, cobri-los generosamente com açúcar e assá-los no forno em temperatura média até ficarem macios e caramelizados. Servir com um molho de carne moída, cebolas picadas, alho, molho de tomate e um pouco de água. Finalizar com uma colher de iogurte com endro e alho amassado. CAPÍTULO 12 PARADO A PORTA DA SALA, Forsyth viu que Nate trabalhava no relató rio sobre seu ú ltimo encontro com Dominika Egorova. Nate vinha tentando apressar as coisas, mas de forma cé tica. Tudo era lento com a russa, e ele se sentia inseguro. Precisava emplacar um ê xito o mais rá pidopossı́vel,mas icarbatendona mesma tecla tinha seu preço. Inevitavelmente, o jogo icava mais tenso. A cada novo contato com Egorova, Forsyth sabia que o QG pressionariamais:faltavapoucopara elescomeçaremaofereceravaliações externas,apedirtestesoperacionais. A resposta mais recente aos relató riosenviadosporNateera,nas palavras de Gable, “um bom indı́cio damerdaqueestavaporvir”. Com o recebimento deste cabograma, favor limitar os relatórios aos canais expressamente autorizados. Estabelecer a lista de permissões de acesso da estação e repassar ao QG. Alvo foi codificado como Diva. O QG continua a aplaudir a diligência do operador e da estação em geral nas investidas operacionais contra o alvo ref. Diva. Consideramos especialmente significativo que Diva continue disposta a se encontrar e falar de sua vida pessoal com um operador (certamente não autorizado). Pedir ao operador que continue tentando extrair dela alguma informação de cunho profissional e determinar até que ponto ela reage. Esperamos ansiosos pelos próximos relatórios. Bravo. Em ref. ao desenvolvimento, solicitamos atualização dos planos e testes operacionais contemplados para futuros contatos com Diva. Favor avisar data prevista para próximo encontro, bem como medidas de segurança previstas. QG à disposição para trocar ideias quanto aos próximos passos. Forsyth sabia ler os sinais. A ú ltima frase, por exemplo, era um indı́ciodeque,casoascoisasdefato tomassem um rumo interessante, o QG nã o deixaria de meter seu nariz na operaçã o. Os urubus já estavam sobrevoando, mas a enxurrada de visitantes começaria apenas quando o frio fosse embora. No im do expediente, Forsyth chamou Nate à suasala. — Sente aı́ — disse. — Os ú ltimoscabogramasquevocê enviou sobre o caso Diva foram excelentes. Objetivosecomavaliaçõ essensatas. Exatamente o que se espera de um bomoperador. —Valeu,chefe—retrucouNate. Masnãoestavatãoseguro.Sabia que os relató rios que ele enviava seriamlidosporumnú merocadavez maior de pessoas, e com um olhar cadavezmaiscríticotambém. — Seu desempenho nas ruas també m tem sido impecá vel até agora — prosseguiu Forsyth. — Continue assim. Marble ainda é sua prioridade,claro,masfaçaopossı́vel paraquesuaoperaçã ocomDivanã o seja detectada pela embaixada dela. — Ele re letiu por um instante. — Aqueletradutorquevocê conheceu... Como é mesmo o nome dele? Tishkov. Esse també m pode ser um alvo interessante. Mas coordenar duas pessoas na mesma embaixada talvez nã o seja boa ideia, sobretudo porque Diva está começando a render. Acho que é melhor deixar o tradutorpradepois. Nate estava convicto de que, se nã o conseguisse recrutar Dominika, nem todos os Tishkovs do mundo poderiam salvar seu pescoço. As expectativas eram grandes, tal como o pró prio Forsyth logo viria a confirmar. —Estecasojá caiunoradardo QG. Todo mundo vai querer meter o bedelho,escuteoqueeudigo.Sevocê recrutar a moça, todos vã o vir pra cima como mariposas em volta de umalâ mpada.Masoquetemdefazer agora é descobrir se essa Diva tem uma devoçã o cega pelo sistema dela ouseexistealgumespaçopradú vida. Será que ela está disposta a ouvir você e ser conduzida até a grande decisã o? — Forsyth se recostou na cadeira. — Nada mau, hein? Tentar convencer uma russinha linda a espionarpravocê ...Minhaportaestá sempre aberta caso tenha alguma pergunta. Agora dê o fora daqui. Divirta-se. Gable levou Nate para jantar num bistrozinho de proprietá rios gregos e insistiu que ele experimentasse os ovos mexidos da casa, sempre leves, acrescidos de cebola e tomate. As cervejas se multiplicavam enquanto Gable tentava animar Nate com relaçã o ao casoDiva. — Nã o tente levar a garota pra cama antes de recrutá -la. Ela vai pensar, com razã o, que você trepou com ela só pra dar o bote. Primeiro você a recruta, e aı́ depois vai poder saborear os dois maiores prazeres que o mundo tem a oferecer: operar uminformantedoSVRetomarocafé damanhã comosdedoscheirandoa boceta. Gable matou a cerveja da vez e pediumaisduas. — Puxa, Marty, é sempre muito educativo conversar com você — comentou Nate, revirando os olhos. —Oqueeuseié oseguinte:preciso fazê-larelaxarmais,começaragostar demim.Masedepois?Oquefaçose as coisas tomarem um rumo mais sentimental? Gable o encarou com uma careta. —Tenhadó ,né ?Issonã oexiste. Um operador nã o se apaixona pela informante. E contra as regras. Esqueçaisso.Vá emfrenteecomaa garota se for necessá rio. Mas... se apaixonarporela? *** A sala principal darezidentura doSVRnaembaixadadaRússiaem Helsinque era pontilhada de mesas comuns, distribuı́das em ileiras nã o muito regulares e equipadas nã o com computadores, mas com má quinas de escrever elé tricas dispostas em mesinhas metá licas laterais e protegidas por estranhascapasenvernizadasdecor turquesa. Eram má quinas fabricadas emMoscouespecialmenteparaoSVR e o FSB, despachadas com todo o cuidado para asrezidenturi fora do paı́s, de modo que nã o fossem adulteradas. Lâ mpadas luorescentes, també m importadas de Moscou pelo mesmo motivo, conferiam uma iluminaçã o irregular à sala de pé direito baixo. Elas zumbiam, piscavam e re letiam o branco do tampo de vidro rachado das mesas. Do lado de fora, as mansardas (a rezidentura ocupava o só tã o da embaixada) eram protegidas em primeiro lugar por barras externas, depoisporvenezianasdeaço,depois porvidraçasduplase, inalmente,por pesadas cortinas cinzentas cujas barras chegavam ao chã o. O carpete entreasmesaseragastoeencardido. O ambiente fedia a cigarro velho e a chá preto frio largado em copinhos depapel. Nos fundos da sala havia dois gabinetes isolados. Cercado por divisó rias de vidro, o primeiro abrigava os arquivos con idenciais e contava com uma atendente que trabalhavaemsuamesinhasobaluz de uma luminá ria. Cofres altos margeavamasparedes.Algumasdas gavetas icavam abertas, outras fechadas e protegidas por lacres de cera amarelos. O segundo gabinete, semdivisóriasdevidroesemjanelas, pertenciaaorezidentVolontov. A meia dú zia de o iciais da rezidentura trabalhava em silê ncio enquanto ouvia os berros que vinhamdogabinetedeVolontov.Sem dú vida ele estava enquadrando a tal Egorova, a novata que viera de Moscou. — Todos os dias algué m da central me cobra um relató rio sobre o americano — dizia Volontov. — Estãoquerendoresultados! Uma nuvem laranja se agitava em torno da cabeça dele feito uma espiral de fumaça.Por causa da pressão,pensouDominika. — Mas euestou progredindo — argumentou ela. — Já tivemos mais de dez encontros. Ele nã o deu nenhum indı́cio de ter relatado o contato a seus superiores, o que é uma informaçã o bastante significativa. — Você nã o precisa me dizer o que é signi icativo e o que nã o é . Minha orientaçã o era que você documentasse todos os encontros com Nathaniel Nash. Ordens da central. Onde estã o os telegramas que a mandei redigir pra que eu revisasse antes de mandar pra Yasenevo? — Euredigi os telegramas. Foi você mesmo que me pediu para juntar diversas mensagens num ú nico sumá rio. Nã o posso escrever sobre os contatos que ainda nã o aconteceram. Volontovfechouagavetadesua mesa com um gesto brusco e estrepitoso, fazendo sua aura espiralaraindamais. — Acho melhor você deixar o sarcasmo de lado e trocá -lo pelo respeito — rugiu. — Agora preste atençã o: quero que você acelere as coisascomoamericano.Lembreque nosso objetivo inal é tirar dele alguma informaçã o que nos leve à identidade de um traidor. E urgente, éfundamental,quevocêconsigafazer esseianquefalar. —Eusei—retrucouDominika. — Fui eu mesma quem redigiu a propostaoperacional,entã oconheço muito bem o objetivo desta missã o. Tudo está indo bem, nã o precisa se preocupar. — Fique de olhos bem abertos. Procureverseeleestá sepreparando para alguma operaçã o iminente, se está planejando alguma viagem, se está nervoso, distraı́do ou preocupadocomalgumacoisa. — Fique tranquilo, coronel. Estouatentaatudoisso.Econ iante també m.Vousaber se houver algum evento extraordiná rio na agenda dele. Dominika nã o tinha certeza de nada. Tudo indicava que a relaçã o entreelesestavaestagnada. Volontov a itava como se re letisse sobre algo de grande importâ ncia. Na verdade, ele corria os olhos discretamente pelo corpo dela: a boca, o tronco, a cintura. Recostando-senacadeira,falou: — Muitos dos indicadores que procuramos talvez sejam mais discernı́veis numa relaçã o de maior intimidade. Naminha experiê ncia, quanto mais ı́ntima a relaçã o, mais íntimasasconversas. Na sua experiência com jovenzinhos marroquinos, pensou Dominika, tentando aplacar a fú ria enquantoolhavaparaasverrugasno pescoçodochefe. — Muito bem, coronel. Semana que vem tenho mais um encontro com o americano. Vou me lembrar dosseusconselhossobreintimidade e relatar o progresso realizado. Vou sugerirmaisencontros,demodoque eu possa descobrir detalhes da agenda pro issional dele. Está bem assim? —Sim,sim.Masnã osubestime o poder da dependê ncia emocional, entendeu? A neblina alaranjada rodopiava em torno de Volontov. Ansiedade. Medo.Aspalavrasescaparamdaboca de Dominika antes que ela pudesse contê-las: — Por que nã o diz logo de uma vez? — falou, levantando-se. — Por quenã omandalogoqueeuvá paraa cama com o americano? Sou uma o icial do serviço secreto russo. Trabalho para o meu paı́s. Nã o vou deixarquevocê sedirijaamimdessa maneira. Ela tremia de ó dio e frustraçã o. Nem sequer deixou Volontov responder:saiumarchandoebateua portaàssuascostas. Se no lugar de Dominika estivesse algum outro novato, o coronel teria seguido no encalço do infelizetiradoocourodeleantesde despachá -lo para os porõ es de Lubyanka.Masnocasodela,levandose em conta o pedigree da moça, o maisseguroseriafazervistagrossa. Todos se voltaram para Dominikaquandoeladeixouasalado coronel e, fumegando, seguiu para sua mesa na extremidade oposta da sala, junto a uma das mansardas. Ouviram a gritaria dela. Será que a garota nã o tinha nenhum juı́zo? Melhor icar longe daquela samoubiystvo, daquela suicida em potencial, era o que pensavam. Todos,menosumapessoa. Dominika remoeria a conversa comVolontovaté seunovoencontro comNate,daliacincodias,dessavez um jantar numa parte mais pró xima do centro da cidade. Ela agora admirava sua imagem re letida na janela do apartamento, a escuridã o da noite do outro lado do vidro, as luzes de Punavuiori aparecendo por entreasá rvores.Quemévocê?,elase perguntava, cansada.Até onde vai aguentar? Sua vontade era cutucar a onça com vara curta, dar uma bela liçã o naquele bando de arrogantes, manipuladores e hipó critas. Mas fazer isso publicamente seria o mesmo que dar um tiro no pró prio pé . Nã o, melhor seria uma vingança secreta,impossı́veldedescobrir,algo delicioso que ela pudesse celebrar em seu ı́ntimo depois, algo queela sabiamaselesnão. Volontov era apenas o mais recente da longa procissã o de homens autoritá rios e asquerosos com que ela tivera o desprazer de cruzarnavidaenacarreira,masera ele quem estava logo ali, ao alcance damã o,eelaqueriafazeralgocontra o verruguento, apagar o alaranjado encardido daquela aura nojenta. Antes, precisava pegar aquela fú ria recé m-nascida, guardá -la numa caixinha e botar a cabeça para funcionar. A operaçã o contra Nate eradefundamentalimportâ nciapara Volontov,queseborravademedoda centralemMoscou. Uma maneira de se vingar dele, oudeles, seria prejudicar deliberadamente a operaçã o. Mas como fazer isso sem queimaroprópriofilme? Mais tarde na mesma noite, ela parou com a escova de dentes na boca, se olhou no espelho do banheiroepensou:Quetalpresentear o americano com uma surpresinha? Largar o disfarce e contar a ele que vocêtrabalhaparaoSVR? Izmena. Traiçã o, era esse o nome do que ela acabara de cogitar. Gosudarstvennaya izmena. Alta traiçã o.Mascomissoelaarruinariao casodeVolontov,fariaosamericanos seprevenireme, de quebra, deixaria Nateboquiaberto.Seriainteressante verosustodeleaosaberqueelaera uma agente de inteligê ncia. Ficaria impressionado,teriarespeitoporela. Dominika censurou a si mesma no mesmo instante, tentando recobraradisciplina,lembrar-sedos deveresquetinhaparacomapá tria. No entanto... nã o se tratava exatamente de um ato contra a Rú ssia. Era sobretudo uma vingança pessoal,contraeles.Suaintençã onã o era vender segredos de Estado, mas derrubar aquela longa sequê ncia de dominó s. Ela manteria o controle sobreascoisas,determinariaoponto que elas poderiam alcançar até que sua sede de vingança fosse saciada. Nã o. Isso seria uma loucura completa. Problemas na certa. Impossı́vel. Ela teria de encontrar outrojeitodesevingar.Aessaaltura ela já escovava os cabelos. Olhando para o cabo grosso da escova, imaginou-o enterrado até o talo no rabodeVolontov.Emseguidaapagou aluzevoltouparaoquarto. *** No im da semana, ela e Nate foram jantar no Ristorante Villeta, uma cantina italiana de qualidade inferiornaregiã odeTö ö lö .Umtoldo deplá sticocomascoresdabandeira da Itá lia se projetava da fachada do pré dio residencial em que icava o estabelecimento. No interior, a decoraçã o se completava com o indefectı́vel xadrez vermelho e branco das toalhas e as velas derretendo sobre cada uma das mesas.Aindafaziafrio,masoinverno já chegava ao im: mais algumas nevascas,umabrevı́ssimaprimavera eentã oviriaodeliciosoverã o,como porto fervilhando de veleiros e as balsasfazendoatravessiadabaía. Dominika e Nate haviam chegado separadamente, como de há bito. Sob o casaco de inverno ela usavaumvestidojustodetricô preto com cinto e meias de lã també m pretas. Nate estava de paletó , mas sem gravata e com o colarinho da camisadelistras inaseazuisaberto. Ele deixara a embaixada duas horas antes, seguira de carro pela E12 até Ruskeasuo, dobrara para oeste e voltara para a zona sul por ruas secundá rias, chegando a Tö ö lö logo depoisdetervistoArchieestacionar numaruazinhapró ximacomoparasol baixado no lado esquerdo do carro.Sinaldequeestavatudobem. Nate havia conversado com Gablenavéspera. —Tentefazê-lafalardotrabalho — dissera o supervisor. — Ela faz parte do SVR, esse é o segredinho sujodela. Nate concordava com ele, mas sofriacomanecessidadedeproduzir alguma informaçã o importante o mais rá pido possı́vel. Forsyth o elogiara, Gable só fazia encorajá -lo, masele,Nate,já estava icandoa lito. Precisavachegaraalgumlugar,ejá. EleeDominika icarambatendo papo por alguns minutos enquanto examinavam o menu exageradamentegrande. — Você está quieto hoje — comentou Dominika, olhando para eleporcimadocardápio. —Tiveumdiadifícilnotrabalho — retrucou Nate, procurando soar indiferente. — Cheguei atrasado a uma reuniã o, esqueci de incluir uns nú merosemumrelató rio,meuchefe nã o icou satisfeito e fez questã o de medizerisso. —Duvidoquevocê nã osejaum funcionárioexcelente. — Bem, agora me sinto melhor — falou Nate, e pediu duas taças de vinho ao garçom que se aproximou damesa.—Vocêestábonita. —Vocêacha? Elesepermitirafazerumelogio. Parecia mais seguro, notou Dominika. — Acho. Você me faz esquecer de tudo: trabalho, chefe, o dia chato quetivehoje. O chefe. Dominika icou se perguntandooquedefatosepassava nacabeçadele.Baixouosolhospara o cardá pio, mas nã o conseguiu se concentrar. — Nã o foi só você que teve um diachato,Nate—falou.—Meuchefe tambémmedeuumabronca. Ela quase podia ver o sangue começar a pulsar nas orelhas dele. Deuumgolenovinho,sentiu-semais leve. — Entã o nó s dois estamos encrencados—comentouNate.—O quevocêaprontou? — Nada muito grave — disse Dominika. — Mas ele é uma pessoa desagradável,umnekulturny.Emuito feio.Temverrugas. Quantos rezidentiem Helsinque devemterverrugas?,elaseperguntou. —Oqueéisso?Nekulturny? Como se você não soubesse, pensouDominika,eexplicou: —Umcaipira.Umapessoasem instrução. Nateriu. —Comoelesechama?Talvezeu o tenha conhecido em algum coquetel. Ela mudara de ideia no mı́nimo cincovezesaolongodosú ltimosdois dias, e en im decidira manter distâ ncia dos joguinhos perigosos. Ergueu os olhos para Nate. Ele mordiscava seugrissini, sorrindo paraela.Não! Izmena!Traição. — O nome dele é Maxim Volontov — revelou, ouvindo a pró priavozcomosouvidosdeoutra pessoa. Bozhe moi, pensou. Meu Deus. Mal podia acreditar no que acabara de fazer. Olhou de novo para Nate, queagoraliaocardá piocomosenã o a tivesse escutado. O halo em torno dacabeçaeraomesmodesempre. — Nã o. Acho que nã o conheço —respondeuele. Sentia os pelos dos braços se eriçarem.Caramba.Quediaboelaestá fazendo?Acaboudeseentregar! — Bem, sorte sua — comentou Dominika,aindaoencarando. Nate en im ergueu os olhos do cardá pio. Chegara a pensar que Dominika tivesse deixado escapar o nome de Volontov sem querer. Mas nã o. Ela parecia tranquila. Tinha faladodepropósito. —Porqueeleé tã oruimassim? —perguntouele. — E um homem nojento, um cafajeste dos tempos sovié ticos. Tododia icameencarando...Comoé mesmoquevocêsdizemnoseupaís? Dominika o itava com toda a calma. —Eledespevocê comoolhar,é isso?—sugeriuNate. —Issomesmo. Ele ainda nã o esboçara nenhuma reaçã o. Será que tinha entendido o que ela dissera? Dominika chegou a recear que tivesse ido longe demais. Mas de repente percebeu que nã o se importava. O leite já estava derramado,eagoraelaeraaguardiã de um segredo mortalmente peri go s o .Feliz agora, durak, seu bobinho? — Ele parece mesmo uma pessoa horrı́vel... Mas até entendo por que nã o para de encará -la — comentou Nate, e abriu um sorriso maroto. Meu Deus, pensou em seguida. Deondesaiuisso?Seráumsinalpara mim? Será que ela está apenas se fazendo de tímida e recatada? Ele itou aqueles olhos impossivelmente azuis. O peito arfava sob o tricô do vestido. Os dedos compridos agarravamocardápiogigantesco. — Agora você falou como um nekulturny—disseela. Seria possı́vel que ele já soubesse de Volontov? Será que era tã o bom a ponto de nã o esboçar qualquerreação? — Bem, parece que nó s dois temos problemas no trabalho. Podemos nos solidarizar um com o outro. — O que signi ica “solidarizar”? —perguntouDominika,encarando-o. — Signi ica que a gente pode chorar no ombro um do outro — explicouNate. Tranquilo, caloroso, com a aura roxa. Dominika nã o sabia se ria ou gritava. Tentou manter o pro issionalismo. — Chorar a gente pode deixar pra depois. Estou morrendodefome.Vamospedir? *** Era uma manhã de segundafeira quando um cabograma de circulaçã o restrita foi repassado a Nate. O time de Washington informava à estaçã o que Marble entrara em contato para dizer que chegaria a Helsinque dali a duas semanas como integrante da delegaçã o russa que participaria de uma conferê ncia de dois dias sobre as economias escandinava e bá ltica. Marble avisava ainda que usaria a delegaçã o como disfarce para a viagem:estarianacidadeparatentar encontrar “por acaso” um membro sê nior da delegaçã o canadense, Anthony Trunk, assistente do ministrodoComé rcio,queaosolhos do SVR representava uma oportunidade vá lida de recrutamento: o homem tinha uma predileçã oespecialporrapazesde20 epoucosanos. Umaltofuncioná riodogoverno canadenseeaindaporcimaumpidor, um veadinho. O Departamento das Amé ricas tinha primazia sobre a operaçã o, e Marble era o candidato maisindicadoparairaté Helsinquee rondar Trunk. A viagem já fora aprovada pela central. Tal como Marble sabia que aconteceria, instruçõ es haviam sido despachadas nosentidodeexcluirarezidenturade Helsinque tanto da conferê ncia quantodaoperaçã oderecrutamento. Nasuatransmissã ointermitentepor saté lite, Marble informava aos americanosquepoderiaseencontrar comalgumoperadordaCIAtardeda noite, apó s os trabalhos e coqueté is previstos para cada dia. Arriscado, maspossível. UmanalistadoQGespecializado naRú ssiachegariadoisdiasantesdo inı́cio da conferê ncia para ajudar na preparaçã o dos encontros secretos. Uma longa lista de perguntas de acompanhamento do caso, gerada pelosrelató riosanterioresdeMarble, foienviadaporcabogramaà estaçã o. Ao im dessa relaçã o, como sempre, vinham os questionamentos protocolares de contrainteligê ncia, perguntas bobas e super iciais: “Você s tê m conhecimento de algum informante no governo norteamericano? Da divulgaçã o nã o autorizada de qualquer material con idencial norte-americano? De alguma operaçã o de inteligê ncia direcionada contra cidadã os ou sistemasdosEstadosUnidos?” Eles repassaram cada item da lista de afazeres. Renovar o estoque deequipamentosdecomunicaçã odo informante seria impossı́vel, porque Marbleteriadepassarpelaalfâ ndega ao voltar à Rú ssia. Um plano de contato universal teria de ser atualizado.Forsythvetouapresença de dois o iciais seniores do QG nos encontrossecretoscomorusso.Nate eraooperadordeMarbleefariatodo otrabalhosozinho. Depois vieram os preparativos de que apenas Nate poderia cuidar: ele desapareceu de vista durante o diae,à noite,iaaté asimediaçõ esdo Kä mp Hotel, onde seria realizada a conferê ncia e seriam alojados os participantes, para vasculhar a á rea em busca de lugares possı́veis para um breve encontro secreto: becos, portõ es,dequesdecarregamentoetc. Passavadiantedecafés,restaurantes, museus—queseriamoslocaispara os esbarrõ es de entrega —, e ia contando passos, medindo distâ ncias, determinando luxos e padrões. Por im, durante uma noite de chuva forte em que a fachada da estaçã oferroviá riamaispareciauma cachoeira,Nateentrounosaguã odo prédio,sedirigiuàescadalaterallogo apó s a entrada e dali a pouco sentiu uma mã o colocando em seu bolso umapesadachavedequartodehotel. Um homem com cara de rato, um agentedeinteligê nciaeuropeu,usara um nome falso e alugara um quarto noHotelGLOporumasemana.Todas as noites, até o im da conferê ncia, Nate esperaria nesse quarto para se encontrar com Marble sempre que o russo conseguisse escapar. Fecharia janelasecortinas,ligariaatelevisã oe enfrentaria o calor até ouvir o discretobaternaporta,já antevendo as longas conversas que avançariam madrugada afora enquanto a cidade dormia e as luzes dos semá foros brilhavam sem parar nas ruas molhadasevazias. QuandoMarbledesceudoaviã o em Helsinque, a estaçã o já estava totalmente preparada para passar com ele tanto tempo quanto fosse possı́velesegurosemqueummı́sero io de cabelo do americano pudesse serencontradopelocaminho. Anoitecia, e mais uma vez Dominika montava guarda no mezanino do Torni Hotel, esperando Nate chegar à piscina. Eles agora nadavam pelo menos trê s vezes por semana, mas fazia seis dias que ele nã odavaascaras.Elavinhaachando aquiloestranhoeestavasesentindo um pouco esnobada. Uma semana antes, num domingo ventoso de primavera, eles tinham se encontrado à beira d’á gua em Ullanlinna,noCarusel Café . No porto agora se viam inú meros mastros e adriças balançando de um lado a outro, obedecendo aos caprichos do vento assim como as nuvens que zanzavam no alto, nos raros dias de céuazul. Para chegar à marina Dominika pegara um ô nibus, depois o metrô , depois dois tá xis. Caminhando pela Havsstranden, ela pensara por um tempo até vencer a pró pria resistê ncia e passar um pouquinho de perfume atrá s das orelhas. Nate apareceuapé eatravessouaruaum pouco agitado. Charmoso como sempre, mas um tanto diferente. O halovioletaapareciagranulado,mais pá lido que de costume. Sem dú vida ele estava preocupado com algo. Ao contrá rio das outras vezes, em que geralmente passavam quatro, cinco, seis horas juntos, Nate disse, apó s uma hora, que precisava ir. Tinha outro compromisso. Coisa de trabalho.Elesaindacaminharampor algumtempoàbeirad’água,equando Dominika sugeriu que no im de semana seguinte eles tomassem a balsaparaSuomenlinnaepassassem odiaexplorandooantigoforte,Nate respondeu que adoraria, mas que seria melhor deixar o passeio para daliaduassemanas. As á rvores já começavam a lorescer e eles já podiam sentir o calor do sol no rosto. Numa esquina mais tranquila, pararam e se encararam. Dominika iria para um lado, ele para o outro. Ela ainda sentia a energia nervosa que ele irradiava.Semdúvidaestavaàespera dealgumacontecimentoimportante. — Desculpe — disse ele. — Sei que nã o fui boa companhia, mas é que... ando meio atarefado no trabalho.Entã ovamosaofortedaqui aduassemanas? — Claro — retrucou Dominika. —Agentesevê napiscinaecombina melhor. Eles se despediram e ela se virou para atravessar a rua, perguntando-se onde estava com a cabeçaquandodecidiraseperfumar. Nate icou parado no lugar, observando-a se afastar em meio à s folhas varridas pelo vento, admirando as panturrilhas de bailarina, as mã os que balançavam levemente junto à s pernas compridas. Só entã o notou que ela mancavaumpoucoaocaminhar. Em seguida ele se foi també m, agorapensandonachegadaiminente de Marble. Ainda faltava estabelecer um procedimento qualquer para sinalizar ao russo que estava tudo bem e que ele podia subir ao quarto doHotelGLO. STRAPATSADA — OVOS À MODA GREGA No azeite quente, refogar tomates sem pele e picados, cebolas, açúcar, sal e pimenta até formar um molho espesso. Acrescentar os ovos ba dos e mexer vigorosamente até chegar à consistência de omelete. Servir com fa as de pão quente regadas com azeite. CAPÍTULO 13 JA HAVIA SE PASSADO TEMPO demais. Por onde ele andaria? Teria encontrado outro alvo? Outra mulher? Teria sumido só porque ela entregara o nome de Volontov? Era nisso que Dominika pensava enquanto esperava Nate no mezanino do Torni Hotel. Sabia que, maisumavez,elenãoapareceria. Tentounã opensarnotioVanya em Moscou, tampouco naquele rezident suarento que nã o tirava os olhos dela. Na manhã seguinte ela teriadeentregarumrelatório. Voltando a pé para o apartamento, ela mal reparava nas ruas ou nas luzes das janelas. Imaginava o que aconteceria na rezidentura no dia seguinte. Seu relató rio sobre o sumiço de uma semanadeNateseriaimediatamente encaminhado via cabograma para Vanya. Na Linha KR, uma solicitaçã o urgente ao setor administrativo levaria à produçã o de uma lista de todos os russos que haviam viajado paraaEscandiná vianosú ltimosseis meses,bemcomoosquepretendiam viajar nos seis meses seguintes. Diplomatas, empresá rios, professores e alunos universitá rios, funcioná rios pú blicos, até mesmo pilotos e comissá rios. Em seguida, com toda a paciê ncia do mundo, os lobos da KR eliminariam nomes baseando-se em idade, pro issã o, histó rico e, sobretudo, acesso a segredos de Estado. A lista reduzida de suspeitos poderia chegar a uma dezena ou uma centena de nomes. Issonã ofariaamenordiferençapara o SVR, que começaria a vigiá -los em tempointegral,interceptandocartas, grampeando telefones, vasculhando residê ncias edachas, despachando operadoresparainvestigá-los. A busca certamente se estenderiaaHelsinquetambé m.Uma equipe de vigilâ ncia da Diretoria K seria orientada a seguir Nate por duas ou trê s semanas, um mê s que fosse, e observar as atividades dele. Inventivos e invisı́veis (os vigilantes da Diretoria K eram sempre mencionados num tom de admiraçã o), eles passariam suas observaçõ esaMoscoueentã oteriam inı́cio as in indá veis investigaçõ es. Era inevitá vel. Ao im do processo, caso o informante fosse mesmo russo, seria preso, julgado e executado. As eminê ncias pardas colocariam suas garras de fora mais umavez. Os passos de Dominika ressoavam no silê ncio da noite. As ruas estavam vazias. Ela se perguntavaquemseriaoinformante de Nate. Que motivos ele teria para trair seu paı́s? Que tipo de pessoa seria? Decente? Corrupta? Nobre? Louca? Dominika queria ver o rosto desse informante, ouvir sua voz. Talvez se identi icasse com seus motivos. Talvez fosse capaz de entender sua traiçã o. Pensou na pró pria pequena transgressã o.Você não teve a menor di iculdade para racionalizar a situação, não é, sua conspiradorademeia-tigela? Dominika se recostou na fachada de um pré dio e fechou os olhos. Até aquele momento era a ú nica pessoa a suspeitar, ou melhor, asaberqueNateseencontrariacom seu informante. Chegou a icar um pouco tonta ao se dar conta disso. E seelanã odissessenada?Seriacapaz de tamanha deslealdade? Nada a impedia de sonegar aquela informaçãoesabotarojogodeles. De repente ela se lembrou daquela putinha, Sonya, que conspirara com o namorado para arruinar sua carreira de bailarina. Lembrou-se do brutamontes que tentara agarrá -la no chuveiro da academia,dogritodeagoniaqueele deraaoteroolhoperfuradoporuma torneira. Lembrou-se do francê s Delon, que nada pudera fazer contra os capangas do SVR. Lembrou-se do gosto do sangue de Ustinov que sentiranapró priaboca.Eselembrou do rosto de Anya, roxo pelo sufocamento. Eles que esperem, ela en im decidiu, já bem mais con iante. Aquilo seria perigosı́ssimo, potencialmente fatal. O plano era frá gileproibido,masextraordiná rio. O poder que ela exerceria sobre VolontoveVanyaseriareal.Suamã e sempre lhe dizia para controlar o mau gê nio, mas agora era delicioso sentir na garganta aquele friozinho datransgressão. Dominika voltou a caminhar, os sapatos ecoando na calçada. Havia algo mais, uma constataçã o que a deixava um tanto surpresa. Ela conhecia o jogo o su iciente para saber que a reputaçã o de Nate seria irremediavelmente arruinada caso ele perdesse seu informante. Nã o faria isso com ele. Gostava do americano. Via nele algo do pró prio pai. Na manhã seguinte, com um peso no estô mago, Dominika mostrou seucrachá na portaria da embaixada, atravessou o pá tio e subiu os degraus de má rmore que levavam ao só tã o, já gastos pelos incontá veis o iciais que haviam servidoantesdela.SluzhbaVneshney Razvedki,SVR,ServiçodeInteligê ncia Externa. No topo da escadaria havia uma porta de metal pesada, nã o muitodiferentedaportadeumcofre. Dooutrolado,umasegundaportade tranca criptografada e uma espé cie dealambradocomcó digodealarme. Dominika deixou a bolsa em sua mesa e acenou para uma colega. Volontov estava na entrada de seu escritório,chamando-a. Parada na frente da mesa dele, ela nã o conseguia tirar os olhos das mãosgordasdochefe. — Entã o, alguma novidade? — perguntou Volontov, limpando as unhascomumabridordecartas. Dominika sentiu o coraçã o dar cambalhotas no peito, a cabeça martelar incessantemente. Receou que o coronel percebesse, que já soubesse de alguma coisa. Quando en im conseguiu falar, teve a impressã odequeaspalavrasvinham dabocadeoutrapessoa. — Coronel, descobri que o americano gosta de museus — começou ela, desajeitada. — Convidei-o para uma visita ao Kiasma nos pró ximos dias. Minha intençãoélevá-loparajantardepois... nomeuapartamento. Malacreditounoqueacabarade dizer.AquiloeratudooqueVolontov queria ouvir. O homem desviou o olhar das unhas, ixou-o nos seios delaegrunhiu: — Já nã o era sem tempo. Capriche nesse jantar, hein? Pra que ele queira voltar mais vezes. Fora isso,nenhumaoutranovidade?Nada foradocomum? Bastariacontarqueoamericano estariaocupadopelaspró ximasduas semanas para que a engrenagem se colocasse em movimento e ela, Dominika, icasse isenta de toda a responsabilidade. As marteladas icaram ainda mais ruidosas em sua cabeça.Avisã operifé ricaseturvoue ela mal conseguia discernir o porco sentado do outro lado da mesa, envolto no laranja asqueroso da pró pria aura. A garganta se fechava ao mesmo tempo que as pernas tremiam a ponto de um joelho bater no outro, algo que nunca lhe acontecera. Ela precisou resistir ao impulso de se apoiar na mesa para nã o cair. Volontov continuava a encarar os seios dela, uma mecha escapandodoscabelosengomadose apontandoparaoladocomarigidez deumaantena. Noú ltimomilé simodesegundo, Dominikasedecidiu. — Nã o, coronel, por enquanto nenhuma outra novidade — falou, comocoraçãonaboca. Acabara de cruzar o limite que separava uma simples infraçã o da traiçã o cometida contra o Estado. Cedooutardeelesdescobririamtudo e mandariam homens para matá -la comtrituradoresdegelo,assimcomo haviamfeitocomTrotsky.Jogariama mã e dela dentro de uma fornalha qualquer. Volontov ainda a itou por alguns instantes, grunhiu mais uma vez e por im a dispensou com um acenodemã o.Dominikalogoviuque ele nã o descon iara de nada. No entanto,mesmotendocertezadesua intuiçã o, sentiu o sangue formigar geladonasveias. Voltouparasuamesaedesabou na cadeira. Todos à sua volta trabalhavamcomacabeçabaixa,uns lendo, outros digitando ou escrevendo algo. Exceto Marta Yelenova, que se sentava a duas mesas de distâ ncia. Ela empunhava um cigarro, olhando na sua direçã o. Dominika abriu um pequeno sorriso edesviouoolhar. Marta era a principal assistente administrativadarezidentura,omais pró ximoqueDominikatinhadeuma amiga na embaixada. Elas já haviam conversadoalgumasvezesedividido a mesa durante um jantar de despedida oferecido a um diplomata qualquer. Numa tarde chuvosa de domingo as duas se encontraram para um passeio no mercado do porto, parando aqui e ali para beliscar alguma coisa nas barraquinhas de comida fresca. Uma mulher elegante, de traços nobres, Marta tinha cerca de 50 anos e uma fartacabeleiraqueiaaté osombros. As sobrancelhas grossas encimavam seus lindos olhos castanhos. Os lá bios inos estavam sempre um pouco curvados para cima em um permanente sorriso de sarcasmo, talvez por conta da visã o cı́nica que parecia ter do mundo. Era uma daquelas pessoas que tinham uma auradecorforteemtornodacabeça e do corpo, um vermelho-rubi que denotava paixã o, ardor, o mesmo tom que Dominika via sempre que ouviamúsica. Sem dú vida a mulher fora uma beldadenajuventude.Quaserosnava sempre que algum colega do sexo masculino se aproximava para fazer qualquer comentá rio, por mais inocente que fosse, sobre seu corpo imponenteevistoso,agoraumpouco arredondado demais na regiã o da cintura. Ela colocava o infeliz para correr. Tampouco se deixava intimidar quando Volontov vinha exigir algum voucher, prestaçã o de contas ou relató rio mensal. Falava sem nenhum pudor que os papé is seriamentreguesassimque icassem prontos. Era Volontov quem parecia seintimidarcomoporteolı́mpicoda funcionária. *** Dominika nã o sabia nada a respeito do passado de Marta, mas, se soubesse, sem dú vida icaria surpresa pelo fato de a mulher ter sido recrutada pela KGB, em 1983, parasematricular na Escola Federal Quatro, a Escola de Pardais que se escondianocoraçã odeuma loresta nos arredores de Kazan. Tinha 20 anosà é poca.OpailutaranaGrande GuerraPatrió tica,depoisseintegrara à s forças do NKVD em Leningrado como membro do partido, um iel vassalo do Estado. A beleza extraordiná ria de Marta fora notada por um major da KGB durante uma ronda de inspeçã o e ele providenciara para que ela fosse contratada pelo SVR como sua secretá ria. O pai de Marta, que conhecia a má quina do governo a fundomasaindaassimesperavaque a menina tivesse uma vida melhor, assentiraemsilê ncioedespacharaa ú nica ilha para morar com a irmã dele em Moscou, a im de que ela pudessecomeçaratrabalharnaSDG, a Segunda Diretoria-Geral da KGB (segurança interna), Sé timo Departamento (operaçõ es contra turistas), Terceira Seçã o (hoté is e restaurantes). Sozinho, o Sé timo Departamento empregava duzentos o iciais e 1.600 informantes e agentesemmeioexpediente. Uma vez em Moscou, Marta foi notada por um coronel da SDG, patente superior à de major, e convocada a integrar a equipe dele. Depois de um tempo, chamou a atençã o de um general da SDG, de patente superior à do coronel, e chamada para trabalhar como auxiliar dele, mesmo sem fazer a menor ideia do que era esperado do cargo.Descobriucertatarde,quando otalgeneralaempurrouparaosofá deseugabineteepassouamã osoba saia do uniforme dela. Marta o golpeou na cabeça com a garrafa de á gua a seu lado, uma garrafa tipicamente sovié tica, de metal. O escâ ndalo abalou os alicerces da puritana KGB, sobretudo porque a mulher do general era irmã de certo membrodoPolitburo.LogoMartafoi transferida para a Escola Federal Quatro.Nãotinhaescolha.Teriadese tornarumpardal. Marta apresentava a rara combinaçã o de uma beleza estonteante com uma inteligê ncia acima da mé dia. Enquanto a beleza lhe ajudava a atrair diplomatas estrangeiros, jornalistas e empresá rios, a inteligê ncia lhe conferia um talento especial para conquistaramigosin luentes.Ao im deumacarreiradequasevinteanos, Marta era conhecida como Koroleva Vorobey,arainhadospardais.Havia participado de dezenas de arapucas orquestradas pela SDG, as quais permitiram à KGB recrutar, entre outros, um bilioná rio japonê s ninfomanı́aco,umembaixadoringlê s adú ltero e um abjeto ministro de Defesaindiano.Noaugedatrajetó ria, fora a isca sexual do lendá rio recrutamento de uma criptó grafa alemã , funcioná ria da embaixada, cujosubornotornara possı́vel à KGB ler todo o trá fego cifrado entre a AlemanhaeaONUduranteseteanos ininterruptos.Essafoiaú nicavezem que ela trabalhou contra outra mulher, mas o recrutamento ainda era citado como uma operaçã o clá ssica nas escolas superiores da KGB. Aolongodosanos,osromances nã ooperacionaisdeMartaincluı́ram dois membros do Politburo, um generaldaPrimeiraDiretoria-Gerale diversos ilhos de o iciais in luentes na alta direçã o da KGB. Inú meros exchefes de sobrancelhas grossas ainda se lembravam dela com carinho. Graças a esses “mentores” velhos de guerra, Marta era uma mulherà provadequalquerataquee seaposentaradavidadepardalcom uma pensã o equivalente à de um major do SVR. Decidira aproveitar a vidaeverumpoucodomundo,entã o solicitara uma transferê ncia para o exterioreforaprontamenteatendida comumpostoemHelsinque. *** Aprincı́pioMartanã osabiaseo trabalhodeDominikaeradenatureza operacional ou apenas administrativa. Uma coisa era certa: amocinhaerajovemdemaisparater recebido um posto fora do paı́s. O sobrenome explicava muita coisa, mas o fato de ela nã o ter nenhuma tarefa regular narezidentura, nã o obedecer a horá rios ixos e falar direto, sempre em particular, com o rezident,tudoissosugeriaqueestava em Helsinque para alguma missã o especial.Asroupaseramnovas:sem dú vida tinham lhe dado um guardaroupa completo. Os rumores aumentaram ainda mais quando se soube que a recé m-chegada fora alojada num apartamento fora da á rea reservada a todos os funcioná rios da embaixada. Marta já viraessefilme. N arezidentura, Dominika era correta,reservada,faziaseutrabalho com rapidez e e iciê ncia, alé m de uma intensidade incomum. Em campo ela estava sempre avaliando pessoas e lugares, examinando portas e calçadas, usando movimentos do dia a dia para disfarçar olhadelas. Marta percebia tudo isso, e quando estava com Dominika a uma mesa qualquer tomando um café , notava també m que, quase inconscientemente, ela usava sua beleza — os olhos, o sorriso, o corpo — para seduzir os interlocutores,domesmomodoque, durante um papo informal, lançava mã o de seu conhecimento das té cnicasdeconversaçã oparaextrair umainformaçãoououtra. Marta nã o podia deixar de icar encantada.Amoçatinhatudo:beleza, inteligê ncia, habilidade té cnica. Sem falar na incandescê ncia daqueles olhosazuis.Nã ohaviadú vidadeque elasabiaoqueestavafazendo,deque amavaseupaı́s,massobasuperfı́cie parecia haver algo borbulhando secretamente como um lençol freá tico. Orgulho, raiva, desobediê ncia. E mais alguma outra coisa, difı́cil de de inir. Um lado secreto, certa inclinaçã o à rebeldia. Eracomoseela lertassecomorisco comacompulsã odeumvı́cio.Marta se perguntava quanto tempo aquela jovem tã o esperta e intuitiva levaria para descobrir que o trabalho da central nã o passava depokazukha, algo feito apenas para constar, uma simples encenaçã o. Volontov era um exemplo tı́pico dos atores daquele teatro, dos funcioná rios que haviam povoado a KGB e o Kremlin nos últimossetentaanos. Acertaalturaelaspassaramase encontrarapó sotrabalhoparabeber umataçadevinhoemalgumbarlocal e se deleitar com uma pecaminosa fatia de torta de caviar comcréme fraîche e muito queijo. Conversavam sobre famı́lia, sobre Moscou, sobre experiê ncias de vida. Dominika preferia nã o mencionar sua passagem pela Escola de Pardais. Marta ria e a fazia rir, e no im da noiteelassaı́amdebraçosdadospela calçada. Certanoite,apó selegantemente despachar o alemã o asqueroso que as abordara, Marta contou sua histó riadevidaaDominika,faloude suacarreiracomopardal.Orgulhavasedeterservidoopaı́senemsequer pensava em toda a selvageria que testemunhara na KGB. Nã o tinha a menor vergonha de quem era, tampouco do que izera. Ao ouvir aquilo, Dominika icou com os lá bios trê mulos, olhou para a amiga e começou a chorar em silê ncio. Foi uma longa noite depois disso, mas Martaagorasabiatudoarespeitode Dominika. Sabia de tio Vanya, da missã o contra Nate, da Escola de Pardais,dofrancê sDelon,até mesmo de Ustinov. As palavras saı́am da boca da jovem em um turbilhã o impossı́vel de conter, sem qualquer intençã o de seduzir ou manipular. DaliemdianteelaeMartapassariam aser,simplesmente,boasamigas. Osencontrossesucediamnoite apó s noite, e Marta, do alto de sua experiê ncia pessoal e pro issional, ouvia tudo o que Dominika tinha a dizer. Espantava-se que osvlastiteli, oschefes,tivessemconseguidoquea moça evoluı́sse tanto em tã o pouco tempo. No entanto, por mais que visse as qualidades e a força de Dominika,suspeitavaqueoconvı́vio com o descontraı́do americano, o agente da CIA, estivesse lhe provocando alguma reaçã o mais profunda. A irmar isso seria sugerir que ela nã o era capaz de operar de maneira correta, entã o preferiu guardarassuspeitasparasi. — Sei lá — disse Dominika. — Eleé meioarroganteefazpiadacom tudo. Nã o gosta muito da Rú ssia, ou pelo menos nã o dá o devido cré dito ao nosso paı́s. Tio Vanya está convencido de que ele é um agente desesperado. — Parece uma pessoa desagradá vel — comentou Marta. — Masissosófacilitaascoisaspravocê, nã o é ? Trabalhar contra ele, até mesmo ir pra cama com ele pra conseguiroquequer. Ela acendeu um cigarro e olhou para Dominika. Elas estavam na terceirataçadevinho. — Eu nã o diria “desagradá vel”. Até queé umcaralegal.—Dominika suspirou, depois acrescentou: — Devocontarpro Volontov assim que eleparecermeiodistraı́do,assimque descon iarqueele está vulnerá vel. O objetivo é pegá -lo com a boca na botijacomoinformantedele. Ovinhocomeçavaafazerefeito. — E você o conhece bem o bastante pra saber? — perguntou Marta.Dominikaafastouumamecha decabelodatestaedisse: —Naverdadeeu...eujásei. — Entã o foi lá e contou pro coronelVolontov,nãocontou? Marta já sabia o que estava acontecendo. — Nã o exatamente — retrucou Dominika. — Falei que continuaria observando. —Nã ofalouquesuspeitavaque o seu jovem americano estava entrandoemação? — Ele nã o é “meu jovem americano” — respondeu Dominika, deolhosfechados. —Masvocê achaqueeleestá no ponto de ser lagrado e, quando Volontovperguntou,você nã ocontou nada pra ele? E isso? — quis saber Marta,inclinando-senadireçã odela. —Abraosolhos.Olhepramim. Dominikaobedeceuefalou: —E,é isso.Nã oconteinada.— Evoltouafecharosolhos. Marta deu um gole no vinho e constatoucomalgumdistanciamento que Dominika nã o só cometera uma traiçã o contra o Estado (dizer “contraaDuma”seriaridı́culoà quela altura), como izera dela, Marta, sua cú mplice nessa traiçã o, ainda que apenas na qualidade de ouvinte. Ela apertouamãodeDominikaealertou: —Vocêprecisatomarcuidado. Martadedicaraumavidainteira ao Estado; por anos ignorara os excessos cometidos por ele e contribuı́ra pessoalmente para arruinar a vida de indivı́duos cujo ú nico pecado fora sucumbir aos prazeres da carne. Em seu ı́ntimo, poré m, fazia tempo que ela cortara todos os laços com aqueles animais ilhos da puta. Podia muito bem entender a situaçã o de Dominika. Sabia que aqueles monstros sugariam tudo o que aquela menina tã o linda e inteligente tinha a oferecer e depois a descartariam como a um objeto. No entanto, Dominikacorreriaumriscomortalse dealgumamaneira,pormaisindireta que fosse, sua atitude viesse a frustrar os planos de Vladimir Putin. As informaçõ es que ela tinha a respeitodoamericanoeraminó cuas, desdequeninguémasdescobrisse. *** A rá pida visita de Marble a Helsinquefoiumsucessoemmuitos aspectos. Em primeiro lugar, foi apresentado a Trunk, o ministro canadense, e fez um progresso signi icativo com ele; dali em diante teria uma base mais só lida para continuar no encalço da exuberante igura. Em segundo lugar, trê s madrugadas de encontros com Nate noHotelGLOhaviamproduzidooito relató rios de inteligê ncia altamente graduados (com anotaçõ es su icientes para outros quase quarenta)sobreoperaçõ esdoSVRna Europa e na Amé rica do Norte. Em terceiro, Marble forneceu o nome de um o icial da Diretoria de Planejamento Estraté gico da Real Polı́ciaMontadadoCanadá quevinha se encontrando com uma imigrante ilegal russa (que durante o dia trabalhavacomostrippernoBareFax de Ottawa). Por im, o agente veterano repetiu de memó ria (em geral nã o tinha acesso aos cabogramasquevinhamdaChina)os pontos mais importantes de trê s relató rios extraordiná rios do SVR, enviados de Pequim, detalhando as rixasdepoderqueaindaaconteciam dentro do Comitê Permanente do Politburo dois anos apó s a remoçã o de Bo Xilai, no inı́cio de 2012. As informaçõ es privilegiadas que ele tinha sobre o interesse, ou “obsessã o”, do presidente Putin no Partido Comunista Chinê s eram bastantevaliosasparaosanalistas. Tudo isso era fruto exclusivo das iniciativas de inteligê ncia de Marble.Oitemmaisexplosivoeraum comentá rio que ele ouvira nos corredores do SVR, segundo o qual uma missã o vinha sendo conduzida diretamente no quarto andar de Yasenevo, uma “missã o de diretor”, algum informante tã o importante que os lı́deres do Serviço haviam achado melhor operá -lo pessoalmente.Algumgovernoestava com um grande problema nas mã os, uma enorme fonte de vazamento de informaçõ es, e os agentes de contrainteligê ncia americanos andavamcomapulgaatrá sdaorelha: seria possı́vel que esse informante estivesse em Washington? Essa informaçã o palpitante por parte de Marbleseriatratadaemseparadodas outrasqueelefornecera. Ningué m precisava dizer ao velho espiã o como agir em relaçã o à quilo. Ele mesmo se adiantou e avisou o que pretendia fazer. Era experiente o bastante para saber apertar os botõ es certos só com a pontinha do dedo, para se fazer de morto à espera de alguma movimentaçã o a seu redor. Continuaria coletando informaçõ es comadiscriçã odesempre.Enquanto isso, as palavras “informante do SVR”, “missã o de diretoria” e “Yasenevo”seriamescritasinú meras vezes nos quadros dos analistas de contrainteligê ncia em Washington, os quais esperariam o tempo que fossenecessá rio,meses ou anos, até conseguiremmaispeçasparaaquele quebra-cabeça. Naú ltimanoite,Marblecontoua Nate que nos pró ximos seis meses Anthony Trunk estaria presente numa conferê ncia de economia em RomaenaAssembleiaGeraldaONU, mais dois pretextos para que o informanterussopudessesairdeseu paíssemlevantarsuspeitas. Dessa vez o time em Washington icara especialmente satisfeito com as informaçõ es de MarbleecomodesempenhodeNate. Um bô nus foi depositado na conta secreta do russo, e o americano foi recompensado com um aumento salariallíquidodeUS$153. — Uau — disse Gable ao informaraNatesobreoaumento.— Cento e cinquenta e trê s pratas. Vamos rezar pra que a porra da in laçã o nã o coma isso em dois meses. Ah, e você també m ganhou seisvalespralavarseucarronolavajatodaesquina. Ao im da rodada de encontros, antesqueMarble voltasse a Moscou, Nate trouxe à tona um assunto delicado: a segurança do general. Com absoluta tranquilidade, Marble admitiu que, desde a ú ltima vez que osdoisseviramnasruasgeladasde Moscou,quepareciatersidosé culos antes e na qual eles quase haviam sido capturados, tivera inı́cio uma sé riacaçaà sbruxasemYasenevo.O primeiro vice-diretor Egorov, velho companheiro de Marble, estava convencidodequealgumfuncioná rio de alta patente no SVR andava espionandoparaaCIA. —Emoutraspalavras...pramim — disse Nate com uma risada, mas visivelmentepreocupado. — Olhe — retrucou Marble —, estouacostumadoaorisco.Seicomo funciona o SVR. Sei como funciona a cabeçadaquelezhulik,daquelepateta chamadoEgorov.Nã ohá motivopara alarme. Lembrou-se entã o dos catorze anos que já completara como informante da CIA, das noites que passara em claro enquanto esperava ouvir passos na escada, dos apertos no peito quando era chamado de volta a Moscou para alguma “consulta”, do alı́vio que sentia ao entrarnumasaladereuniã oedefato se deparara com a reuniã o para a qual fora convocado. Porque outros antesdelejá haviamencontradouma salavaziaeosubijca,oscapangasdo SVR,esperandoatrásdaporta. Marble en im conseguiu tranquilizar seu jovem e intenso operadoreelesrepassaramjuntosos planosdecontingê nciaquejá haviam concebido para o cená rio mais extremo possı́vel no mundo da espionagem: a ex iltraçã o, como era chamada a operaçã o em que os informantes com a cabeça a prê mio eramretiradosdopaı́scomafamı́lia ouaamante,fossenoporta-malasde um carro, fosse numa arriscada manobra com documentos falsos numaeroportoqualquer. Aocabodequarentaminutosde conversa, Marble ergueu a mã o e disse: — Por hoje chega, Nathaniel. Vocêédetalhistademais. Natecoroudevergonhaeelesse despediram. *** Marble voltou em toda a segurançaparaMoscou,eNate icou felizcomaenxurradadeelogiosque obteve do QG, sobretudo com o cabograma segundo o qual seus relató rios haviam sido muito bem recebidos “nas mais altas esferas”, jargã o interno para a presidê ncia da Repú blica e o Conselho Nacional de Segurança. Forsyth o cumprimentou com tapinhasnoombroeGablelhetrouxe umacerveja. — Você recebeu esses elogios todos — disse —, mas nã o tem ningué m pensando no seu informante.Eobrigaçã osuanã otirá lodacabeça.Nãoseesqueçadisso. Apesar do clima de festa, Nate ainda se preocupava com seu problema mais premente: Dominika. Paraondeaquelecasocaminhava?O quesigni icavaacon issã odequeela trabalhava para orezident? Caso nã o houvessealgumprogressoembreve, as reclamaçõ es nã o tardariam a chegardoQG. — Foda-se o QG — decretou Gable, e abriu mais uma cerveja. — Procure esfriar a cabeça nas pró ximassemanas,cara.Aproveitea maré boa que está rolando pro seu lado.Depoisagentevêoquefaz. AquelaalturaNatejá conheciao chefebemosuficiente. — O que você quis dizer é : “Levanta a bunda dessa cadeira e vá praruaantesqueeuteexpulsedaqui nabasedaporrada”,éounãoé? — Exatamente — respondeu Gable. — Vá já para aquela piscina encontrarasuarussinha.Leve lores praela.Digaqueestavamorrendode saudades.Convide-aprajantar. —Prafalaraverdade,Marty,eu iqueimesmo com um pouquinho de saudade da garota — retrucou Nate, baixandoosolhosparaocarpete. —Nã odiga—ironizouGable,e saiudasala. TORTA DE CAVIAR Refogar cebolinhas e depois batê-las no liquidificador com crème fraîche e queijo Neufchâtel ralado. Despejar a mistura sobre uma forma de fundo removível e jogar ovos cozidos e picados por cima. Espalhar uma fina camada de caviar Ossetra ou Sevruga e levar à geladeira. Desenformar e servir com blinis ou torradinhas. CAPÍTULO 14 MARTA CONSPIRAVA COM DOMINIKA nas pequenas coisas. Ajudava-a a rechear os relató rios diárioscomatividadesinventadasea fabricar documentos de contato que mostrassem certo progresso com o americano,masquefossembanaiso su iciente para nã o despertar o urso dormente de Moscou. Dominika informava sobre encontros agradá veisporé minconclusivoscom seu alvo, ora num museu, ora num restaurante ou café , sempre fazendo referê ncias veladas a uma apatia quasepreguiçosaporpartedele. —IssofazNateparecerhorrı́vel — comentou ela certa vez. — E eu també m. Vamos terminar nossos dias como duas solteironas, eu e você! — Acha mesmo? — retrucou Marta, acendendo um cigarro. — Vamos ser aquelas duas mulheres que vã o ao açougue pra comprar linguiça e o açougueiro diz que está sem troco, entã o dá a elas uma linguiça extra. “O que a gente vai fazer com uma terceira linguiça?”, uma das moças cochicha pra outra. “Nã o tem problema”, diz a segunda. “Essaaíagentecome.” Dominika irrompeu numa gargalhada. Volontov andava sempre por perto,repassandotodaapressã oque sofria de Moscou. Já notara a proximidadeentreasduasmulheres, a expardal de meia-idade e sua coleguinha mais jovem. Nã o havia dú vida de que Yelenova andava fazendo a cabeça de Egorova. A veterana icava cada vez mais mais insubordinadaeindisciplinada. Era um dia de temporal, uma chuva forte que vinha da Estô nia e desabava sobre a cidade. Dominika estava fora da embaixada quando Marta foi chamada ao gabinete de Volontov. Sentou-se por iniciativa pró pria, empertigou os ombros e disse: —Poisnão,coronel. Volontovaencarouemsilê ncio. Correu os olhos do rosto para as pernas dela, e daı́ para o rosto mais umavez. Sem ao menos piscar, Marta falou: —Porquemechamouatéaqui? — Tenho reparado na sua amizaderecentecomocaboEgorova — começou Volontov a inal. — Você e ela tê m passado um bom tempo juntas,aoqueparece. — Algum problema, coronel? — retrucou Marta, depois acendeu um cigarro, ergueu a cabeça e soprou a fumaçaparaoalto. Volontov agora a itava como umgarotinhocaipira. — O que você tem falado pra ela? —Nãoseiseentendiapergunta, coronel — respondeu Marta. — As vezes saı́mos pra tomar um vinho e conversamos sobre famı́lia, viagens, restaurantes... — O que mais? — quis saber Volontov. — Falam de homens também?Namorados? As lâ mpadas luorescentes da salare letiamobrilhodaslapelasde seupaletóbúlgaro. — Desculpe, coronel, mas nã o vejo motivo pra essa pergunta de naturezaestritamentepessoal. —Sookinsyn!—rugiuVolontov, esmurrando a mesa. — Nã o preciso lhe dar motivo algum! Seja lá o que você anda dizendo pra Egorova, quero que pare! Esse seu cinismo, essasuavisã odeturpadadascoisas... Sua companhia nã o tem feito nada bemaela.Aprodutividadedelacaiu. Otrabalhotemsidonegligenciado.Os relató rios nã o estã o satisfató rios. Deixe a moça em paz, ou serei obrigadoatomarprovidências. Habituada aos ataques de raiva dos altos o iciais sovié ticos, aos quais era imune, Marta se inclinou para a frente com toda a calma e apagou seu cigarro no cinzeiro de Volontov. Vendo que os olhos dele haviambaixadoparaodecotedesua blusa, plantou as mã os na mesa e se inclinou ainda mais para que ele tivesseumavisãomelhor. — Coronel, eu preciso lhe dizer umacoisa—falou.—Osenhoré um homem repulsivo. E o senhor quem devedeixarEgorovaempaz.Parede constranger a menina com seus modos asquerosos. Ela nã o fez nada deerrado. —Comquemvocê achaqueestá falando, hã ? — berrou Volontov. — Você nã opassadeumaputavelhade guerra,blyadischa! Posso mandá -la devoltapracasahojemesmo,botá -la pra correr como a cadela sarnenta que é ! Vai terminar seus dias pilotando uma agê ncia de turismo em Magnitogorsk, carimbando permissõ es de viagem o dia todo, depoisusandosuabocabanguelapra chupar o pau dos jogadores de hóqueidoMetallurganoiteinteira! — Ah, claro, as ameaças de sempre — retrucou Marta. Conhecia pelo avesso aquele tipo de animal covarde. — Mas... ameaça por ameaça... que tal esta aqui? Posso fazerdasuavidauminferno,coronel Volontov. Posso criar tantos problemas em Moscou que vai sero senhor quem vai terminar osseus dias de joelhos em Magnitogorsk. VanyaEgorovnã ovaigostarnemum pouco de saber que esta sua rezidenturaé umasvlaka,umpoçode incompetê ncia,queosenhornã otem resultado algum pra mostrar. E ele també m vai adorar saber das punhetas que o senhor bate pensandonasobrinhadele,sonhando com o dia em que vai cair de boca entreaspernasdela.Mudak! Tratava-se de uma insubordinaçã o sem precedentes. Aquiloeratraiçã o. Volontov icou de péeesperneou: — Arrume suas coisas agora mesmo!Você tematé amanhã à noite pra sumir daqui. De trem, barco, aviã o, nã o quero nem saber! Se depoisdeamanhã você aindaestiver aqui... —Zhopa!Filhodaputa! Marta deu as costas para Volontov e seguiu na direçã o da porta. Ofegando de raiva, Volontov abriuagavetaepegouumapequena Makarov automá tica, a pistola que o acompanhava desde o inı́cio da carreira. Jamais a disparara a trabalho, muito menos num momentodefú ria.Agora,comamã o trê mula, ele abriu o ferrolho para alojarumabala.Aporta,Martaouviu obarulhoevirouorosto,deparandosecomapistolaviradadiretocontra ela. — Nã o sou Dimitri Ustinov, coronelVolontov.Você esuaraçanã o podem simplesmente destruir tudo aquiloquenãoconseguemcontrolar. Ela sentia o coraçã o dar cambalhotas no peito, sem saber ao certo se o coronel teria coragem de atirar. Ustinov? O oligarca assassinado? Esquartejado em sua pró pria cobertura, baldes de sangue numa suposta vingança da Má ia? Volontov nã o fazia ideia do que aquela cadela dizia, mas na sua cabeça os circuitos sovié ticos da dé cada de 1950 estavam prestes a ferver.Seusinstintosoalertavamde algo sob a superfı́cie daquele lago, talvez algo muito importante. Ele baixouapistola.Martaen imabriua portaesaiu.Colegassejuntavamno corredor depois de terem ouvido a gritaria. Sozinho em sua sala, Volontov acendeu um cigarro e procurou se acalmar. Dali a pouco pegouotelefonedealtafrequê nciae pediu à telefonista uma ligaçã o para Moscou. Meia hora depois estava falando com o primeiro vice-diretor Egorov. Bastaram dois minutos para que ele recebesse suas instruçõ es: ignorar o que Yelenova dissera, nã o contar uma palavra a ningué m, nã o fazer absolutamente nada. Volontov estava prestes a argumentar que aquele tipo de insubordinaçã o minava sua autoridade quando, em meio à está tica da ligaçã o, Egorov mandou que ele prestasse atençã o e decretou: — Yest’ chelovek, yest’ problema. Nyet cheloveka, nyet problemy. Volontov sentiu um frio na espinha.Conheciamuitobemaquele aforismo, um dos prediletos do camarada Stalin: “Se existe uma pessoa, existe um problema. Se nã o existe uma pessoa, entã o nã o existe nenhumproblema.” *** Nate e Dominika conversavam nosofá doapartamentodele.Asluzes do porto entravam pela janela e o apitogravedeumnavioressoavana escuridãoparaalémdasilhasdabaía. Umaequipedevarreduraexaminara o apartamento de modo que ele pudesse convidar Dominika para jantar. Aquela altura nenhum dos dois sabia qual deles estava em vantagem operacional, como suas iniciativas de desenvolvimento se desenrolariam ou o que estava em jogo na situaçã o. Só tinham certeza de que queriam estar na companhia um do outro. Dois abajures eram responsá veis por uma iluminaçã o suave na pequena sala de Nate. A mú sica tocava baixinho, baladas de BenyMoré. Nate havia cozinhado:vitello picatta, escalopinho de vitela com molho de limã o e alcaparras. Dominika esperara junto à mesa da cozinhaenquantoele fritava os ilé s, ininhos como hó stias, no ó leo quente com manteiga, e depois os reservava.Elaseaproximoudofogã o quandoelederramouvinhocomsuco de limã o para deglaçar a frigideira, em seguida acrescentou duas fatias de limã o, as alcaparras e alguns cubinhos de manteiga fria. Só entã o retornou os ilé s à panela para reaquecê -los. Eles comeram no sofá comospratossobreocolo.Dominika terminou seu vinho e serviu-se de maisumataça. Eles haviam retomado os encontros apó s o afastamento de algumassemanasevinhamsevendo com alguma regularidade desde entã o. Naquele domingo especialmentefriovisitaramoantigo forte naval de Suomenlinna, e durante o passeio reacenderam a velhadiscussão. — Você morou um ano em Moscou — disse Dominika —, mas nã o conhece os russos. Tem uma visã o cartesiana das coisas. Nã o aprendeunada. Nate sorriu e ofereceu a mã o para que ela passasse por cima de umabalaustrada,partedosmurosda fortaleza.Dominikaignorouogestoe subiuporcontaprópria. —Ouça—retrucouNate—,nã o vejo nenhum problema com o patriotismo.Você stê mmuitodoque se orgulhar. Mas o mundo nã o está povoado apenas de inimigos. Acho que a Rú ssia devia se concentrar mais em resolver os problemas do própriopovo. —Estamosindomuitobem,nã o precisasepreocupar. A discussã o prosseguiu mais tarde no apartamento de Nate enquantoeleslavavamalouçaapó so jantar. — O que quero dizer é que fundamentalmente a Rú ssia nã o mudou muito desde os velhos tempos e nã o sabe aproveitar as oportunidades maravilhosas que estã oseabrindoparaopaı́s.Osmaus há bitosdopassado...elesestã otodos aídenovo. —Eque“maushá bitos”seriam esses? — Corrupçã o, repressã o, truculê ncia. O comportamento sovié tico é como um vı́cio difı́cil de largar,umvı́cioqueaospoucosestá matandoademocraciarussa. — Você parece ter prazer em dizer isso — observou Dominika. — Suponho que nã o exista nada parecidonosEstadosUnidos. — Claro que temos nossos pró prios problemas, mas nã o mandamos os dissidentes pra apodrecer na cadeia, nem assassinamos nossos adversá rios polı́ticos. — Nate viu a expressã o dela mudar. — Há aqueles que prezam a vida humana, que acreditam que todas as pessoas tê m direitos, nã o importa de onde venham. E há aqueles que aparentemente nã o ligam a mı́nima pra nada disso, que nã o tê m nenhumaconsciê ncia,assimcomoas pessoas eram na ex-Uniã o Sovié tica, na antiga KGB. Algumas dessas pessoasaindaestãoporaí. Dominika mal podia acreditar no rumo da conversa deles. Em primeirolugar,porqueerainsultante estar ali naquela cozinha recebendo um sermã o do americano. Em segundo porque ela sabia que boa partedoqueeledisseraeraverdade, masnemsequercogitavadarobraço atorcer. — Quer dizer agora que você é especialistaemKGB—comentouela, pousando um prato e pegando o outroparasecar. — Cheguei a conhecer um ou doisagentesdelá—observouNate. Sem interromper o que estava fazendo,Dominikaretrucou: —Você conheciagentedaKGB? Impossı́vel. Quem? — quis saber, e pensou:O que você vai fazer se ele responder? — Ningué m que você conheça — falou Nate. — Mas, em comparaçã o,é bemmelhorconhecer as pessoas do SVR. Sã o bem mais agradáveis. Omesmosorriso,omesmohalo violeta. Dominika nã o respondeu, mas icouindignada.Conferiuashorasno reló gio e disse que já estava icando tarde.Nateajudou-aavestirocasaco e soltou os cabelos que icaram presosnagola.Elasentiuoroçardos dedosdelenanuca. —Muitoobrigadapelojantar— disse. Sua fú ria ainda estava sob controle, mas ameaçava escapar a qualquermomento. — Posso acompanhar você até emcasa?—falouNate. —Nã oprecisa—respondeuela, efoinadireçãodaporta. Virou-se com a mã o estendida para que Nate a apertasse, mas ele estavalogoatrá sdelaejá pousavaa mã o em seu ombro para lhe dar um beijinhorápidonaboca. —Boanoite—disseDominika, eseguiupelocorredorcomoslá bios formigando. PICATTA DE VITELA DO NATE Bater pequenos medalhões de vitela até obter filés bem finos. Temperá-los e dourá-los rapidamente na manteiga. Reservar e cobrir. Deglaçar a panela com vinho branco seco e suco de limão, depois ferver até reduzir. Baixar o fogo, adicionar fa as finas de limão siciliano, alcaparras e pequenos cubos de manteiga gelada. Cozinhar em fogo brando até engrossar o molho (não deixe ferver de novo). Voltar os filés à panela para aquecê-los CAPÍTULO 15 A PRIMAVERA CHEGAVA A HELSINQUEeanevejá deralugarà s chuvasqueagoracaı́amnascalçadas, fustigavamasjanelasepingavamdas á rvoressemfolhas.Passavademeianoite,eNateaindarolavadeumlado para outro na cama. A doze quarteirõ es dali, també m acordada, Dominika ouvia a chuva cair enquanto relembrava o beijo roubado por Nate, aliviada por ter salvadoapeledeleedecididaafazê lonovamente. Graças a Marta. O apoio da amigaforafundamentalparaqueela tomasse sua decisã o. Alé m disso, a visã o singular que Marta tinha da vida a ajudara a formar as pró prias ideias, sobretudo as que diziam respeito à possibilidade de ocultar informaçõ es do SVR. Marta nã o acreditava em devoçã o cega. Com frequê ncia a aconselhava a ser iel a si mesma antes de a qualquer outra coisa; caso sobrasse espaço, que fosse ielà Rú ssiatambé m.Dominika rolounacama. Cinco quarteirõ es a leste, Marta Yelenova abriu a porta de seu apartamento na á rea residencial reservada a funcioná rios da embaixada russa. O corredor tinha um odor forte de carne e repolho cozidos,eissoalembroudospré dios residenciais de Moscou. Espanou a chuva do casaco e o pendurou num ganchopertodaporta. Oapartamentoerapequeno:um quarto, uma cozinha minú scula, um banheiro menor ainda. Diversas geraçõ es de funcioná rios já haviam passado por ali. As paredes eram encardidas; os mó veis, arranhados e bambos.Martatropeçouaodescalçar ossapatosmolhadoseriu.Estavaum pouco tonta apó s uma longa noite sozinha num pequeno café . A certa altura, pedira umpytt i panna, o famoso picadinho escandinavo de carne, batata e cebola. Voltara para casa a pé , alheia à chuva que a ensopava.Jáfaziaalgumtempodesde o confronto com Volontov, e a esperada convocaçã o para Moscou, as reprimendas, a demissã o do Serviço, nada disso acontecera. O rezident a ignorava solenemente, mas, fora isso, tudo permanecia comoantes. Marta percebera que nos ú ltimos dias Dominika vinha tentando agendar mais encontros com o americano Nathaniel, em primeiro lugar porque isso deixava Volontov feliz, mas també m porque elaqueriaestaraoladodorapaz. —Volontovestavacalmo,quase solı́cito — contara a jovem certa noiteduranteoencontroqueasduas costumavam ter depois do trabalho para beber uma taça de vinho. — Pediu que eu continuasse trabalhando,quetentasseaceleraras coisasnamedidadopossível. — Nã o con io nem um pouco naquele peçonhento — comentara Marta. — Meu conselho, Domi, é o seguinte:continuefalandoqueainda está nopé doamericano,queapesar do progresso lento você permanece otimista. Isso vai deixar Volontov tranquilo.Todomundosó quersaber desucessosprarelataràcentral. Mais tarde naquela noite, voltando para casa já um tanto alterada pelo vinho, ela dissera à amiga que, se tivessem algum juı́zo, ambas já teriam desertado muito tempoantes.Issoeraalgoquesoava escandaloso aos ouvidos de Dominika. Martafoiparaoquarto.Desabou sentada na cama, tirou as roupas molhadas e as largou numa pilha no chã o. Em seguida vestiu a camisa curta e esvoaçante de um pijama de seda. Era uma peça indiana begeclara, bordada com ios verdes e dourados e com nó s no mesmo tom de verde que faziam as vezes de botõ es. Presente de um general do GRU,oserviçomilitardeinteligê ncia, que havia sido despachado para a embaixada sovié tica em Nova Dé li. Ele e Marta se conheceram durante uma operaçã o de arapuca sexual contraoministrodeDefesaindianoe tiveram um tó rrido affair de oito semanas,interrompidoporiniciativa dele. Ter a rainha dos pardais como uma diversã o em Moscou era uma coisa, ele dissera, mas casar com “algué m como você ” era outra bem diferente. Alguém como eu, pensou Marta, olhando-se no espelho. Ela abriu a camisa de seda e examinou o corpo nu. Cinquenta e tantos anos e ela ainda estava em forma. Os quadris estavammaislargosehaviaalgumas ruguinhas nos olhos, mas os seios ainda nã o tinham despencado por completo. Ao se virar de lado, constatou que as ná degas ainda tinham algo do volume e das curvas que em 1984 haviam sido responsá veis, em grande parte, por fazer com que um jovem agente francê sesquecessesuasobrigaçõ ese passassecomelaosquatrodomingos de um mê s num quarto de hotel em Leningrado. Vez ou outra ela se lembrava dele, sem nenhum motivo especial. Descalça, Marta foi beber um copo d’á gua na cozinha. Precisava clarearacabeçaantesdedormir.Ao voltar para o quarto, no entanto, foi detida por uma chave de braço em torno do pescoço. Nã o tinha ouvido nada nem ningué m. O homem apertava sua garganta, e ela tentou afastá -lousandoasmã os.Oagressor nã o parecia ser muito grande. Na verdade, dava a impressã o de ser magro. Respirava com regularidade: nã o sentia medo. Tampouco tentava estrangulá -la, apenas imobilizá -la. Marta cogitou que talvez fosse um tarado qualquer, uma tentativa de estupro. Preparou-se para alcançar os testı́culos do ilho da puta e esmagá-losentreosdedos. Só quandofoiempurradaparaa frente do espelho ela viu que nã o se tratavadeumrapazote inlandê s,um entregador de pizza com a cueca melada. Sentiu o cheiro de amô nia e suor. Em seguida, ouviu uma voz rascante que mais parecia um besouro se arrastando sobre uma folha de papel. Apenas uma palavra emrusso: —Molchat.—“Silêncio.” Num segundo de terror, ela soube:erameles. As suas costas, uma criatura a encarava pelo espelho com o ú nico olho que tinha; o outro, um globo esbranquiçado parecido com má rmore, itava o nada. Na penumbra do quarto Marta nã o conseguia ver o corpo dele, apenas aquele braço que parecia ter vida pró pria e o rosto esburacado de cicatrizes pairando acima do ombro dela. —Boanoite,camaradaYelenova — disse o caolho. — Ou será que posso chamá -la de Marta? Ou quem sabede...“meupardalzinho”? Marta tinha a camisa do pijama ligeiramente aberta. Os bordados dourados vibravam no mesmo compassodostremoresdocorpoea barra mal cobria o triâ ngulo dos pelos pubianos. O homem deu um solavancocomobraçoparacima,por pouco nã o tirando os pé s dela do chão. — Por onde você tem andado, hein,meupardalzinho?—sussurrou, depois a empurrou para mais perto do espelho. Marta viu nos pró prios olhosoterrorquesentia.—Você vai pracamacomigo,nã ovai?Puxa,vim detãolongesópratever... Nesseinstanteelebrandiuafaca quetrazianaoutramã o,umalâ mina curva de pouco mais de 50 centı́metros. Com a ponta do objeto ele foi afastando a camisa de Marta até deixar à mostra o seio dela, que arfavademedo.Emseguida,comum sorriso estampado no rosto, ele aninhou oqueixo no ombro dela e apertouachavedebraço. A visã o de Marta já começava a seturvar.Emsuamenteelaouviaum ruı́do que lembrava o correr das á guas de um rio. Mesmo assim, escutouocapetadizer: —Pokazatgderakizimuyut. Marta conhecia a expressã o, a ameaça mortal que as palavras escondiam:Vou lhe mostrar onde os lagostins passam o inverno. O ruı́do em sua cabeça icou mais alto e ela desmaiou. Quando en im recobrou a consciê ncia, estava deitada em sua cama estreita, com uma ita adesiva tapando-lhe a boca, as mã os amarradas à s costas. Na mesa de cabeceira,oabajur de cú pula porosa e rosada irradiava uma luz suave sobreascobertas.Aspernasestavam amarradas també m. Ela tentou se desvencilhar, mas as cordas nã o cederamnemummilímetrosequer. Ao ouvir um barulho, ergueu a cabeça e por pouco nã o voltou a desmaiarcomoqueviu.Umacenade meter medo em qualquer um. O homemvestiraacamisaindianadela e agora dançava pelo quarto, rodopiando de um lado para outro comofacã oerguidoacimadacabeça. Martacomeçouachorarbaixinho. Sergei Matorin pensava estar a 4.500quilô metrosdali,nointeriordo bunkerqueseugrupoalfaconstruı́ra com sacos de areia no vale de Panjshir. Em vez da luz rosada do abajur de Marta ele via a iluminaçã o esverdeada do lampiã o a gá s que sibilava num canto qualquer. No lugardocorpoamarradodeMartaele visualizava o corpo da mulher do chefe do povoado, capturada como refé m durante o ataque daquela madrugada, uma puniçã o merecida pelo acolhimento de insurgentes. A chuva inlandesa que açoitava a janeladoquartoeraoruidosoVento das Cem Noites que soprava em nuvens de poeira e sacudia a portinha de metal corrugado do bunker.Khyber,seufacã o,estavaem casanovamente. A mulher afegã morrera em algum momento no inı́cio da noite, talvez de pavor, talvez pela manipulaçã oabusiva,talvezsufocada pelo cinto de muniçã o que a cingia pelopescoço,grampeadoà paredede compensado. Recostada a essa parede,elaprojetavaoqueixoparaa frentecomoumgestoderebeldia,os olhosvidradosre letindoaluzverde do lampiã o. Estava ali para lhe fazer companhia. Sentado no chã o, ele balançava o corpo ao ritmo da mú sica afegã que vinha do pequeno gravadoraseulado. As pilhas do aparelho estavam fracas, e os zumbidos metá licos da mú sica icavam ora mais lentos, ora maisrápidos. Martasedebatianatentativade soltar um dos braços ou uma das pernas para depois se defender. Percebendo a movimentaçã o dela, Matorinfoiparaacamaeengatinhou até se postar sobre o corpo dela, a camisadeseda pendendo do tronco. Martaaindatentavasedesvencilhar; os mú sculos do pescoço pulsavam, tamanho era o esforço que fazia. Matorin baixou a cabeça a poucos centı́metros do rosto dela e icou assim por um tempo, encarando-a, ouvindo-aofegar.Emseguidaretirou a itaadesivaqueacalavaeteveum prazer especial ao ouvi-la sussurrar, chamandoporDeus: —Bohze. Sem ao menos desviar o olhar, elecravouseufacã opoucoabaixodo diafragma dela e num gesto brusco foi rasgando peito, coraçã o e garganta. Marta arqueou as costas em convulsã o. A boca aberta nã o emitiasomalgum.Ocorposedebatia contraascordaseMatorincontinuou em cima dela enquanto observava sua respiraçã o icar cada vez mais ofegante,osolhosiremgradualmente perdendo o brilho até sumirem por detrá s das pá lpebras. Fiapos de sangueescorriamdonarizedocanto da boca. Marta levou trê s minutos para morrer. Nã o ouviu quando Matorinsussurrou: — Bohze? Nã o, hoje nã o tem nenhumDeusporaqui. *** Dominika chegou à rezidentura namanhã seguinte,procurouMartae viu apenas sua mesa vazia. Provavelmente icou bebendo a noite inteira,pensou. No meio da manhã , ela ainda nã o chegara. Volontov colocou a cabeça para fora do gabinete e berrou: — Algué m viu Yelenova hoje? Poracasoelaligoupraavisarquenã o vem?Ninguémsabiadenada. — Cabo Egorova, ligue agora mesmoproapartamentodela.Vejase descobreondeelaestá. Dominika telefonou diversas vezes, mas ningué m atendeu. Volontov chamou o o icial de segurança e ordenou que ele fosse pessoalmente à casa dela. Se Marta nã o atendesse, ele deveria entrar com a chave sobressalente que eles mantinham na embaixada. O o icial voltou dali a uma hora informando queoapartamentoestavavazio,mas parecia normal. Roupas no armá rio, louçanapia,camaarrumada. — Redija um cabograma bastante sucinto para a central — disse Volontov ao homem da segurança,queolhavaparaelecomo umRottweillerà esperadecomando. — Informe que a assistente administrativa Marta Yelenova nã o apareceupratrabalhar,nã otelefonou dizendoporquê ,equeningué msabe ondeelaestá.Expliquequeestamosà procura dela e que vamos solicitar uma busca junto à Polı́cia Federal inlandesa. Depois, ligue pro seu contato na polı́cia pra falar que a embaixada exige providê ncias imediatas,bemcomoamaisabsoluta discrição.Agoravá. Volontov convocou seu consultor de contrainteligê ncia e conversoucomeleaportasfechadas. — Estamos com um problema — falou. — Marta Yelenova nã o apareceu pra trabalhar. — Ele conferiu as horas no reló gio de parede que pertencia ao patrimô nio do SVR. — Já faz quase cinco horas quedeviaterchegado. SeuhomemnaLinhaKReraum ex-diretordaGuardadeFronteirada KGB, um burro de carga sem nenhumaimaginaçã o.Eleolhoupara o pró prio reló gio como se quisesse con irmaraestimativadetempoque Volontovacabaradedar. —ProcureoSupoemarqueuma hora pra falar com o Sundqvist. — Supoeraoserviçosecreto inlandê s. — Diga que Yelenova sumiu e que suspeitamos de sequestro. Peça que veri iquem todos os terminais aéreos,ferroviáriosehidroviários. — Sequestro? — perguntou o homem da contrainteligê ncia. — QuemiriasequestrarYelenova? — Nã o vamos falar pro serviço secreto inlandê squeachamosquea mulher desertou, seu imbecil. Só queremosquefaçamabusca.Elesjá tê m a foto do visto dela. Deixe claro queadiscriçã oé fundamental.Evocê, bicocalado. Seishorassepassaramsemque a polı́cia izesse qualquer progresso, mas os o iciais do serviço secreto detectaram a foto de uma mulher vagamenteparecidacomYelenovana estaçã o de controle de Haaparanta, no golfo de Bó tnia, fronteira com a Sué cia.Amulher usava uma echarpe e ó culos escuros que escondiam boa parte do rosto, mas o nariz e o queixo eram condizentes. Segundo haviam informado, ela passara pelo controle com um passaporte inlandê s sob o nome de Rita Viren, que agora estava sendo rastreado. A mulher estava na companhia de um homem nã o identi icado de ó culos escuroseboné. —Issocon irmatudo—disseo homem da contrainteligê ncia. — Foram os americanos. Ela debandou proladodaCIA. — Imbecil. Como foi que você chegou a essa conclusã o? — perguntouVolontov. —Bastaolharproboné ,coronel — retrucou o outro, apontando para umadasfotosenviadasporfaxpelos inlandeses. — Está escrito Nova York. Volontov ordenou que ele saísse. Os boatos corriam à solta. Assassinato?Sequestro?Eahipó tese que ningué m ousava dizer em voz alta: deserçã o? Todos sabiam que MartaeVolontovnã osedavambem, quehaviamtidoumasé riadiscussã o algumas semanas antes. Mas... fugir? Dominika estava perplexa. Marta jamaisdesertaria,e,aindaquefizesse isso, nunca iria embora sem se despedir. Estava apenasbrincando quando sugerira que ambas desertassem. Nã o. Algo muito grave havia acontecido. De repente Dominika icougelada.Seriapossı́vel que de algum modoeles soubessem queelaandavafalsi icandorelató rios sobre o caso de Nate, que estava protegendo o americano? Será que seu sumiço tinha sido uma advertê ncia? Nã o. Devia haver uma explicaçã o mais plausı́vel. Marta devia ter escapulido para uma semaninha na Lapô nia com seu instrutor de ioga. Qualquer coisa nessesentido.Noentanto...Dominika ainda nã o tinha se convencido por completo. AbuscaporYelenovacontinuou por mais alguns dias sem resultado. Volontov arrancava os pró prios cabelos, receando que o sumiço de uma subordinada pudesse macular sua icha na central — o que era ridı́culo, considerando que má culas eram o que nã o faltava em sua trajetó riadetrintaanos:negligê ncia, desatençã o, carreirismo... A embaixada formalizou uma reclamaçã o junto ao Ministé rio de Relaçõ es Exteriores e ao Ministé rio do Interior, informando o sequestro de uma de suas funcioná rias e lembrando, para constrangimento geral, que a segurança dos corpos diplomá ticos era de inteira responsabilidade do governo inlandê s. Um investigador especial chegou da Diretoria K de Moscou para interrogar os funcioná rios da embaixada e orezident, bem como para interpelar os investigadores locais. Partiu ao im de quatro dias, concluindo que Marta Yelenova desaparecera. Dominika descon iava da verdade enquanto chorava pela amiga, deitada de bruços em sua cama. Marta fora uma amiga de verdade, a irmã mais velha que ela nunca tivera, e era monstruoso, inconcebı́vel, queeles a tivessem matado. Por que diabo teriam feito algo assim? Enquanto tentava organizarospensamentos,elasentiu um frio na espinha ao lembrar que contara sobre Ustinov para Marta. Seria possı́vel queeles soubessem disso? Será que Marta havia comentado com algué m? Teria um descuido dela, Dominika, resultado no desaparecimento de uma colega, de uma o icial do serviço secreto? Será que tal absurdo poderia acontecer na pacı́ ica Helsinque em pleno sé culo XXI, num mundo supostamente civilizado? Dominika fechou os olhos e sentiu a cama rodar.Lá estavaelamaisumavezno ninho de amor de Ustinov, na cama girató ria ensanguentada. Pensando bem, ela se lembrava de ter visto medo no rosto de Volontov, no laranjadohalodele. Ela se levantou, foi até a janela, ergueuosolhosparaocé unoturnoe riudesimesma.Umao icialtreinada do serviço de inteligê ncia. Uma operadoradeverdade.Umasedutora implacá vel. Eles a haviam usado, ainda estavam usando, como uma peça de xadrez, um mero joguete. Fosselá quemfosseoinformantede Nate, ela agora entendia melhor os motivosdele,oó dioquesemdú vida alimentavasuasações. Agora Dominika estava mais irme do que nunca em sua decisã o denã odelatarNate.Eracomoseuma corrente de ar frio a tivesse atravessadodacabeçaaospé s.Até o momento seu jogo havia sido estritamente passivo, mas isso teria de mudar. Vendo o rosto de Marta re letidonavidraça,elacogitoucomo poderia agir para fazê -lospagar por todososseusatos,paradestruirtoda aquela corja de aproveitadores. Volontov,Vanya,todoseles. As lá grimas rolavam por seu rosto.ElachoravaporMarta,pelopai, talvez por si mesma també m. Chorava pela Rú ssia, mas sabia que nã o era a mesma cré dula de antes. Algo se quebrara em sua alma. De repente ela deu as costas para a janela e num gesto de raiva, com os olhosfechadoseosdentescerrados, desferiu um golpe contra o vaso de cerâ mica da mesinha lateral, fazendo-o se espatifar no chã o. Fora Marta quem lhe dera o objeto de presente durante um de seus passeiosnafeirinhadedomingo. Enquanto isso, narezidentura, Volontov se remoı́a com a expectativa de algum tipo de reprimenda o icial. No entanto, em vez de um puxã o de orelha, ele recebeu uma simpá tica ligaçã o em seu telefone de alta frequê ncia: era VanyaEgorovdizendoqueavidanas trincheiras era assim mesmo, cheia de imprevistos e riscos, sempre perigosa. Outras pessoas já haviam desertado antes, e algumas ainda desertariam no futuro. Pessoas deplorá veis, claro. Por maior que fosseavigilâ nciasobreelas,à svezes nã o havia o que fazer. Por im, orientou-o a se concentrar na segurança das operaçõ es e, sobretudo, naquela “missã o especial”, a de sua sobrinha com o jovemamericano. — E claro, general — disse Volontov, aliviado. — Creio que estamos fazendo muitos progressos nessafrente. Chush’ sobach’ya. Progressos porra nenhuma, pensou Egorov, e desligou.SabiaqueDominikacontara pelo menos parte da histó ria de Ustinov à tal Marta Yelenova, uma falta grave, mas para a qual ele teria de fazer vista grossa, ao menos por enquanto.Naverdade,foraumgolpe desortequeYelenovativessesoltado os cachorros para cima do apalermado Volontov e que ele tivesse tido o juı́zo de telefonar. Depois disso, bastara despachar Matorin e articular umakonspiritsia nã omuitocomplexaparalimpartoda aquela bagunça. Por Deus, se o presidente icasse sabendo daquilo... Eramelhornempensar. Apó saSegundaGuerraMundial, na fronteira da Finlâ ndia com a Rú ssia, 3 quilô metros a oeste da cidadezinha russa de Vyartsilya, os sovié ticos haviam estabelecido uma rota de in iltraçã o atravé s de um inó spito trecho de muitas colinas e bosques de pinheiros, levando à s terras cultivadas do outro lado das torres e cercas de arame farpado. O lado inlandê s era invariavelmente malpatrulhado.Pordé cadas,guardas da KGB vinham sendo designados paratrabalharnospostosdecontrole locais a im de ajudar os agentes do serviço a atravessar a fronteira sem maiores problemas. Quanto mais mudavam as té cnicas, mais elas permaneciam as mesmas: em 1953, rotas atravé s dos campos minados eram demarcadas por estacas incadasnanevecomtraposdepano amarrados na ponta. Desde 2010 o caminho de Vyartsilya era demarcado com torres de plá stico equipadascomluzesestroboscópicas de infravermelho, visı́veis apenas comóculosdevisãonoturna. Uma semana antes, Matorin se in iltrara na Finlâ ndia por essa mesma rota. Fora recebido por um agente de apoio da Diretoria S na Rota 70 e seguira com ele de carro até aRotaRural6,naqualpercorreu 400 quilô metros até alcançar a E75, que o levara até a cidade. O facı́nora o icial do SVR fora direto ao apartamento de Yelenova, a assassinara à meia-noite e colocara seu corpo num saco mortuá rio de borracha do exé rcito russo. Depois, limpara o apartamento e se comunicara com o agente de apoio, que naquela mesma madrugada o levaradevolta,juntocomocorpode Marta, até o escoadouro de Vyartsilya. Em seguida, o agente voltara para Helsinque e na outra manhã , usando documentos inlandeses, ele e a esposa, ligeiramente disfarçada, saı́ram do paı́s em Haarparanta, para supostas fé rias de uma semana na Sué cia. Os dois jamais voltariam à Finlâ ndia, complicando ainda mais a investigaçã odocasoMartaYelenova. A operaçã o inteira nã o consumira maisquequarentahoras. O sol nascia entre os pinheiros de Vyartsilya, projetando longas e delicadas sombras sobre a neve que cobria as colinas. Empoleirados na torredeobservaçã oB30,guardasdo Serviço de Segurança Federal vigiavam os bosques munidos de binó culos.Quandoosoljá estavaalto no cé u, um deles en im divisou o vultomodestodeumhomemsaindo de entre as á rvores e seguindo pacientemente contra o vento, vestindo um macacã o com capuz e calçando raquetes de neve. Ele puxavaumtrenó sobreoqualsevia umvolumearredondado,cobertopor uma capa de ná ilon branco. Marta Yelenova en im voltara para sua Rodina. PYTT I PANNA — A ÚLTIMA REFEIÇÃO DE MARTA Na manteiga bem quente, refogar separadamente cubinhos de carne, batatas e cebolas. Juntar os ingredientes na mesma frigideira, acrescentar um pouco mais de manteiga e temperar. Abrir um furo no meio da mistura e quebrar um ovo cru dentro. Mexer tudo antes de servir. CAPÍTULO 16 NATE JANTAVA COM GABLE NUM restaurante indiano em Kallio, umlugarchamadoIndiaPrankkari.O salã o estava praticamente vazio e elesocupavamumamesanosfundos, junto à s janelas. Gable insistira em p e d i rrogan josh, um cozido de cordeiro oleoso demais, apimentado demaiseperfumadodemais,queeles agora consumiam com nacos de pã o de leite, um acompanhamento de tomatesegengibreevá riascervejas. Gable comparou sua primeira colherada aorogan josh que comera junto a uma fogueira no campo de pouso de Dhahran, sé culos antes, ao lado do monomotor Pilatus com o qual ele in iltrara quatros tibetanos naChina. —Essesmalditosescandinavos nã o sabem fazer comida indiana — reclamou ele, mastigando. — Só querem saber de rena, de creme de amoras silvestres, de batata cozida. Se o chef ameaça colocar um pouquinhodesalsa,só faltamterum ataquedocoração. Como sempre, ele devorava a comida a um ritmo impressionante, comoummonstro. — Eram quatro nepaleses baixinhos, fortes como touros. Treinei-osduranteummê s.Foiuma operaçã o relâ mpago, só pra plantar um relé , um interruptor eletromagné tico, na principal linha de comunicaçã o do Exé rcito de Libertaçã o Popular, que corria ao longo da fronteira, literalmente à sombra do Everest e do Kanchenchunga. O cu do mundo. Deixei os quatro de aviã o do outro lado das montanhas, e depois eles deveriam ter voltado a pé , mas... nuncaapareceram.Omaisprová velé que tenham sido capturados pela patrulhadaTelecomchinesa. Ele se calou por um instante, depois acenou para o garçom, pedindo mais uma porçã o de tomates. Em seguida eles conversaram sobre Dominika, pensando em maneirasdefazerocasoDivaevoluir. Nate nã o sabia muito bem o que pensardarussa,tampoucocomoagir paraavançarnorelacionamentocom ela. Dominika nã o amolecia, e tudo indicavaqueeleestavaperdendoseu precioso tempo. Gable parou de mastigar e o encarou assim que ele disse que aprendera a gostar da moça. — Ela está sempre disponı́vel pra sair, a gente discute alguns assuntos, mas nã o me dá muito espaço—comentouNate. — Já lhe ocorreu que ela esteja manipulandovocê ,enã oocontrá rio? — sugeriu Gable, voltando a mastigar. — Nã o é impossı́vel. Mas até agoraelanã ojogounenhumaiscapra tentar me recrutar. Nenhuma promessa de dinheiro, ou oportunidade de carreira, nenhuma merdaassim. —Poisé ,mas...esedeumahora pra outra ela aparecer nuazinha em pelodebaixodeumacapadechuva? Você vai morder a isca ou nã o vai? NateolhouparaGable,irritado. — Ela nunca recorreria a esse tipo de abordagem. Sei lá , é só um palpite. — Você é que acha. Bem, de qualquer modo, parece que você s estã o num beco sem saı́da. Sugiro quefaçaalgumacoisapraagitaressa histó ria. De repente dar uma sacudida nessa moça, uma desestabilizada. Gable bebeu o resto de sua cervejaepediumaisduas. —Elanã ovaicairnessetipode tá tica-padrã o,Marty—a irmouNate. — Tenho tentado fazê -la falar da Rú ssia, dos problemas do paı́s, mas sem forçar nenhuma barra, apenas trazendo o assunto à tona. Percebo algumacoisanoolhardela,masainda nãoseidireitooqueé. —Vocêprecisatentaroutrotipo de atrativo. A vida boa no Ocidente. Artigosdeluxo.Contasbancárias. —Nã oé apraiadela—retrucou Nate. — Dominika é outro tipo de pessoa. E idealista, patriota etc. Mas sem aquele ranço sovié tico. Cresceu com balé , mú sica, livros, lı́nguas estrangeiras. —Você sjá conversaramsobreo Kremlin?Sobreessamerdatodaque rolapordebaixodospanos? —Claroquejá .Maselaé dotipo ufanista. Sempre vê as coisas pelo prismadaRodina. —Rodinha?Queporraéessa? —Rodina.Apá tria mã e e todos osmitosquegiramemtornodela.A terra,oshinos,acaçadaaosnazistas nasestepes... — Ah, sei. Puxa, algumas daquelas russinhas do Exé rcito Vermelhoaté queerambemgostosas — comentou Gable, olhando para o teto. — Aquelas tú nicas, aquelas botas,elasatépareciam... — E essa a sua ideia de orientaçã o operacional? — interrompeuNate.—Aindaestamos falandodocasoDiva? — Bem, você vai ter de encontrar um jeito de tirar essa garota da posiçã o defensiva em que ela se colocou. — Ele se recostou na cadeira e começou a balançá -la de leve com as mã os cruzadas na nuca. —Nã odescarteahipó tesedequeela sinta alguma coisa por você . De que estejaquerendoajudá -lonacarreira, seilá ,qualquercoisaquenã opareça um ato de traiçã o. També m é possı́vel que ela goste de emoçõ es fortes. Nesse ramo tem gente quese alimentadeadrenalina. Naquela mesma noite, a campainhatocounoapartamentode Nate. Dominika encontrava-se paradaà portacomorostocrispado, os olhos vermelhos. Nã o estava chorando, mas os lá bios tremiam e elacobriaabocacomoseparaconter os soluços. Nate deu uma olhada rá pida no corredor antes de puxá -la para dentro. Ela nã o ofereceu nenhuma resistê ncia. Ele tirou o casaco da jovem, conduziu-a delicadamente para o sofá e ela se sentou na beira da almofada, abaixando a cabeça para itar as pró priasmã os.Natenã osabiaoque acontecera, tampouco o que fazer. Imaginou que ela tivesse sido dispensada do SVR, que tivesse cometido alguma besteira e agora estivesseemapuros.Semdú vidaisto seriainé dito:mandarumaagentedo SVR para o arquivo mortoantes de recrutá-la. Preciso acalmá-la, ele pensou. Sejaláoquetenhaacontecido,elaestá chateada, vulnerável. Ofereço o quê? Vinho,uísque,vodca? Batendo os dentes no cristal da taça,Dominikadeuumgolenovinho e,emrusso,começouadizer: — Sei que você fala a minha lı́ngua. — Parecia exausta. Ainda estavacomacabeçabaixa,oscabelos caindo dos lados. — Você é a ú nica pessoa com quem eu posso conversar. Um cara da CIA. Muito doido,nãoacha? Um cara da CIA?, pensou Nate. Que diabo está acontecendo? Ele preferiu nã o dizer nada e Dominika deumaisumgolenabebida. Ela começou falando baixinho, medindo as palavras. Contou sobre Marta e o sumiço dela. Nate quis saber o que estava por trá s daquele desaparecimento repentino, e ela falou sobre Ustinov. Ele pediu detalhes, e ela contou sobre o treinamentoquerecebera.Entãonão eram apenas boatos, pensou Nate, perplexo.AfamosaEscolaQuatrodos russos. Só entã o Dominika ergueu os olhos,tentandoavaliarareaçã odele aosaberqueelapassarapelaEscola dePardais.Nã oviupenanosolhosdo americano, tampouco desprezo. Ele apenas a encarava de volta. Sempre agia assim. O manto violeta pulsava em torno de sua cabeça. Dominika queria muito con iar nele. Ele lhe serviuumasegundataçae,eminglê s, disse: — Como posso ajudar você ? Do queprecisa? Elaignorouaperguntaemudou paraoinglês: — Sei que você nã o é um diplomata trabalhando no setor econô micodaembaixadaamericana. Sei que é um agente da CIA. E você sabe muito bem que eu trabalho como o icial de segurança na rezidentura da minha embaixada. Pelo menos deve ter deduzido quando contei que meu chefe é Volontov. Suponho que també m saiba que meu tio Vanya Egorov é o primeirovice-diretordoserviço. Natenemsequerpiscava. — Em Moscou, depois da Academia de Inteligê ncia Externa — prosseguiu ela —, trabalhei para o Quinto Departamento numa operaçã o contra um diplomata francê s.Amissã onã odeucerto,efoi aíquememandarampracá. Elaergueuorostoinchadopara Nate em busca de consolo. Ele lhe estendeuamãoesentiuqueosdedos delaestavamgelados. — Marta era minha amiga. Foi uma servidora exemplar, ganhou medalhas, uma pensã o, um posto no exterior. Era uma mulher forte, independente. Nã o se arrependia de nada, procurava sempre ver o lado bom de tudo. Durante o tempo que convivemos, ela me fez ver quem eu realmente sou. — Aqui ela deu um leveapertã onamã odeNate.—Nã o sei o que aconteceu, mas ela sumiu sem deixar nenhum bilhete nem nada,eeutenhocertezaabsolutade que ela morreu. Nunca fez nada contraeles.Meutioestavamorrendo demedodequeseusegredoviesseà tona, e achou que precisava se proteger. Tem um homem, um koshmar, um pesadelo em forma de gente, que trabalha pra ele. E bem possı́vel que esteja envolvido no sumiçodeMarta. — Você está correndo algum perigo? — perguntou Nate. Sua cabeça fervilhava. Ela estava falando de operaçõ es passadas, de um assassinatopolítico,daexterminação de uma colega, de um escâ ndalo nas altas esferas do SVR. Estava ditando pelo menos uma meia dú zia de relató riosdeinteligê nciabemali,no sofá dele. Nate nem sequer ousava fazer alguma anotaçã o, precisava deixar que ela continuasse. — Você estava envolvida no caso Ustinov, entã otalvezseutioestejaapreensivo emrelaçãoavocê. Elabalançouacabeçaedisse: — Meu tio sabe que nã o posso fazernadacontraele.Minhamã eestá em Moscou. Ele a usa como uma zalozhnica, uma refé m, como nos velhos tempos. Alé m disso, foi ele quemmetreinou, quem me mandou à quela escola, quem me despachou pra Helsinque. Pertenço a ele tanto quanto aquele monstro que ele usa pra fazer seus trabalhos sujos. Vim paracá comamissã odemeenvolver com você . Meu tio a irma que me considera parte integrante de sua equipe de operadores, mas olha pra mim como se eu fosse apenas um pardalzinho a seu serviço, como se ainda estivé ssemos em 1960. Eles estã oimpacientescomalentidã odo meu progresso. Querem ouvir que leveivocêpracama. —Quantoaissoeupossoajudar —retrucouNate. Dominika o encarou, fungou baixinho,depoisrespondeu: —Você eassuaspiadas.Nã ovai acharmuitagraçaquandosouberque minha missã o é descobrir sobre seu passado em Moscou, sobre o informante que você coordena. Tio Vanya me mandou a Helsinque pra icar de olho em você , pra avisar quandoestivesseativo,operandoseu contato, como icou por duas semanasnomêspassado. O informante que eu coordeno? Natesesentiacomoumacriançaque ica ao lado dos trilhos enquanto o trempassaatodaavelocidadeà sua frente,apoucoscentímetrosdonariz. Tentava nã o esboçar nenhuma reaçã o, mas sabia que Dominika era capazdelersuaexpressão. — Nã o contei nada à quele nojento do Volontov — disse ela. — Marta ainda estava viva nesse período.Sabiadaminhadecisão. Nate tentava se concentrar nas palavras dela ao mesmo tempo em que pensava no perigo que correra comMarble.Elesnã ofaziamamenor ideia de que poderiam ter sido detectados.Aodecidirnã orelatarao chefe o que sabia, Dominika provavelmentesalvarasuavida. — Desde que nos conhecemos na piscina, tentei estabelecer uma amizadecomvocê —prosseguiuela. — Em muitos aspectos, nó s dois está vamos fazendo a mesma coisa umcomooutro.Seiqueseuobjetivo inicial eraidenti icar minhas fraquezas, minhas... Como é mesmo que se diz? Minhas vulnerabilidades. Como você precisava se aproximar de mim també m, nossos encontros começaram a icar cada vez mais frequentes. Talvez fosse isso mesmo quetioVanya havia planejado. Mas... o que me surpreendeu foi que eu deixavavocê memanipular.Euqueria que você continuasse me operando. De repente me dei conta de que gostavadeestarcomvocê. Nate permanecia tã o imó vel quanto antes, apenas segurando a mã o dela e pensando:Putz. Gable tinha razão o tempo todo. A garota estava mesmo me operando. E o SVR está caçando Marble. Ainda bem que ela decidiu me ajudar. E essa Marta... Deusaabençoe,sejaláondeestiver! Eletinhaplenanoçã odequese tratavadeummomentocrı́tico.Sabia que Dominika seguira um caminho semvolta.Otommonocó rdioqueela usavaparafalareraconsequê nciade vá rios sentimentos: medo, raiva, desejo de vingança. O que ela já contara bastaria para que a esfolassem viva trê s vezes. E agora viria aquele momento delicado em que ela recuaria e iria embora ou tomaria a decisã o de se tornar uma informantedaCIA. — Dominika — disse ele. — Já falei que estou disposto a ajudar você .Já pergunteiseestá precisando de alguma coisa. O que pretende fazer? Ela recolheu a mã o que ele segurava. —Nã omearrependodenada— afirmou,comasbochechascoradas. —Seiquenã o—retrucouNate. Ficouemsilê ncioporummomentoe depois insistiu: — O que você quer fazer? Foi como se ela pudesse ler os pensamentosdele. — Você é muito esperto, nã o é , Sr.Nash?Vimaté aquiprachorarno seu ombro, pra contar sobre minha missã o, pra dizer que salvei o seu pescoço... —Soumuitogratoportudoisso — interrompeu Nate, tentando nã o deixartransparecertodooalı́vioque sentia. Noentanto,Dominikapodiaver essealívioestampadonatestadele. — Mas você nã o está pedindo queeutrabalhecomvocê pravingar Marta,oupradarotrocoemmeutio Vanya,emVolontoveemtodaaquela gente, ou pra emplacar alguma reformanopaísqueeuamotanto. — Nã o preciso lhe dizer nada disso. — Claro que nã o. Você é cauteloso demais pra isso — devolveu ela, e Nate a encarou em silê ncio.—Bastaperguntaroqueeu querofazer. —Exatamente—concordouele. —Emvezdisso,quetalmedizer oquevocêquerqueeufaça? — Acho que deverı́amos começar a trabalhar juntos. Roubandosegredos — falou Nate sem hesitar, o coraçãobatendoamil. —Porvingança,porMarta,pela Rodina,por... — Por nada disso — interrompeuele.AspalavrasdeGable zuniam em sua cabeça. — Você vai passarpronossoladoporqueprecisa, Dominika Egorova. Precisa de algo pra alimentar esse seu temperamento. Precisa ter alguma coisa que seja só sua,pelaprimeiraveznavida. Ele agora a itava com uma expressãoserena. Dominika, por sua vez, o encarava com os olhos bem abertos, vendoohalovioletaseesparramarà voltadelefeitoaluzdoamanhecer. —Eumjeitointeressantedever ascoisas—retrucou. *** “Osmelhoresrecrutamentossão aquelesemqueosagentesrecrutam asimesmos”,seuinstrutordisserae repetira na fazenda durante o treinamento. “Lembrem-se disso. Nada de surpresas, apenas uma evoluçã onatural.”Bem,ocasoalinã o eraexatamenteodaevoluçã onatural de um recrutamento. Nate tinha a impressãodequeforaatropeladopor umaavalanchedeacontecimentos. Umahorajá sepassarasemque Dominika pronunciasse um inequı́voco “sim”. Esse tipo de decisã o jamais era selado com um aperto de mã o e um contrato assinado. Nate achou que devia incitá-laasoltaralíngua. — Seja qual for sua decisã o — falou —, prometo que vamos trabalharcomsegurança. Esse era o discurso-padrã o no recrutamento de informantes. No entanto, ainda que as palavras fossemditascomsinceridade,ambas aspartessabiamquenolongoprazo a sobrevivê ncia de um agente, sobretudo num paı́s como a Rú ssia, era bastante imprová vel. Mas ela mordeuaisca. —Prafazerumtrabalhodesses corretamente,nã ohá comoevitaros riscos—falou.—Nó sdoissabemos disso. Ela disse “nós dois”, observou Nate. —Vamoscomeçardevagar,com todoocuidado...—garantiuele.—Se équevamoscomeçaralgumacoisa. —Exatamente.Secomeçarmos. — Depois vamos seguir o seu ritmo, do jeito que você achar melhor. — Seu pessoal pode avaliar minhas motivaçõ es quando quiser. Caso nossa colaboraçã o se revele insatisfató ria, eu aviso e a gente dá umfimaestarelação. Tudo indicava que SVR e CIA seguiamomesmomanualnoquese referia ao recrutamento de informantes. Dominika havia passado pelo primeiro está gio. Estava icando tarde.Elaselevantoudosofá epegou ocasaco.Enquantoaajudavaavestilo, Nate discretamente observou os olhos dela, os cantos da boca, as mã os.Nã osabiaaocertoaondetudo aquilo levaria. Eles se entreolharam por um momento. A porta, ela se virou e estendeu a mã o. Nate apertou-aedisse: —Spokoinoinoci.—Boanoite. Dominika saiu e desceu as escadasquasesemfazerbarulho. *** Assim que ela foi embora, Nate começou a fazer suas anotaçõ es, tentando se lembrar de tudo o que ouvira. Precisou resistir ao impulso idiota de ir a pé até a embaixada, acordarosplantonistas da estaçã o e começararedigircabogramasparao Q G .Recrutamento. Agente do SVR, equipedepardais,otiocomandatoda a operação, assassinatos. Praticamenteumfilmedeespionagem! Elemalpodiaesperarparachegarao trabalhonamanhãseguinte. Depois de um tempo o entusiasmo se dissipou. Nate rolou na cama, jogando as cobertas para o chã o.Eleaindaprecisavacon irmaro recrutamento, assegurar o compromisso de Dominika. Ela poderia recuar: muitos informantes faziam isso. Assim que ele colocasse asré deasnela,Washingtonviriacom tudo para cima dele. Qual era a motivaçã o da informante? O salá rio pretendido?Onı́veldeacesso?Como assim, ela nã o tinha assinado um termo de con idencialidade? Tudo aquilo era repentino demais. Nã o seriaumaarmadilha? També m tinha que pensar em termosdeprodutividade.Semdú vida elesexigiriamresultados,erá pido.A princı́pio pediriam a melhor informaçãoqueelativesseparadar,e isso seria perigoso. Os o iciaizinhos estú pidos de terceiro escalã o exigiriam que ela fosse submetida a uma prova de boa-fé . Tudo seria um teste, e eles nã o icariam satisfeitos até que as informaçõ es dela fossem con irmadas, até que ela fosse submetidaaopolı́grafo.Seforçassem alguma barra, ou se pisassem nos calosdela,acabariamcolocandotudo a perder, disso ele tinha certeza. E caso ele viesse a perdê -la depois de ter comunicado o recrutamento, certamente haveria algué m no QG paracolocaremdú vidaasuapalavra, averacidadedorecrutamentoemsi. Aquilo era apenas o começo. Se descobrissem o que ela izera, Dominika nã o teria a menor chance: serialiquidadapeloSVR.Poderiaser desmascarada de inú meras maneiras: algum informante plantado no QG em Washington, algum erro operacional, alguma missã o de vigilâ ncia mais agressiva, um mero azar, luzes se acendendo justonomomentoemqueelaestaria fotografando documentos secretos com uma câ mera secreta. Nate se revirounacama. Haveriauminterrogató rioeum julgamento, mas eles nã o dariam a menor importâ ncia aos fatos. Nenhum tio Vanya seria capaz de salvá -la. Descalça e vestida com um uniforme de presidiá rio, ela seria conduzida aos porõ es de Lubyanka, ou Lefortovo ou Butyrka, e empurradapeloscorredoresaté uma cela de piso inclinado e ganchos pendurados nas vigas do teto. Num dos cantos ela veria um caixã o de papelã oà suaespera.Bastariamdois passos cela adentro para que ela fosse abatida, sem nenhuma advertê ncia, com um tiro atrá s da orelha direita. Os carrascos permaneceriamolhandoparaocorpo caı́doaté venceremapró priainé rcia e se dignarem a acomodá -lo no caixã o vagabundo. Simples e definitivo. ROGAN JOSH Num pilão, triturar cebola, gengibre, pimenta, cardamomo, cravo, coentro, páprica, cominho e sal até formar uma pasta homogênea. Acrescentar louro e canela. Despejar manteiga clarificada previamente aquecida por cima da mistura e esperar até que os aromas se libertem. Juntar cubos de carne de cordeiro e, sempre mexendo, acrescentar iogurte, água quente e pimenta. Assar em forno médio por duas horas. Salpicar com coentro e servir. CAPÍTULO 17 O RECRUTAMENTO DE DOMINIKA NAO foi um acontecimento normal em nenhum sentido. A moça era uma o icial de inteligê ncia, mas agora precisaria aprender a ser espiã . Nã o se tratava de uma transformaçã o natural. “Fortalecer o vı́nculo”, Forsyth dissera. O primeiro passo da estaçã o, portanto, foi fazer uma sé ria investigaçã o sobre o desaparecimento de Marta, de modo a provar sua consideraçã o. Gable providenciou uma reuniã o com um colaborador do serviço secreto inlandê s. Nenhum sinal da russa. O vı́deo da câ mera de segurança, que sugeria uma possı́vel travessia em Haaparanta, era absolutamente inconclusivo. AlistaBigot,istoé ,arelaçã ode pessoas autorizadas a ler os documentosdocaso,foireduzidaao menornú merodenomespossı́velna Finlâ ndia, ainda que nada pudesse ser feito a esse respeito no QG em Washington. O caso já estava nos canais de manuseio restrito, o que segundo Gable era uma enganaçã o, pois apenas umas cem pessoas liam os cabogramas trocados de parte a parte. Ainda assim, eles tentariam limitaradistribuição.ForsytheGable já haviam feito isso antes; sabiam que,quantomaioracautelanoinı́cio do caso, mais longe ele iria. Nate sentia-secadavezmaisdeterminado a proteger Dominika, custasse o que custasse. Nã o se permitiria falhar. Nãosepermitiriafalharcomela. Ele encontrou um apartamento de dois quartos no distrito de Munkkiniemi, pró ximo à marina, e o agente nã o o icial com cara de rato voltou para alugá -lo por um ano, fazendo-se passar por um empresá rio dinamarquê s que usaria o imó vel apenas ocasionalmente, quando estivesse na cidade a trabalho. O que nã o fazia nenhuma diferença para o proprietá rio, feliz porterfechadoonegócio. Numa noite chuvosa de primavera, Dominika desceu do bonde 4 em Tiilimaki, apenas uma silhuetacontraosfaró isquevinham no sentido oposto e re letiam no asfaltomolhado.Nateaalcançoudois quarteirõ esà frenteelhedeuobraço sem nem mesmo dizer “olá ”. Estava em pleno modo operacional, com o tronco ereto, nervoso. Para Dominika, aquele seria seu primeiro encontroclandestinonaqualidadede informante;estava nervosa també m, atrapalhada mais pela vergonha do que pelo medo. Em silê ncio, caminharam pelas ruas secundá rias, margeando os pré dios residenciais, cujos apartamentos pareciam ter a televisã o sintonizada no mesmo canal. Por im alcançaram o pré dio que procuravam, passaram tranquilos pela portaria e subiram dois lanços de escada em meio aos odores de rena cozida e molho cremoso que vinham de algum vizinho. A primeira noite do resto de suas vidas. Alguns abajures se acenderam e Gable, que já os esperava, levantou-se para ajudar Dominika a tirar o casaco. Ela nã o pô de deixar de notar os cabelos espetados dele, que lembravam as cerdas de uma escova. Gostou do aspectodoamericano,deseusolhos, do violeta por trá s deles. Forsyth apareceu vindo da cozinha com os ó culosnoaltodacabeça,lutandocom a rolha de uma garrafa de vinho. Elegante, calmo, ar de sabedoria. Aura azul-celeste. Sem dú vida, um homem sensı́vel. Dominika se acomodou no sofá e icou observando os trê s homens que andavamdeumladoparaoutroà sua frente.Agiamcomnaturalidade,sem nenhuma afetaçã o, mas volta e meia olhavam para ela, que lembrava que estavasendoavaliada. Sabia que a conversa ali seria paravaler.Nateeraumo icialjovem, tudo o que ela conhecia da CIA até aquelemomento,masosoutrosdois eram homens maduros, sé rios, calmos, visivelmente experientes, nã o muito diferentes do general Korchnoi, de Moscou. De repente Gableergueusuataçaebrindoucom um equivocadozdorov’e. Dominika quisrir,masconseguiuseconter. Nesseprimeiroencontronã ose falou de negó cios. A conversa se limitouainformalidades,oquedava uma boa ideia de quã o pro issionais eles eram. Os dois veteranos deixaram que Nate conduzisse os assuntos e ouviram mais do que falaram, outra prova de sua experiê ncia. No im da noite Dominikafoiaprimeiraasair:erao procedimento-padrã o també m para os americanos, ela constatou. Apó s deixaropré dio,seguiupelamarinae notou que, apesar de chegada a primavera, a maioria dos barcos continuava nas docas. Nã o se sentia tã oenvergonhadaquantoantes.Eles erammesmomuitobons. No segundo encontro, ela teve tempo de observar os detalhes. A cozinhaconjugadatinhaumfogã ode duasbocas,osu icienteparacolocar u m apanela de á gua para ferver, e uma geladeira com bandejas de gelo feitas de plá stico. Assim como na maioria dos apartamentos clandestinos, alugados já com a mobı́lia, o sofá , as cadeiras e as mesas eram de pé ssima qualidade e de um mau gosto notá vel. Os estofados eram verde-abacate com detalhes dourados, o que, segundo Gable, ainda era a ú ltima moda na decoraçã o escandinava. Os quadros nas paredes mostravam mares revoltos e alces ao luar. Os tapetes pareciam recé m-chegados da Lapô nia. Um dos quartos contava comumacamadecasalqueocupava quase todo o espaço do cô modo, na qual era possı́vel subir apenas pelo pé.Ooutroabrigavanãomaisqueum extravagante lustre de vidro vermelho. O banheiro tinha, alé m de uma velha banheira, o indefectı́vel bidê dos escandinavos, que certa noite Gable tivera a capacidade de confundir com o vaso sanitá rio. Dominika chorou de tanto rir ao ouvi-lo contar a façanha e dali em diante passou a chamá -lo de Gable Bratok,meuqueridoirmão. Operar uma o icial de inteligê ncia devidamente treinada seria bem mais difı́cil do que operar umbanqueirodesesperadoporeuros porqueprecisasustentarumaesposa e uma amante perdulá rias e tem um BMW na garagem. Dominika se formara na AVR, a academia do serviço secreto russo. Volta e meia elaeNateentravamemumacalorado bate-boca sobre a adequaçã o deste ou daquele procedimento operacional (“Nã o posso acreditar que você ache este lugar aceitá vel como ponto de encontro!”), ou procedimento de segurança (“Nã o, Domi,otapetenoparapeitodajanela indica que é seguro subir. Será que você nã oaprendeunadasobresinais positivosnasua academia?”). Nate já havia perdido a conta das vezes que dissera “Vamos fazer do meu jeito” apenasparaseirritarprofundamente aoouvirdevolta:“Eaminhacabeça quevairolarsevocêestivererrado.” Os americanos nã o tardaram a perceber que Dominika tinha uma intuiçã o fora do comum. Espantavam-se quando ela terminava as frases por eles, ou quando assentia no meio de alguma sugestã o, ou quando se calava no momento exato em que era melhor ouvir. Uma mulher inteligente, treinadacomoo icialdeinteligê ncia, pensava Forsyth, mas havia algo naquela moça que até entã o ele nã o tinhavistoemningué m.Clarividência nãoeraapalavracerta,masquase. Dominika, por sua vez, observava o processo deles com distanciamento. Via que a respeitavam, que valorizavam sua formaçã o, mas apesar disso nã o davam nada por certo. Sabia que a testavam nas menores coisas. As vezes cediam à s opiniõ es dela, e em outrasocasiõ esinsistiamemfazera coisaaomodoamericano.Naopiniã o dela,erammuitocompetentes. Os encontros semanais no esconderijo,otrabalhoqueelavinha fazendo para os americanos, tudo isso começou a de inir sua vida. A angú stiadaindecisã ojá havia icado paratrá s,eagoraelanã opensavaem outracoisaquenã ofosseseuvı́nculo com a CIA. Saboreava-o a todo instante, sobretudo quando estava com Volontov. Você nem imagina o que eu estou fazendo agora, ela pensavaaomesmotempoqueouvia o suarentorezident urrar sobre o trabalho dela. Nate tinha toda a razã o. Aquilo era algo que lhe pertencia, que era dela e de mais ninguém. Forsyth reapareceu assim que chegouomomentodede inir,como má ximo de cautela, quais seriam os segredos que Dominika roubaria da rezidentura. Juntos eles foram construindo o plano, focando nas peças maiores primeiro: os documentos aos quais ela tinha acesso direto. Depois pensariam nas informaçõ es que ela conseguiria roubar com facilidade e em seguida nos tesouros que ela sabia existir mas nos quais nã o podia tocar. Dominika foi orientada a agir com calma. Agentes que se tornavam informantes geralmente tentavam darpassosmaioresqueaspernasno inı́cio. A certa altura da conversa ela quissaberseeleslhecon iariamuma câ mera e equipamentos de comunicaçã o. Queria mostrar que tinha sangue-frio, que era ousada, masissosó deixouosamericanosda CIA assustados. Ao ver que o halo deles mudara de cor, Dominika logo percebeu que havia se precipitado. “Vamosdeixarosequipamentospara mais tarde”, disse Forsyth, e no dia seguinte enviou um cabograma solicitando a presença de um examinador. Era melhor cuidar logo daquilo. O polı́grafo. O detector de mentiras. Nate esperou num dos quartos do apartamento enquanto ouvia os sons abafados que vinham da sala: uma voz grave e outra delicada,feminina.Sentadanumadas cadeiras pró ximas da mesa, Dominika respondia sim ou nã o ao examinadorqueGablejá conheciade outras sessõ es semelhantes, um bigodudo pelo qual ele nã o tinha a menor simpatia. “Esse aı́ chegou ao fundo do poço vinte anos atrá s e continuou cavando”, era o que ele diziasobreohomem.Dominikasabia queaqueleeraumtesteimportantee fez um esforço especial para nã o decodi icar o sujeito, para nã o brincar com as fraquezas dele. Procurava se concentrar exclusivamente nas perguntas que passavamcoloridasaseulado. Apó sumahoradecon inamento no quarto abafado, Nate ouviu quando o teste chegou ao im e voltouparaasala.Dominikameneou acabeçaparaele,masohomemnem sequer piscou. Temerosos feito uma virgem na noite de nú pcias, os examinadores jamais davam qualquer pista dos resultados antes de“avaliarosgrá icos”,comosempre diziam. Forsyth voltou com ele à estaçã o, mandou-o se sentar e falou quenã oestavanemaı́,queprecisava saber dos resultados já , pelo menos uma preliminar. O caso era importantedemais,nã ohaviatempo a perder. Contrafeito, o examinador sedeclarousatisfeitocomoquevira e ouvira. A moça era mesmo quem dizia ser, um cabo do SVR. Mais importante de tudo, nã o era uma agente dupla despachada pelo serviçocomointuitodeconfundira CIA, identi icar informantes russos ou descobrir quais eram as demandas atuais da inteligê ncia americana. Apó s essa primeira con idê ncia, o examinador se sentiu à vontade para contar també m que os grá icos mostravam um ligeiro pico sempre que a moça respondia a alguma pergunta com o nome de seu recrutador, Nathaniel Nash. Fora necessá rio reformular essas questõ es de diversas maneiras até queeletivessecertezadequeelanã o estava usando as clá ssicas té cnicas cubanas e tchecas para ludibriar o polı́grafo. Alé m disso, ele nã o percebera nenhum dos sinais da linguagem corporal que geralmente delatavam segundas intençõ es: respiraçã o controlada, mã os fechadasempunhoetc. Mais tarde Forsyth contou a Gablesobreareaçã odeDominikaao nomedeNate. — Orgaespasmos — limitou-se acomentarGableantesdeselevantar esairdasala. Com a aprovaçã o de Dominika no teste, nada impedia que o caso seguisse em frente. Agora eles tinham que de inir pontos como a segurançadela,odisfarce,omodode secomportar,oritmodasações. — Você precisa aparentar a mais absoluta normalidade — orientou Forsyth. — Continue relatandoosseuscontatoscomNate à central, sempre com algum progresso. Uma vez por mê s talvez seja pouco. A cada quinze dias, ou uma vez por semana, é melhor. Isso lhedaráliberdadeparaagir. —Eraissomesmoqueeutinha em mente — retrucou Dominika. — Os cabogramas já estã o todos redigidos na minha cabeça. Até o inverno. — Você deve redigi-los sozinha —disseForsyth.—Podemosajudar, masotextotemquesaircomassuas palavras,osseusdetalhes. Dominika assentiu.Ela conhece o jogo, pensou Forsyth.Está completamenteàvontadecomele. — Vou retratar Nate como um cara... convencido, orgulhoso, mas precavido. Fá cil de manipular, distraído,masdesconfiado. ElasevirouparaNateearqueou umadassobrancelhas. — Difı́cil acreditar que você vai demoraraté oinvernopradescobrir isso — implicou Gable, sentado no sofá ao lado de Nate, que respondeu levantandoodedomédioparaele. — Nã o sei até onde a gente vai conseguirlevaressahistória.Cedoou tardeopessoaldeMoscouvaiperder a paciê ncia — observou Forsyth, já antevendo o dia em que Dominika seriaconvocadadevoltaaYasenevo. Será queelajá estariaprontaaté lá paracomeçarotrabalho?Será que conseguiriam prepará -la a tempo? O problema era o calendá rio, nã o ela, pensouele. —Há umamaneiradeprolongar o contato, de me dar mais liberdade de açã o — comentou Dominika. — Algo que certamente deixará a central disposta a investir mais temponaoperaçã o.Algoquemeutio Vanyaesperaqueeufaça. —Oquê?—perguntouForsyth. — Daqui a um tempo, eles vã o adorar receber um relató rio dizendo queNateeeunostornamosamantes. Isso vai atender à s expectativas deles.Eissoqueesperamdealgué m quepassoupelaEscolaQuatro. Gable se levantou do sofá . Com umacareta,disse: —Amantes?PorDeus,eujamais pediria a algué m pra fazer isso com Nate.Émuitosacrifício. *** Era um domingo movimentado. Esquifes e veleiros encontravam-se parados nos ancoradouros na baı́a. No esconderijo, Dominika falara um pouco sobre Marta mas decidira parar e contar a Nate sua novidade mais recente: Volontov, o protozoá rio, subitamente havia se dado conta de que estava sem assistente administrativa e, solı́cito, pedira que ela assumisse algumas das funçõ es de Marta. Seu primeiro impulso fora dizer nã o, para desacreditar o ogro aos olhos da central,mas,numsegundomomento, pensando neles (Nate, Forsyth e Bratok),decidiraceder.Seuprecioso segredo era o que mais importava agora, e ela vinha aprendendo a identi icar oportunidades para alimentar seu crescente apetite por vingança. Entã oelestinhamlhepassadoa responsabilidade pelo controle dos cartõ es de ponto dos o iciais da rezidentura, bem como pelo arquivamento dos documentos da controladoria operacional. Essa ú ltimatarefavinhacomumbenefı́cio extra: cada despesa precisava ser vinculada ao relató rio de uma operaçã o especı́ ica ou a um cabograma operacional que descrevesseaorigemdadespesa. — Volontov e sua equipe deveriam fazer tudo isso por conta pró pria, mas eles simplesmente jogam a papelada na minha mesa — contou Dominika. — Ningué m, exceto orezident, tem permissã o para ler os cabogramas dos outros. As informaçõ es obedecem a um rı́gido sistema de compartimentagem.—Aquiosolhos delabrilharam.— Acontece que eles precisam de mim pra fazer o casamento das despesas com os relató riosetelegramas.Trocandoem miú dos, Volontov me deu acesso a todootráfegooperacional. Depois disso as informaçõ es começaram a chegar em pequenas doses e intervalos irregulares. Tudo era examinado com cuidado, primeiro por Forsyth, depois pelos invertebrados de Washington, todos à procura de alguma nota falsa, alguma esperteza velada, alguma informaçã o excessivamente conveniente. Dominika tinha uma memó ria prodigiosa para os detalhes, lembrando-se com facilidade de algum fato que desencadearaoutro,queporsuavez levara a um terceiro. A certa altura ela começara a fazer anotaçõ es codi icadas, e por mais que a interpelassem, nã o conseguiam detectarnenhumainconsistência. Dominika decorara o texto quase completo do relató rio mensal de atividades de apoio do referente daLinhaN.Apartirdele,descobriraa existê ncia de trê s agentes ilegais da Linha S em Helsinque, pessoas que moravamnaFinlâ ndiahaviadé cadas comocidadãosfinlandeseslegítimos. Uma delas já deixara o paı́s atravé s de Haaparanta como uma cortina de fumaça apó s o desaparecimento de Marta e as outras duas moravam nos arredores de Espoo, mas seriam deixadas em paz para que ningué m descon iasse deDominika. *** No encontro seguinte ela assustou a todos ao apresentar um documentooriginal surrupiado do gabinete de Volontov. Ela havia embolado as folhas e guardado no bolso em vez de levá -las para a fragmentadora de papel junto com o resto do entulho.Sovershenno Sekretno, Absolutamente Con idencial,diziaocarimbo.Eraum relató riodequatropá ginasdaLinha PRsobreosparlamentosdaEstô niae da Letô nia, paı́ses que agora integravam a ONU. As informaçõ es seriam passadas ao QG em Washington e, de lá , encaminhadas ao Conselho de Segurança e à Presidê ncia da Repú blica. Gable, no entanto, deu uma bronca em Dominika, exigindo que ela jamais voltasseafazertamanhabesteira. Washington pensava da mesma forma: o roubo de documentos fı́sicos era arriscado demais e, por isso, uma câ mera seria enviada à informante russa. A princı́pio Nate icou preocupado, mas Forsyth logo tratoudeapaziguá -lo,a irmandoque Dominika precisava se habituar a essetipoderecurso,quesemdú vida sesairiamuitobem. — Nã o acho que ela esteja pronta—falouNate. Qualquer instrumento de espionagemtriplicavaosriscos,eele nã o queria ver sua operaçã o em risco, muito menos Dominika em apuros. —Entã oé melhorvocê acelerar a preparaçã o da garota — disse Gable.—Porqueseaconvocaremde volta amanhã , vamos ter que dar adeusàoperaçãoDiva. — Talvez já seja hora de você dar a ela umas aulinhas sobre as operaçõ es internas de Moscou — emendou Forsyth. — Sua especialidade. *** O treinamento operacional de Dominikaen imcomeçou.Overã ojá haviachegadoeaescuridã odanoite de Helsinque fora substituı́da por uma luz crepuscular que parecia permanente. Na estaçã o de metrô , os habitantesdacidadeandavamdeum ladoaoutronasplataformas,subiam e desciam as escadas rolantes, conduzidos pela monotonia de suas respectivas rotinas. Dominika de echarpe, Dominika de boina, Dominika de casaco. Contando passos, afunilando-se junto com a multidã o nas roletas. Atravessou para o outro lado e a certa altura passou por Nate num corredor. Roçou-o de leve na manga do sué ter aomesmotempoqueviaderelanceo violetadesuaaura,sentiaseucheiro e repassava para ele, com toda a discriçã o, um maço de cigarros que vinha segurando irmemente entre dois dedos, na altura da cintura. Foi uma manobra de esbarrã o perfeita: cada um seguiu para seu lado e em seguida misturou-se ao rebanho de passageiros. Em outra ocasiã o caı́a uma chuva de verã o leve e fresca. O trâ nsitoestavalento,faró isre letiam no asfalto. Dominika conferiu as horas no reló gio sob a luz de uma vitrine. Nenhum espiã o na sua cola. Aliviada,viuqueconseguiriacumprir ajaneladetempo.AoouvirdeNateo queelesiriamfazer,elagargalharae dissera: — Nó s, os russos, recorremos a estraté gias dramáticas. nã o tã o Aoqueelerespondera: — Isso porque o SVR opera em paísesdemocráticos. Ela bufara, mas ouvira com atençã o as instruçõ es que ele ainda tinhaadar. Agora Dominika caminhava rente à s fachadas de granito, os carrospassandoaseuladonarua,os pneus sibilando no chã o molhado. Maisà frenteeladobrouaesquinae parou à sombra de um andaime na passarela reservada aos pedestres. Aostrintaeoitominutosapó sahora marcada, o carro de Nate dobrou a mesma esquina, um entre tantos outros,eparoujuntoaoandaimesem estacionar, sem desligar o motor. Dominika rapidamente se adiantou até ajanelaaberta,deixoucairosaco plá sticosobreobancoerecebeuem trocaopendrive.Emseguidavoltou à passarela e viu o carro seguir adiante.Natenemsequerolharapara ela, tampouco pisara no freio para nã o acender os faró is traseiros. A manobra do carro passante.Quanto drama,elapensou. Elesprosseguiamcomcautela,e como era de se esperar os apressadinhos do QG começaram a dar as caras. Dominika era um ativo controlado, bem posicionada numa rezidentura do SVR, eles escreveram, sugerindo em seguida que “outras possibilidades” fossem exploradas. Forsyth ainda conseguiu enrolá -los por mais algumas semanas, mas a certa altura a sugestã o se transformou em uma determinaçã o curtaegrossa.AvontadedeGableera entrarnumaviã oparaWashingtone en iaraquelaordemnorabodequem adera,masForsythtratoudeacalmálo. A loucura começou. Os engenheirosdaDiretoriadeCiê nciae Tecnologia queriam que Diva baixasse todo o conteú do dos computadores darezidentura, que atacasseossistemasdecriptogra ia, queplantasseengenhocasdeá udioe vı́deo nas instalaçõ es russas. Os té cnicos admitiam que algumas de suas engenhocas poderiam causar picos de energia em toda a zona sul de Helsinque, e para uma delas em particular seria necessá ria a instalaçã o de uma “fonte radioativa” no telhado da embaixada russa. No entanto, o centro de operaçõ es advertiaqueainstalaçã odequalquer equipamento em campo seria atrasadaemrazã oda“regradosseis” que de modo geral regia o desenvolvimento de qualquer nova tecnologia: maisseis anos consumidos no departamento de pesquisa e desenvolvimento, mais seismilhõ esdedó laresdecusto,mais deseiscentaslibrasdepeso,talcomo já acontecera com determinada engenhoca,abortadaaindanafasede testes.Umaloucura. Enquanto o lado clandestino da operaçã o se desenrolava, Nate e Dominika davam continuidade à farsa dos encontros pú blicos, encenada apenas para os olhos de Volontovcomointuitodecozinhá -lo. Jantares, shows, passeios no campo. Nate sempre fornecia algum detalhe desuavidapessoal(informaçõ esque maistardeacentralpoderiaveri icar por conta pró pria) para que Dominika pudesse dar provas do progresso que vinha fazendo no relacionamentocomoamericano.No entanto, tal como Forsyth previra, Volontov passara a exigir dela mais avançosemaisrapideznaoperaçã o, de modo que, para ganhar tempo, decidiu-se que já era o momento de enviar o tã o aguardado cabograma relatando que ela começara uma relaçã ofı́sicacomNate.Gablelogose ofereceu para ajudar no rascunho, sugerindo que certa “disfunçã o eré til” fosse acrescentada à histó ria comoumbom pretexto para futuros atrasos. Forsyth vetou a sugestã o imediatamente,eNatemaisumavez teveaoportunidade de presentear o companheirocomumgestododedo médio. Dominika começou a fotografar documentosconfidenciaisnointerior d arezidentura com diferentes câ meras instaladas em bolsas, chaveiros e batons. Tinha discernimento su iciente para fotografar apenas os papé is mais importanteseera lexı́velobastante para saber quando deveria esperar. Gable sempre a elogiava, mas Nate continuavapreocupado,ranzinzaaté , comosriscosqueelavinhacorrendo. Numa tarde de domingo, no esconderijo, Dominika perdeu a paciê ncia e resolveu encostá -lo na parede: — Você se preocupacomigo ou com o sucesso do caso, do qual dependeasuareputação? Seguiu-se um pesado silê ncio. Gablepigarreou. Constrangido e irritado, Nate virou-selentamenteeretrucou: —Minhaprioridadeé preservar ofluxodeinformações. Quando viu a expressã o dela endurecer,acrescentou: —Só achoquevocê deviairum poucomaisdevagar. — Se é isso que você acha — interveio Gable —, vai adorar a próximarodada. *** O cabograma de Washington tinhacincopáginas.Elesqueriamque Dominika inserisse um pen drive especialmente preparado num dos computadores darezidentura, de preferê ncia o que icava na sala de arquivo, mas o de Volontov també m serviria.Bastariamcatorzesegundos de download para que Washington tivesse acesso ao texto original de todos os cabogramas criptografados que fossem transmitidos entre Yasenevo e Helsinque por meio de linhas telefô nicas comerciais. Ler mensagens em linguagem nã o codi icada era muito mais fá cil do que tentar decifrar algoritmos periodicamente alterados. Mas aquele seria o passo mais arriscado até entã o.Lendooquesepassavana cabeçadeNate,Forsythorientou-oa nã o comparecer ao encontro seguinte no esconderijo. Gable se encarregariadeprepararDominika. Dois dias depois Dominika entrou na sala de arquivo empurrando seu carrinho metá lico, como sempre apinhado de pastas, envelopes, livros de contabilidade e documentos avulsos. Por sorte ela conseguia icardepé ,poisaspernas estavambambasetrê mulas,tantoou mais que as rodas docarrinho. O zeladordasalaeraSvets,umhomem demeia-idadeeó culosenormesque com frequê ncia usava uma gravata larga e curta demais, quase sempre de lã . Ele logo se animou ao vê -la chegar. Aquela era a melhor hora do seu dia: o momento em que Dominikaprecisavaseespicharpara guardar os documentos nos escaninhosmaisaltos.Seusolhosde besouro só faltavam saltar das órbitas. Ela já havia ensaiado toda a representaçã o com Gable no esconderijo. Empurrando seu carrinho sala adentro, distraidamente deixou que ele batessenaquinadamesadeSvetsde tal modo que boa parte da papelada escorregasse para o chã o. O homem se levantou na mesma hora para ajudá -la a recolher a bagunça. Ao se ajoelhar ao lado da mesa, Dominika avistou a luzinha verde que piscava no computador, junto da porta em que deveria inserir o pen drive. Tentandoserdiscreta, veri icou se o dispositivo estava do lado certo, encaixou-o e começou a contar os segundosenquantojuntavaospapé is à sua volta. Nove, dez, onze... Svets ameaçouvoltarà mesaeelaapontou para outra pasta caı́da num canto mais à frente. Doze, treze,catorze. Pronto. Quando ela inalmente pô de recolocar o pen drive no bolso da saia, teve a impressã o de que ele pulsava feito um coraçã o. Ficou de pé , ajeitou os cabelos atrá s das orelhas e começou a guardar o material nas devidas gavetas, demorando-se nas mais altas em consideraçã o a Svets, levantando o pezinhoatítulodeefeito. A duas horas do im do expediente, todos pareciam olhar para ela como se soubessem o que tinha feito. Depois, já no lobby do pré dio, Dominika se deparou com uma ila de descontentes junto à s portas duplas da saı́da, reclamando deumadasinspeçõ essurpresaquea embaixadaimpunhacomonormade segurança. Justo naquele dia. Dois brutamontes que lembravam estivadores do Volga, ambos com umaauraescuraemtornodacabeça, vasculhavam bolsas, bolsos e pastas. Dominika sentiu uma gota de suor escorrer pelas costas. Estava presa naquela ila:semdú vidaserianotada se tentasse recuar. Só lhe restava esconder o pen drive. Usando o casaco que levava pendurado ao braço como escudo, tirou o dispositivo do bolso, passou-o pelo có s da saia e o empurrou calcinha adentro. Minutos depois ela estava diante de um dos seguranças. O homemfediaavodcaetinhaosolhos injetados. Dominika podia jurar que ele sabia de tudo, mas, terminada a inspeçã o da bolsa, recebeu permissãoparairembora. Mais tarde naquela mesma noite, contou toda a aventura aos americanos, a adrenalina ainda correndo nas veias. Nate estava um pouco afastado, parado à porta da minú sculacozinha,eForsythouviao relato com atençã o, com os ó culos erguidosàalturadatesta.Gableabriu uma cerveja e a bebeu praticamente deumsógole. —Achoqueagorasabemospor que esses dispositivos sã o tã o pequenos — comentou ele, depois quase atropelou Nate para entrar na cozinhaecomeçouafazerumfondue dequeijo. Dominikanuncahaviacomidoo prato de origem suı́ça, nem sequer sabia o que era. Assim que icou pronto,elesseacomodaramà mesae começaram a conversar e rir enquanto comiam, molhando o pã o no queijo derretido, sentindo o perfumedovinhomisturadonele. Forsyth e Gable foram embora depois do jantar. Nate serviu mais duastaçasdevinhoefoiparaosofá comDominika. —Oquevocê fezhojefoimuito arriscado — disse. — Eu nunca deveria ter permitido uma loucura dessas. — No inal deu tudo certo — retrucou ela, virando-se para ele. — Nó s dois sabemos que os riscos existem. — Alguns riscos sã o aceitá veis, outrossã oinevitá veis,masamaioria éumaburrice. —Burrice? — cuspiu Dominika. — Fique tranquilo, Nate, nã o vou deixar que você perca sua medalha deespiãodoano. A palavra “burrice” havia sido difı́cil de engolir. De sua parte, Nate també m já estava com o â nimo acirrado. — Só acho que você deveria arranjar outro vı́cio que nã o fosse a adrenalina—retrucouele. — Vinho, talvez? — perguntou ela,eemseguidaarremessoucontra a parede a taça que tinha nas mã os. — Nã o, muito obrigada. Pre iro adrenalina. Osdois icaram em silê ncio por um momento. Dali a pouco, Nate se aproximouea agarrou pelos braços, dizendo: —Qualéoseuproblema,hein? Eles fulminavam um ao outro com o olhar, separados apenas por algunscentímetros. — Qual é o seu problema? — devolveu Dominika, quase num sussurro. A sala estava desfocada à sua volta. Ela via Nate roxo, granulado. Baixou os olhos para a boca dele, desa iando-o, querendo queelechegassemaisperto.Apósum segundo o momento passou. — Me solta—exigiu. Natelargouosbraçosdela.Sem nem ao menos olhar para ele, Dominika pegou o casaco, abriu a porta e, como de praxe, deu uma olhada rá pida no corredor e no vã o da escada. Só entã o saiu e delicadamentefechouaportaà ssuas costas. Ele icou olhando para a porta fechada com a boca seca, o coraçã o retumbandonopeito.PorDeus,tudo o que ele queria era que a operaçã o transcorressesemproblemas.Tudoo que queria era a segurança de Dominika.Tudooquequeriaera… FONDUE DE QUEIJO DO GABLE Preparar uma redução de vinho branco com alho, adicionar queijo Gruyère e Emmental ralado e ir misturando em fogo médio até derreter. Engrossar com amido de milho e água, acrescentar mais vinho (opcional) e reaquecer (sem deixar ferver) até que ofondue esteja cremoso. Servir com pedaços de pão de campanha ligeiramente tostados. CAPÍTULO 18 O VERAO JA PEDIA MANGAS CURTAS. Nas calçadas, enquanto esperavam o sinal abrir para atravessar a rua, os pedestres fechavamosolhoseerguiamorosto nadireçã odosolcomogirassó is.Na horadoalmoço,osamplosgramados e inú meros bancos do parque de Kaivopuisto se enchiam de secretá rias aproveitando o calor do dia. Nateencontrouobilhetecolado à sua porta, foi direto para a sala de Forsythesesentouà frentedele.Viu que Gable já tinha se acomodado no sofá . Forsyth lhe mostrou o cabograma em que o pessoal de Washington informava sobre a intençã o do novo diretor da CIA, recé m-con irmado no cargo, de ir incó gnito de Copenhague até Helsinque e icar na cidade por apenas seis horas, durante as quais se encontraria com Diva e expressaria formalmente a gratidã o da agê ncia pelos serviços que ela já prestara até o momento. Nate leu o texto e olhou para Forsyth, depois paraGable. — Como ele pretende viajar incógnito?—perguntou.—Ohomem está comacaraestampadaemtodos osjornais. — Ele vai a Copenhague por conta daquela histó ria da ONU — explicou Forsyth. — Como vai escapulir dos dinamarqueses, aı́ já nã o faço a menor ideia. Allen Dulles costumava fazer isso. Angleton també m. Entrar num aviã o sem contar nada a ningué m e aparecer noslugaresdonada. — Em 1951, porra — retrucou Gable. — E esses caras viajavam sozinhos. O sujeito descia do aviã o, pegava um tá xi pro hotel e até assinavaa ichanocheck-in.Falando em aviã o, aquele chapeuzinho das aeromoças,hum... Forsythignorou-o. — Ontem à noite respondi dizendo “Nã o, muito obrigado”, mas nã o deu meia hora e o chefã o da Europa ligou na linha verde pra me dar um esporro e falar que nã o era um pedido, que o diretor quer estar pordentrodocaso. —Esseaı́é outroquetemoego do tamanho de um balã o — comentouGable.—Achaqueestá no comando de um navio em Trafalgar. Por acaso você s já leram as bê nçã os natalinas que ele manda todo ano prastropas? Forsythcontinuouaignorá-lo. — Só vamos poder controlar as coisas a partir do momento que eledescer do aviã o — falou. — Assim que ele passar pelo portã o da sala VIP, eu o coloco no meu carro, faço a contravigilâ ncia de praxe, deixo os capangas dele esperando numavannaruaenquantosubocom eleaté oapartamentoparaeletrocar umapertodemã ocomelaevoltarno mesmo pé em que veio. Só precisamosrezarpraqueaFapsinã o intercepteoplanodevoodohomem. — A Fapsi era a agê ncia federal de comunicaçõ es e informaçã o do governorusso.—Forsytholhoumais uma vez para o cabograma recebido de Washington. — Sem dú vida algué m o colocou a par da operaçã o Divarecentemente.Bem,pelomenos é um marketing bacana pro nosso caso. — Marketing? — rugiu Nate. — O cara vai acabar matando a Dominika!Naminhaopiniã oagente tinha era que colocá -la no portamalasdeumcarroedespachá -lapra um im de semana prolongado na Sué cia. Você nã o pode dizer que ela nãoestádisponível? —Não—respondeuForsyth. —Queelanã oquerseencontrar comele,então. — Nã o. Prepare a garota, mande-a sorrir. Aqueles olhos azuis vã o cuidar do resto. Vamos mandar umas comidinhas pra lá , umas bebidas també m. — Um carro na esquina,prontoprabateremretirada —disseGable. — Mas e a Dominika? — perguntouNate.—Quemvaipagaro patosederumamerda? —Você —responderamGablee Forsythaomesmotempo. *** Apó salgunspassosnocorredor, aportaseabriueDominika icoude pé parareceberodiretordaCIA.Ele tirou o casaco, atravessou a sala, apertou a mã o dela e disse que era um prazer conhecê -la. Em seguida apertouamã odeNate,falouqueele vinha fazendo um ó timo trabalho com aquela moça adorá vel e abriu umsorrisoradianteparaela.Por im, a irmou que ambos podiam se orgulhar muito do serviço que estavam prestando aos Estados Unidos, ao que Dominika torceu o nariz discretamente. Entã o ela e todo-poderoso da agê ncia se acomodaram no sofá e ele des iou a coleçã odegalanteiosqueherdarade seusdiascomosenador,pousandoa mã o no joelho dela de tempos em tempos para pontuar o que dizia, à s vezes deixando-a lá mais que o necessá rio, há bito adquirido nos gabinetesesalõesdoCapitólio. Ele era alto e magro, com olhos afastados, faces encovadas e cabelos muito brilhantes, pintados de preto. Dominika decidiu que ele se parecia com Koschei, o vilã o da mitologia eslavacujashistó riaselaouviadopai quando menina. Precisou apertar as pá lpebrasparavermelhoradiscreta aura esverdeada que o envolvia na altura das orelhas. O verde lhe dizia que ele era sentimental, e també m quenã oeraoqueaparentavaser.Um ator.Tão diferente de tio Vanya , ela pensou,mas ao mesmo tempo tão parecido com ele. Ambos eram ratazanas. Ele perguntou a Forsyth como era o “ambiente operacional” na Escandiná via. Todos sabiam que aquela nã o era pergunta que se izessenafrentedeumainformante, entã oDominikasaiuparaacozinhae voltoudaliapoucocomumpratode pelmeni, trouxinhas fumegantes recheadas com carne moı́da e ervas aromá ticas e cobertas de creme azedo. Ela insistira em preparar alguma coisa, seguindo o costume russo de prestigiar os convidados e contrariando Nate, que nã o achava nadadaquilonecessário. —Delicioso—elogiouodiretor, comum iodecremeescorrendopelo cantodaboca. Ele se limpou com o guardanapo, depois deu um tapinha no estofado, sinalizando que Dominikavoltasseasesentaraoseu lado. Nate, Gable e Forsyth puxaram suas respectivas cadeiras para perto de modo que pudessem socorrê -la quando preciso. Como se ela fosse uma possı́vel eleitora, o diretor perguntou de onde ela era e Gable pensou nas inú meras noites que passara em hoté is fedorentos diante deinformantesnervosos,suandoem bicas, pobres coitados que se dispunham a correr riscos inimaginá veis para estarem ali compartilhando dados secretos e ouvindo as orientaçõ es dele com atençã o, buscando na vodca ou em qualquer outra bebida alcoó lica a coragemdequeprecisavamparasair novamente à s ruas. Mas isso fora sé culos antes. O que se passava ali, naquele ensolarado apartamento em Helsinque, era uma animada reuniãozinhadeagentes. Para os russos, falar sobre sucessos futuros atraı́a o azar. Para eles,eramelhor icardebicofechado. OdiretorseaproximoudeDominika e ela nem sequer ameaçou recuar. Muitobem,pensouNate,certodeque Dominika saberia se defender sozinha. O homem dizia que a CIA aplaudia os esforços dela, que ele tinha um interessepessoal em suas atividadesequeelanãohesitasseem contatá -lodiretamente a qualquer hora do dia ou da noite sempre que precisasse.Nate icoumuitotentado apedironú merodotelefonedeleem Bethesda. Lendo os pensamentos de seu subordinado, Forsyth franziu a testa, sinalizando que ele icasse quieto. Envolvido em sua aura verde, o falante diretor Koschei agora dizia algo sobre uma conta bancá ria secreta.Umaquantiaforadepositada em nome de Dominika como um “bô nus de recrutamento”, e outros valores seriam depositadostodomês dali em diante. Claro, ela poderia fazer o que bem entendesse com aquele dinheiro, mas saques muito frequentes ou muito altos nã o eram recomendá veis. Valores maiores passariam a ser depositados depois que ela começasse a trabalhar em Moscou, continuou ele. Dominika olhouparaNate,depoisparaForsyth. Ambosestavamimpassı́veis.Koschei continuava seu discurso interminável. Aocabodedoisanosdeserviço interno em Moscou, ele prosseguiu, um bô nus adicional no valor de 250 mildó laresseriadepositadonaconta dela. Por im, na data de seu afastamento, a ser de inidaem comum acordo entre as partes, a agê ncia a alocaria no Ocidente, em lugarescolhidosobretudoemfunçã o dos parâ metros de segurança, e lhe providenciaria uma casa de no mínimo300metrosquadrados. Osilê nciobaixousobreasala.A expressã o de Dominika tinha mudado. Ela correu os olhos por todos, depois encarou o visitante e abriu seu sorriso luminoso.Fodeu, pensouNate. —Ficomuitogrataqueosenhor tenha vindo de tã o longe só pra me conhecer. Já disse ao Sr. Forsyth, ao Sr. Gable e ao Sr. Nash — falou ela, apontandoparacadaumdostrê s— que estou disposta a ajudá -los do modo que puder. No entanto, minha prioridadeé ajudarmeupró priopaı́s, a Rú ssia. Agradeço tudo o que o senhor me ofereceu, mas, desculpe, nãoestoufazendoissopordinheiro. Olhava calmamente. para o diretor —Ah,claroquenã o—retrucou Koschei, e deu mais tapinhas no joelho dela. — Mas todos nó s sabemos como o dinheiro pode ser útil,nãoé? — Sim, o senhor tem razã o — concordouDominika. Nate podia ver que ela estava irritada. Forsyth també m. Gable começou a zanzar pela sala, recolhendocasacos. — Sr. diretor, infelizmente precisamos ir — disse Forsyth. — Temosumaviagemdemeiahoraaté oaeroporto. — Muito bem, entã o — respondeu o homem. — Foi um grande prazer conhecê -la, Dominique. Você é uma mulher muito corajosa por correr esses riscosterríveis. Meu Deus, só falta ele dizer quanto tempo ela ainda tem de vida, Natepensou. —Nã oseesqueça—prosseguiu odiretor,levantando-separaabraçar Dominika. — Se precisar, é só me ligar. Ah,claro,assimelepodepegarna sua mão para te ajudar a pular a cerca de arame farpado lá na fronteira, depois correr dos cachorros com você através do campo minado, pensouGable. Forsythajudouosujeitoavestir o casaco e entregou-lhe o chapé u enquantoGabledesciaparaalertaro destacamento de seguranças. Alguns instantesdepoisodiretorsaiuparao corredoreForsyth,antesdesegui-lo, parou à porta, deu uma piscadela paraDominikaeNateedisse: —Falocomvocêsdepois. DominikaeNatetambé mforam paraaportae icaramalifeitorecé mcasados despedindo-se do tio rabugento que havia aparecido para ojantardedomingo. Natefechouaportadevagareo apartamento clandestino voltou à calma de antes. Dali eles podiam ouvir os barulhos lá de baixo: as portas dos carros se fechando e os veículosarrancandonarua. — Entã o — falou Nate —, gostoudodiretor? *** A luz lançada na baı́a pelo sol que se punha no horizonte dava-lhe um aspecto sobrenatural. Vozes alegres entravam no apartamento pela janela aberta. Dominika e Nate estavam sentados quase no escuro, elanosofá,eleemumacadeira.Havia duas taças de vinho intocadas na mesa de centro. A luz ambiente incidiasobreoscabelosdelaesobre oscı́liosdoolhodireito.Elausavaum vestido justo com sapatos de salto alto, algo perfeitamente adequado també m para uma entrevista de emprego.Nã oestavacomvontadede conversar,eNatenã osabiaaocerto o que dizer, receando que suas discussõ esanteriores,eagoraaquela visita,ativessemdesgastadoaponto de fazê -la desistir de tudo. Era ele o operador daquela agente. Era responsabilidade sua manter o caso emandamento. Merda, ele pensou.Muitos agentes são perdidos por causa da contrainteligência, ou por falta de sorte,ouporummautiming,tipovocê se atrasa meia hora, perde o trem e depois disso tudo muda. Mas quem já ouviufalardeumoperadorqueperde a informante porque ela acha que todososamericanossãobabacas?Ele já podia imaginar o falató rio em Washington, na cafeteria do QG: “Isso, o Nash, em Helsinque. O mesmo cara que pisou na bola em Moscou.Osboatostinhamumfundo deverdade,a inal.Sempretê m.”Cedo ou tarde ele receberia o fatı́dico telegrama: “Hora de voltar pra casa, Nate. Ficar de molho por um tempo, conversar sobre seu futuro.” Seu pai escreveria: “O bom ilho à casa torna!” Ele começaria a descer a ladeira ı́ngreme e escura rumo ao fundo do poço. Em meio a esses pensamentos, de repente notou que Dominika se levantara e ia em sua direção. A escuridã o do cô modo a afetava de um modo estranho, era como se ela se encontrasse no interior de um casulo invisı́vel. Dominikaparounafrentedelee icou olhando-odecima.Ohalovioletaera o mesmo de sempre, mas parecia emanarumestranho calor. Ela sabia que ele estava sofrendo, o pro issional exemplar que se preocupava com o rumo da carreira, mashaviacertavulnerabilidadesoba capa da seriedade pro issional. Independente do que ele sentia por ela (por enquanto uma incó gnita), toda aquela preocupaçã o a respeito desuasegurançanã odeixavadeser afetuosa. Ela mesma já começava a sentirapressã odevivercomaquele segredo inconfessá vel. A princı́pio motivada pela raiva, ela se colocara naquele novo papel, um papel diferente. Passara para o lado dos americanos porque con iava neles. E eles cuidavam dela, eram profissionais. Mas izera isso principalmente por Nate. Caso ele houvesse perguntado, ela teria dito que nã o tinha a menor intençã o de recuar e desistir. Estava determinada, convicta. No entanto, naquele momento Dominikaprecisavadealgomaisque a adrenalina dos segredos inconfessá veis, que a consciê ncia de quesuadeterminaçã oeramaiorque a de todos os demais, de que estava dando uma bela rasteira nas forças do Sr. Putin. Precisava que algué m precisasse dela. Precisava queele precisasse dela. Podia sentir seu eu interiorabriraportaedarumpasso parafora,juntocomumatorrentede sentimentos. Ela se abaixou, apoiou as mã os nos braços da cadeira de Nateebeijou-onaboca. Nã o previra isso. (Sabia queele nã o previra.) Tanto no serviço americano quanto no russo era estritamente proibido o envolvimento fı́sico entre dois agentes. Complicaçõ es emocionais eram fatais para uma operaçã o clandestina. Nã o era à toa que as mulheres que agiam como pardais eramtiradasdecirculaçã ologoapó s as arapucas sexuais, sendo substituı́das por um homem que assumia o comando dos trabalhos. Ningué mchegaalugaralgumquando aspaixõ essemisturamaosnegó cios, quando um agente começa a pensar com a cabeça de seukhuy, tal como os velhinhos que ela tivera como instrutores em Moscou gostavam de dizersóparafazê-lacorar. Agoraelaestavanosbraçosdele, beijando-o nã o sofregamente, mas devagar e com delicadeza. Os lá bios do americano eram quentes, e ela queriasorvê -los.Sentiaumapressã o crescer em seu corpo, dentro do crâ nio,nosseios,entreaspernas.As mã os dele estavam pressionadas contra suas costas e ela gostava disso, sentia-se à vontade, tinha a impressã o de que os dois eram velhos amigos de infâ ncia que agora haviam se descoberto adultos. O há lito quente e violeta dele entrava por sua orelha e ela o sentia percorrersuaespinha. — Dominika — disse ele, ameaçandoparar. Diasanteseleshaviamtidouma discussã o sé ria, era loucura se envolverdaquelejeito,aestabilidade docasodependiade... —Zamolchi.Calado,seubobo— sussurrou ela em resposta, roçando oslábiosnorostodele. A mente de Nate girava num misto de indecisã o, medo e desejo. Nã o havia dú vida de que ele queria aquelamulher,maseraumaloucura, uma irresponsabilidade. proibido. Era Ele mal soube o que aconteceu depois. Quando viu, os dois estavam a caminho do quarto, nus e explodindo de desejo. Dominika passava as unhas de leve entre as pernas dele, pensando que podia ter acabado de descobrir uma nova té cnica de alcova. Segundos depois eles estavam subindo naquela cama ridı́cula, espremida entre duas paredes.Aindausandoasunhaspara excitá -lo, agora com um pouco mais deforça,Dominikaria,abocasecade desejo. Estava inebriada, achando irrealsentirapeledoamericanopela primeiravez,tantonasmã osquanto nos lá bios, que agora passava pela barriga dele. Nate olhou para Dominika surpreso quando ela plantouambasasmã osemseupeito eoempurroucontraacama.Fogosa e doce, tı́mida e devassa, ela continuava a saboreá -lo, e era como se eles fossem amantes desde sempre. Em nenhum momento ela pensou no que aprendera na Escola de Pardais, em té cnicas numeradas. Simplesmenteoqueria. Aquela altura o desejo já se tornava incontrolá vel. Dominika sentia seu eu secreto se expandir sem nenhum controle, invadir sua mente, comprimir sua garganta. No ú ltimo instante Nate a jogou de costas sobre a cama e ela ergueu as pernas trê mulas para recebê -lo. O luar transbordava para dentro do quarto, ofuscando a visã o de Dominika, que só via a silhueta de Nate acima dela, depois nem isso, apenas sentia o peso dele subjugando-a. De repente ela sentiu seu corpo se expandir, uma experiê nciaa litivamentedeliciosa.O luar parecia saltitar sob suas pá lpebras fechadas, e só lhe restava esperar que seu corpo frá gil e vulnerá vel nã o se desmanchasse comoumafolhadepapel.Logoelafoi invadida por uma onda de urgê ncia, seguida por uma torrente vinda das profundezas de seu ser, muito mais intensa que todas as demais, que a envolveuemumturbilhão. — Bohze moj — foi o que lhe escapou da boca enquanto ela revirava os olhos num estado de graça. Depois eles icaram deitados lado a lado sob o luar. Dominika esperouqueascoxasseacalmassem antes de se virar para Nate, encharcado de suor, e soprar no ouvidodele: —Dushka,você realmentesabe comooperarumainformante. O ar noturno ainda nã o havia secado seus corpos quando eles ouviramumachavegirarnaportado esconderijo. Os dois saltaram da cama no mesmo instante. Nate correu para a sala, recolheu suas roupas e se vestiu no quarto o mais rá pido que pô de. Dominika també m pegou as pró prias peças e entrou rá pido no banheiro. Ao voltar à sala, Nate encontrou Gable na cozinha, vasculhandoageladeira. — Depois daquele tour de force dodiretor,acheiquedeviavoltarpra tentar minimizar o estrago — disse ele. — Nã o sobrou trouxinha nenhuma? — Na prateleira de baixo — falouNate.—Poisé .Converseicoma Dominika sobre aquela merda toda. Acho que ela consegue ver a diferençaentreagenteeos igurõ es daagência. —Quasememijeiderirquando ela soltou os cachorros pra cima do pavã o — comentou Gable, apoiando sobre a bancada a travessa com os restos da comida. — Mas você conseguiuacalmá-la,certo? — Conseguiu, sim,Bratok — respondeu a pró pria Dominika, saindo do banheiro. — Já estou bem mais tranquila agora. — Estava completamente vestida, com os cabelos penteados e as feiçõ es compostas. Assim como Nate, percebia muito bem o ar de curiosidadedeGable.—Podedeixar que eu esquento isso aı́. Fica bem mais gostoso da segunda vez, sobretudo quando a gente frita. — Ela acendeu o fogã o, colocou uma frigideirasobreofogoedespejouas trouxinhas para dourá -las na manteiga.—Masagoraelasvã o icar melhorescomvinagre—disse. A conversa iada ainda prosseguiu por mais um tempo, e depois eles começaram a comer calados, junto à bancada da cozinha, cadaumcomsuatigelanasmã os.De vezemquandoGablerelanceavaNate e Dominika. Nate fazia questã o de manterosolhos ixosnacomida,mas Dominika o itava de volta tranquilamente,lendoascoresdesua aura.Terminadaarefeiçã o,Gablefoi paraapiaearrumoualouçaládentro para lavá -la mais tarde. Dominika vestiuseucasacoesedespediu,mas nemsequerolhou para Nate quando eleaacompanhouatéaporta. Agora que ele estava sozinho comGable,nã oteriacomoevitá -lo.O homem veio da cozinha com dois coposnumadasmã oseumagarrafa de uı́sque na outra. Deixou os copos namesadecentroedisse: —Espereuminstante,DonJuan, queeuvoubuscarogelo. TROUXINHAS PELMENI Preparar a massa com farinha, ovos, leite e sal, depois abri-la e cortar rodelas de 6 cen metros de diâmetro. Fazer o recheio com três pos de carne moída (vaca, porco e frango) e temperá-lo com cebola ralada e alho amassado. Colocar um pouco de recheio no centro de cada rodela, erguer as bordas e amassá-las para fechar. Cozinhar em água fervente até que as trouxinhas subam à super cie. Servir com creme azedo. CAPÍTULO 19 — VOCE NAO SEGUROU A ONDA? — perguntou Forsyth, debruçando-se sobre sua mesa. — Aosolhosda Diretoria de Operaçõ es você está coordenando uma das informantes russas mais promissoras da ú ltima dé cada e nã o t e ma disciplina de manter o pinto dentrodascalças? — Chefe, sei que foi um erro, masnãoplanejeinada.Aconteceu.Ela estava puta com o diretor. O cara chamou ela de Dominique. Ela já vinhasofrendocomtudoisso,coma pressã o e tal. Estava precisando de umombroamigo. — De umombro amigo? — retrucou Gable, sentado como semprenosofá à scostasdeNate.— E assim que você s chamam isso agora? Forsyth, normalmente afá vel e gentil,estavasé rio.EncarouNateaté fazeromaisjovemdesviaroolhar. — Nesse caso, o que você deveriaterfeitoerabemdiferente— falou.—Conversarcomela,oferecer apoio,masnão... —Nã opularemcimadelafeito umcoelhonocio—completouGable. — Feito um coelho no cio, exatamente—concordouForsyth.— O que acha que pode acontecer se essarelaçã odevocê sforprobrejo?E se daqui a quatro meses você s brigaremeelanã oquisermaisvera suacara? — Algo bem fá cil de acontecer —observouGable. —Elavaicontinuartrabalhando pra CIA? Ou será que está fazendo tudo isso só porque está encantada comoseu... — Seu mastro de macho — concluiuGable,esparramadonosofá. — Mastro de macho? — rugiu Forsyth, e se virou para Nate, que aindariadocomentá riodeGable.— Presteatençã o,Nate.Apesardetodas asinformaçõesqueelanostrouxeaté agora,eapesardejá terpassadopelo detectordementiras,essaDivaainda é um ativo novo. Precisamos vê -la operando produtivamente até termos certeza absoluta de que o recrutamento deu certo. Isso signi ica que nã o con iamos nela? Sim e nã o. Nunca dá pra con iar por completo num informante. Tenho experiê ncia com os russos. A certa alturaelescomeçamaenrolar,afazer drama, a dizer que estã o com saudades de casa. Muitos piram de vez. Lembra do Yurchenko dando tchaudaescadadoaviã odaAero lot? Divapareceserforte,mastambé mé temperamental, impulsiva. — Aqui ele ergueu a mã o antes que Gable pudesse fazer mais um de seus comentá rios infantis. — Sua responsabilidade como operador é coletar as informaçõ es de inteligê ncia, garantir a segurança da suainformante,sublimarasemoçõ es e fazer dessa moça a melhor agente quevocêpuder. —Sublimar—repetiuGable.— Issoquerdizer:nãotrepar. — Quando você chegou aqui viviachorandopeloscantos,dizendo queprecisavafazerumrecrutamento importante,depoisconseguiufisgara russinha e só queria saber de proteger o caso, proteger sua reputaçã o de agente... Porra, Nate. Está na hora de começar a operar essa moça como um pro issional. Pensarcomacabeçafriae... —Acabeçaqueestá emcimado ombro—interrompeuGable. —...enuncaesqueceroestrago que uma relaçã o amorosa pode trazer,tantoparaocasoquantopara a moça. Precisamos começar a pensar no retorno dela pra Moscou. Nã otemosnenhumaideiadetiming. Talvez ela se recuse a trabalhar nas internas, entã o sugiro que você comece a plantar a ideia na cabeça dela, a prepará -la para quando esse diachegar. — Sim, senhor — disse Nate, inalmente erguendo os olhos para Forsyth. — Estamos entendidos? — perguntouele,dando a conversa por encerrada. —Estamos,estamos,estamos— retrucouNate.—Foimal.Valeupelo toque,chefe.Pode icar tranquilo, eu voumeemendar. — Otimo — falou Gable. — Agora posso mandar tirar aquelas quatro câ meras escondidas no apartamento. Natearregalouosolhosparaele. Forsythpermaneceusério. — Estou brincando, Romeu — disseGable.—Só estouzoando.Nã o tiveestômagopraverasfitas. Forsyth e Gable teriam continuado tripudiando de Nate nã o fosse o sinal que ele recebeu de Dominika no dia seguinte. Quando entrounocarro,elenotouquehavia vaselina sob a maçaneta do lado de dentrodaportaeteveasensatezde nã orecolheramã oapressadamente. Sabia que se tratava de um sinal de emergê ncia deixado por Dominika, que signi icava que eles deviam se encontrardaliadozehoras.Ooutono já chegara, e a noite estava fria. O climadeixavaopara-brisadoscarros embaçado e fazia com que ondas de vapor escapassem pela ventilaçã o. Forsyth, Gable e Nate já esperavam no esconderijo e repassavam as orientaçõ es de emergê ncia. Talvez elaestivessefugindodealgué moude alguma situaçã o. Nate já checara a programaçã o de voos e balsas. O contato de Gable no serviço secreto inlandê s estava em alerta. Archie e Veronica faziam plantã o junto ao telefone. Logo, só restava aos trê s o iciais da CIA esperar. Todos eram experientes o bastante para nã o conferir o reló gio a cada cinco minutos. Nate se levantou assim que ouviu a chave girar na fechadura e eleslogoviramqueestavatudobem, poisosolhosdeDominikabrilhavam mais que de costume e as faces estavamcoradas,nã osó emrazã odo esforço realizado para despistar possı́veisvigilantes,masporalguma outracoisatambém. Gablelhedeuumaxı́caradechá bemquenteeelacomeçouasopraro lı́quido ao mesmo tempo que relatava sua histó ria, indo direto ao ponto, tal como era ensinado em todas as escolas de espionagem. Queria impressioná -los. Na vé spera, um homem nã o identi icado aparecera na embaixada russa e entregaraaosegurançaumenvelope no qual estava escrito em letra de imprensa:ENCAMINHARFECHADOA M.VOLONTOV.Entregaraoenvelope e saı́ra antes mesmo que o asno à portaria perguntasse o nome dele. O segurança subira imediatamente para fazer a entrega aorezident Volontov, que encontrara um segundo envelope no interior do primeiro. Entã o ele pedira que ela, Dominika, fosse à sua sala e traduzisseobilheteeminglê squelhe fora mandado. O texto, també m em letra de imprensa, dizia que o remetente oferecia ao SVR um manual té cnico americano pela quantia de 500 mil dó lares e propunha um encontro no Hotel Kämpdaliacincodias. Dominika olhou para Nate, depois para Forsyth e Gable, bebeu um gole do chá e só aı́ prosseguiu com sua histó ria. Dentro do tal envelope havia uma segunda pá gina com trê s furos na margem que parecia ter sido arrancada dos aros de um ichá rio. No alto e embaixo vinha o carimbo: CONFIDENCIAL/UMBRA. Em negrito, otítulo:USNationalCommunications Grid.Umadasorelhasforacortadana diagonal. Volontov estava nervoso, quasepá lido.Pediraqueelarepetisse duas vezes as advertê ncias que vinham logo abaixo do tı́tulo: “Distribuiçã o nã o autorizada”, “Se encontrado,devolveraoEscritóriode Coordenaçã o”, “Uso indevido sujeito aprocessopenal”. Volontov icara pá lido, em seguida rugira para que ela izesse umacó piadodocumento,já que, iel ao espı́rito bajulador sovié tico, ele fa zi aquestão que o original fosse encaminhado diretamente ao vicediretor Egorov, por malote e em caráterprioritário. ForsytholhouparaGable,quejá estavadepé vestindoocasaco.Nesse momento Dominika levantou o sué teretiroudocó sdasaiaumpapel dobradoparaentregaraForsyth.Ela izera uma segunda có pia, e os americanos se juntaram para examiná -la. Ao ver a orelha cortada, Gabledisse: — O ilho da puta cortou o nú mero de sé rie. — Depois se virou para Dominika. — Pensei que já tivesse dito pra você nunca mais fazerumabesteiradessas. Em seguida, curvou-se para dar um beijinho na cabeça dela e saiu. O cabograma que pretendia redigir seriarecebidoemWashingtondalia meia hora. Gostava de mandar comunicaçõ es à noite só para infernizaravidadaquelescomedores derosquinhas. Dominika informou que Volontov permanecera agitado o resto do dia. Chamara-a até sua sala um monte de vezes. Mesmo um patetacomoeleeracapazdeverque aquilo era um presente caı́do dos cé us. Pró ximo ao im do expediente, ele decidira ligar direto para Vanya Egorov, nã o só para relatar os ú ltimos acontecimentos, mas també m para realçar todo o seu potencial e avisar do malote que ele receberia.Omotivoprincipal,poré m, era mostrar ao vice-diretor queele, Volontov, estava cuidando pessoalmentedetodaaoperação. O rezident pedira que ela o deixassesozinhoparafazeraligaçã o, mas Dominika conseguira ouvir todas as gargalhadas desnecessá rias e todo o servilismo. Era mesmo um l’stets, um puxa-saco. Terminada a ligaçã o, Volontov a chamara pela ené sima vez para informar que o vice-diretor, naturalmente, acatara a sugestã o de que ela, e apenas ela, o ajudassenanovaoperaçã o.Caberiaa Dominika preparar os fundos. O primeirosaqueseriadeapenas5mil. Ela també m icaria responsá vel por reservar o quarto no hotel e, mais tarde, servir de inté rprete na conversacomoamericano. Semqueelasoubesse,Volontov també m telefonara para o o icial da Linha KR, o tal que operava na fronteiracomaRússia. — Quero que você faça a contravigilâ nciadeumencontroque tereineste imdesemana.Nosaguã o do Hotel Kä mp. Vá pra lá e ique de olho. —Umencontro?—perguntouo sujeito. — De quantos homens precisaremos?Vamosestararmados, claro. — Nã o, imbecil. E só você . Sem arma nenhuma. Basta icar sentado nosaguã odohoteldeolhoemtudo. Depois que eu subir com ele pro quarto, você continua esperando até a gente voltar, até me ver sair, entendeu? O homem da KR disse que sim, masficoudesapontado. Nate saiu com Dominika do apartamento depois de uma hora. Dali em diante, seguiriam as regras de Moscou: nada de encontros desnecessá rios, sobretudo à luz do dia. Redobrar a atençã o a esquemas de vigilâ ncia: sempre partir do princı́pio de quehá um em andamento. Evitar os encontros ostensivamentesociais.Procurarnã o sair das imediaçõ es da embaixada até queoencontronoHotelKä mpse realizasse. Sem dú vida Volontov estariacomasantenasempé,deolho em todo mundo. Nã o correria nenhumtipoderisco. Naestação,Gabledisse: — Tem coelho nesse mato, eu aposto. Precisamos agir com muita cautela. Se algué m resolver melar esse encontro no hotel, o imbecil do americanovaipreso,oSVR icasemo manual e... e Dominika é a ú nica pessoa do SVR, fora o coronel, que sabedaoperação. Forsyth enviou um cabograma de circulaçã o restrita ao QG, alertando sobre os riscos que cercavamDiva.O chefe europeu, por sua vez, icou chocado,chocado, ao ler a sugestã o da estaçã o inlandesa de que eles simplesmente identificassemotraidor,poisoFBIse responsabilizaria pelo caso assim que o homem voltasse para os EstadosUnidos.Paraochefenã oera aceitá vel nem sequerpensar num plano que resultasse no vazamento deinformaçõ escruciaisrelacionadas à segurança nacional — pelo menos nã o enquanto fosseele quem e s t i v e s s eno leme da divisã o europeia. Quando Elwood Maratos, 52 anos, adido jurı́dico da embaixada norte-americana, agente especial do FBI,irrompeunasaladeForsythpara “coordenar a detençã o”, eles logo viramqueahistó riajá foraespalhada pelos quatro cantos de Washington. Maratos se destacara numa carreira de 25 anos como investigador de assaltos a banco no Meio-Oeste americano.Agora,sentadoàfrentede ForsytheGablecomospé semcima da mesa, ele dizia que se tratava de um caso de espionagem perpetrado porumcidadã oamericanoequepor isso nã o havia dú vida: a jurisdiçã o eradoFBI. — No cu dele — disse Gable assimqueoadidosaiu. Aquestã oeraque,senadafosse feito,umadú ziadeagentesespeciais do FBI invadiria Helsinque como se estivesseemcasaeaú nicacoisaque a estaçã o poderia fazer seriatentar manterosbrutamontessobcontrole. ForsythnamesmahorainstruiuNate a preparar um plano de ex iltraçã o paraDiva.Erabempossı́velqueeles tivessem de tirá -la do paı́s caso acontecesse alguma merda e os russos começassem a se perguntar porquê. Entã o, algo ocorreu no QG, sem dú vida uma reuniã o importante entre os chefõ es, pois de uma hora paraoutraeles perceberam o perigo que a operaçã o representava para Diva.Maistardealgué mcontariaque foi Simon Benford, chefe da contrainteligê ncia,quemderaumde seus famosos ataques histé ricos, dizendoquequalquerdescuidocoma informante russa poderia resultar numa “lambança sem precedentes”. Isso explicava os dois cabogramas que chegaram no terceiro dia, dois antes do encontro no Hotel Kä mp. O cabeçalho do primeiro dizia “Chefe da Europa, direto para chefe de estaçã o”.Osegundoforaredigidopor Benford, com sua habitual economia depalavrasquebeiravaagrosseria,e propunha uma jogada operacional que chegava a eriçar os pelos até mesmo de Marty Gable, um macaco velho que tinha na sua sala um cinzeiro feito de um crâ nio humano provenientedoCambojaoudeMiami —elenãoselembravamuitobem. Aprimeiracomunicaçãodizia: Favor confinar a este canal todo o trânsito futuro de informações sobre o ref. caso. QG confere prioridade máxima sempre que há risco iminente da venda ilícita de material confidencial para o SVR. Estação instruída a coordenar com o representante do FB I na embaixada, já devidamente orientado por seus superiores em Washington. QG confirma à estação que FB I possui prioridade nos procedimentos inves gatórios e operacionais em todos os casos que envolvam ameaça à segurança nacional e cidadãos americanossuspeitos de algum crime federal, segundo rezam o artigo II da Lei de Reforma dos Serviços de Inteligência de 2004, o Decreto Legislativo 12.333 e a Declaração de Intenções 50 USC 401. Solicitamos que a estação dê apoio total às investigações do FBI sempre que necessário. QG naturalmente preocupado com a segurança do ativo Diva na hipótese de prisão do cidadão americano. Reiteramos que a estação deve implementar todas as medidas cabíveis que garantam a segurança operacional do ref. ativo. Favor reportar avanços por meio de cabogramas de precedência imediata, incluindo mensagens noturnas de caráter emergencial. QG sempre às ordens. Bons ventos e boa proa. Asegundadizia: Relatório ref. Diva recebido. Diva tornandose excelente fonte. Parabéns. Concordo que qualquer passo em falso na manip. do voluntário americano poderá colocar Diva sob suspeita. Nesse caso, plano de exfil. deverá estar pronto e operante. QG preparado para processamento de defecção e acomodação. A despeito das ações que se façam necessárias, nossos objetivos são identificar o voluntário, efetuar sua prisão sem alertar o SVR e permitir, repito, permitir que o SVR receba o manual de modo que suspeitas não sejam levantadas na contrainteligência russa. O FBI será orientado sobre oportunidade de ação secreta e obedecerá às instruções da estação no sentido de atingir as metas da administração central. Para informação da estação, no ano passado o Departamento de Defesa produziu um manual modificado (SOLAR) idêntico à cópia oferecida para venda em Helsinque. Essas modificações, de natureza confidencial, foram incluídas de forma deliberada para produzir confusão e desinformação. Manual SOLAR será levado pessoalmente por um pesquisador do OSWR, que sairá de Washington na noite do dia 17 e chegará a Helsinque na manhã do dia 18. Favor receber e acomodar. Assim que possível, submeter proposta operacional para a substituição dos manuais. Desconsiderar as instruções do cabograma anterior. Toda a preparaçã o foi feita, os té cnicos, chamados, houve uma ú ltima reuniã o com Diva na vé spera do contato. Eles mostraram a ela todos os desenhos, izeram uma có pia da chave de hotel con iada a ela,repassaramtodasasinstruções. — Está tudo sob controle, Nate —afirmouela,umpouconervosa. Nate ainda tentou ressaltar os riscoseperigosdaoperaçã o,masela nã o quis ouvir. Ele abriu o mapa sobre a mesa e marcou a esquina onde um carro estaria esperando na hipó tese de fuga. Dominika percebia a preocupaçã o dele, mas se perguntava a que exatamente os temores se referiam: a ela ou ao sucesso da operaçã o. Nate, o operador, estava de volta, a mesma auradesempre. A conversa icara sé ria demais, entã o eles interromperam os trabalhosparaumjantartardio.Foia vez de Forsyth ir para a cozinha. Ele nã o era nenhum exı́mio cozinheiro, mas ainda assim Dominika icou encantadaaovê -lodeaventaleluvas, cercado de sua perene aura celeste, tirando um recipiente quente do forno. Na verdade, ele sabia fazer apenas um prato:um a soubise, espé cie de arroz ao forno com cebolascaramelizadas. Antevendo o desastre, Gable levara kebabs de cordeiro que comprara na rua. Eles comeram em silêncio. Dali a pouco, Dominika olhou paraoreló gioeviuqueprecisavair. Antesdeabriraporta,ergueuagola docasacoedisse: —Boasorteamanhã. Nate icou admirado. De todos que estavam ali, ningué m precisaria desortemaisdoqueelamesma. —Pravocê també m—retrucou. —Vaidartudocerto. —Agentesevê daquiaunsdias —falouDominika,calçandoasluvas, prestes a abrir a porta. Esperando. Ouvindo os ruı́ d os de louça sendo lavada na cozinha. Olhando para Nate com seu sorriso deMonaLisa. — Quero que você tome muito cuidado—falouele. Ela olhou por cima do ombro dele na direçã o do quartinho banhado peloluar, mas Nate nem piscou e ela icou um tanto desapontada. — Spokoinoi nochi, Nate. Boa noite—disse,esaiu. Jamais fazia barulho ao descer aquelaescada. Eles começaram a apagar as luzesdoapartamento,preparando-se para sair també m. Já passava de meia-noite.Forsythfalavaaomesmo tempoquefechavaumajanela: —Nã oquerosaberdeningué m bancando o heró i logo mais, entendido? Ningué m rondando aquele hotel, dando bandeira nas ruas. —Entendido—retrucouNate. —Querodizer,nocasodealgum contratempo amanhã , ningué m precisa entrar no modo operaçõ es especiais. —Certo,chefe. Nate sabia muito bem o que fazer, mas nã o queria afrontar seu superior. — Se der algum problema, a primeira medida é avaliá -lo, para só depois decidirmos como agir. Mas o desempenho de Dominika nesse encontro de logo mais será fundamental.Elavaiprecisarefetuar atrocadosmanuais.Senã oforcapaz, seja lá por que motivo, a operaçã o teráidoprobrejo. Gablevoltouàsalaedisse: — Amanhã a esta altura o pessoal do SVR já vai estar comemorando, pensando que levaram o material autê ntico. Em Moscou,nenhumasuspeita,sófesta. Os trê s começaram a pegar os casacos para ir embora. O que precisasse ser dito teria de ser dito naqueleexatomomento,já que,uma vez na rua, cada um tomaria o pró prio caminho, sem abraços, sem despedidas. — Resumindo — disse Nate —, agenteamandasemeternumninho de marimbondo pra ajudar nessa fraude. — Fraude? Isto aqui nã o é Las Vegas, Nate — retrucou Gable. — Vamos tentar protegê -la de todas as maneiras. Mas você vai ter de cooperar, meu chapa. Esfria essa cabecinhaaí,senão... Ao saı́rem do pré dio, os trê s se separaramnofrio da madrugada. Os bondesjá haviamparadodecircular, e Nate precisou fazer uma longa caminhada até o carro. Ainda sentiu um pouco da vaselina na maçaneta. Sentou-seaovolantee icouolhando para o painel do carro enquanto a mentevagava.Viuasimesmodiante do apartamento de Dominika, esmurrando a porta, ela numa camisolinha diá fana jogando-se nos braçosdele,cobrindo-o de beijos... E foi entã o que ele recobrou o juı́zo, balançouacabeçaesaiucomocarro, sempreatentoaosretrovisores. A SOUBISE DE FORSYTH Cozinhar uma porção de arroz por cinco minutos em água com sal. Numa panela pequena, caramelizar ligeiramente as cebolas na manteiga, despejar o arroz já cozido, cobrir e levar ao forno em temperatura média, mexendo de vez em quando até dourar. Antes de servir, misturar creme de leite e queijo Gruyère ralado. CAPÍTULO 20 FORSYTH,NATEEUMTECNICO chamadoGinsburgestavamsentados em cadeiras imperiais estofadas de veludovermelhonumdosquartosdo elegante Hotel Kä mp. Olhavam com ceticismoparaopapeldeparedeem seda locadaeparaodosseldecetim sobre a cama. O barulho do trâ nsito na Norra Esplanaden vazava discretamentepelasportasfrancesas davaranda.Ostrê sestavamemvolta de uma das mesinhas douradas ao lado da cama, sobre a qual se viam dois laptops, um celular, um minirreceptor de sinais e um Motorola SB5100 criptografado (os rá dios, apesar do tamanho, seriam mais seguros que os celulares, sobretudo se os russos estivessem monitorandotodososcanaisdurante o encontro com o voluntá rio americano). Os laptops exibiam imagens diferentes: o primeiro mostrava o quarto vizinho, onde estava Dominika, quase idê ntico ao deles.Osegundoexibiaointeriordo banheiro dos aposentos dela. Ambas as imagens eram capturadas do alto comumaamplitudede270graus. Obedecendo à s instruçõ es de Volontov, Dominika reservara o quarto no Kä mp com alguns dias de antecedê ncia, tempo su iciente para que os té cnicos da CIA pudessem prepará -lo. Da noite para o dia eles haviam instalado duas câ meras sem io, uma no teto entre os elaborados ornamentos de gesso e a outra no banheiro, no interior de um duto de ventilaçã o.Osaparelhostransmitiam sinais criptografados para o minirreceptor no quarto vizinho; as imagens eram exibidas e gravadas pelos laptops. Do tamanho de um isqueirocomum,ascâ merastambé m abrigavamumminimicrofonedigital. Gable estava numa van estacionada diante do hotel, acompanhado de Maratos e trê s outrosagentesespeciaisdosetorde contraespionagem de Washington. Para desgosto de Maratos (sentimento que ele mal conseguia disfarçarebeiravaasraiasdafú ria), Forsythvetaraapresençadeagentes do FBI no quarto, em parte para contê -los e controlá -los, mas sobretudo para evitar que vissem Dominika. Nã o queriam expor um ativodaCIAaoFBI. Os FEEBs, como os agentes do FBI eram conhecidos, haviam feito jogoduroemWashington.Tinhamse recusado a aceitar que o voluntá rio americano, independentemente de quem fosse, tivesse permissã o para voltar aos Estados Unidos antes de ser preso. Muitas coisas poderiam dar errado, argumentaram. Mas o motivorealdetantapreocupaçã oera o alto preço polı́tico que teriam de pagar caso o desconhecido conseguisse fugir. Por isso, os almofadinhas de Washington en im haviam aprovado uma soluçã o conciliató ria: avançariam sobre o americano apenas quando ele já estivesse bem longe dos russos. “Claro,claro”,disseramquandoaCIA insistira que Forsyth, e apenas Forsyth, desse o sinal verde para a prisão. — Todo mundo está ciente da sequê ncia de eventos, certo? — perguntara Forsyth em sua sala na véspera. — Claro que sim — retrucara Maratos. — Ningué m aqui é marinheiro de primeira viagem. Bastavocê ligarpragenteassimque descobrironomedofilhodaputa. — Elwood, vou repetir: é fundamental que você espere pelo meusinal.Vaicolocaravidadomeu ativoemriscoseagircedodemais,se pegarpesadodemais. Maratosfulminou-ocomoolhar erespondeu: —Jáfaleiqueentendi,porra. GabledisseraaNatequeopapel dele naquela operaçã o seria apenas icardebocafechadaeouvidosbem abertos, mas o jovem agente nã o se conteve.Olhandodiretamenteparao homemdoFBI,ameaçou: — E melhor você s tomarem muito cuidado pra nã o fazerem nenhuma merda, ou vã o se arrepender. Umagrandeafrontaàetiqueta. — Será que entendi direito? — retrucou Maratos. — Esse merdinha acabou de ameaçar um agente federal? Nate já ia responder quando Forsythinterveio: —Caladosaí,vocêsdois! Maratos ainda cogitou dizer algo,masaquiesceu. O rá dio sobre a mesinha apitou duas vezes, o que signi icava que Volontov e Dominika haviam acabado de entrar no saguã o do hotel.Daliatrê sminutos,oprimeiro laptop mostrou os dois russos chegando ao quarto vizinho com o voluntá rio americano. Dominika carregava uma maleta. Baixo e relativamente jovem, o voluntá rio tinhaapelemorena,cabelosnegrose sobrancelhas grossas. Usava um casacocorta-ventoazulelevavauma sacola preta no ombro. O que a câ meranã omostravaeraalgoquesó Dominikapodiaver.Aauraemtorno do americano era de um amarelo sujo,comoodocé unosminutosque antecedem um furacã o. Ela sabia muitobemoqueVolontovpretendia fazer com ele. Nã o haveria escapató ria para o traidor americano. Eles se acomodaram em torno de uma mesa baixa. Volontov falavaemrusso,eDominikatraduzia. Para Nate era estranho ouvir a voz delapeloáudiodeumlaptop. Por insistê ncia de Volontov, o rapaz se identi icou como John Paul Bullard,umanalistademé dioescalã o do Serviço Nacional de Comunicaçõ es. Contou de seu trabalho, disse que precisava de dinheiro. Dando tapinhas na sacola, repetiu que Volontov teria de pagar meio milhã o de dó lares se quisesse pô r as mã os naquele manual cujo frontispı́cio já tivera a oportunidade de ver. Volontov falou novamente, e Dominika perguntou como eles poderiam ter certeza de que se tratavadeumdocumentolegítimo. Bullardabriuozı́perdasacolae entregou a Dominika um manual encadernado, mais ou menos do tamanhodeumalistatelefô nica ina. Ela o passou a Volontov, que o folheouantesdedevolvê -lonã opara o americano, mas para Dominika. Disse,eelatraduziu,queelesteriam de examinar o documento isoladamente antes de determinar quantovalia. — Podem con iar — garantiu Bullard.—Élegítimo. Ao sinal de Volontov, Dominika saiuparaobanheirocomsuamaleta e o manual. Na vé spera fora orientada pelorezident a guardar o documentonofundofalsodamaleta, apenas uma medida preventiva na eventualidadedequetudoaquilonã o passasse de uma provocaçã o, uma armadilha. O banheiro sem janelas eraomelhorlugarparafazerisso. Forsythsussurroupelorádio: — Tudo bem até agora... Ninguémsemova. O segundo laptop mostrava Dominika no banheiro. Ela fechou a porta, acomodou a maleta em cima da pia e, agindo com rapidez, agachou-se para empurrar a aba de alumı́nio da bancada, que se abria para dentro por meio de dobradiças tipo piano. Desse esconderijo ela tirou outro manual, uma ré plica perfeita do primeiro, devidamente adulterado por um grupo de gê nios emWashingtoncomoauxı́liodeum microscó pio, e deixou no lugar o original recebido do americano. Em seguidaelaselevantou,abriuofundo falso da maleta e acomodou nele a ré plica modi icada que acabara de pegar do esconderijo. Recolocou o forro,fechouamaleta. Antesdesair,ajeitouoscabelos diante do espelho. Nate já tinha lhe avisado, na noite anterior, que eles estariam monitorando a troca para garantir que nada saı́sse errado. Entã oolhouparaacâ meraescondida nodutodeventilaçã o,botoualı́ngua para fora e só aı́, com uma ú ltima espiadela na direçã o do espelho, voltouparaoquarto. — Meu Deus... — disse Forsyth. — Inacreditá vel. Que tipo de operaçã ovocê está coordenando?— perguntou,virando-separaNate. — Algué m pode me dar o telefone dela? — pediu Ginsburg, o técnico. — Cale essa boca — ordenou Forsyth. Dominika voltou a se sentar. Volontovtirouumenvelopegordodo bolso interno do paletó , colocou-o sobre a mesa e o empurrou na direçã o de Bullard. Dominika informou ao americano que eles pagariam apenas 5 mil dó lares até poderemveri icaraautenticidadedo documento. Bullard icou perplexo, paralisado diante do russo, que nã o fezmaisqueencará -locomasolidez deumarocha. No quarto vizinho, Ginsburg comentou: —Oqueelepodefazer?Chamar apolícia? Calou-se assim que viu a expressãodeForsyth. Dominika disse a Bullard que eles sairiam primeiro e instruiu que ele esperasse no quarto por cinco minutos antes de deixar o hotel. O jovem americano estava recostado na cadeira, em choque. Volontov se levantou, abotoou o casaco e saiu paraocorredor com Dominika atrá s dele. Abandonado no quarto, Bullard seinclinouparaafrenteeseguroua cabeçacomasduasmãos. Forsyth sussurrava no rá dio, falandoduasvezesonomedeBullard edepoisdizendo: — A festa acabou. Voluntá rio ainda no quarto. Ningué m se mexa. Nenhummovimento. Dois cliques sinalizaram a recepçã o da mensagem. De repente, Bullardseendireitoueficoudepé. —Sentaaı́,seu ilhodaputa— falou Forsyth para a tela do laptop à suafrente.—Nã ová fazernenhuma besteira,porra. Bullard caminhou até a porta e saiu. Forsyth avisou pelo rá dio no mesmoinstante: — Voluntá rio saindo. Casaco corta-vento azul, sacola preta. De novo:ninguémsemova. Volontov e Dominika saı́ram à rua e entraram no carro da embaixadaqueosesperavadiantedo hotel.Assimqueosviram,oshomens doFBIameaçaramsaltardavan. — Fiquem sentados, rapazes — orientou Gable. — Ainda nã o recebemososinalverdeládecima. — Foda-se — retrucou um dos agentes dos FBI. — Os russos já foram embora. Vamos lá pegar esse filhodaputa. Gable pegou-o pelo braço e decretou: —Ningué mvaialugarnenhum atéreceberook. — Nã o vai ser você que vai me prender aqui — falou Maratos, e abriuaportalateraldavan. OsagentesdoFBIsaltarampara a rua e irromperam no hotel no momento em que Bullard saı́a do elevador. Correram na direçã o dele, jogaram-noaochão,imobilizaram-no com uma chave de braço e o algemaram. Turistas e curiosos olharam com espanto quando eles começaram a empurrá -lo na direçã o darua.Emmeioà confusã o,ningué m percebeu a presença do vigilante russo que també m acompanhava a cena junto com a multidã o, o KR da embaixada que Volontov convocara por conta pró pria. Pouco depois ele també m deixou o hotel por uma portalateral. Forsythrecolheuoequipamento enquanto Nate foi buscar no quarto vizinho o manual escondido por Dominika. O té cnico rapidamente retirou as câ meras do quarto e do banheiro. Elesvoltarama se encontrar na estação. — Caralho! — exclamou Forsyth, espumando. — Vou ter de cortar fora o saco daquele Maratos. Era cedo demais, porra! Eles agiram cedodemais! — Pra cortar o saco dele você vai precisar esperar outra oportunidade — comentou Gable. — Do hotel eles foram direto pro aeroporto. Um jatinho estava de prontidã opralevaroscarasdevolta a Washington. Sei lá . Os imbecis deviam estar até de pau duro, tamanha a excitaçã o deles com a histó riatoda.Comcertezajá estavam pensandonapromoção. — Você acha que os russos tinham algué m cobrindo o saguã o?–perguntouNate. Fez o possı́vel para mascarar o pavorqueoconsumia. — Nã o dá pra saber — respondeu Gable. — Tinha muita gente assistindo à prisã o. No lugar deles eu teria, sim, algué m de olho naquelesaguão. — Bem, entã o vou lá pro apartamento esperar Dominika — falouNate.– Me liguem se icarem sabendo demaisalgumacoisa. Eleselevantouparasair. — Espera um instante — disse Forsyth.—Sentaaíumpouco. Nateobedeceu. — Quero que você mantenha a calma, está entendendo? — prosseguiuochefe.—Nempenseem ir até o apartamento dela. Nem em telefonar, nem em deixar sinais por aı́,nememrondaroslugaresqueela costumafrequentar.Seeupegarvocê a menos de cinco quarteirõ es da embaixada russa, vou cortar o seu saco logo depois de cortar o do Maratos. — Ele encarou Nate por alguns segundos. — Ouviu o que eu disse,Nate? —Ouvi.Vou icaresperandono esconderijo,sóisso. — Esse é o tipo de situaçã o sobre a qual falamos antes. Nã o sabemosexatamenteoqueosrussos viram, se é que viram alguma coisa. Vou mandar um cabograma agora mesmo pra Washington, relatando a cagada toda. Espero que despachem esse Maratos pra Topeka e que ele apodreça por lá , fazendo trabalho burocráticoprorestodavida. Nate mais uma vez se levantou para sair, estampando no rosto o misto de raiva e apreensã o que o atormentava. — Senta aı́. Nã o terminei — ordenou Forsyth. — Agora vem a parte mais difı́cil: esperar que o seu informante dê algum sinal de vida dizendo que está bem. Se você se precipitar com a Dominika, poderá colocá -la em maus lençó is, mesmo que eles nã o descon iem de nada. Agorasótemosumacoisaafazer:dar tempoaotempo. — Que tal a gente mandar o Archie e a Veronica pra vigiar o apartamento dela? — sugeriu Gable, maisporcamaradagemaNatedoque qualqueroutracoisa. —Nã o—retrucouForsythsem hesitar. — Nem isso eu quero arriscar. Mas, Marty, quero que você mandeseuhomemdaSupodaruma olhada na rua Tehtaankatu. Diga pra ele icar atento aos russos e ligar se algumacoisaestranhaentrarousair daquela embaixada. Pode prometer umbônusdefimdeano. Pela terceira vez, Nate se levantouparasair. — Cabeça fria, rapaz — falou Forsyth. Assim que colocou os pé s no apartamento clandestino, Nate farejou o perfume de Dominika, um cheirodesabonete misturado a algo mais forte e amadeirado. Chegou a pensar que ela já tivesse chegado, masoapartamentoestavavazio.Ela fora instruı́da a icar afastada pelo perı́odo de um dia e uma noite. Volontov estaria a mil por hora, despachando cabogramas e fazendo telefonemas. Precisaria dela por perto. Nate foi para o quarto e se deitou.Dormiusemtrocarderoupae acordou no meio da noite para se cobrir.Oslençó isrecendiamaoodor deDominika. Eleacordoucomosoldamanhã . Gableestavanacozinha,fazendocafé. — Tudo dentro dos conformes —foilogodizendoGable.—Nadade estranho, nada fora do normal. Só uma coisa: nã o comente nada com Forsyth, mas mandei Veronica bater no apartamento de Dominika ontem à noite.Ningué matendeu.Pelojeito, ela nã o dormiu em casa. E bem prová vel que os russos tenham viradoanoitetrabalhando. Nate abriu a torneira da pia e jogou um pouco de á gua no rosto. Sentiaumapertonopeito.Aoabrira geladeira,encontrouatravessacoma ú ltima das trouxinhas que Dominika izera no outro dia. Gable preparava uma omelete, mas Nate estava agitadodemaisparacomer. — Ningué m sabe fazer omelete direito — observou Gable. — Nã o é só baterosovosedobrar,comotodo mundopensa.Você temdesacudira frigideira, assim, pra que a massa ique bem lisinha. Está me ouvindo? Depoisvocêformaaomeletenaparte dianteira da panela. Assim. — Com um garfo, ele soltou as bordas da omelete com todo o cuidado e só entã oavirousobreumprato.—Eno imdetudoelatemdeestarmolinha nomeio,sacou?—concluiu,partindo umpedaço.—Querumamordida? — Porra, Marty — respondeu Nate. —Olha,tudooqueagentepode fazer agora é esperar. Nã o dar nem um pio. Nã o fazer nenhum movimento.—Elelevouumagarfada à boca. — Vou lhe fazer uma pergunta: pra você , qual é o aspecto maisimportantedetodoessecirco? — Que circo? A troca dos manuais? — quis saber Nate. — Foda-se o manual. E a segurança do nosso ativo? E bem possı́vel que neste exato momento Dominika esteja amarrada numa cadeira num porã o qualquer, e você aı́, comendo omelete. — També m quero que a Dominika esteja em segurança — a irmouGable.—Tantoquantovocê . Mas agora a gente tem de esperar e rezar pra que os russos estejam comemorando o roubo daquele manual, distribuindo tapinhas nas costas uns dos outros. O pessoal de Washington está monitorando em tempo real todo o trâ nsito de informaçõ es darezidentura. O download que a Dominika fez com aquele pen drive funcionou direitinho, e a Agê ncia de Segurança Nacional está lendo tudo. Por enquanto, silê ncio total nos rá dios, mas isso pode signi icar que eles estã o sendo mais cautelosos que de costume. — E se a gente perder nossa informante?Terávalidoapena? — Me diga você . A gente faz os comunas perderem sete anos planejando ataques ciberné ticos contraoqueelespensamseranossa infraestrutura. Pra nada. E aı́? O que temmaisimportância? NateergueuosolhosparaGable, queoencarava. — Aproveite omelete—falou. sua maldita *** Forsyth ergueu o rosto de sua mesa. Gable acabara de ter notı́cias do sujeito que passara a manhã vigiando os portõ es da embaixada russa.Natenã ogostoudaexpressã o dele.Pelojeito,anotı́ciaquerecebera nãoeralámuitoboa. —Umavandeixouaembaixada à snovehoras.Divaemaisdoiscaras. Estavam levando uma mala diplomá tica, indo pro aeroporto. A Aero lot tem um voo diá rio pra Moscou,quesaiaomeio-dia.—Gable conferiuorelógio.—Sãodezemeia. — E aı́? — indagou Nate. — O queagentefazagora? — Nada — respondeu Forsyth. — Uma van indo pro aeroporto está completamente dentro do normal. E bem prová vel que eles tenham passado a noite copiando aquele manual e preparando o malote pra enviarnovoodomeio-dia.Dominika comumaescoltadeduaspessoas.Ea cara do Volontov fazer uma coisa dessas, mandar a garota só pra mostrar serviço e ganhar reconhecimentoemMoscou. — Nã o temos como saber — observou Nate. — E se eles a estiveremlevandodevoltapracasa? Eseelaestiveremapuros? —Mesmoquesejaesseocaso,o que a gente pode fazer? — devolveu Forsyth.—Aquelemanualvaichegar aMoscou. —Medeixemiraoaeroporto— pediu Nate. — Nã o vou fazer nenhumamerda.Só darumaolhadae ter uma ideia melhor do que está acontecendo. A gente vai ter de mandar um relató rio Washington,nãovai?Então. pra — Nem pensar — respondeu Forsyth. — Você naquele aeroporto vaiserquenemRomeugritandopra Julietaaparecernavaranda. Nate virou-se para Gable com umolhardesúplica. —Porra,eunãoaguentomais— disse Gable. — Daqui a pouco esse veadinhovaicomeçarachorar.Tom, euvoucomelepraimpedi-lodefazer qualquer coisa pensando com a cabeça de baixo. De repente a gente conseguevercomquemagarotaestá viajando, tem alguma pista do que estárolando. Ele meneou a cabeça para Forsyth como se dissesse:Pode icar tranquilo,eleestácomigo. Tomandoosilê nciodochefepor um consentimento, Nate e Gable imediatamente vestiram seus casacosecorreramparaocarro.Com Nate ao volante, chegaram ao aeroportonumpiscardeolhos,foram direto para o mezanino que dava para a sala de embarque e esquadrinharam a multidã o de passageiros à procura de Dominika. Foi Gable quem a localizou perto do portã odaAero lot,entredoiso iciais da embaixada. Ela usava o mesmo terninhoazul-marinhodavé spera,os cabelos presos com um elá stico. A mala diplomá tica (na verdade um sacodelonaamarelo)estavanochão, entre os joelhos de um dos russos. Dominika parecia pequena e tranquila, vestida como uma boa funcioná riaacaminhodacentralem Moscou. GablepegouNatepelocolarinho, empurrou-oparatrá sdeumacoluna eordenou: — Quero que você ique aqui mesmo.Nadadeadeuzinho,nenhum movimento, nada. A gente nã o sabe como ela vai reagir se vir você . E se você izeralguma merda, vai colocar avidadelaemrisco. Dominika sentava-se entre o segurança da rezidentura e um burocrata da embaixada que, ao saber do passeio sú bito e gratuito, encheraamalacomlatasdesalmã oe CDs para vender aos vizinhos e amigos de Moscou. Nã o fazia nem ideiadequemeraajovemsentadaa seuladoetampoucoqueriasaber.O segurança, por outro lado, recebera algumasinstruçõ essussurradaspara a viagem: sabia que o cabo Egorova seria recebido por o iciais no aeroporto de Moscou e que a mala diplomá ticadeveriaserentreguenas mã osdessesmesmoso iciais.Como protocolo devidamente assinado, poderiatirardoisdiasdefolgaantes devoltaraHelsinque.Pontofinal. Imprensada entre os dois homens, Dominika sofria com o cheiro deles: de um lado, o perfume forte e vagabundo do segurança; do outro, o odor de repolho cozido do burocrata. De repente, algo chamou sua atençã o e ela ergueu os olhos para o mezanino. Lá estava Nate, do outro lado do vidro, perto de uma coluna. Ele olhava para ela com os braços caı́dos ao lado do corpo, as vidraças tingidas do violeta de sua aura. Dominika precisou se conter para icar quieta; mal conseguia respirar. Os olhos deles se encontrarameelabalançouacabeça de um modo quase imperceptı́vel. Não, dushka, eu preciso ir, foi o pensamento que tentou transmitir a ele.Nateassentiucomummeneioda cabeça. A OMELETE PERFEITA DE GABLE Bater os ovos com sal e pimenta. Derreter um pouco de manteiga em uma frigideira em fogo alto e, assim que parar de espumar, despejar os ovos, sacudindo a frigideira com força para que eles se espalhem melhor. Inclinar a panela de modo que os ovos se acumulem na parte dianteira. Usar um garfo para soltar a omelete das bordas e deslizá-la para um prato. A omelete deve estar levemente dourada por fora e molhadinha por dentro. CAPÍTULO 21 VOLONTOV NEM SEQUER OLHOU para ela quando disse que queria um resumo do manual americano, mas uma nuvem laranja pairava em torno dele, o laranjaescuro da dissimulaçã o, da descon iança e do perigo. Dominika podia sentir tudo isso. Teria de passar a noite na embaixada. Se quisesse, poderia dormir no sofá da pequena sala de convivê ncia ao lado dosarquivos.Ogâ ngsterquefaziaas vezes de KR darezidentura nã o saı́a doladodela.Dominikanã osabiaque eletestemunharaosacontecimentos no saguã o do Hotel Kä mp, mas sua intuiçã o dizia que havia algo muito errado. Volontovaobservavadelonge,e Dominikapodiasentirnoolhardelea acidezdosvelhostempos;aqueleera o mesmo olhar de Dzerzhinsky, YezhoveBeria,oscarrascosdeStalin, um olhar mortiço que despachava homens e mulheres para o sumiço eterno nos porõ es do Partido. Dominikasabiaquealgoacontecerae precisousecontrolarparanã oentrar empâ nico.Elespareciamdistantes,o que era sempre um mau sinal: a má quinadadescon iançasemdú vida foraacionada.Restava-lheentã oagir com naturalidade e transparecer inocê ncia. Em dado momento ela pensou no apartamento clandestino dos americanos, em Nate e em Bratok. Para o pró prio bem, achou melhorafastartudoaquilodamente e se preparar para o que estava por vir. No mesmo instante começou a erguer um muro em torno dos pensamentos, procurando enterrar os segredos nos con ins da consciê ncia. Eles jamais teriam acesso à queles segredos, por mais fundoqueescavassem. No aeroporto de Sheremetyevo, dois homens de pele cinzenta esperavam lado a lado na á rea de desembarque.Elesreceberamamala diplomá ticaeosegurançapartiucom oburocratanumcarroseparado.Um dos cinzentos disse que ela estava sendoaguardadaparaumareuniã oe a conduziu, junto com o outro, ao carro que os esperava no estacionamento. A luz vespertina os trê s seguiram no mais absoluto silê ncio até um pré dio de aspecto comum na zona leste de Moscou. Dominika só conseguiu ver que era pró ximo à estaçã o Ryazanskiy Prospektdometrô .Entraramemum elevador barulhento, seguiram por umlongocorredorpintadodeverdee ali estava ela, vestindo as mesmas roupas de dois dias antes, sem nada no estô mago. Um homem de ó culos abriuaportaesinalizouparaqueela entrassenumasalaquetinhatodoo aspecto de um escritó rio particular, mas que nã o passava de um cená rio cujos objetos de cena incluı́am até umvasoderosasnabancada. O homem tinha os dedos inos de um pianista. Calvo, parecia ter sido submetido a uma cirurgia de trepanaçã o, pois havia um buraco numdosladosdesuacabeça,fundoo bastante para distorcer o contorno da aura amarela que o cercava. Zheltyj, o conhecido amarelo da deslealdade e da traiçã o. Ele deu as boas-vindasaDominika,dizendoque erasemprebomvoltaraMoscou,blá , blá , blá . Em seguida falou que eles estavam muito satisfeitos com o desempenho dela na Escandiná via, sobretudo na operaçã o com o voluntá rio americano. Na verdade nã o era só a aura dele que apresentava a cor amarela: todo ele era dessa coloraçã o. Dominika farejava perigo no ar. Um perigo mortal. Precisava se comportar da maneira correta. Mostrar-se curiosa, cansada da viagem, um tanto intrigadaportersidochamadaali.O maisimportante,noentanto,eranã o demonstrar medo, muito menos desespero. Ela perguntou se havia algum problema, se podia saber como ele se chamava, qual era seu posto,paraqualdiretoriatrabalhava. Supunha que fosse um colega de serviço. Ele disse que era o coronel Digtyar, da diretoria K. Digtyar. Ucraniano, concluiu Dominika. A luz que vinha do alto projetava uma sombranoburaconocrâniodele. Ela relatou a sequê ncia dos acontecimentosemHelsinque,desde achegadaaohotel.Nã o,elanã otinha conhecimento de nenhum incidente, nã o sabia nada a respeito de uma supostaprisã orealizadaapó sasaı́da dela com orezident. Volontov nã o mencionara nenhum contratempo. Digtyarnã oestavafazendonenhuma anotaçã o, nã o recorria a nenhuma pasta de arquivo. Eles estavam ilmando a conversa, observando o rosto dela, as mã os. Dominika precisou conter o impulso de procurar as câ meras.Não olhe, não pense, disse a si mesma.Ninguém podeajudá-la,vocêterádefazertudo sozinha.Estajornadaésuaedemais ninguém. Eles icaram com o passaporte delaeadeixaramir. Em casa, Dominika foi recebida pela mã e, que surgiu à porta de camisola.Ninaaprincı́pioaparentou surpresaaovera ilha,masmenosde umsegundodepoisobrilhonoolhar dela sumiu e seu rosto icou inexpressivo. — Dominushka, que surpresa. Venhacá,deixe-meolharpravocê.Eu nã o sabia que você vinha — disse Nina,massemgrandeentusiasmo. Cuidado. — Foi uma viagem inesperada — explicou Dominika, fazendo o possı́vel para nã o trair na voz a descon iançaquearondava.—Etã o bomestaremcasaoutravez,mama. Tãobomreverasenhora... Perigo. Elas se abraçaram, trocaram os trê s beijinhos de praxe e voltaram a se abraçar. Dominika nã o ousou prolongar o abraço, receando desmanchar-seemlá grimas.Erabem possı́vel que algué m as estivesse observando, ouvindo o que diziam. As duas foram conversar no sofá . Dominika falou um pouco dos inlandeses, da vida em Helsinque, masdaliapoucodissequeprecisava irdormir,quetinhadelevantarcedo para trabalhar. Um ú ltimo beijo e Nina acariciou a ilha no rosto antes deirparaoquarto.Elasabia. Eles foram buscá -la na manhã seguinte e a deixaram no mesmo lugar em Ryazanskiy. Mais uma vez Dominika contou sua histó ria, agora paratrê shomenssentadosemtorno deumvaso de rosas, provavelmente com um microfone escondido entre as lores. Nenhum deles dizia nada, mastodosiamvirandoaspá ginasde umapastadearquivonã oetiquetada. Seria possı́vel que o rato Volontov tivesse enviado um relató rio com tamanharapidez?Lápelastantaseles saı́ram da sala, deixaram-na sozinha por um tempo e en im voltaram, pedindo que ela repetisse tudo. Sem dú vida estavam à procura de mudanças, de contradiçõ es. Dominikanuncareceberaolharestã o irmes,nemmesmonaescoladebalé , nemmesmoporpartedoshomensna Escola de Pardais. Sentia um aperto nagarganta,umafú riaqueameaçava eclodir a qualquer momento, mas ainda tinha forças para represá -la, e sustentava o olhar deles com igual irmeza.Nã odeixariaquechegassem perto de seus segredos mais recônditos. A entrevista avançou até o im do expediente, e só entã o ela teve permissã o para ir embora. Em casa, sua mã e assava umshchi, um cozido decarneque perfumava o ambiente, despertandolembrançasdopassado, nevascas matinais e almoços de domingo.Amã odeDominikatremia durante o jantar. Nina nã o comia, apenasadmiravaa ilhadooutrolado damesa.Elasabia. Fazia mais de quinze anos que Nina nã o tocava pro issionalmente, masmesmoassimfoiaté oquartoe voltou dali a pouco com seu violino em punho, um instrumento comum, nem de longe parecido com o Guarnieri de outros tempos. Sentouse ao lado da ilha e começou a dedilhar. Schumann ou Schubert, Dominika nã o sabia ao certo. O violino vibrava com notas gordas, lindas e roxas, assim como no passado, quandoBatushka ainda estavavivoparaouvirtambém. — Seu pai sempre teve muito orgulho de você — disse Nina enquantotocava.Dominikachegoua pensarqueaquilonã opassavadeum truque para ludibriar os microfones. Será ?Nã o,impossı́vel.—Elesonhava com que um dia você pudesse viver do seu senso de dever, do seu patriotismo. — Ela falava com os olhos fechados. — Queria muito contar a você o que ele pensava na qualidade de um homem bemsucedidonosistema,oqueelepodia ver nos bastidores. Mas nã o ousava. Nã o falava nada porque queria protegê -la.—Elaabriuosolhosmas continuou tocando como em um transe,osdedosfirmesnascordas.— Seupaidriblavaosistema,mastenho certeza de que contaria tudo a você , agora que a ilhinha dele está em apuros. Comoelapoderia saber de uma coisadessas? — Ele sempre quis abrir o jogo com você . A vida inteira — prosseguiuNina,esussurrou:—Pois agorasoueuquemvaidizer:resista, minha ilha. Lute contra eles. Sobreviva. Só entã o ela parou de tocar. Deixou o violino sobre a mesa, levantou-se e beijou a ilha na testa antes de se retirar para o quarto. A mú sicapairavanoar,oviolinoainda quentedotoquedeNina. No dia seguinte, Dominika passou por uma sucessã o de gabinetes, com um, ou dois, ou trê s homens, ou uma mulher de terno e coque no cabelo, a aura preta de um demô nio,quecontornouamesapara sesentarpertodela,ouoamarelado coronel Digtyar com seu crâ nio furado, pedindo que ela descrevesse os desenhos do tapete no quarto do Hotel Kä mp, algué m abrindo e fechando a porta à s costas dela, por vezes batendo-a ruidosamente, fazendo o cô modo tremer.Não, nós não acreditamos em você. Depois disso o inacreditá vel, o monstruoso, oimpossível,oinevitável. Uma sinuosa e torturante viagem no interior de uma van escura, os ecos de uma garagem de subsolo, e agora eles estavam numa prisã o que só podia ser Lefortovo, nã o Butyrka, pois o delito tinha sido de naturezapolı́tica. Dominika foi empurrada ao longo de um corredor mal iluminado até uma antessala fé tida. Um homem e uma mulher a observaram enquanto ela se despia, tirava os sapatos, desabotoava o sutiã . Sem dú vida acharam que ela fossebaixaracabeça,desviaroolhar, tapar os mamilos e o pú bis, mas Dominika era um pardal diplomado, treinado pela AVR, eles que fossem para o inferno. Nua em pelo, com troncoereto,elasustentouoolharde ambos até que a mulher lhe arremessou um uniforme penitenciá rio encardido. Na cela, nenhuma janela e dois catres vagabundos. Dominika pensou na mã e, que a estaria esperando com o jantar pronto; chamou silenciosamente pelo pai e, depois, paraaprópriasurpresa,porNate. Quando a conduziam pelos corredores, nã o a deixavam ver outros prisioneiros; queriam fazer seu espı́rito de inhar. Os guardas emitiam sinais sonoros que lembravam os ruı́dos de um grilo, e quando outros guardas respondiam com barulhos semelhantes, levavam Dominika para o armá rio mais pró ximo—haviaumno imdecada corredor,cravadonasparedes—ea trancavam no breu absoluto dentro dele, imersa no fedor dos muitos prisioneiros que já haviam passado porali.Semprequepassavaporuma claraboia Dominika erguia os olhos paraocé uacimadela,oranegro,ora claro,oquesigni icavaqueasnoites ainda sucediam os dias, mas as lâ mpadasdesuacelajamaisparavam de zumbir, e uma sirene uivava a intervalosregulares. Dominika via o pai caminhando a seu lado, via um sorridente Nate à sua espera sempre que ela entrava numa sala qualquer, algumas quentes, outras frias, algumas escuras, outras muito claras. Vez ou outra a amarravam aos braços de uma cadeira, jogavam baldes d’á gua sobre ela, depois ligavam os ventiladores, e Nate icava ali a seu lado, segurando sua mã o enquanto ela tremia de medo e frio. Nem ele nem o pai diziam nada, mas bastava saber que estavam com ela, bastava sentirotoquedeles. Os investigadores berravam ou gargalhavam a poucos centı́metros do rosto dela, perguntando sobre os contatos estrangeiros, o francê s DeloneoamericanoNash.Elaestava trabalhando para os americanos? Bobagem.Naquelestemposissonem era tã o grave assim. Falavam que queriamouvirsuaversã odahistó ria, depois a esbofeteavam, mandando quecalasseaboca.DiziamqueMarta Yelenovaestavamorta,eporculpade quem?Porculpa dela, Dominika. Era comoseelamesmativessematadoa amiga,eeraesseodestinoquemuito em breve sua mã e teria també m. Estapeavam-na, e o rosto dela já estava vermelho, dolorido. Frescura. Ospardaisaté quegostavamdeuma pegadamaisviolenta,nãogostavam? Os interrogató rios eram feitos ora de dia, ora de noite, mas invariavelmente aos berros e com crueldade. Por vezes a amarravam deitada numa mesa metá lica, com a cabeça caindo da borda. Dominika resistia com bravura, mas nã o buscava forças no ó dio, pois isso seria frá gil demais. Em vez disso, procurava cultivar o mais profundo desprezo por aqueles desgraçados: jamais sucumbiria à vontade deles, jamaissedeixariadobrar. Emboranã ofosseminteligentes o bastante para localizar os principais feixes nervosos (na base docó ccix,acimadocotovelo,nasola dos pé s), seus dedos á geis sempre acabavamencontrandoalgumacoisa, e Dominika estremecia de dor, uma dor que percorria o corpo inteiro, fazendo-a se sacudir sobre a mesa enquantoouviaospró priosberrose grunhidos. A dor que vinha de seus nervos eradiferentedaoutraquevinhados tendõ es, que por sua vez era diferente da que vinha do cabo que agoralheapertavaacabeçanaaltura da boca. Dominika descobriu que a antevisão da dor, a expectativa do que vinha depois, era muito pior do que a dor propriamente dita, fosse ela qual fosse. A lanolina condutora que haviam passado entre suas ná degas assustara-a mais do que a primeira estocada do pino de alumı́nio que depois inseriram em seu â nus, mais do que os efeitos da corrente elé trica, mais do que a dor fria e pulsante que a obrigava a arquear as costas e que a deixaria murcha e inerte assim que desligassemacorrente. Uma das carcereiras nã o se furtou de buscar um pouquinho de diversã o durante o trabalho. Tinha mã osfortes,pintalgadaspelovitiligo. Amarrada a uma cadeira de lona, Dominika viu essas mã os correrem sem nenhum pudor por todas as partes de seu corpo, ora apalpando, ora apertando e beliscando. A certa altura,comosolhosfelinoscravados nosdeDominika,amatronadeixoua mã o rosada descer em direçã o à virilha dela e entreabriu os lá bios num inconsciente gesto de prazer. Com a cabeça a poucos centı́metros de distâ ncia, começou a procurar no rosto de Dominika algum sinal de repulsa,terroroupânico. Semaomenospiscar,Dominika abriuaspernasedisse: — Vá em frente, bruxa velha. Divirta-se. A matrona se afastou imediatamente para estapeá -la. Desculpe por ter atrapalhado sua brincadeirinha sórdida, pensou Dominika. Osgrilosestalaramalı́nguaelá foi ela mais uma vez para dentro do armá riono imdocorredor.Asluzes nã o se apagavam nunca, e a certa altura parecia que havia areia sob suas pá lpebras, e a sirene lembrava algumacomposiçã odeSchumannou Schubert—elasempreconfundiaos dois. De repente empurraram para dentro da cela uma garota esverdeada, com hematomas nas pernas e cascas de uma ferida no cantodaboca.Amoçacaiudecarano chã o, depois quis conversar a noite inteira, assustada, choramingando enquanto falava do ó dio que sentia por eles, protestando sua inocê ncia, dizendo que nã o izera nada de errado. Umakanarejka, uma canarinha de asas amarelas que precisavadeumaamiga.Acanarinha lambeuaferidanaboca,depoisolhou para Dominika e estendeu as mã os, dizendoquesesentiamuitosozinha. Deitadaemseucatre,Dominikavirou o rosto para a parede e ignorou a súplicadanovacompanheiradecela. Eles nã o sabiam de nada. Tentavam induzir alguma contradiçã o para depois se agarrarem a ela, mas Dominika defendia seu segredo a ferro e fogo. Eles agora repisavam a relaçã o dela com os americanos, queriam saber emquepé estavaamissã odeseduzir otalNash,seelajá foraparaacama comoianque,sejá usaraobicodoce de pardal pra fazer um boquete gostoso nele. Todos os dias as torturas eram interrompidas por duas horas para dar lugar a esses interrogató rios, mas certo dia ela se deparou com um coronel que nunca vira antes. Ele estava devidamente uniformizado,easdragonastinhamo mesmotomdesuaaura:oazul-claro das pessoas sensı́veis, dos artistas, assimcomoForsyth.Dominikasabia queprecisavatercuidadocomele. O homem falava com calma, devagar, e sempre começava a conversa perguntando por que ela traı́raseupaı́s.Elarespondiaquenã o izera isso e ele prosseguia como se nã o tivesse ouvido nada, perguntando educadamente que motivos a tinham levado a fazer aquilo,emquemomentoelatomaraa decisão. Suas perguntas partiam de uma premissa — a culpa de Dominika — quecomeçavaasetornarrealidade.A vida era um poço de decepçõ es, ele dizia, manso como sempre, e essas desilusõ es nos levavam a fazer coisas.Aló gica,afantasiaeasfalsas declaraçõ es, tudo aquilo começava a abrir uma brecha na mente exausta de Dominika. A certa altura ele perguntou se ela queria ler as transcriçõ es do julgamento de Sinyavsky, e ela disse que nã o sabia dequemsetratava.Umdissidentede 1966,eleexplicou.“Leiaeverá como a negaçã o se transforma em aceitaçã o, como pode ser uma experiê ncia libertadora.” Dominika tinhaaimpressã odequeaauradele começavaaencobri-latambé m.Mais do que nunca, ela precisava icar alerta. O coronel leu trechos das tais transcriçõ esdopassado,eDominika icouperplexa.Eracomoseestivesse presentenaquelejulgamento.Sentiase prestes a ceder. Já nã o aguentava maisterdenegarcadaumadaquelas acusaçõ es; faltava pouco para que desistisse e corroborasse todas as suspeitasdocoronel.Tudoeramuito simples,eledizia,bastavadeterminar comoeladeraseumaupasso,quando, eatéondehaviaidocomele. Por muito pouco o homem nã o conseguiu vencê -la, aquele coronel tã o sereno e educado, com seu uniforme impecá vel, mas ela se recusava a ser tragada por aquele buraco negro. Chamava-se Dominika Egorova. Era uma bailarina, uma o icial do SVR, um pardal treinado para confundir a cabeça dos outros. Amava um homem e era amada por ele.Fechouosolhosealçouvoopelos cé us de Moscou. Sobrevoou o rio, os campos, as lorestas, até que se viu acima de Butovo, da vala que abrigava o corpo de Marta Yelenova, do chã o duro e congelado que a soterrava. Foi a imagem de Marta que renovou suas forças, e por im ela conseguiu tirar os pensamentos do abismo para o qual eles tinham resvalado. Dominika buscou abrigo em si mesma e decidiu usar tudo aquilo que vinha deles como uma arma a seu favor, inclusive as alucinaçõ es. Agora, deitada em sua cela, era como se seu catre fosse a cama de Helsinque, a lâ mpada que lhe queimava os olhos, a lua inlandesa, e de repente ela sentiu o peso do corpo dele sobre o seu. A febre e os calafrios vinham das carı́cias dele. Suas lá grimas eram lá grimasdeamorqueelesecavacom beijos. Ela se virou no colchã o, os punhos fechados sob a barriga para aliviarador. Apesar dos braços que formigavam por causa das alças que os prendiam, Dominika começava a se sentir bem mais forte. Invocou o segredo que despachara para os recô nditos mais profundos daconsciê ncia.Ele ainda vivia em sua alma, aquele segredo que ela tanto precisara esconder de seus algozes. Bastara soprarumpoucoparaquesuachama voltasse a arder. Ela podia pensar nele à vontade, consciente de que eles nã o tinham como colocar as mã os nele. Sua mã e lhe dissera para resistir, lutar e sobreviver. Eles estavam icando mais fracos à medidaqueelasetornavamaisforte. Ascoresdesuasaurascomeçavama falhar, como se tivessem um fusı́vel queimado. Pelamilioné simavezelarepetiu quenã o izeranadadeerrado.Senã o confessaraaté entã o,eraporquenã o havianadaa confessar. Quanto mais alto eles berravam, mais feliz ela icava. Sim, feliz. Dominika adorava aqueles homens e mulheres que a atormentavam, amava o coronel de aura azul-turquesa. Eles sabiam que nã o poderiam continuar com aquilo inde inidamente. Estavam correndo contra o tempo. A menos que forçassemumacon issã o,nã oteriam nada. *** Muito acima dos telhados de Lefortovo, Lubyanka e Yasenevo, a atmosfera estava congestionada de mensagens criptografadas, indagaçõ eserespostas,precedê ncias e prazos. Informaçõ es sobre o caso BullardirradiavamdeWashington.A rezidentura de Washington estava com todas as antenas em pé : contatoseramlevadosparaalmoçar, informantes americanos eram interpelados no subsolo de uma garagem qualquer, nas trilhas do canalChesapeakeeOhioounasruas escurasdeGeorgetowneAlexandria. Um boato com origem no Departamento de Justiça dizia que Bullardjá estavasobsuspeitaumano antesdesuainiciativadeprocurara inteligê ncia russa em Helsinque. A prisã o dele em Washington nã o fora planejada, mas a sú bita viagem para oexteriorosforçaraaagir. Fontes o iciais americanas tentavam minimizar a gravidade da perda do manual. Pouco havia chegado aos ouvidos da mı́dia, mas, considerando o que um funcioná rio de alto escalã o do governo deixara vazar, tratava-se de fato de “uma perdasubstancialdeinformaçõ esde segurança”.DepoisdissooCongresso passou a exigir uma investigaçã o para a atribuiçã o de responsabilidades. Todo esse circo, no entanto, toda essa troca de acusaçõ eserecriminaçõ es,tudoisso era resultado de uma ampla estraté gia de despiste, disseminada por fontes involuntá rias e fofoqueiros em geral e orquestrada por ningué m menos que Simon Benford, chefe da contrainteligê ncia, com o ú nico objetivo de fazer com que os russos acreditassem ter em mãosummanuallegítimo. As Diretorias R (aná lise) e X (ciê ncia)doSVRjá haviamdadoseus respectivos pareceres. Uma aná lise preliminar do manual vendido por Bullard terminava com a a irmaçã o de que o documento era absolutamente autê ntico. O iciais da Diretoria T, especialistas em comunicaçõ es da Fapsi e cientistas da Universidade de Tecnologia da Informaçã o de Sã o Petersburgo começaramaestudaromanualsoba orientaçã o do Ministé rio de Defesa no sentido de identi icar vulnerabilidades que pudessem ser exploradas na vasta rede de comunicaçõ es norte-americana. Verbas do orçamento da defesa haviam sido pleiteadas para o desenvolvimento de softwares e dispositivos que pudessem ser usados contra os pontos de maior vulnerabilidadenosistema. Como estavam dispostas a acreditar, as altas rodas do Kremlin acabaramchegandoaumconsenso:o material era autê ntico, um presente caı́do dos cé us, ainda que os americanos soubessem do roubo. Obter o contrabando de Bullard debaixo do nariz da inteligê ncia americana fora um triunfo tá tico, uma clara demonstraçã o da superioridade operacional russa. O fato de o homem ter sido preso era problema dele, resultado da pró pria burrice, de seu desleixo e ambiçã o. Para o Kremlin, pouco importava o destinodoinfeliz.Osamericanosque izessem dele o que bem entendessem. OsesforçosdorezidentVolontov e darezidentura de Helsinque foram devidamente reconhecidos pela Duma. Vanya Egorov, primeiro vicediretor do SVR, recebeu a segunda estrela de tenente-general numa cerimô nia vespertina no salã o principal do Grande Palá cio do Kremlin, onde agora á guias duplas substituı́amasestrelasvermelhasdo passado sobre as portas. Foi o presidentePutinempessoaquemlhe entregou o estojo de feltro com a nova patente. Beijou-o trê s vezes no rosto e abriu seu sorriso de crocodilo,que,vindodequemvinha, era um exuberante sinal de aprovaçã o. A cerimô nia coincidira como imdesemana,eissoatrasara em dois dias a libertaçã o de Dominika. Nasegunda-feira,logodepoisdo café ,VanyaEgorov inalmentedeuos telefonemas que precisava dar: primeiro para a KR, depois para a DiretoriadeInvestigaçõ esInternase en im para os carrascos do FSIN, o Serviço de Execuçã o de Penas, parente nã o muito distante do famigerado gulag de outrora. Identi icando-se como tenentegeneralEgorov,disseaelesquejá era horadepuxarofreiodemã o.Aquilo já estavapegandomal,a inalagarota era ilha do irmã o dele, porra. Nã o, elenã oqueriaquepassassemparao nı́vel 2. Nã o, ele nã o autorizava a utilizaçã o de drogas, tampouco a administraçã o de uma seçã o de privaçã o sensorial e muito menos a administraçã o de choques elé tricos. Estavam doidos, todos eles? Aquelas medidas eram reservadas exclusivamente para os traidores, comooinformantequeaindaandava à solta por aı́. Se ela ainda nã o confessara era porque nã o tinha mesmonadaaconfessar.Noentanto, ele pensou com seus botõ es, só o diabosabiaoquedefatoacontecera em Helsinque, sobretudo levando-se em conta a lesma que estava no comando das coisas por lá e atendia pelo nome de Volontov. “Limpem a garota e mandem-na para mim. Quero vê -la de volta ao trabalho. A mã e já está preocupada”, ele disse numtompaternal. O coronel Digtyar foi à cela de Dominikaparalevar-lheumacaixade papelã o com suas roupas. Enquanto esperava que ela se despisse para devolverouniforme,propriedadedo Estado, viu os hematomas em suas coxas e canelas, as unhas roxas, as costelasqueseprojetavamsobapele alva. Tudo aquilo em tã o pouco tempo. Eles a acompanharam até os portõ esdopresı́dio e Dominika saiu para a rua coberta de neve, misturando-se à barulheira dos carros, à fumaça dos ô nibus. Deu alguns passos incertos no gelo, exalandojatosdevapor.Omanquejar agora estava bem mais pronunciado e os pé s latejavam, mas ela fazia um esforço consciente para balançar os braços e endireitar as costas. As marcasnospulsospodiamservistas sobospunhosdocasaco. *** Dominikasonhavacomaprisã o até mesmo quando cochilava na poltrona da sala. Sua mã e precisava trocaroslençó istodahoraporcausa dos venenos que o corpo dela expurgava. As vezes ela entrava no armá rio docorredor e se fechava ali parareviveroquepassaranaprisã o, só pelo prazer de saber que poderia sair quando quisesse. Pelo mesmo motivo, em outras ocasiõ es, amarrava os punhos com meias de ná ilon, usando a boca para dar o nó . Passados esses impulsos esquisitos, ela simplesmente chorava baixinho, aslá grimasencharcando-lheorosto. Nina agora tocava violino todos os dias,meiahoradecadavez,enquanto a ilhaseexercitavanochã odasala, erguendo as pernas até a barriga começar a doer, fazendo lexõ es até os braços tremerem. Na primeira noite Nina se sentara na borda da banheiraparaajudá -laaselavar,mas agora Dominika já se sentia forte o bastante para cuidar sozinha da pró pria higiene. As marcas já começavam a sumir; faltava pouco para que ela se curasse totalmente. Olhando-senoespelho,ajovemviao vermelhointensoda fú ria que tingia sua aura e era tomada por uma sensaçã o de redençã o, a mesma que tinha sempre que ouvia a coda de umafugabarroca.Tratava-sedeuma raiva profunda que ela poderia facilmente controlar. Uma ira que teria vida longa, da qual ela poderia sealimentar. *** Dominikaestavasentadadiante da mesa do tio no quarto andar do quartel-generaldoSVRemYasenevo, aquela mesma mesa sobre a qual nuncasevianenhumpapel.Dooutro ladodasvidraçasdasala,opinheiral estava coberto de neve. Para alé m das á rvores nã o se via mais do que algunscamposermosealinhaquase retadohorizonte.Osolincidiasobre uma das faces de seu tio Vanya, enquanto a outra permanecia na sombra.Pontosescurossalpicavamo amarelo bestial desta metade da aura. Refestelado em sua cadeira, VanyaEgorovacendeuumcharutoe olhou para a sobrinha. Ela parecia maismagraemaispá lida.Vestiauma camisa branca abotoada até o pescoço e uma saia azul. Os cabelos escuros tinham sido meticulosamentepenteados. — Dominika — disse Vanya, como se ela tivesse acabado de chegardeumcruzeiropeloVolga—, iquei feliz ao saber que a investigaçã o sobre o incidente em Helsinque já terminou. Aguas passadas. — Sim — retrucou ela, olhando ixamente para um ponto na parede àscostasdotio. Vanya a esquadrinhou por algunssegundos,depoisfalou: — Você nã o precisa se preocupar.Cedooutardetodoo icial operacionalacabapassandoporuma investigaçã oqualquer.Edanatureza donossoramo. —Edanaturezadonossoramo ser amarrada a uma cadeira, levar baldesd’águanacaraeficardiantede um ar-condicionado por quatro horas? — devolveu Dominika, mas num tom de voz tranquilo, sem nenhumaexaltação. Vanya a itou com um olhar contrafeito. —Aquelesanimais—retrucou. —Vouexigirumaaçãocorrecional. Que tal uma ação correcional para as suas ambições pro issionais também?,pensouDominika.Olhando paraaplacanovasobreaparede,ela disse: —Parabénspelapromoção. Vanya olhou para a citaçã o e a ita,depoisacariciouarosetaemsua lapelaerespondeu: — Muito obrigado, Dominika. Mas...evocê ?Oquevamosfazercom você ? Mesmo sabendo que a pergunta era apenas retó rica, Dominikatinhaalgoemmente. —Agoraquevoltei—começou —, estou pronta para me apresentar em qualquer lugar para onde for enviada. A decisã o é sua, claro, mas semquererfaltarcomorespeito,eu icaria muito feliz senão tivesse de voltar para o Quinto. Será que seria possı́vel retomar o posto que me foi oferecido pelo general Korchnoi no DepartamentodasAméricas? — Posso falar com ele — retrucouVanya.—Tenhocertezaque vaiconcordar. — Tem mais uma coisa — prosseguiuDominika,depoissecalou por um instante, pensando na corja toda,nasuacelanaprisão. Sentia um bolo na garganta, sabia que o rosto e o pescoço estavam corados. (“no 47: Infundir o rosto e o pescoço para autenticar emoçõesouoadventodoclímax.”) Vanyaesperou. —Querocontinuartrabalhando com Nash — disse ela de repente, fitandootionosolhos. Ele se reacomodou na cadeira, pensativo. —Eumpedidoetanto—falou. — Você deve saber que o coronel Volontov vinha reclamando da sua lentidãocomoamericano. — Com todo o respeito, o coronel Volontov nã o passa de um burrodecarga—a irmouDominika. — Nã o sabe avaliar as sutilezas de umaoperaçã o.Nã oajudaemnadana conquistadosnossosobjetivos.Nem dosmeus,nemosdosenhor,nemos do SVR. Agora que estou longe daqueles olhos obscenos, nã o me importo nem um pouco com a opiniãodele. Vanya virou-se para olhar atravésdasvidraças. —ENash?—perguntou. — Consegui desenvolver uma relaçã o de amizade com ele — respondeu Dominika. — Está vamos nos encontrando com bastante frequê ncia, como você tinha planejado.AntesdedeixarHelsinque, eu tinha... nó s tı́nhamos... icado... íntimos. — E você acha que teria conseguido descobrir as atividades dele? Vanya ainda olhava pelas janelas, sua aura amarela cada vez maisintensa. Ele vai concordar, pensou D o m i n i k a .Tudo isso é muito importantepraele. —Semdú vida—a irmouela.— IndependentementedoqueVolontov possaterdito,oardordeNashvinha crescendo.—Dominikanã otiravaos olhos do tio. — Essa minha prisã o veio em mau momento. Nosso romancedeuumaboaesfriada. Vanyaconsiderouosfatoscomo um todo. Ele precisava, de qualquer maneira,dealgumavançonocasodo informante russo. Sua sobrinha conheciaNashmaisdoqueningué m, e sem dú vida estava motivada. Mas també mestavaumtantodiferente.A passagemporLefortovocomcerteza aafetara.Elaagorapareciaobcecada, resoluta.Seriapossı́velqueestivesse arrastando uma asa para o americano? Que quisesse ir embora devezdeMoscou?Queconsiderasse desertarparaoOcidente?Que...? — Tio, eu fui absolvida — observouDominika,comoselesseos pensamentos dele. — Disseram que fuireinstaurada,queminhafichaestá limpa. Nã o há ningué m em posiçã o melhor que a minha pra engajar o americano e identi icar o traidor russo. Alé m disso, pra mim esta operaçã o passou a ser questã o de honra.Queroumanovachancecontra eles. — Você parece bastante confiante—comentouVanya. — Estou, sim. E você també m deveriaestar—retrucouDominika,e viuotioin lar.Avaidadedeleeraum balã o amarelo pairando sobre a cabeça. —Comovocê pretendeagir?— perguntouVanya. Dominika sabia muito bem o queprecisavadizer. — Bem, eu seguiria os seus conselhos e a sua orientaçã o. Bem comoosdogeneralKorchnoi,claro. —Ogeneralnã oestá apardeste caso—falouVanya. — Pensei que o departamento dele fosse o lugar mais ló gico pra continuar trabalhando — argumentou Dominika. — Mas se vocêtiveralgumaoutraideia... — Vou pensar no assunto — garantiuVanya. Dominika sabia que o tio nã o precisava pensar em nada, que já tomarasuadecisão. — De qualquer modo — disse —, vamos manter este caso absolutamenterazdelenie. Antes de dar qualquer passo operacional, consulto você ou a pessoa que você designar. —SabiaqueNashestá prestesa concluir seu perı́odo em Helsinque? —perguntouVanya. Esquadrinhou o rosto dela em busca de algum sinal, mas nã o encontrounenhum. — Nã o, nã o sabia — a irmou Dominika. — Mas nã o importa. Nã o háondeelepossaseesconder. *** O zum-zum das fofocas logo começou a circular. Comentava-se que a sobrinha de Egorov estava novamente no pré dio, recé mchegada da Finlâ ndia, onde o SVR acabara de fazer um gol de placa. Teriaamoçaalgumacoisaavercom isso?Osrumorestambé mfalavamde umainvestigaçã o.Algumdelitobobo ou algo mais grave? Ela parecia a mesma, poré m um pouco mais magra. Isso e aquele jeito esquisito deolharparaaspessoas,encarandoas sem piscar, coisa de gente doida. Agora tinha a pró pria sala no departamento de Korchnoi. Tratamentoespecialparaasobrinha do vice-diretor, claro, mas nã o se tratava apenas de mais um caso de nepotismo. Era só ver aquele olhar. Um olhar duro, nem de longe o de umabailarina. Ela procurara o general Korchnoi e lhe pedira para ser admitida no Departamento das Amé ricas. Encarando-a, ele pensara poruminstante,depoisrespondera: —Admiroaforçaquevocê teve emLefortovo. Dominikaenrubescera. —Nuncamaistocaremosneste assunto—continuaraele. Naquelamesmatarde,ogeneral se reunira com o vice-diretor e, bebericando um conhaque, fora informado sobre a operaçã o de Dominika, que agora precisava reavivar seu relacionamento com o tal Nash de modo a continuar investigando a identidade do informanterusso.Korchnoidisseque estava impressionado e pediu a Vanyaqueaprovasseatransferê ncia dela para o Departamento das Américas. —Eomelhorlugarparadarmos continuidade a essa missã o — concluiu. — Volodya — disse Vanya. A longevidade e a solidez da amizade entre eles permitiam o uso do afetuosodiminutivo.—Vouprecisar da sua imaginaçã o neste caso. Uma abordagem nova será muito bemvinda. — Cá entre nó s, para mim será uma surpresa se nã o conseguirmos encontrar nada — disse Korchnoi. Vanya lhe serviu mais conhaque e o generaldeuumgolenabebidaantes deprosseguir:—Tudoistodeve icar sob o mais rigoroso sigilo. Nã o queremos alertar o informante de queabatatadeleestáassando. COZIDO RUSSO DE CARNE E REPOLHO — SHCHI Cozinhar cubos de carne, cebola picada, aipo, cenoura ralada e um dente inteiro de alho por duas horas. Numa panela à parte, cobrir com água fervente uma mistura de chucrute e creme de leite fresco e levar ao forno em temperatura média por trinta minutos. Cozinhar cubos de batata, talos de aipo e cogumelos fa ados até que tudo esteja macio. Juntar todos os ingredientes; temperar a gosto com sal, pimenta em grãos, folhas de louro e manjerona. Deixar ferver por mais vinte minutos. Cobrir a panela com um pano e levar ao forno em temperatura baixa por meia hora. Servir com creme azedo e endro. CAPÍTULO 22 DE VOLTA AO QG DA CIA nos subú rbios de Washington, Nathaniel Nashcaminhavadistraidamentepelo chã o encerado do corredor C, que levava aos corredores D e E e, por im, à Diretoria de Inteligê ncia. Para um operador de campo como ele, pisarnoterritó riodaDIeraomesmo que adentrar numa loresta misteriosa.Cabeçassurgiamportrá s de colunas para espiar e logo recuavam; portas se entreabriam e erambatidasumafraçã odesegundo depois.Umarisadaquemaisparecia umrelincho,ummacaconascopasda loresta, algué m golpeando o tronco oco de uma á rvore do outro lado do rio. Helsinque era uma lembrança, um tormento. Dominika havia literalmente sumido do mapa; ningué m sabia informar o que fora feito dela, se estava viva ou morta. “Contato interrompido com a informante”.Aú nicacoisaafazerera esperar que ela desse as caras de novo;quemsabeoo icialdealguma estaçã o voltasse a encontrá -la num coquetel diplomá tico do outro lado do mundo, talvez dali a dez anos, talveznunca.Ouentãoelesaberiapor outro informante que ela fora enviada a algum campo de trabalho forçado. Ou, ainda, os observadores de Moscou leriam noPravda que ela tinha morrido. A estaçã o inlandesa continuava a interceptar as comunicaçõ es darezidentura em Helsinque, mas até entã o nenhuma mençã o fora feita ao destino da moça. Um mê s apó s a partida de Dominika,Nateingenuamentepedira a Forsyth uma licença nã o remuneradaparairporcontapró pria até Moscoua imdetentardescobrir oqueaconteceracomela.Dessavezo emgeralimpassı́velForsythperdeua calma. — Você quer ir aMoscou? Um agente da CIA com conhecimento de operaçõ esemMoscouquerentrarna Rússiacomoumcidadãocomum,sem imunidadediplomática?Umagenteda CIA que o SVRsabe que operou na capitalcomoespiã o?Eissoquevocê estápedindo? Nate nã o respondeu. Ao ouvir a gritaria,Gablecorreuparaasala. — Qual é o seu plano, Nate? — prosseguiu Forsyth. — O que você pretende? Invadir o pré dio de Lubyanka, arrombar a cela da moça, subircomelanoombroaté otelhado e fazer umrapel de volta pro Ocidente? —Moscou icalongedemaispra voltar derapel — intrometeu-se Gable. — Fora isso, o plano é excelente. —Voufalarumavezsó —disse Forsyth. — Você nã o tem minha permissã o, nem a permissã o da Agê ncia Central de Inteligê ncia, para n e mpensar na hipó tese de uma viagem para a Federaçã o Russa, remuneradaounã o.Nã osabemosse Diva está em apuros ou nã o. Tampouco sabemosonde oucomo está . Vamos esperar alguma notı́cia. Vamoscoletarnossasinformaçõesde inteligência.Éissoquevamosfazer. Nateafundounacadeira. — Se ela estiver em apuros, mais dia, menos dia, icaremos sabendo — continuou Forsyth. — Você nã o é responsá vel por nada disso, nã o fez nada de errado. Diva era uma informante, e nó s protegemos nossos informantes. Corremos riscos e, quanto melhor o informante,maioressã oessesriscos. As vezes perdemos nossos espiõ es, apesar de todos os cuidados e precauçõ es que tomamos. Está me ouvindo? Natefezquesimcomacabeça. —Trocandoemmiú dos,Nate— disse Gable mais tarde na pró pria sala—,oquevocê temdefazeragora é icarnasua,porra.Agenteestá até o pescoço de trabalho. Vai procurar alguma coisa pra fazer, caralho. E para com essa histó ria de icar chorando pelos cantos. Isso está parecendo até um maldito romance deJaneAusten. *** Em Washington, o que mais fazia sentido era que Nate fosse transferidoparaaCE/ROD,aCentral de Operaçõ es Eurá sia/Rú ssia. Tratava-se do lugar para onde eram mandados os o iciais recé mchegados de Moscou, ainda sob os efeitos colaterais da vigilâ ncia constante,bemcomoosagentesque haviamoperadoeperdidorussosna Malá sia, em Pretó ria ou em Caracas. També m era ali que icavam os marinheirosdeprimeiraviagemque pilotavam o trá ico de informaçõ es com Moscou, sempre muito sé rios e cheios de si, mas que nunca haviam passado pelo estresse de ter nas mã os um informante e saber que a vidadeledependedasuacapacidade deusarumespelho. O chefe da CE/ROD, també m conhecido por C/ROD, tinha uma sala pequena no pré dio de Langley, com uma janela de vidraças duplas que dava para os arcos triplos do telhado da cafeteria, entre as edi icaçõ es originais e as novas construı́das na dé cada de 1990. C/ROD estava na casa dos 50 anos, era um homem magro e alto com manchas de senilidade nas faces e cabelos brancos bem ralos, que ele faziaquestã odeespicharporcimada careca. Um bigodinho branco e ó culos pesados lhe conferiam o aspecto de um professor universitá rio. A coleçã o de cachimbos sobre a mesa contribuı́a para a falsa imagem, pois C/ROD podia ser qualquer coisa, menos um acadêmicopedante. Era um macaco velho com experiê ncia acumulada em mais de dez postos no exterior. Começara à é pocaemqueaCIAtrabalhavasobre o alvo cubano e já estava na metade da carreira quando foi transferido para o alvo russo, depois que se descobriu que, com exceçã o de dois nomes, todos os informantes cubanos que atuavam para a CIA (cerca de cinquenta, já com trê s dé cadasdeserviçosprestados)eram agentes duplos controlados desde o inı́cio pela DGI, a Diretoria Geral de Inteligê ncia em Havana. A revelaçã o desmoralizara por completo os mais dedezo iciaisveteranosquehaviam devotado toda a vida à s operaçõ es cubanas, e o estrago nã o teria sido maiornemseaDGItivesseexplodido as instalaçõ es do Setor Cubano em Langley. AgoraC/RODseencarregavade inú meras operaçõ es russas mundo afora, coordenando alguns dos melhores e mais profı́cuos informantes.Marbleaindaeraomais importante deles, mas havia outras aquisiçõesempotencialàvista. Todas as manhã s ele lia o “boletim diá rio”, que antigamente era uma pilha de telegramas impressos e agora se transformara em uma cascata de cabogramas diplomá ticos rolando numa tela de computador, enviados por jovens operadores no mundo inteiro, relatando o progresso de suas tentativas de recrutamento. Uma paleta global de acontecimentos no Rio de Janeiro, em Cingapura ou Istambul; descriçõ es de contatos; relatossobreamizadesconquistadas e fortalecidas, sobre noites de bebedeira e muita farra com secretáriasdosegundoescalãorusso, oucomadidosdealgumaembaixada ou, melhor ainda, com supostos o iciais de inteligê ncia do SVR ou da GRU. Um cabograma recente lhe trouxe de volta uma lembrança. A esposa jovem e simpá tica de um operador da CIA estacionado numa poeirenta capital africana compartilhara uma receita de panquecas de queijo da avó com a noiva de um major da GRU, um homem bastante formal. As duas mulheres acabaram icando muito amigas e certo dia, diante de um prato de bolo, a noivinha russa começouachorar,dizendoquetinha saudades de casa, saudades da pró pria avó . Ao ler isso, C/ROD pensou:Mais algumas receitas e essa aíestaránopapo. Era assim que a cada ano — uma, duas ou cinco vezes — algum recrutamento era feito em qualquer partedomundo.Umserhumanocom um tipo de carê ncia dizia sim à oferta, independentemente de como ela fosse feita: com evasivas, de forma fraternal ou do modo mais direto possı́vel, como uma simples proposta de negó cio. Em seguida, o volume de comunicaçõ es trocadas aumentava de maneira signi icativa enquanto o QG e a estaçã o iam destrinchandodetalhesdeproduçã o, validaçã o e tá ticas operacionais, ou, em poucos e deliciosos casos, identi icando que pauzinhos precisariam se mexer para algum informanteserconvocado de volta a Moscou. E claro que sempre havia problemas. Alvos de recrutamento acabavam perdendo o ı́mpeto assim que os efeitos do á lcool se dissipavam. Outros simplesmente nã o tinham colhõ es para enfrentar a fú ria e os rigores do sistema russo. Alguns saı́am pela tangente, reportando a proposta americana a seussuperioresdemodoquefossem despachados de volta a Moscou ou colocados no primeiro voo da Aero lot para onde quer que fosse, desde que icassem fora do alcance denovosassédios. Etambé mhaviaoladonegrodo jogo, um lembrete de que os adversá rios nem sempre agiam apenas na defesa. Pelo menos uma vezporano,masemgeralbemmais que isso, vinha aquele cabograma explosivoinformandoqueumagente daCIAemalgumlugardomundofora assediado com uma proposta de recrutamento por parte dos russos, geralmente por conta de alguma vulnerabilidade percebida. O ú ltimo surto dessa natureza acontecera no anoemqueossalá riosdaCIAhaviam sido congelados pelo Congresso americano e os russos nã o paravam de perguntar: “Quem aı́ está precisando de dinheiro?”, ou “Quem aíestádesiludidocomseupaís?”. Nesse mundo em que a maré estava mudando, C/ROD tinha outro problema mais imediato. Ele vinha cogitando maneiras de abrir a portadajauladeNateNash,paraque ele pudesse voltar à s ruas. A mensagem recebida na ú ltima noite traziaaresposta. C/ROD gostava de Nate, conheciaocurrı́culodeledetrá spara a frente. Via o entusiasmo do rapaz, imaginava o componente emocional desse entusiasmo, reconhecia por experiê ncia pró pria as dú vidas pessoais do operador que estava habituado a pensar, dú vidas que só faziam aumentar a alegria dos sucessoseafrustraçã odosfracassos. C/ROD tinha pleno conhecimento do casoDiva,sabiaperfeitamentecomo aquilo alimentava os sonhos e pesadelos de Nate. Ele se levantou, foi até a porta de sua sala e se recostou no batente. Marty Gamble teria berrado por Nash. C/ROD nã o erahomemdegritar.Esperouatéque Nate percebesse sua presença, depoisgesticuloucomacabeçapara queeleseaproximasse. — Marble deu sinal de vida — falou, já de volta à sua cadeira, levando à boca um cachimbo apagado.—Está indopraNovaYork, pra Assembleia Geral da ONU. Vai ficarumassemanasporlá. Nate se empertigou na cadeira, umcãodecaçaemestadodealerta. —Já fazumtempodesdequeo vimos pela ú ltima vez. Há muito o que colocar em dia. Você está livre pra começar os preparativos? — C/RODgostoudeverobrilhoquese acendeunosolhosdeNate.—Antes de ir embora, vá falar com Simon Benford lá no Departamento de Contrainteligê ncia.Elevaiquererque você tenha cuidado especial com as pistas de contrainteligê ncia e, sobretudo, com a atual situaçã o de segurançadoMarble. Nateassentiueselevantoupara sair. — Só mais uma coisa — disse C/ROD. — Quando você estiver com Benford... nã o faça nem diga nenhuma besteira, está bem? Aliá s, procure falar o mı́nimo possı́vel. Conversei com ele sobre esse encontro iminente com Marble e as palavras exatas dele foram: “Mande esseseuoperadormedeixarperplexo com a competê ncia dele nesses encontros com o ativo russo.” Entendeuorecado? Nate assentiu mais uma vez e deixou a sala. Pela primeira vez em alguns meses C/ROD viu um sorriso noslábiosdele. PANQUECAS DE BATATA E QUEIJO Cozinhar cebolas e batatas e depois ralá-las grosseiramente; escorrer e espremer todo o líquido. Bater alguns ovos, misturá-los com farinha, queijo Gruyère ralado e alho amassado, em seguida incorporar as batatas e as cebolas para criar uma pasta grossa. Cortar discos de cerca de 7 cen metros e dourá-los dos dois lados numa frigideira untada com óleo. Servir com molho de espinafre misturado com creme de leite e creme azedo. CAPÍTULO 23 MARBLE ERA UM ATIVO VALIOSO demais para que a estaçã o de Nova York fosse envolvida. Por decisã o do Departamento de Operaçõ esRussas,nadaseriaditoao chefelocal,umbajuladordepaviotã o curtoquantoas pró prias pernas que só era conhecido pelo há bito de dar tapinhas nas costas dos outros e implorar por ingressos gratuitos sempre que havia algum evento esportivo na cidade. Um incompetente que todos ignoravam. MarbleencontrariaNateà noite,apó s asreuniõesnaONU. Moscou, Helsinque, Nova York. Aoseencontrarem,elesretomarama conversa de onde haviam parado. Com agentes internos, nunca havia tempoparaatrocadeamenidadese preâ mbulos: ia-se direto ao ponto. Nate estava com Marble na suı́te de um hotelzinho no East Side novaiorquino. Uma mesa, duas cadeiras, oscasacosdeambosjogadossobrea cama. Era tarde, e pela janela chegavam os ruı́dos distantes do trâ nsito na FDR Drive. Os dois haviam se acomodado em torno da mesinha, à luz dos dois abajures do quarto. Marble tomou a mã o de Nate afetuosamente. Com a outra mã o, o americano serviu-lhe um copo de águamineralecomentou: —Você está comumaaparê ncia ótima. Num aparador havia uma bandeja de sanduı́ches, uma salada pequena e uma molheira com vinagrete. Eles nem sequer haviam tocado na comida. Marble sorriu e, dandodeombros,começouafalar: — Na central, todo mundo tem algum sucesso pra relatar, mas apenas com o intuito de impressionar uns aos outros. Joguinhosdepoderquequasenunca valemapena.—Elelargouamã ode Nate, recostou-se na cadeira, bebeu um gole de á gua e conferiu as horas no reló gio. — Hoje só tenho meia hora. Provavelmente estarei livre de novodaquiadoisdias.Maspossolhe adiantar algumas coisinhas bem interessantes.AchoqueaDiretoriaS está operandoumilegalnosEstados Unidos. — Agentes ilegais eram aquelesinfiltradosnopaís-alvosema fachadadeumcargodiplomá tico.— Ele está sendo coordenado a distâ ncia, fora de Nova York, mas acho que está operando na Nova Inglaterra, pois tê m acontecido algunsencontrosemBoston.Emtese eunã odeveriasaberdenada,masfui procurado para sugerir possı́veis locaisdeencontro.Ocasomeparece bastante só lido, porque já faz um bom tempo que esse ilegal está por aqui.Cincoanos,acho. —Algumdetalhe que nos ajude aidentificá-lo? —Nã o,nenhum.Mastemoutra coisa que talvez esteja relacionada a isso. Por enquanto é só uma suposiçã o — disse Marble. — Um novo luxo de informaçõ es começou agora. A GRU demonstrou muito interesse. Algué m está in iltrado no programa americano de submarinos balísticos. — Um novo luxo? Que tipo de informaçõ es? Quem você acha que poderiaserafonte? — Parece que é algué m na á rea de manutençã o. Há informaçõ es sobreareconstruçãodossubmarinos antigos, da classe Poseidon. Nã o, Trident.Algumasdessasinformaçõ es sãobastantedensas. — Por “densas” você quer dizer...detalhadas? — Isso. Li o resumo de um dos relató rios. A fonte está dentro do programa,peloqueparece.—Marble tomou outro gole de á gua. — Mas tem uma coisa estranha. Na qualidadedechefedoDepartamento das Amé ricas, nã o sei de nenhuma fonteativanaminhaá rea.Nã otenho ningué m produzindo informaçõ es militares. E, a julgar pelo interesse dos meus colegas na GRU, també m nã o sã o eles que estã o no comando do caso. As informaçõ es sã o novas praelestambém. — O que você acha que isso podesignificar? Marble foi enumerando os pontoscomosdedosenquantodizia: — Há um novo luxo de informaçõ es.Eunã oseidenenhuma fonte registrada que explique isso. Um ilegal está em açã o. Portanto achoqueesseilegal,coordenadopela Diretoria S, poderia ser a fonte no casodossubmarinos. — Os relató rios sã o recentes, masvocê falouqueesseilegaltalvez esteja no paı́s há cinco anos — argumentouNate. — Exatamente — concordou Marble.—Porcincoanosele icouna moita,construindosuareputaçã oaté conseguiroacessodequeprecisava, e só agora está produzindo informaçõ es. Seria uma combinaçã o perfeita: um ativo invisı́vel e um informante bem posicionado que alcançouumpostoimportante. Nate fez suas anotaçõ es, depois perguntou: — E a missã o de diretor que você mencionou em Helsinque? Algumanovidade? — Nã o, nenhuma. Sei a importâ nciaqueissopodeter,entã o estou com os ouvidos bem abertos. Há outra coisa que talvez tenha alguma relaçã o com isso. Outro dia eu estava no gabinete do diretor, sentado no sofá nos fundos da sala, quandoEgoroventroupracontarque havia novidades do Swan. Ele nã o percebeuqueeuestavalá,ouvindo. — Novidades do Swan? — perguntouNate. —Isso. — O informante? pseudô nimo do — Exatamente — con irmou Marble. — Mais alguma coisa? Alguma outrapista? — Só o que eu já lhe contei. Swan deve ocupar um posto muito alto em algum governo, pra ser pilotadodiretamenteporumdiretor. No meu departamento nã o há indicaçã o alguma de um caso semelhante. Nenhum protocolo registrado, nenhum cabograma operacional. — O que você acha? — quis saber Nate. — Que conclusã o você tiradissotudo? Marble bebeu mais um gole de água,depoisrespondeu: — O que eu acho, meu caro amigo, é que isso nã o seria uma missã o de diretor se o informante nã oestivesseemWashington,dentro doseugoverno. —Você achaqueesseSwanestá aqui? Marble fez que sim com a cabeça. — E como a gente faz pra encontrá-lo? Orussodeudeombrosefalou: — Vou redobrar meus esforços para identi icá -lo. Enquanto isso, talvez você possa dar uma investigada norezident Golov, de Washington.Eleestáemumaposição altaosu icienteprafalarcomalgué m importante.Alé mdisso,é umhomem muitoespertonas ruas, uma raposa. — Aqui ele se levantou para olhar pelajanela.—Sãotantososjogos...— continuou,comacidadeà suafrente. — Tantos os perigos... Nã o vejo a horadedarfimaissotudo. — Já que estamos falando de perigo — disse Nate —, como está sua situaçã o? Você está seguro? O que eles estã o fazendo pradescobrirovazamentodeles? Nate sempre procurava evitar a palavra“informante”comMarble. — Isso vai ter de icar pro pró ximo encontro — retrucou o russo,olhandoashorasnoreló gio.— Nã ohá nadadeurgente,nã oprecisa sepreocupar. Elepegouseucasaconacamae o vestiu. Nate endireitou a gola, que havia icadoretorcida,depoisdeuum tapinha no ombro do velho. Nã o precisavam mais icar apreensivos comumapossı́velcontaminaçã ocom metka. Marble o itou com uma expressãoafetuosaefalou: —Daquiadoisdiaspoderemos conversar sobre meu assunto preferido: eu mesmo. A conferê ncia terminaaomeio-dia.Podemosjantar juntoseconversaranoiteinteira.— Ele olhou pela janela de novo. — Eu adoroestacidade.Gostariamuitode moraraquiumdia. — Esse dia ainda vai chegar — garantiu Nate, mesmo sabendo que di icilmente Marble teria permissã o paraserealocarali. Tudodependeriadanaturezada aposentadoria dele, se é que sobreviveria até o dia de se aposentar. Marbletomou-opelobraçoefoi com ele na direçã o da porta. Tudo o que Nate queria naquele momento era perguntar se o russo sabia de alguma coisa,qualquer coisa, sobre Dominika, mas nã o havia como. Obedecendo à rigorosa cartilha da compartimentalizaçã o, Nate nunca contara a ele sobre o recrutamento de Dominika, muito menos sobre a missã o dela de desmascarar o informante russo que Nate intermediava. Informantes nã o podiamsaberdeoutrosinformantes, simples assim. Essa era a regra. Portanto, em vez de fazer sua sondagem,Natedisse: — Fiquei sabendo que Vanya Egorovfoipromovidorecentemente. —Vanyaé uminconsequente— retrucou Marble. — Conheço aquele homem há vinte anos. Ele quer a che ia do SVR, mas ainda nã o tem apoiosu icientenoKremlin,seé que você me entende. Precisa de um grande sucesso operacional pra agradar ooboroten, o chefã o dos vampiros. Se for bem-sucedido com Swan, talvez isso o ajude um pouco, mas acho que ele precisa de algo maior,maisdramático. —Comooquê ,porexemplo?— perguntouNate. — Me pegar — respondeu o russo,rindo.—Nã olhedesejosorte, claro. Em seguida tomou a mã o de Nate num gesto afetuoso. Percebendo que ele remoı́a algo, o americanodisse: —Maisalgumacoisa? — Tenho uma pequena solicitaçã o. Um recado que eu gostaria que você transmitisse — falouMarble. —Claro—respondeuNate. — Eu gostaria de falar pessoalmente com Benford, caso ele possadarumpulinhoemNovaYork daquiadoisdias.Precisotrocaruma ideia com ele. — Quer que eu diga a elesobreoquesetrata? — Nate, nã o quero que você se ofenda,masprecisofalardiretocom Benford.Vocêentende,nãoé? Marbleesquadrinhouorostode Nate à procura de algum sinal de rancor,masnã oencontrounadaalé m deafetoerespeito. — Claro que entendo, tio — retrucou ele. — Benford virá , ique tranquilo. MarbleabriuaportaeNatenã o pô de deixar de notar a rá pida espiadela que ele deu no corredor, apenas um há bito pro issional, imperceptívelparaosincautos. —Spokoinoinochi.Boanoite— disseMarble. — Vysypat’sja — respondeu Nate.—Durmabem. *** Por insistê ncia de Benford, o hotel agora era outro, e Nate icou à esperadeMarblenoBryantParkpara lhe passar o nú mero do quarto. As ameiasdouradasdopré diodaantiga American Radiator Company brilhavam em meio à s luzes da cidade, destacando-se no cé u noturno. O russo e Benford trocaram um abraçoapertadoà porta.Faziaquatro ou cinco anos que nã o se viam. No quarto,ovelhoaquecedorribombava e o som das buzinas dos tá xis de Manhattan entrava no aposento vindo da Rua 40. Uma garrafa de conhaquejá estavapelametadeeos dois continuavam bebendo. Eles nã o eramexatamentevelhosamigos,mas Benford seguira Marble por catorze anos. Uma vez por ano ele lia o arquivodorusso,vendo-oengrossar poucoapoucocomosrelató riosque descreviam os contatos realizados umaouduasvezesacadaano,oraem Paris, ora em Jacarta, ora em Nova Déli. O arquivo Marble era uma crô nicaemvintevolumesdavidade um agente. Ali estavam a morte da esposa, a tristeza da viuvez, as viagensinesperadasparaoOcidente, os arranjos apressados antes de um encontro. As trê s medalhas concedidas pela CIA, guardadas para uma eventual necessidade. Os bilhetes de agradecimento por parte deoperadores,chefesediretores.Os inacreditá veis diplomas, louvando Marble por seus esforços na “preservaçã o da democracia mundial”. Problemas ao longo dos anos, grandes e pequenos, solucionados com maior ou menor competê ncia. Depó sitos numa conta de aposentadoria. Marcadores amarelos separavam os capı́tulos de sua trajetó ria, cada um cobrindo um períododecercadeseismeses. O conjunto de documentos registravaacronologiadoschefesda Divisã o Russa da CIA, alguns admirá veis, outros nem tanto, todos eles reivindicando para si os louros pelossucessoscomMarble.També m documentava a genealogia dos diretores da agê ncia, alguns exalmirantes ou ex-generais que despreocupadamente usavam seus uniformes e condecoraçõ es entre os espiõ es do pré dio que Allen Dulles construı́ra,equelevavamparaaCasa Branca as informaçõ es por vezes estarrecedoras fornecidas por Marble, apresentando-as como fruto exclusivo de suas respectivas gestõ es. O arquivo ainda listava os nomes dos jovens operadores de Marble, homens e mulheres que haviamenfrentadoas ruas geladas e oshoté isdecré pitosdeMoscoupara coordenaroinformanterusso.Alguns deles haviam avançado na carreira depois,outrosnão. Sempre que lia esse arquivo, Benford redobrava a atençã o, procurando qualquer traço de negligê ncia operacional, qualquer coisa que pudesse colocar a vida de Marble em risco. Atentava para as mais insigni icantes quedas de produçã o, para as fotos quase sempre fora de foco ou de quadro, para as coincidê ncias nas perdas de acesso.Até entã oelenã oidenti icara qualquer problema. Marble era a melhoraquisiçã orussadaCIA,nã osó portersobrevividoportantotempo, mas sobretudo porque vinha melhorandocomopassardosanos. —Nathanieljá lhecontouoque reporteioutrodia?—perguntouele. — Contou — respondeu Benford. — Vamostermuitotrabalhopelafrente. — O ilegal, a questã o dos submarinos,amissã odediretor,otal de Swan? — Li o resumo hoje de manhã. — Infelizmente o im da Guerra Frianãodiminuiuoapetitedenossos lı́derespelastravessuras.Emmuitos aspectos, os sovié ticos do passado erammaisfáceisdeentender. Marble serviu mais dois copos de conhaque e deu um gole no seu. Benforddeudeombrosedisse: — Por aqui as coisas també m nã o mudaram muito. Se tivessem mudado, muita gente icaria sem emprego,inclusiveeu. — Aliá s, é sobre isso que eu gostaria de falar com você — retrucouMarble. *** — Volodya, você está dizendo que está pensando em parar? — indagou Benford. — Por que agora? Algummotivoespecial? — Benford, nã o quero que me entenda mal. Nã o estou jogando a toalha. Quando chegar minha hora, gostaria de uma aposentadoria tranquila,memudarparaosEstados Unidos, viver em um apartamento nestacidade. —Você vaitertudoissoemuito mais.Medigaoquetememmente. — Bem, ningué m sabe quanto tempo ainda vou continuar trabalhando para você s, tampouco qual será a natureza da minha aposentadoria: se será voluntá ria ou forçada — começou Marble. Benford jamais ouvira um agente se referir à possibilidade da pró pria prisã o ou execuçã o como “aposentadoria forçada”. — Mas uma coisa é certa: nã o tenho mais do que dois ou trê s anos de umacarreira normal pela frente, levando-se em conta as aspiraçõ es de Vanya Egorova e a direçãogeraldascoisasnoSVR. — Você ainda pode continuar como vice-diretor — a irmou Benford com convicçã o. — E respeitadoemYasenevo,temamigos naDuma. Marble bebeu mais um gole do conhaque. —Eucontinuariaativopormais unsdezanos,depoisoquê ?Entraria para a polı́tica? Poxa, Benford, achei que fô ssemos amigos. Nã o, companheiro, meu tempo é inito. E, sem falsa modé stia, acho que você s sentirã o minha falta depois que eu penduraraschuteiras. — Claro que sentiremos — concordou Benford. — Será uma grandeperda.Vocêéinsubstituível. — Seus superiores vã o passar por uma espé cie de sı́ndrome de abstinê ncia depois que as minhas informaçõ espararemdechegar.Vã o arrancar os cabelos, querendo recrutar algué m a todo custo, abordandoaspessoaserradas. — A mesma estupidez de sempre. E isso que me manté m jovem, Volodya. Mas... aonde você está querendochegar?Tenhocerteza quetemalgumacoisaemmente. — Eu gostaria de sugerir um nome para me substituir, para dar continuidadeaomeutrabalho. Benford era experiente demais para se surpreender, mas mesmo assim se inclinou para a frente, interessado. — Volodya, você está me dizendo que tem um protegido? Algué m que sabe do nosso trabalho juntos? Subitamente ele se lembrou de um memorando da contrainteligê ncia em que essa possibilidadeeralevantada. —Nã o,elanemsonhacomisso. Mas icará sabendo quando chegar a hora. Entã o poderei treiná -la, prepará-lacomosedeve. — Uma mulher? — disse Benford. — Você está sugerindo que um general do SVR com trinta anos de carreira, chefe do Departamento das Amé ricas, seja substituı́do por umamulher? Nã o tenho nada contra o gê nero, mas nã o há ningué m do sexo feminino no alto comando da central. Que eu me lembre, só houve uma mulher no Collegium nos ú ltimos trinta anos. Há muitas na á rea administrativa, claro. Mas... que tipo de acesso teria essa sua substituta? — Fique tranquilo, Benford. Essapessoaexiste. — Entã o me diga logo quem é ela. — Dominika Egorova, a sobrinhadeVanyaEgorov—revelou Marble. — Você está brincando — exclamou Benford, perplexo, e se serviu de mais uma dose de conhaque. Na mente, uma avalanche de pensamentos:Meu Deus, a garota está viva. Os dois informantes se conhecem. Estão trabalhando juntos. Deusqueiraquenãoestejamtrocando con idências por aí, enquanto comem seu borchena cafeteria da central! O jovem Nash vai icar bastante ocupado. E num lampejo de lucidez: Nãoéqueissopodefuncionar? — Mas o que levou você a pensar nessa hipó tese? Me conte logo,Volodya,antesqueeucomecea ficarsóbriodenovo. Tamborilando o indicador na mesinhaàsuafrente,Marbledisse: — Benford, preste atençã o. E a konspiritsia perfeita. Nunca houve oportunidademelhordoqueessana histó ria da sua agê ncia. — Entã o, a cada ponto enumerado, ele batia na mesa:—Elaé asoluçã operfeitapara o nosso problema. Pensei muito neste assunto. O sobrenome confere a ela uma espé cie de pedigree, pelo menosaté Vanyaseaposentarouser expurgado, mas quando isso acontecerelajá vaiestarcaminhando comaspró priaspernas.Foitreinada na AVR, e se formou com louvor. E inteligenteetempersonalidade. Ele via Benford brincar com o copo de conhaque entre os dedos, adivinhandooquesepassavaemsua cabeça. — Nó s dois sabemos que um bom currı́culo nã o é o bastante — continuou. — Mas a garota també m tem a motivaçã o necessá ria, uma montanha de ressentimentos. O pai morreu, ela foi dispensada da escola de balé , oporco do tio usou-a na eliminaçã o de um adversá rio de Putin.Trocouosilê nciodelaporuma vaga na academia, depois nã o cumpriu a palavra e mandou a menina para a Escola de Pardais. Imagino que você saiba do que se trata. Benford fez que sim com a cabeça. — Depois teve Helsinque. Você deve saber que ela passou por lá . Houveumproblemaoperacional,nã o porculpadela,masissoacolocouem mauslençó is:foidespachadadevolta pra Moscou e submetida a um corretivo de dois meses.Em Lefortovo,dá praacreditar?Comonos velhos tempos. Vai ser difı́cil essa menina perdoar uma barbaridade dessas.Masestoudeixandoomelhor por ú ltimo — falou, em seguida se recostounacadeira.—Seioquevocê está pensando. Que as perspectivas pro issionaisdeumamulhernã osã o lá grandes coisas, que a moça está nos ú ltimos degraus da hierarquia e que nunca terá acesso a nada que realmentevalhaapena.Aconteceque eu posso dar um jeito nisso. Posso acelerar a carreira dela, garantir seu sucessopro issionaldemodoqueela jamais tenha de sentar no colo de nenhum general, muito menos no meu. — Sei. E como pretende fazer isso? — perguntou Benford. — Que diabovocê podefazerpracatapultar essamoçaproestrelato? — Vanya Egorov é obcecado pela ideia de que há um informante no SVR. — Marble apontou para si mesmo e, rindo, prosseguiu: — Na verdade, mandou a sobrinha para Helsinque com a missã o de abordar Nathaniel e tirar dele alguma pista sobreoespiã o.Você sabiadisso?Que Nathaniel estava sob a mira do SVR emHelsinque? Benfordmanteveacabeçabaixa, eMarblefoiemfrente: —OsplanosdeVanyasofreram umatrasopor conta da investigaçã o de segurança que izeram com a sobrinhadele.Maselafoiinocentada, já voltou à ativa e... Quer saber de uma coisa? Acho que todo esse episó dioemLefortovoserviuapenas pra fortalecer a moça, pra deixá -la aindamaisdeterminada. Só mesmo um russo pra achar uma coisa dessas, Benford pensou comseusbotões. — Acolhi Dominika no meu departamento — continuou Marble — com a intençã o de dar a ela uma base.Vanyapediuinformalmenteque eu reabrisse a operaçã o da sobrinha contraNate,eporcontadissoelaeeu teremosumagrandeproximidadeno trabalho. Mas seremos nó s dois, Benford,você eeujuntos,quevamos determinaromomentocertodefazer dajovemEgorovaumaheroı́na,uma estrela do SVR, com um futuro garantidopelafrente. —Já está icandotarde,Volodya — disse Benford. — Desembuche logo: como é que você pretende transformar essa moça numa heroína? — Muito simples — respondeu Marble. — Dominika vai descobrir que o espiã o sou eu e vai me entregar. *** Eles queriam distâ ncia da ONU, tantodobarulhoquantodaspessoas, especialmente dos demais russos, entã o seguiram para a Rua 4, no Village.Aquelaseriaaú ltimanoitede Marblenacidade.Orestaurantetinha um toldo vermelho e degraus que conduziam a uma porta abaixo do níveldarua.Nasparedes,gravurasde dançarinas;nosalã o,sofá scirculares de encosto alto, ó timos para o isolamento de que precisavam para conversar. Benford insistiu que Marble pedisse umapasta com le sarde, uma receita picante de Palermocomfuncho,açafrã o,passas e pinoli. Os dois se sentaram lado a ladodemodoquepudessemseouvir. Benford estava agitado, falante, até mesmo um pouco amedrontado. Considerara a sugestã o de Marble durante os ú ltimos dois dias, examinando-adetodososâ ngulos,e, quanto mais ele pensava, mais achavaumabsurdo,umaloucura,um despropó sito.Asituaçã onemeratã o grave assim: caso eles sofressem uma interrupçã o no luxo de informaçõ es,paciê ncia,issotambé m fazia parte do jogo. Mas colocar voluntariamenteapró priacabeçana forcaeraimpensável. —Não,nãodá—disse. — Claro que dá — retrucou Marble. —Tem que dar. Se me pegarem porque só Deus sabe como essacaçadavaiterminar,estará tudo acabado, nã o haverá chance nem de umú ltimorecado.Nã opodemosnos dar ao luxo de deixar as coisas desmoronarem dessa forma. Caso você ainda tenha alguma dú vida, pense no ilegal desconhecido que anda solto por aı́, passeando de submarino.PensenesseSwan,sejalá quemelefor,mandandoinformaçõ es praYasenevoapartirdoCapitó lioou até daCasaBranca.Nã opodemosnos dar ao luxo de icar de braços cruzados. E Benford, icando sem argumentos, disse que nã o havia nenhuma garantia de que Dominika conseguiria as promoçõ es de que precisava, e nesse caso o gesto de Marbleteriasidocompletamenteem vão. — Você só pode estar brincando! — exclamou Marble. — Elaé umao icialjovem,umamulher nosnovostemposdoSVR,á vidapor conquistar seu lugar no novo milê nio... Com um golpe de contrainteligê ncia dessa envergadura, vai ser promovida a coronelnumpiscardeolhos! Benford limitou-se a olhar para Marble, em seguida pediu mais duas dosesdegrappa. —Olha,Benford, se eu dissesse que tenho câ ncer e que meus dias estã o contados, a ideia faria mais sentidopravocê?—indagouele. — Por acaso você está com câncer? —Não. —Entã oagoraquemé queestá de brincadeira? — Benford tinha apenas uma ú ltima carta na manga, entã o,quasepateticamente,disse:— EasuaaposentadoriaemNovaYork? Marble sorriu e explicou que nunca esperara de fato que um dia isso pudesse acontecer, que nã o era possı́vel que uma histó ria daquelas terminassetã obemparaele.Pousou amãonobraçodeBenfordefalou: —Vamosdarumpassodecada vez, ver como as coisas se desenrolam. — Só com uma condiçã o — rendeu-se Benford. — Nã o vamos contar nada a ningué m, nem mesmo ao Nash, até termos certeza do que estamosfazendo. — Duas condiçõ es — retrucou Marble.—També mnã ovamosdizer nadaaDominikaEgorova. Terminada a conversa, eles continuaram bebendo em meio ao burburinho do restaurante, seguros desuaconspiração. PASTA CON LE SARDE No azeite quente, refogar cebolas e funcho picados, açafrão, passas brancas e pinhões. Colocar, na mesma frigideira, filés limpos de sardinha e anchovas. Quando os peixes começarem a se desmanchar, juntar um pouco de vinho branco, temperar, cobrir e deixar cozinhar até que os sabores se apurem. Colocar sobre qualquer massa mais substanciosa, como bucatini ou perciatelli. CAPÍTULO 24 OS RELATORIOS DE NATE SOBRE ilegais e informantes eram restritos a alguns o iciais de alto escalã o na Divisã o de Operaçõ es Russas.Quemdefatogeriaosdados eramosnerdsneuró ticosdaDivisã o de Contrainteligê ncia, homens e mulheres pá lidos por causa do expediente de catorze horas. Eles começaram a ler os relató rios de Nate, dissecando as informaçõ es, dandoinícioàpesquisa. AovoltardeNovaYork,Natefoi convocado mais uma vez à toca de Benford. A Divisã o de Contrainteligê nciaocupavaumandar inteiro do quartel-general, um labirinto de salas e corredores diferente dos demais, em que o espaço se dividia em cubı́culos abertos. Ali os escritó rios eram individuais e permaneciam sempre deportasfechadas,cadaumcomsua fechadura com segredo sobre a maçaneta. Alguns deles nã o tinham fechadura nem maçaneta, e Nate se perguntava o que haveria ali dentro. Na antessala de Benford ele foi recebido pela secretá ria de sempre, umamulherdeaspectoinsı́pidocujo olho esquerdo tremia de vez em quando. Piscando, ela bateu à porta dochefe,quenã oabriu.Esperouum pouco e bateu de novo, quase inaudivelmente. Benford en im se manifestoudooutroladoeelaabriu uma fresta na porta, sussurrou o nome de Nate e recuou para que ele entrasse. O escritó rio lembrava o de um professor universitá rio de alguma cidade longı́nqua. Na parede dos fundos, um sofá decré pito e desbotado estava atulhado de arquivos empilhados, alguns dos quaishaviamcaı́doeseespalhadono chã o feito um leque de ichas de pô quer. Na extremidade oposta, a mesa era uma bagunça de bandejas de documentos també m cheias de papé is,ameaçandotransbordar.Num canto da sala, uma torre de jornais velhospareciaprestesadesmoronar. Nas paredes, as fotogra ias eram quase todas em preto e branco, bastante granuladas, nã o de mulher, ilhos e parentes, mas de pontes, tocosdeá rvore,estradinhasruraise becos espremidos entre armazé ns. Nate supunha que aqueles lugares haviam tido alguma importâ ncia no passadopro issionaldeBenford,que talvez fossem eles a sua famı́lia. Na parede à s costas dele havia uma fotogra ia do pré dio neobarroco da antiga sede da CompanhiaRussa de Seguros de Moscou, també m conhecidocomoLubyanka. — Sente-se — disse Benford comavozrascanteegrave. Erabaixoebarrigudo,comuma testa larga e cabelos grisalhos sempre desgrenhados, dos quais escapava uma mecha que icava espetada para o lado. Ele agora encarava Nate com seus olhos bovinos, muito escuros e enormes, sob cı́lios tã o compridos que pareciam femininos. Bochechas caı́dasemolduravamabocapequena cujos tiques nervosos, somados ao cenho franzido, denotavam total desdé m, ou no mı́nimo uma grande preguiça,queelenutriapeloassunto empauta. — Li os ú ltimos relató rios que você mandou de Nova York — disse ele. — Relevando-se os erros gramaticais, até que sã o satisfatórios. — Obrigado... eu acho — retrucouNate. Ele havia deslocado cuidadosamente alguns arquivos paraseacomodarnabeiradosofá. — Você gosta de Marble? — perguntouBenford.—Confianele? — Eu o chamo de “tio”, se é disso que você está falando. Somos muitopróximos,sim. —Nã opergunteisevocê s icam se esfregando. Perguntei se con ia nele.—Con io,claro—a irmouNate. — Ele trabalha pra gente há catorze anos. Benford crispou os lá bios num claro sinal de desgosto por ter sido informadodealgoqueestavacareca desaber. — E você acha que essas novas informaçõ es que ele trouxe sobre ilegaiseinformantesemWashington sãoplausíveis? —Parecequesim—falouNate, arrependendo-se logo em seguida. Benfordbufou,irritado,ecuspiu: — Parece que sim ou você acreditaqueelassãoplausíveis? Naterespiroufundo. —Achoqueasinformaçõ esdele sã o verdadeiras. Se Marble estivesse sendo vı́tima de uma arapuca, as pistas seriam mais concretas, mais identi icá veis—sugeriuNate,e icou esperandopelabroncaseguinte. Benford lentamente. ergueu a cabeça — Arapuca? Onde foi que você aprendeu isso? Andou lendo algum livro de histó ria da espionagem? — Apontando o queixo para uma das fotogra ias na parede, disse: — Sabe queméaqueleali? Tratava-se de um homem de rosto anguloso, ó culos fundo de garrafa e cabelos empapados de gomalina. —EoAngleton,nã oé ?—falou Nate. —JamesJesusparaoschegados —retrucouBenford.—Pordezanos ele achou que todos os agentes sovié ticos eram agentes duplos, que todososvoluntá rioseramplantados, que todas as informaçõ es eram desinformaçõ es. Era um homem ao mesmo tempo simpá tico, peçonhento e paranoico, absolutamente convicto de que suas suspeitas eram reais. Talvez até fossem. Mas botei a foto dele ali como uma espé cie de lembrete pra nã o repetir a maluquice do homem. Bem, voltando a Marble, eu també m confionele. Nate assentiu. Percorrendo a sala com os olhos, notou a estante que transbordava de livros e papé is. Na prateleira superior, havia cinco volumesencadernadosemcouroque se empilhavam de forma desordenada a ponto de quase caı́rem. Percebendo a curiosidade dele,Benfordexplicou: — O vento nos salgueiros, de Kenneth Grahame. Uma histó ria de ratosetoupeiras. Encarou Nate por alguns segundos, exibindo uma expressã o queojovemnã osoubeaocertocomo interpretar: ou o homem estava irritadocomalgumacoisaouapenas perdido nos pró prios pensamentos. Nate achou melhor icar calado. Estava diante de um misantropo. Vinte anos de caça a informantes, armadilhas duplas, agentes triplos. Redes de informaçã o arruinadas, rá dios silenciados em diferentes porõ es, espiõ es detidos. Ré us deixandootribunal curvados, com o paletó cobrindo a cabeça, as mã os algemadas junto à cintura, como mostravam as imagens em preto e branco dos cinejornais do passado. Era esse o campo de batalha de SimonBenford. Dizia-se que ele tinha poderes de clarividê ncia, que era um sá bio com apreço especial pelo mundo da espionagem, com seus agentes duplos e suas pistas falsas. Nate observouasmã osdoveterano,já um tanto trê mulas e com dedos compridos que vez ou outra ele passava pelos cabelos. O cé rebro talvez fosse rá pido demais para seu pró prio bem. Nate podia ver que a bomba recé m-trazida por Marble sobre informantes e ilegais fazia a mente dele trabalhar a toda a velocidade. C/ROD já havia previsto: “Aposto que vai convocar você pra trabalhar com ele. Boa sorte, é só o queeupossodesejar.” — Quero que você venha trabalhar comigo nessa informaçã o do Marble — falou Benford. — Começandojá .Vá buscarsuascoisas. Nã oconteaningué moqueestamos fazendo.Vamosencontraresseilegal. —Nã oé pracontarnemparao C/ROD? — perguntou Nate. — Nem mesmo se ele quiser saber onde estou? —Nempraele.Deixequeeufalo com o C/ROD caso ele pergunte algumacoisa.Masnã ovaiperguntar. Nã o vamos dizer nada a ningué m sobre essas novas pistas. Nem à s estaçõ esdeBostoneNovaYork,nem aos nervosinhos do FBI, nem aos veadinhosdaAgê nciadeInteligê ncia de Defesa, nem ao Comitê de Segurança, nem ao Congresso Federal. Nã o quero nenhum porralouca em Washington botando lenha nessafogueiracomaporradalı́ngua compridaquetodoselestê m.Espero queestejadeacordocomisso. Natefezquesimcomacabeça. Aquelaalturaelejá sabiaquese tornarassistentedeBenfordpoderia ser uma grande honra ou uma sentença de prisã o, mas nã o importava. Depois de Helsinque sua carreira havia estacionado. Benfeitores como Forsyth e Gable aindaestavamemcampo,maspouco ou nada podiam fazer para ajudá -lo. Portanto, olhando para o trê mulo e brilhante Benford à sua frente, ele en im se decidiu. Nate era bom em operaçõ es internas, conhecia a Rú ssia e tinha uma contribuiçã o concreta a dar. Ainda que Benford nã o se encaixasse muito bem no papel de um padrinho (um misantropo mal-humorado como ele dificilmenteaceitariaseromentorde algué m), ele decidiu que o melhor a fazerseriamesmoaceitaraproposta, entregar-se por completo ao mundo da contrainteligê ncia, aprender tudo quanto fosse possı́vel a respeito do universo secreto em que Benford vivia.Talvezcomissopudessesalvar da morte sua baqueada reputaçã o pro issional. De qualquer modo, pela primeira vez desde os tempos de treinamentonaFazenda,eleparoude sepreocuparcomofuturo. *** Natefoidiscretamenteinstalado numa das salas vagas da Divisã o de Contrainteligê ncia. No corredor nã o se ouvia nada, nem um pio. Ele imaginavasedefatohaveriaalgué m trabalhando por ali. Receava se deparar em algum momento com a caveira da mã e de Norman Bates girando na cadeira para cumprimentá -lo com seu sorriso cadavérico. — Aı́ está você — disse a secretária,piscandoparaele. Talvez fosse apenas um tique nervoso. “Enigmas e charadas”, dissera Benford. “Melhor você ir se acostumandocomeles.” Seu novo escritó rio nã o tinha janelas nem qualquer enfeite. Havia tachinhas espetadas nas paredes e Nate se perguntava o que elas poderiamtera ixadoaliumdia.Uma gaveta que rangia ao ser aberta estava repleta de pedaços de unha cortados, centenas deles, formando umacamadasobreofundo. A sala vizinha pertencia a Alice SD (Sobrenome Desconhecido). Com seus40epoucosanos,ou50,ou60, era uma mulher atarracada com bochechas fartas e rosadas, nariz gorducho e cabelos avermelhados muitocurtos,penteadosparaafrente natestaenaslaterais.Usavasapatos quepareciamosdeumacarcereirae andava muito depressa com os pé s viradosparafora.FalavacomNate— e com todo mundo — inclinando a cabeça e se projetando um pouco paraafrentecomosequisessecontar um segredo, o que jamais fazia, é claro.Ningué mnacontrainteligê ncia compartilhavasegredos. Nosprimeirosdias,comoquem nã oquerianada,colegasprocuravam NateparadizerqueAlicefaziaparte da reserva da divisã o, que estava ali desde sempre. “Foi ela quem realmente matou Trotski”, diziam uns. “Foi namorada de Allan Pinkerton”,a irmavamoutros,elogo voltavam para as respectivas salas. Nate pensava consigo mesmo: bemvindo à Ilha dos Brinquedos Quebrados. Benford instruı́ra Alice a ajudá lo. Eles agora conversavam na sala dela,que,aocontráriodadele,eraum lugar ensolarado, com vasos de samambaia e gerâ nio sobre os armá rios de arquivo. Com os pé s cruzados sobre a mesa, os sapatos horrendos chiando contra o tampo, eladisse: —Você nã osabedemuitacoisa, nã o é ? Recapitulando: temos um ilegal, temos submarinos, temos Nova Inglaterra, temos alguns encontros em Boston e Nova York. Marble també m falou algo sobre manutençã o de submarinos e um prazo de cinco anos. Muito bem. Por ondevocêcomeçaria? — Pelo quadro de pessoal da Marinha?—sugeriuNate. — Errado — retrucou Alice, e girou na cadeira para se levantar. — Vamoscomeçarpeloalmoço. Eles foram para o segundo andar da cafeteria. Nate brincava com a salada e Alice tomava sua sopa quando dali a pouco chegou Sophie, arfando por ter subido a escadacomastorasquetinhano lugar das pernas. Trabalhava no OSR,odepartamentodepesquisasda CIA, onde eles ainda catalogavam os submarinos nucleares radioativos r u s s o senferrujados havia muito tempo,osOscars,TyphoonseAkulas dasbasesnavaiseestaleirosdabaı́a de Olenya e Polyarny, segundo ela informaçõ es de suma importâ ncia, por mais que o pessoal do sé timo andar achasse ocontrá rio.Já nacasa dos 50 anos, Sophie tinha uma cabeleira farta e muito negra, lá bios inos e as feiçõ es de uma escultura grega. Usava uma legging preta sob um esvoaçante vestido també m preto,esapatosortopé dicos.Numde seus pulsos havia um elá stico de cabelo, para o caso de uma emergência. Sophie colocou sobre a mesa uma lancheira com estampas do mangá Sailor Moon e tirou seu almoço lá de dentro: caixinhas de plástico,fachis,colheresjaponesasde degustaçã oeum galheteiro de vidro com molho de salada. Olhou para a salada de Nate e despejou nela um poucodeseumolho,dizendo: —Experimenteisso.Écaseiro. O molho tinha notas de vinagre balsâ micoemostardaDijon,alé mde umpouquinhodepimenta,diferente de todos os vinagretes que Nate conhecia. Ele comentou isso e ela abriuumsorrisoradiante. Alice pediu que deixassem de conversa iada e explicou a Sophie o que ela precisava saber enquanto comia seu curry de olhos fechados, ou porque estava saboreando a comida ou porque estava se entregando à s lembranças, ou as duas coisas ao mesmo tempo. New London, Connecticut. Portsmouth, New Hampshire. Brunswik, Maine. Apenastrêsbasesnavais. Submarinos eram muito grandes,esó haviaumestaleiropara consertá-los. Eles já estavam icando velhos, volta e meia precisavam de manutençã o,comoosAkulasao inal dadé cadade1980,ouSchukas,como geralmente eram chamados, bem mais silenciosos que os demais. Nesse momento, Alice precisou intervirparaqueelaretomasseo io da meada. Electric Boat Works, um enorme estaleiro em Groton, Connecticut, no estuá rio do rio Tâ misa, em New London. Era por lá que eles deviam começar, de acordo comSophie. Depoisdoalmoço,elesvoltaram à sala de Alice. Os monitores da DCI ainda eram do tempo dos tubos cató dicos, e as bases de dados iam passando devagar à frente deles: averiguaçõ es de segurança, contingente ativo da marinha americana, listas de pessoal com descriçã o de cargos, relaçõ es de fornecedores e prestadores de serviço.Aliceia deslizando seu dedo masculino sobre a tela enquanto murmurava:essenã o,essenã o,mais de sete anos, menos de trê s, esse també mnã o.Altadireçã odaElectric Boat e da General Dynamics, claro que nã o. Alice era rá pida: olhava um nome, puxava as informaçõ es e seguiaemfrente.Tinhatrê sdé cadas de experiê ncia naquilo, na consulta de nomes e bases de dados. Eles já haviam acumulado duas pilhas de papé isquandoNatedesistiudefazer sugestõ es, incapaz de acompanhar a velocidadedela.DaliapoucoAlicejá reduzira as possibilidades a uma “equipetitular”,osOnzedeOuro,tal como ela mesma gostava de dizer, e entã o passou à averiguaçã o dos dadosdepraxe:endereços,telefones, formaçã o acadê mica, casamento, ilhos, divó rcios, pais, emprego, salá rio, declaraçã o de imposto de renda, placas de carro, viagens, contas bancá rias, correspondê ncias, passagens pela polı́cia, ethernet ou cabo,héteroougay. Acertaalturaelasussurroupara atela: — Esse ilegal de você s... Será que é mesmo tã o invisı́vel quanto estãopensando? Trê s dias depois, Nate e Alice foram levar sua lista para Benford, e agora ele batia a ponta do lá pis em cada um dos nomes enquanto lia os respectivos per is,tap, tap, tap. De repentejogouolá pissobreamesae devolveuopapelaNate. — E Jennifer Santini — disse, e emseguidabocejou,ovelhosá biode cabelosrebeldes. AliceriuecutucouNatecomum arde“Nãofalei?”. — Vamos fazer uma investigaçã oprofunda—prosseguiu Benford—,mastenhocertezadeque é elaquemestamosprocurando.—E olhando para Nate, emendou: — Agora vamos até New London bisbilhotar. VINAGRETE DA SOPHIE Juntar alho amassado, endro, orégano, flocos de pimenta desidratada, mostarda Dijon, açúcar, sal, pimenta do reino e parmesão ralado a uma parte de vinagre balsâmico e três partes de azeite extravirgem. Bater até emulsificar. CAPÍTULO 25 APESAR DO ESPLENDOROSO CLIMAdeverã o,NewLondoneraum lugar triste e deprimente, já bem distante de sua é poca de gló rias comerciais e culturais, encerrada com a extinçã o das frotas baleeiras nadé cadade1860.Oestuá riodorio Tâ misa, antes tã o movimentado (na Segunda Guerra Mundial era uma aglomeraçã o de cascos cinzentos, mastros e chaminé s), agora se resumia a uma paisagem lunar de pı́eres manchados de ó leo e armazé nscarcomidospelaferrugem. Casas de madeira com dois ou trê s pavimentos,emgeralabrigandomais deumafamı́lia,povoavamascolinas residenciais à margem do rio. Os telhados de papel de alcatrã o eram separados pela distâ ncia de dois braços esticados, de modo que era possı́velestendervaraisderoupade umavarandaaoutra.Osjardinseram muitopequenoseosquintais,quase sempremalcuidados,con inadospor cercasdealambradonã omuitoaltas, marcadaspelamaresia. Dooutroladodorio,emGroton, as instalaçõ es da Electric Boat se expandiam por alguns quilô metros de margem, formando uma verdadeira cidade de gruas, galpõ es industriais e colunas de fumaça. O estaleirocontavacomumgigantesco dique seco, tã o grande quanto um navio de cruzeiro, onde à s vezes podia ser visto, na extremidade que dava para o mar, o imponente vulto preto de um submarino apoiado em blocos para ser consertado, sua hé lice de sete pá s coberta por pesadas lonas para ocultá -la dos satélitesrussos. Nate nã o sabia ao certo o que esperardaquelaviagem.Eleshaviam subidodetrem,umavezqueBenford nã o dirigia, e na plataforma da estaçã o os dois pareciam mais pastores bú lgaros indo passar o im de semana em So ia do que uma dupladeagentesdaCIAà procurade espiõ es treinados em Moscou. Nã o estava claro se Benford era um mã o de vaca, um doido ou apenas um agente tã o obcecado por té cnicas operacionais a ponto de insistir que eles dividissem o mesmo quarto no Queen Elisabeth Inn, um decré pito casarã o vitoriano que fazia as vezes depousadanumadasmuitascolinas de New London. Sem falar nas interminá veis caminhadas (ou “palmilhadas”, como ele gostava de dizer) de cinco, seis, doze horas diá rias, durante as quais a brilhante cacatuacontavasuashistó riassobre aOGPU—apolı́ciasecretasovié tica —,oNKVDeosCincodeCambridge, numa espé cie de curso sobre a históriadaGuerraFria. No primeiro dia, eles palmilharamacolinaemquemorava atalJenniferSantini,descendo-apela manhã , subindo-a no im da tarde, observando as casas, os carros estacionados junto ao meio- io, o mato que invadia as calçadas, as cortinas rendadas nas janelas dianteiras. Tentavam identi icar possı́veis locais para troca de sinais de comunicaçã o ou esconderijo, parques vizinhos, qualquer acidente geográ ico que pudesse ser usado para o benefı́cio de um ilegal. Nã o encontraramnada. No segundo dia, passaram diantedacasadeJenniferSantiniem diferentes horá rios para ver se algo havia mudado de lugar: as cortinas dasjanelas,ovasodegerâ niosdiante daporta,qualquercoisaquepudesse ser interpretada como um sinal de segurança. Redobraram o cuidado à noite, passando na frente da casa escuraapenasumavez.Umaluzfraca estava acesa numa das janelas do andardecima.Seriapossı́velqueela estivesse no escuro, espiando a rua de outra janela da casa? Que possuı́sse outro apartamento, alugadocomumnomefalso,paraos encontros com seu operador? Mais umavezelesnãodescobriramnada. No terceiro dia, entraram no mercadinho da esquina e perguntaramcasualmentesealgué m ali conhecia Jennifer Santini. Nã o, ningué m sabia nem queria saber quem era a mulher. Nate se perguntouoquemaiselespoderiam fazerporali.OlhandoparaBenforda seu lado, sentiu-se na pele de um Robin com seu Batman e arriscou uma piadinha, mas o veterano lhe disseparaprestarmaisatençã o,caso contrá rioodespachariadevoltapara casa. “Prestar atençã o em quê ?”, disseNate.Aquilonã opassavadeum exercı́cio masturbató rio nos cafundó s de Connecticut. De novo eles nã o encontraram nem descobriramnada. Estavam trabalhando à s escondidas. Desde o inı́cio Benford optara por manter o caso fora do alcance dos distintivos e das armas do FBI. Tratava-se de uma ilegal treinada pelo SVR, devidamente preparada para sumir do mapa se farejasse o menor sinal de perigo. Elesnãopoderiamcorreresserisco. No quarto dia, os dois recomeçaram do zero, repetindo todososprocedimentos.Ànoite,uma tempestade de verã o desabou sobre a pousada, balançando as janelas do quarto, vergando as á rvores do lado defora.Acertaalturaaluzcaiueum rá diodepilhafoiligadonoandarde baixo. O clarã o de um raio permitiu queNatevisseochefesentadojunto à janela, olhando para a chuva com um aspecto bastante estranho. Sem dú vida via o rosto dosdoze informantesrussosqueaCIAperdera em apenas um ano, em 1985, o Ano do Espiã o, todos vı́timas de Ames e Hanssen, os traidores americanos quesemnenhummotivoaparenteos haviam entregado à sanha letal dos soviéticos. Mas no convı́vio com Benford o verdadeiro momento de suplı́cio era odasrefeiçõ es.Alé mdopapofurado de sempre, havia també m as conversas gastronô micas: o molho queestavaapimentadoemexcesso,a sopa de mariscos cremosa demais, espumosa demais, com batata demais,semaquelemı́nimodeareia nas conchas essencial para o sabor. Comer lagosta sem um babador? Jamais. Bacalhau era uma coisa, hadoque era outra muito diferente, ainda que ambos fossem da famı́lia dos gadı́deos. O primeiro, sim, pertencia à cozinha tı́pica da Nova Inglaterra, mas o segundo, nã o. Temperar um peixe com cravos? Absurdo! Havia regras que nã o podiamserquebradas,diziaBenford, ocaçadordeinformantes. Sem nada de concreto que lhe permitisse tocar a investigaçã o adiante, Benford anunciou, no jantar da quinta-feira, que na manhã seguinteelesdariamumaespiadana casadeJenniferSantini. —Umaespiada?—repetiuNate, dooutroladodamesa.Elesestavam no Bulkeley House, um restaurante naBankStreet,pró ximoaoporto.— O queexatamente você quer dizer com isso? — perguntou, largando os talheressobreoprato. — Recomponha-se, garoto — disse Benford, pondo-se a serrar um enorme corte de costela malpassado com a cabeça inclinada para o lado como se isso lhe desse mais forças com a faca. Já mastigava um pedaço da carne quando, de boca cheia, respondeu a Nate: — Eu vou lhe explicar o que signi ica “dar uma espiada”. E invadir de forma ilegal a residê ncia particular de uma cidadã americana supostamente inocente, contra a qual nã o há nenhuma evidê nciadedelito,invasã oessaque será realizada por dois o iciais nã o autorizados da Agê ncia Central de Inteligê ncia,estes sim em delito por estarem conduzindo por conta pró pria uma investigaçã o de co ntraes pi o nagemem território nacional,oqueporleiestá dentroda jurisdiçã odoFBI,segundoestipulado no decreto nú mero 12.333. Foi isso que eu quis dizer com “dar uma espiada”.—Elebaixouosolhospara o prato e jogou mais um pouco do molho cremoso de rabanete sobre a carne.—Hum,essemolhoestá uma delícia. *** Oquintodiaeraumasexta-feira tranquila. Eles esperaram até as dez damanhã ,depoisforamaté acasade Jennifer Santini sem qualquer elemento distintivo: nenhum chapé u nacabeça,nenhumasacolanasmã os. Abriram o portã ozinho metá lico dos fundos e entraram. Nas casas vizinhas, nenhum movimento. O quintalerauma bagunça. Havia uma banheira enferrujada emborcada junto a um barracã o de madeira prestesaruir.Benfordfoiaté aporta e tentou abri-la. Ao ver que estava trancada,espiouatravé sdascortinas dechintz.Ninguémemcasa. — Você consegue arrombar a fechadura?—perguntouNate. —Oquevocê acha?—retrucou Benford. — Entã o o que fazemos? Quebramosumajanela? — Nã o. Vamos pro segundo andar.—Eleretirouocadarçodeum dos sapatos, aproximou-se do cabo telefô nico de borracha grampeado à lateral da casa e amarrou o cadarço em torno dele, deixando uma laçada livre. — Este é o nó prú ssico dos montanhistas — explicou, depois mostrouaNatecomousaroatritoda laçadaparaalçarocorpoeescalaro cabo. Com sorte as janelas do segundoandarestariamabertas. Onde foi que ele aprendeu isso?, perguntou-se Nate, já escalando, e sinalizoupelajanelaassimquesaltou paraoladodedentro. Era um quarto vazio, aparentemente sem uso. Foi até a portaecorreuosolhospelorestoda casa. Assobiou para ver se havia algum cachorro. Imaginava que um ilegal russo tivesse pelo menos um Dobermann ou um Rottweiler para proteger a casa, mas nã o havia cã o nenhum. Depoiseledesceuaescadapara o primeiro andar, fazendo a balaustrada de mogno ranger a cada passo. Pé ante pé , foi até a cozinha, que tinha um ar 1950 e recendia a trigo,sementeseó leo.Abriuaporta dos fundos para que Benford entrasse. —Parecequenã otemningué m —falou. Ele e Benford vasculharam os cô modos de baixo, procurando fazer o mı́nimo de barulho, tomados pela adrenalina. A casa tinha o cheiro de uma clı́nica terapê utica. Os unguentos, aquecedores empoeirados e o ar parado nã o combinavamcomobelodiadeverã o doladodefora. A sala de jantar e a de estar tinhamjanelasquedavamparaarua, comcortinasrendadasquedeixavam aluzdosolentrareincidirsobreos tapetes surrados e puı́dos que cobriamopisodetá buascorridas.Os mó veis eram pesados e escuros. O sofá e as poltronas eram estofados com um tecido felpudo e adornados companinhosdecrochê nosbraçose no encosto. Canecas e bibelô s de baquelita — um velho marinheiro, uma espanhola com sua mantilha preta — se en ileiravam no consolo de uma lareira coberta de fuligem. Haviaumatiçadordeferroencostado ao lado dela. A cú pula de um dos abajures tinha pompons na borda inferior. Correndo os olhos à sua volta,pasmo,Benfordobservou: — Ela deve ter esvaziado metade dos antiquá rios portugueses dacidadepradecoraristoaqui. Pró ximo à sala de estar icava um pequeno escritó rio com uma escrivaninha e uma estante baixa repletaderevistasejornais.Sobrea escrivaninha se via uma pilha de contaspagasouapagar,alé mdeuma escuna de porcelana azul e branca comapalavraAhoypintadanaproa. — Vasculhe tudo isto aqui — orientou Benford. — Vou dar uma olhadaláemcima. Nate icousurpresoaonotarsua relutâ ncia em se separar do chefe, mas assentiu e logo começou a examinarasgavetasdaescrivaninha. Estavamtodasvazias.Já iafechando aú ltimaquandopercebeuumatritoe ouviualgoparecidocomobarulhode umpapelsendoesmagado.Retiroua gaveta por completo do mó vel e encontrou um papel enrolado no fundodovã o.Aodesenrolá -losobrea mesa, viu que se tratava de um desenho té cnico, uma ú nica folha com cortes transversais de peças e conexõ es elé tricas. Um cabeçalho informava: “Secçã o 37, porcas e braçadeiras”. Peças de um submarino? Santini trabalhava no departamentodecomprasdaElectric Boat. Seria possı́vel que aquilo fosse um documento con idencial? Que motivoelateriaparaguardaraquele desenhoemcasa,escondidonofundo deumagaveta? Enquanto isso, Benford fazia sua busca no andar de cima. Na suı́ t e principal havia uma cama de dossel sobre a qual fora colocada uma colcha artesanal de motivos loraisetrê stravesseirosgrandesem fronhasrendadas.Nocloset,blusase calças pendiam uniformemente dos cabides; diversos pares de sapato confortá veis, sem salto, se en ileiravam no chã o. Nã o havia nenhumquadronasparedes,nenhum suvenir, nenhum objeto pessoal: era uma casa que poderia ser abandonada em noventa segundos. No banheiro ele també m nã o encontrou nada de especial: o armarinhoacimadapiasó guardava uma escova de dente, um frasco de aspirinas e outro de soluçã o salina para lavagem intestinal. Ali o cheiro deunguentostambémeraforte. Voltando ao quarto, Benford abriu a ú nica gaveta existente na mesinhadecabeceira.Nenhumlivro, nenhuma revista pornográ ica, nenhum vibrador, nenhum lubri icante.Sobumretalhodefeltro ele encontrou um papel com uma longa lista escrita à mã o com diferentes datas e horá rios — 5 de junho: 21h; 10 de junho: 22h; 30 de junho: 21h30. Era uma programaçã o detransmissõ es.Omaisprová velera que ela carregasse consigo o laptop comochipdecriptogra ia.Encontros marcados com um operador do ConsuladoRussoemNovaYork.Uma entradadoprogramadesubmarinos. Benford fechou a gaveta e saiu do quartoparacontaraNate. O jovem ainda estava no escritó rio,enrolandoodesenhopara subir e mostrar ao chefe. Já examinara pela segunda vez o fundo de todas as gavetas da escrivaninha, poré mnã oencontraramaisnada.No entanto,aosairemdireçã oà escada, deparou-se com ningué m menos do queJenniferSantini,olhandoparaele nomeiodasala,umabolsaesportiva caı́da aos pé s. Nate se deu conta de queelesnuncahaviamvistoumafoto da mulher. Ali estava uma isiculturista que sem dú vida se entupia de bombas. Aparentemente tinha acabado de chegar da academia. Por que nã o estava trabalhando? Jennifertinhaquase40anos.De estaturamediana,vestiaumshortde lycra esticado ao má ximo sobre coxas descomunais que pareciam troncosdeá rvore.Otopjustocobria nã o um par de seios femininos, mas doispeitoraisdotamanhodepratos. As panturrilhas, os braços e o pescoçoseestufavamcomodesenho dos mú sculos. Os olhos eram de um verdecintilante,eobrancoemtorno daı́ristangenciavaoazul,talvezpor excessodesaúdeevitalidade.Orosto pareciatersidoesculpidoacinzelem torno da boca e do nariz grande e reto. A testa estava franzida de espanto. Os cabelos ruivos tinham sidopuxadosparatrá sepresosnum pequeno rabo. A mulher era um torpedo, um boneco de açã o, um trator. Nate ainda teve tempo de observarque,aocontrá riodetodoo resto, as mã os eram femininas e bonitas, com unhas pintadas num tom claro de rosa. Os pé s descalços també m eram belos e delicados, as unhascomamesmacordeesmalte. Assim que ouviu os passos de Benfordnaescada,Jenniferirrompeu nadireçã odeNatecomumarapidez ofuscante,agarrandoumabajurantes dedarosdoisoutrê spassosdeque precisou para alcançá -lo. Tentou golpeá -lo na cabeça, mas Nate desviou a tempo e o objeto se espatifou na parede à s suas costas. Aosereerguer,eleseviucaraacara com a mulher-trator, que rapidamente o imobilizou com uma chavedebraço,empurrando-ocontra aparededasalaeemseguidausando a mã o livre para esmurrá -lo no flanco. Nate fez o possı́vel para tentar se desvencilhar, mas nã o conseguiu: estavaapontodesufocarsobopoder daquelesbraçosdeSchwarzeneggere daquelas mã os de Grace Kelly. Conseguiu desferir um murro contra orostodamulher,masnã ofoicapaz de causar estrago algum. A apenas alguns centı́metros dele, ela escancaravaosdentespeloesforço,e ele receava que a mulher resolvesse arrancarseulá biocomumamordida. Em meio à saraivada de socos, Nate de repente se viu tomado por uma insanasequê nciadepensamentos:1) Quanta sorte a dele, ser destacado para caçar a ú nica ilegal russa no planeta que nã o era uma bibliotecá ria colecionadora de selos; 2)Oqueoscolegasdetrabalhodela, sobretudooshomens,deviampensar quandoviamaqueletratorchegarde manhã aoescritó rio?;3)Queespé cie de sexo devia fazer aquele ciborgue, seé quefaziasexo?Emseguida,por maisabsurdoquefosse,Natepensou no que Dominika estaria fazendo naqueleexatomomento.Imaginando onde ela poderia estar, foi tomado por uma tristeza acachapante ao cogitarahipó tesedequetivessesido morta.Suacabeçaerabatidacontraa parede e seu pescoço estava sendo esmagado,masoquedefatodoı́aera saber que aquela aberraçã o fazia parte da má quina que assassinara Dominika. Benfordsurgiuaopé daescadae icou imobilizado pela perplexidade. Jenniferolhouderelanceparaovulto pançudo e amarfanhado: seria a sobremesaqueela comeria a seguir. Nate aproveitou esse momento de descuidoparadesferirumfortechute nacaneladelaeesmagarumdospé s deunhasrosadas,fazendocomquea chave de braço relaxasse um pouco. Foi o que bastou para que ele conseguisse acertar uma joelhada entre as pernas da mulher. Jennifer grunhiu feito um homem, levou as duasmã osà virilhaecambaleouaté cair,encolhidadedor. BenfordolhouparaNate,depois para a besta-fera dobrada no chã o. Jamaistinhavistocoisaigualemseus trinta anos de caçador de espiõ es. Espantou-seaindamaisquandoviuo trator se reerguer feito um serial killer de cinema e caminhar até a mesa de centro da sala, depois levantá -la acima da cabeça e arremessá -la em sua direçã o. Precisou buscar suas ú ltimas reservas de energia (talvez oriundas dos dois anos como gerente de equipamentos do time de haltero ilismo de Princeton na dé cada de 1960) para correr escada acima a tempo de desviar da mesa voadora e vê -la bater contra os balaú stres do corrimã o, derrubando dois deles antes de se espatifar no chã o. Benford continuou em disparada até sumir no andar de cima. Jennifer voltou-se entã o para Nate, que agora estava no meio da sala com o atiçador que conseguira alcançar perto da lareira. Mais uma vez a mulher arremeteu na direçã o dele, martelando o piso com os pé s descalços. Nesse mesmo instante, Nate lembrou-se do nome de seu instrutor de corpo a corpo, Carl, enquanto irmava as pernas para erguer o ferro e desferir um golpe certeironopescoçodeJennifer,bem no plexo braquial, tal como aprendera nas aulas de combate a curta distâ ncia. Foi como se ele tivesse acertado o tronco de um carvalho centená rio. Nate chegou a sentir reverberaçõ es no pró prio antebraço. Jennifer, por sua vez, deixou escapar um grito surpreendentemente feminino antes de se esborrachar no sofá . O mó vel virou para trá s e os paninhos de crochê voaramlonge.Amulherrolou pelochã oaté baternaparedecomo rosto virado para o rodapé . Ainda empunhando o atiçador e com o braço um pouco dormente, Nate contornouosofá caı́doeseajoelhou aoladodela,arfando.Umadaspernas deJeniffertremialigeiramente,assim como as ná degas de gorila. Nate virou-a de frente e constatou que a boca estava aberta, mas nã o havia nenhumsinalderespiraçã o.Asunhas rosa faziam um estranho contraste com o piso escuro. Um dos pé s delicados jazia sobre um dos paninhos. A escada começou a ranger e dali a pouco Benford surgiu ao lado de Nate. A sala estava destruı́da, cheia de mó veis quebrados e cacos decerâmica. — Caramba... — exclamou Benford ao ver o rosto de Jennifer tombadoparaolado. —Amulherpareceumavilã dos ilmes de James Bond — comentou Nate. — Onde será que eles acham essa gente? Acho que o atiçador até entortou. Tentou medir a frequê ncia cardı́aca de Jennifer, mas, ao endireitá -la, assustou-se ao ver a cabeça tombar mole para o outro lado. — Nem se dê ao trabalho — disse Benford. — Os mú sculos lexoresdopescoçojá eram.Ogolpe lesionouaespinhadorsal.Avulsão. — De que diabo você está falando? — perguntou Nate, com as mãoscomeçandoatremer. — Avulsã o. Você seccionou o pescoçodela. Secando o suor do rosto, Nate falou: — Meu Deus. Acabei de matar umapessoa. —Você está bem?—perguntou Benford. — Estou. Obrigado pela ajuda. Só pude reagir depois que você a distraiu, aparecendo na escada. — Nate icou de pé e largou o atiçador nochão.—Eagora,oqueagentefaz? — Encontrei uma programaçã o de transmissõ es lá em cima — contouBenford.—Precisamosachar olaptopdelaeochipdecriptogra ia. Deve estar naquela bolsa ali. Provavelmente ela usava uma linha segura de internet pra se comunicar com os russos. Achei també m uma lista de encontros pessoais. E você , viualgumacoisaquenosinteresse? — Encontrei o diagrama industrialdeumaspeçasnofundode uma gaveta. Acho que a gente devia virarestelugarpeloavesso. — Nada disso — retrucou Benford. — Vamos levar só o que achamos.Agorajápodemoschamaro FBI. Eles que revirem isto aqui com suas pinças e saquinhos de perı́cia. Vã o ter de explicar direitinho como deixaram um ilegal operar bem debaixodonarizdeles.Equeen iem ajurisdiçãonorabo. O MOLHO DE RABANETE DE BENFORD Preparar um molho bechamel; incorporar manteiga, mostarda Dijon e rabanete fresco ralado a gosto. Temperar com pimenta moída na hora e vinagre de vinho nto. Deixar na geladeira por algumas horas e servir. CAPÍTULO 26 OVERAOESTAVACHEGANDOE Dominikajá podiasentirnorostoum poucodocalordosol.Elacomeçaraa trabalhar num “projeto especial” no Departamento das Amé ricas, che iado pelo general Korchnoi. Pouco depois de sua transferê ncia, foi informada pelo pró prio superior de que eles tinham uma viagem operacional pela frente. Dali a uma hora,deveriamestarnasaladovicediretorparadiscutiroassunto. Dominika sabia que estava enganando Korchnoi, usando a operaçã ocomopretextoparasairdo paı́s e retomar o contato com os americanos. Gostava do general, via neleumprofissionalsempredisposto aajudar,eagorapercebiaqueestava se aproveitando de uma pessoa decente do mesmo modo como haviam feito com ela. Chafurdava no mesmo mar de lama que seus inimigos. Mas nã o tinha outro jeito. Ela teria de continuar traindo a confiançadele. Avisitaiminenteà saladotioa deixava cheia de â nimo. Como seria bomolharnacaradele...Nemmesmo ostorturadoresdeLefortovotinham conseguido arrancar dela o seu segredo. Dominika Egorova era uma in iltrada da CIA no SVR, e nenhum deles sabia disso. Ela manipulara Vanyademodoqueeleacolocassede voltanocasodeNate.Agorabastava continuar reportando sucessos, agendando contatos, fazendo mais viagens. A agente clandestina novamenteemação. Que anseio seria aquele que ardiaemseupeito?Osamericanosa compreendiam. Logo haviam percebido suazhazhdat, a sede por um segredo apenas seu para acalentar, pelo poder que isso lhe conferia. A aura violeta de Nate, que eradamesmacorqueadeBratok,ea aura azul-celeste de Forsyth eram todasmuitointensas e muito lindas. Aqueles homens a entendiam muito mais do que seus pró prios compatriotas. Dominika nã o sabia ao certo o quesentiaporNate.Pensarnelefora muito ú til durante o martı́rio em Lefortovo, sobretudo quando a prendiam nos malditos armá rios. Masagoraela icavainsegurasempre quepensavanaquelaú nicanoiteque eles haviam passado juntos. Nate a viaemprimeirolugarcomoumativo, como um bem da CIA. Seria possı́vel que nunca a tivesse visto como mulher? Que nã o sentisse nada por ela,Dominika? Ela precisava vê -los — todos eles, os americanos, mas principalmente Nate. Enviar uma mensagem de Moscou seria uma temeridade. Era bastante prová vel que a Diretoria K ainda estivesse vigiando os passos dela, pelo menos de vez em quando. Sempre faziam isso com os reabilitados. Mas com aquela viagem para o exterior se aproximando,elapoderiaesperar. Quando chegou a hora da reuniã onavice-diretoria,Dominikae Korchnoi foram juntos para o elevador e subiram em silê ncio. Ela gostou da companhia do espiã o de cabelosbrancos,oroxodaauradele preenchendo todo o espaço, um espı́rito reconfortante, equilibrado. Sabia que sob a superfı́cie daquele sorriso paternal havia um o icial brilhante, de raciocı́nio a iado e patriotismo in lexı́vel. Como era possı́velqueumhomemtã odecente e esclarecido tivesse perdurado por tanto tempo no SVR? O que o mantinha ali? Dominika nã o nutria nenhuma ilusã o de que aquele pro issionaltã oexperientenã oseria capaz de detectar qualquer comportamentoimpró prioporparte dela. Sabia que precisava ter muito cuidadocomele. Eles foram caminhando juntos pelo corredor acarpetado que Dominika conhecia tã o bem, passando ao lado da galeria de retratos retocados dos diretores de outrora. As Eminê ncias Pardas pareciam olhar para ela como se dissessem:“Dessavezvocê escapou, garota.Mascontinuamosdeolhoem você.” Antes de abrir a porta do gabinete de Vanya, Korchnoi avaliou o rosto de Dominika e nã o pô de deixar de notar a emoçã o no olhar dela,ofogoqueaconsumia.Teriade encontrar um jeito de lidar com aquilo.ElesentraramnasalaeVanya já osesperavajuntoà sjanelas,calvo eamarelocomosempre,acorfeiosa da ambiçã o e da arrogâ ncia. Para o general,umaempolgadasucessã ode tapinhas no ombro; para a sobrinha, um açucarado discurso de boasvindas.Quantomais doce, maior era o amargor que Dominika sentia na boca. Depois dos cumprimentos, os trê scomeçaramafalardetrabalho.O alvo ainda era o americano Nash, o agente da CIA que sabia o nome do traidorrusso.Dominikaprecisavaser rá pidaee icaz,poisotempourgia.Se pudessemlerospensamentosumdo outro,KorchnoieDominika icariam surpresosaoconstatarqueeleseram praticamente idê nticos.Hvastun. Cabotino. Petulante. Pretensioso. O estô mago de ambos se embrulhava comavaidadedopavão. Medindo as palavras, mas com absoluta tranquilidade, Korchnoi observouqueaqueleprojetoexigiria viagens perió dicas do cabo Egorova aoexterioreperguntouseaquilonã o poderiaserumproblema,levando-se em conta a investigaçã o — a lamentávelinvestigaçã o—à qualela fora submetida havia pouco tempo. Vanya espalmou as mã os como se estivesse prestes a dar uma bê nçã o. “Claro que nã o, problema nenhum”, garantiu. Sobretudo porque ela estaria sob o comando exemplar de Korchnoi.Omaisimportantenaquele momentoeraencontraroamericano, restabelecer contato com ele. Vanya disse ainda que tinha absoluta certeza de que os dois saberiam o quefazeredeuumapiscadelaparaa sobrinha. Depois da reuniã o, Korchnoi e Dominika voltaram a suas respectivas salas. O general falava com tranquilidade, passando a Dominikaumalistadeprovidê nciasa tomar, instruindo-a a iniciar um arquivo de detalhes, horá rios e estraté gias. Dominika percebia que ele estava satisfeito, que nã o descon iava de nada. Que motivo teriaparasuspeitardealgumacoisa? Elaeraumaexcelentepupila. Traı́-lo seria difı́cil, poré m necessá rio. Era assimquetinhadeser. Elesaindaestavampercorrendo o amplo corredor do primeiro andar quando Dominika avistou, indo na direçã o deles, Sergei Matorin, o carrascodaLinhaF.Desviouoolhar. Teve a impressã o de que ele nã o a reconheceu, mas ainda assim icou com medo. Segundos depois se viu tomadadeumaraivadifusaqueafez calcularadistâ nciaentreseusdedos eosolhosdele.Receouqueogeneral percebessesuafú ria.Imaginouseele també meracapazdeverorastrode sangue que o monstro deixava atrá s desi,anuvemescuraquepairavaem torno de sua cabeça; se podia ouvir, como ela, o tilintar da foice que ele escondia à s costas. Matorin e seu olholeitosopassaramdiretoporelae seguiram seu caminho. Assim como umaarraiaroçaofundodomaraose deslocar, o homem roçava a parede enquanto caminhava, deixando em sua esteira uma espiral de fumaça negra. Dominika nã o resistiu ao impulsodeolharparatrá s.Arrepiouseaoveroscabelosqueraleavamna nuca do monstro, os dedos que se fechavamsobreonada,saudososdo facã o que estavam acostumados a segurar. *** Eram oito horas de uma noite chuvosa quando o Mercedes o icial deVanyaEgorovatravessouoPortã o de Borovitskaya, na face oeste do Kremlin. Com os pneus crepitando sobre os paralelepı́pedos, o automó vel passou pelo Grande PalácioepelaCatedraldoArcanjoSão Miguel, depois dobrou à esquerda, passou pelo Pré dio Catorze, contornou a modorrenta e deserta praça Ivanovskaya e atravessou o estreito portã o que dava acesso ao pá tio interno do pré dio amarelo do Senado, por im estacionando à penumbra de uma entrada de veı́culos coberta. Na ú ltima vez em queeleestiveranointeriordaqueles murosforapararecebersuasegunda estreladetenente-general.Agorasua presençaalieraparaprovarquefazia jusaela. Um assistente bateu apenas uma vez à porta, abriu-a e recuou paraqueEgoroventrasse.Ogabinete do presidente era relativamente pequeno,comumbonitotrabalhode boiserie nas paredes. A luz era baixa nas arandelas. Um belo conjunto de utilitá rios em má rmore verde era a ú nica coisa que se via sobre a mesa presidencial — nenhum documento, nenhumclippingdenotı́cias,nenhum monitor.Nafrentedessamesahavia outra, bem menor que a primeira e ladeada por duas cadeiras grandes. Putin estava sentado numa delas, comasmã oscruzadasnocolo.Vestia um terno escuro com uma camisa branca, sem gravata, e Egorov teve que ingir nã o notar que ele estava apenas de meias, os sapatos abandonadossobacadeira. O general sentou-se à frente dele. — Boa noite, presidente — falou. Como sempre, o rosto de Putin era uma má scara indecifrá vel, embora fosse possı́vel ver um vislumbredecansaço. — General Egorov — cumprimentouele,ebaixouosolhos cristalinosparaoreló gioparadepois cravá -los em Vanya, como se dissesse: “Seja breve.” Impostando a voz,Egorovcomeçou: — O manual de comunicaçõ es adquirido dos americanos continua sendo uma rica fonte de dados crı́ticos e oportunidades futuras. — Putin meneou a cabeça sem nem piscar. — Nosso principal ativo em Washington, Swan, vem fornecendo informaçõ es té cnicas bastante abrangentes sobre os veı́culos espaciais das Forças Armadas americanas. Os especialistas da nossapró priaforçaespacialatestam que as informaçõ es sã o autê nticas e bastante valiosas. Meurezident em Washington... —Meurezident,você quisdizer —interrompeuPutin. — Claro. Seurezident, o general Golov, está operando Swan com o má ximo de cuidado — prosseguiu Egorov, agora pisando em ovos, ciente do humor em que se encontravaopresidente. Um segundo assistente entrou com uma bandeja de chá fumegante com dois copinhos de cristal abrigados em suportes de prata iligranada e as respectivas colherzinhas equilibradas na borda doscopos,umcubodeaçú caraolado decadaum.Deixouabandejasobrea mesa de reuniã o, junto com uma travessa de prata commadeleines. Ambas estavam fora de alcance e permaneceramintocadas. — Prossiga — ordenou Putin, assimqueoassistentesaiu. — Continuamos procurando o informante operado pela CIA, provavelmente no SVR. E só uma questã o de tempo até que o encontremos. —Eimportantequeencontrem — disse Putin. — Isso é mais uma prova de que os americanos ainda estã o tentando desestabilizar nosso governo. — Sim, senhor presidente. E duplamenteimportante,umavezque esse informante coloca em risco a segurançadosnossosativos... — Como Swan, por exemplo. Nada deve acontecer a ela, nenhum komprometirovat, nenhum revé s, nenhumescândalointernacional. Egorovachouinteressantequeo presidente soubesse que Swan era uma mulher. Tinha certeza de que a informaçãonãosaíradesuaboca. — Já identi icamos o agente da CIA que opera o traidor. Estou iniciandoumaoperaçãocontraele. — Tudo isso é muito interessante — comentou Putin, um ex-o icial da KGB —, mas você nã o precisa da minha autorizaçã o pra conduziressetipodeoperação. — Trata-se de umakonspiratsia complicada — explicou Egorov, dandovoltasaoassunto.—Pretendo despachar uma de nossas agentes para recrutar o americano e neutralizá -lo. Quero o nome do traidor. Algo mudou na expressã o do presidente, mas Egorov nã o soube muito bem como interpretar o que viu. Uma espé cie de prazer por tabela?Umacentelhadedesconforto epreocupação? — Quero discernimento e moderação—dissePutin.—Nãovou permitirosequestrodesseagenteda CIA. Isso nã o se faz entre serviços rivais.Asconsequê nciaspodemfugir aonossocontrole. Embora falasse com a voz mansa,aliestavaumanajaprestesa destilar seu veneno. Na mesinha lateral, um reló gio de porcelana Fabergé bateu a meia hora. O chá servido já esfriara havia muito tempo. — Naturalmente — retrucou Egorov. — Fique tranquilo, presidente. Estou tomando todas as precauçõ es. Alé m da minha supervisã o, um o icial sê nior está acompanhandotodaaaçã odecampo contraoamericano. —Essajovemagentequevocê s pretendem usar... Parece que foi submetida a uma investigaçã o de contrainteligência,nãofoi? —Foi,sim,senhor. —E,senã omefalhaamemó ria, é sua sobrinha, certo? Filha de seu falecidoirmão? Putin o encarava de forma implacável. —Laçosdesanguesã oamaior garantiade idelidade—foisó oque Egorov encontrou para dizer. Sabia muitobemoquesepassavaali:uma demonstraçã o de onisciê ncia e autoridade com o ú nico im de assustar e fascinar os subordinados. Stalinfaziaamesmacoisa.—Elavai obedeceràsminhasordens. —Queela recrute o americano, massemmedidasextremas.Issoestá foradequestão—decretouPutin. Era ó bvio que ele sabia que a alternativa da violê ncia fora discutida. — Como o senhor quiser, presidente—respondeuEgorov. Dali a nove minutos os passos de Egorov já ecoavam na suntuosa escadaria do pré dio. Ele ainda pensava nos riscos terrı́veis que andavam de braços dados com a ambiçã o quando se acomodou no banco traseiro do Mercedes. Ao atravessar os arcos da torre Borovistskaya,nã oreparounooutro carro o icial, menos luxuoso, que vinhanosentidocontrá rio,indopara o mesmo pré dio que ele acabara de deixar. Tampouco sabia que dentro deleiaodiminutochefedaLinhaKR de contrainteligê ncia, Zyuganov. Alexei AS MADELEINES DO KREMLIN Preparar uma massa genoise: misturar ovos e sal até engrossar; aos poucos, acrescentar açúcar e extrato de baunilha; juntar farinha e beurre noise e (manteiga aquecida até começar a ficar amarronzada); formar uma massa espessa. Verter a massa num molde para madeleines untado e polvilhado com farinha e assar em forno médio até que as bordas estejam douradas. Desenformar e deixar esfriar. CAPÍTULO 27 STEPHANIE BOUCHER (SENADORA Democrata pelo estado daCalifó rnia)nã oestavaacostumada a dirigir ou estacionar o pró prio carro,nemaatravessarumcorredor sem a presença de um sé quito, ou mesmo abrir as pró prias portas. Na posiçã o de vice-presidente do SSCI (comitê especial do Senado para assuntos de Inteligê ncia), dispunha de uma falange de estagiá rios e assistentes para carregá -la numa liteira se preciso fosse. Naquele momento em particular, qualquer ajuda seria bem-vinda. O para- choque dianteiro de seu carro se colou à traseira do automó vel da frentecomumbaqueseco.Quemfoi o desgraçado que inventou a baliza? Stephanie girou o volante, pisou de levenoacelerador.Asrodastraseiras bateram no meio- io e as dianteiras continuaramapontandoparaomeio darua.Elaesmurrouovolanteesaiu da vaga para recomeçar a manobra de um â ngulo melhor. O carro que vinhaatrásbuzinou. — Estaciona logo ou dá o fora! —berrouomotorista. A senadora baixou a janela e gritoudevolta: —Vásefoder! Sabia que precisava ser mais discreta. Era um rosto conhecido no Capitó lio, praticamente uma celebridade, mas nem por isso iria levar uma buzinada e deixar barato. Por im, na quarta tentativa ela conseguiu entrar na maldita vaga. Estava na Rua N de Washington. Anoitecia. Ao trancar o carro, notou que a roda traseira tinha subido no meio- io.Paciência, pensou, e saiu pela calçada, pisando no tapete de folhas caı́das, margeando as elegantes fachadas de arenito com suasportasgeorgianaselanternasde vidrobisotado. Stephanietinha40anos.Baixae magra, tinha o porte de um menino, com pernas fortes e torneadas. Os cabelos louros iam até os ombros, emoldurando um penetrante par de olhos verdes e um nariz delicado. A boca era o ú nico traço que nã o contribuı́a para sua imagem de mulhervibranteepoderosa:pequena e ina,tantopodiamorderquantose crisparnumbeicinhodengoso. Stephanie vinha construindo umacarreiraascendentenapirâ mide de poder de Washington. Era uma senadoramuitojovem,massabiaque izera por merecer seu lugar no comitê especial. Preparara-se com a inco e muitas horas de trabalho para estar ali. Participava de outros comitê s, mas nenhum deles era tã o prestigioso quanto o SSCI. Conquistara a vaga de congressista doze anos antes, apó s uma acirrada campanha no sul da Califó rnia, um distrito repleto de fornecedores do setor de defesa e tecnologia aeroespacial.Comisso,desenvolvera um talento especial para alocar verbasorçamentá riasesacudirsacos dedinheirodiantedonarizdequem lhe interessasse. Ascender ao posto de senadora havia sido o passo seguinte mais ló gico, e agora, no segundo mandato, recé m-nomeada paraavice-presidê nciadoSSCI,tinha poder su iciente para in luenciar na legislaçã o, na distribuiçã o de verbas ena iscalizaçã odoDepartamentode Defesa, do Departamento de Segurança Interna e da Comunidade de Inteligê ncia. Corajosa, impaciente e impositiva nas audiê ncias do comitê , Stephanie tolerava o universo da Defesa Nacional apenas emrazã odaforçaqueeleinjetavano comé rcio em seu estado natal. Ela també m reconhecia a blindagem polı́tica do Departamento de SegurançaInterna,masintimamente viaaquilocomoumagrupamentode joõ es-ningué m que operavam num mundoquemalconheciam. No entanto, era para as dezesseisagê nciasindependentesda Comunidade de Inteligê ncia que Stephanie Boucher direcionava a maior parte de seu fel. Os ó rgã os de inteligê ncia de segurança como a Agê nciadeInteligê nciadeDefesaea DH nã o a preocupavam: em sua opiniã o,eramumbandodesoldados carreiristas muito mal preparados para as complexidades da inteligê ncia externa. O setor de inteligê ncia e pesquisa do Departamento de Estado, o INR, até contava com alguns analistas brilhantes, mas nos ú ltimos tempos eramrarasasvezesqueconseguiam desvendar qualquer segredo; aquela gente precisava sair mais ao sol, produzirumpoucomaisdevitamina D. O FBI era a noivinha contrariada: obrigados a exercer um papel que nã o desejavam e tampouco compreendiam, o da inteligê ncia interna, eles inevitavelmente resvalavam para o feijã o com arroz de suas origens policiais, preferindo perseguir adolescentes á rabes em Detroit a construir uma só lida rede defontesdelongoprazo. Masnenhumadessasagê nciasa incomodavatantoquantoaCIA.Nada a irritava mais do que se ver diante daqueles o iciais de inteligê ncia durante as reuniõ es do comitê , refestelados em suas cadeiras, ora muito sé rios, ora muito evasivos. Stephanie sabia que estavam mentindosemprequeabriamaboca paradizeroquefosse,apesardetoda a irmezaquetentavamaparentar,de todos os sorrisos, caras e bocas. Sabia que os papé is que traziam tranca iados em seus malotes de segurançasó serviamparamascarar a verdade. “Os ié is operá rios da inteligê ncia”, eles diziam. “O nosso bom e velho serviço clandestino”, enchiamabocaparafalar.“Opadrã o ouro das operaçõ es de inteligê ncia”, gabavam-se. Eram frases assim que faziamStephanieBouchersubirpelas paredes. *** Ela ainda estava em seu primeiromandatoquandoconhecera Malcolm Algernon Philips, um veterano e lobista inveterado de 75 anos, renomado an itriã o, grande intermediador de postos e nomeaçõ es nos bastidores de Washington. Philips conhecia a cidade inteira. Mais importante que isso, conhecia, em detalhes, os segredos de todos. Seus muitos admiradores icariamescandalizados ao saber que aquele respeitá vel senhor de cabelos brancos, sempre impecavelmente vestido, era, desde meadosdosanos1960,umtalentoso caçador de talentos para a KGB, recrutado como um jovem playboy quando ainda era Krushchev quem dava as cartas. Embora fosse pago pelos russos a peso de ouro, Philips sedispuseraa ajudá -los apenas pelo gosto da fofoca, pelo prazer de revelar segredos, de trair con ianças e de desfrutar de todo o poder que advinhadisso.Nã oseimportavanem um pouco com o que os russos pudessem fazer com suas informaçõ es. Os russos, por sua vez, tinham uma paciê ncia sem limites em relaçã o a ele. Jamais o pressionavam para desvendar segredos, subornar algué m ou surrupiar algo. Contentavam-se em deixá -lo localizar candidatos a recrutamento nas entranhas de Washington.Philipsjá estavanaquela estrada havia quarenta anos, e era muitobomnoquefazia. Numadesuasfestasdeinverno em sua casa em Georgetown, suas antenas sempre ligadas detectaram na jovem congressista da Califó rnia algoqueiaalé mdaquelecoquetelde ambiçã o, vaidade e ganâ ncia que se via em quase todo mundo no Capitó lio. Suas suspeitas foram con irmadas seis semanas depois, durante um almoço particular com ela.Philipsdisseaseuoperadorque talvez tivesse encontrado a peça perfeita para a engrenagem da KGB. Na sua avaliaçã o, a mulher era desprovida de consciê ncia, simplesmente nã o tinha o há bito de se perguntar se algo estava certo ou errado. Pá tria, Deus, famı́lia, nada disso importava para ela. Preocupava-se apenas consigo mesma. Se pudesse ganhar alguma coisa espionando para a Rú ssia, StephanieBouchernã opensariaduas vezesantesdeaceitarumconvite. Ela fora criada na regiã o de South Bay, mais precisamente em Hermosa Beach, surfando todos os dias,fumandoeevitandoosmeninos de ouro que gravitavam a seu redor. Seu pai era um banana, nã o dava a menorimportânciaàsescapadelasde sua fogosa mulher. Stephanie nã o tinha nenhum respeito nem por um nem pelo outro. Mas quando estava com 18 anos veio a surpresa: o pai, subitamentetomadodebrios,matou a mulher a tiros ao encontrá -la na cama com o entregador da Fedex. Stephanie viveu maus bocados durante esse perı́odo, mas en im se reergueu, cursou o bacharelado na UniversidadedaCalifó rniadoSul,fez mestrado, depois se envolveu na polı́ticalocal,cadavezmaisconvicta dequeaamizadeeraumsentimento supervalorizado e que relacionamentos só valiam a pena quando serviam de trampolim para algo melhor e maior. Tinha herdado boa parte dos genes da mã e e, junto com eles, a misantropia e o gosto pelo sexo sem compromisso. Com o ingresso na polı́tica ela precisou se controlar, mas os desejos continuavam ali, logo abaixo da superfície. A rezidentura em Washington pesquisou a fundo seu alvo de recrutamento. Um quadro foi se formandoaospoucos,etudooquese via nele era consistente com o que Malcom Philips já reportara. A operaçã o de recrutamento foi iniciada ao mesmo tempo que uma sucessã o de agentes do SVR continuava a vasculhar a vida da senadora. No entanto, somente quando foi abordada pelorezident Anatoly Golov, com seus modos so isticados, sua fala mansa, sua ironiacativante,elasedispô sadara primeiraespiadelanasaladotesouro russo. Os argumentos ilosó icos em geralempregadosparaconvencerum alvo nã o encontraram muito eco na jovemStephanie.Elanã oestavanem umpoucointeressadanoconceitode amizade entre as naçõ es, muito menos nos benefı́cios gerais de um equilı́brio maior entre as duas grandes potê ncias mundiais. Percebendo isso, Golov viu que nã o precisava perder seu tempo. Sabia muito bem o que ela queria: uma carreira,influência,poder. Ele encomendou à central uma sé rie de aná lises globais muito bem fundamentadas para depois compartilhá -las com a senadora como “tó picos de discussã o”: relaçõ es internacionais; a polı́tica mundialdopetró leoedogá snatural; os desenvolvimentos no sul da Asia, noIrãenaChina. Informada por esses relató rios especiais, que abordavam questõ es econô micas, militares e polı́ticas, a senadoralogocomeçouasedestacar com intervençõ es sempre pertinentes no SSCI, e o presidente, impressionado com o que via, nã o hesitou em lhe oferecer a vicepresidê ncia do comitê . Para Stephanie Boucher, aquele era apenas o primeiro degrau da longa escadaqueelapretendiasubir. Sua relaçã o com os russos se fortaleceu com o tempo, mas Stephaniejamaisperdiaumanoitede sono por se ver envolvida numa operaçã odeespionagem.Comentava sobreasaudiê nciaseosassuntosdo SSCIduranteosjantarescomGolove via naquilo uma simples troca, natural na vida de qualquer polı́tico de Washington. Quanto aos pagamentos que recebia com frequê nciacadavezmaior,Stephanie tinha plena convicçã o de que eles eram mais do que merecidos. Fazia muitotempoqueelajáultrapassarao ponto do qual nã o havia mais volta, masnã oeraprecisolembrá -ladisso. Em sua cabeça ela estava cuidando da pró pria carreira, preparando-se para galgar novos degraus, correndo atrásdeseusobjetivos. O SVR agora tinha uma congressista americana como informante:Swan. *** Anatoly Golov aguardava a senadora Boucher numa das mesas dojardimdosfundosdorestaurante Tabard Inn, na Rua N. Luzinhas minú sculas se enroscavam nos arbustos dos vasos espalhados por ali.Olugareracercadoporummuro alto,eosruı́dosdotrâ nsitodistante podiam ser confundidos com os de uma praia à noite. Fazia apenas um ano que Golov era orezident de Washington, e era ele, em pessoa, quemoperavaSwan.Comumavasta experiê ncia, tinha plena consciê ncia de que ela talvez fosse a fonte de informaçõ es mais valiosa que a Rússiajátivera. Apesar disso, nã o gostava da mulher, tampouco da pró pria funçã o de operador. Na verdade, Swan lhe metia um pouco de medo. Ele se lembrava de uma é poca em que os informantes eram recrutados por razõ es puramente ideoló gicas, pela crença no comunismo mundial, pelo sonho de um Estado socialista perfeito.Agora,noentanto,tudonã o passava de um grande circo de horrores. Swan era uma sociopata ambiciosaeincontrolável. Ele endireitou os punhos do paletó . Golov era alto, com uma postura altiva, imperial, e usava os cabelos ralos e grisalhos penteados paratrá s.Onarizeragrandeereto,e o maxilar, delicado. Tinha os traços de um Romanov, mas isso já nã o tinha nenhuma importâ ncia, nem mesmo para o SVR. Ele estava vestindoumpaletó dedoisbotõ esda marca italiana Brioni, escuro e de caimento perfeito, com uma camisa branca impecavelmente engomada e uma gravata Marinella azul-marinho com minú sculas bolinhas vermelhas. Ossapatoserampretos,dagrifeTod Gommino,easmeias,cinza-chumbo. Golov poderia muito bem ser confundido com um conde europeu, talvezdefé riasnosEstadosUnidos.A ú nicanotadissonanteeraosinetede ouro que trazia no mindinho esquerdo. A joia lhe dava um ar misterioso,pareciaesconderalguma história. Ele estava terminando seu jantar: fricassê de cordeiro com couve-vermelha salteada em vinagre balsâ mico e purê de batatas com queijo,tã osaborosoquantooquejá comeranosuldaFrança.Emboranã o tivesseohá bitodebeberemserviço, precisava se fortalecer, ou se anestesiar, com alguma coisa antes que a senadora chegasse. Ele terminou sua segunda taça de Chardonnay e pediu umespresso duplo. Enquanto os pratos eram recolhidos, Golov mais uma vez lembrou a si mesmo que Swan era um ativo importante demais para que se perdesse tempo com tentativas de discipliná -la, controlá laoumoldá -laaospadrõ esdoSVR.O que Stephanie queria, o serviço concedia. Ela vinha entregando minutas das reuniõ es secretas do SSCI, centenas de pá ginas digitais com o testemunho de o iciais de defesa e inteligê ncia sobre armas novas, operaçõ es de inteligê ncia e polı́ticas nacionais, coisas que a central jamais vira antes, que nem sequer sabia existirem. Em troca o SVRaprovaraumsalá rioiné ditonos anais do serviço russo, cuja avareza eradeconhecimentogeral. Tudo isso fazia dela algo bem maior do que uma simples informante. Stephanie Boucher era uma superinformante, um agente de in luê ncia em potencial, uma versã o real do Candidato Manchuriano, de RichardCondon.Golovjá começaraa prepará -la para um signi icativo avançonacarreirapolı́tica,oquenã o chegavaasernovidade.Aolongodos anos, os russos haviam feito coisas semelhantes, ainda que de forma indireta, por outros membros do Congressoamericano.Infelizmente,a maioria desses legisladores depravados acabara batendo com o carro num poste, derrapando numa ponteparacairnasá guascaudalosas de um estuá rio ou simplesmente se afogando no espelho d’á gua do Capitólio.Comparadaàquelespatetas beberrõ es, Swan nã o tinha nenhum tipo de vulnerabilidade. Melhor ainda, possuı́a um potencial muito maior do que qualquer um deles. Moscoutinhaplenaconvicçã odeque umdiaelapoderiaocuparumapasta de ministé rio, uma diretoria na CIA ou até mesmo a vice-presidê ncia da República. Sua produçã o era impressionante, e o melhor ainda estava por vir. Swan encontrava-se prestes a ter acesso a um dos programas militares mais importantes e con idenciais do Pentá gono, dedicado ao desenvolvimento de um veı́culo global orbital, conhecido pela sigla Glov. Algumas informaçõ es preliminares já repassadas por ela haviamdeixadoosrussosdecabelos em pé . Esse novo veı́culo seria uma plataforma hı́brida concebida para a interceptaçã odesinaiseletrô nicose suporteGPS,devidamentecapacitado para se defender em ó rbita contra saté lites assassinos. O que mais alarmava Moscou, no entanto, era a capacidade de um Glov de lançar armas do espaço contra alvos na Terra. De forma direta. Nada de aeronaves militares, reabastecimento, radares, tecnologiasdeinvisibilidade,mı́sseis superfı́cie-ar, pilotos perdidos, advertências. Avaliado em mais de um bilhã o de dó lares, esse novo projeto do Pentá gono havia sido entregue inteiramentenasmã osdaPath inder SatelliteCorporationdeLosAngeles, uma empresa localizada no corredor high-tech que ia da Airport Road à Base Aé rea de El Segundo. Por coincidê ncia, era ali que també m icava o antigo curral eleitoral de StephanieBoucher. É, pensou Golov,o melhor está mesmoporvir. A senadora atravessou rapidamenteolobbydoTabardInne se espremeu entre as pessoas para passar pelo corredor estreito, cheio de fotos nas paredes, que levava ao restaurantedohotel.Foiaté ojardim nos fundos. Avistou Golov numa das mesas mais recuadas e se adiantou na direçã o dele. Golov se levantou, tomou a mã o dela e se curvou à maneiraeuropeiaparaaproximaros lá bios da pele, sem de fato chegar a beijá -la. Lembrava-se do que lera num dos primeiros relató rios sobre os há bitos da mulher e sabia o que ela gostava de fazer com aquelas mãos. — Boa noite, Stephanie — cumprimentou. Chamava-a pelo primeiro nome a im de criar certa familiaridade, evitandousaro“senadora”para icar emalgumlugarentreaintimidadeea cordialidade. Nunca sabia em que estadodehumoraencontraria. — Como vai, Anatoly? — retrucouela.Emseguidasesentoue apoiou os cotovelos na mesa. — Me desculpe,masvoudiretoaoassunto: você já recebeuumarespostadoseu pessoal? Pegou um cigarro da bolsa e Golov se adiantou para acendê -lo com um isqueiro Bugatti, ino como umlápis. — Repassei seu pedido, Stephanie — disse o russo —, junto com minha recomendaçã o para que ele fosse atendido de imediato. A resposta deve chegar nos pró ximos dias. As mã os dele estavam casualmente pousadas na mesa. O garçom chegou com o café que ele solicitara e Stephanie aproveitou parapedirumuísquecomsoda. — Fico muito aliviada por você ter recomendado o pagamento, Anatoly—falouStephanie.—Nãosei oquefariasemoseuapoio. Que mulherzinha insuportável, pensouGolov.Sabia,noentanto,que a central acataria o pedido dela sem hesitar. Pagaria cinco vezes mais pelas informaçõ es que tinha a dar. Nos primeiros discos Stephanie já repassara os relató rios entregues pela Path inder Satellite ao SSCI, os quais haviam deixado os pesquisadores russos de queixo caı́do. Tanto a Path inder quanto o Departamento de Defesa continuariamsubmetendorelató rios, manuais e software para a avaliaçã o do SSCI, e esse material teria um valorincalculávelparaosrussos. — Stephanie, você sabe que pode sempre contar com o meu apoio. Fique tranquila, a central aprovará o seu pedido, e com muito prazer. Golovresistiuaoimpulsodedar tapinhastranquilizadoresnamã oda senadora. — Otimo, Anatoly, porque hoje fomos informados de que a Path inder está prestes a concluir a primeira bateria de testes com alguns dos circuitos de navegaçã o e artilharia. Exigi que eles façam relató riosdeprogressocomamaior regularidade possı́vel. Pretendo visitarasinstalaçõ esdaempresaem Los Angeles pelo menos uma vez a cada trê s meses. O projeto ainda precisará derecursosorçamentá rios por mais uma dé cada. — Stephanie soprouumjatodefumaçaparaoalto. —Entã o,casoosseuscamaradasem Moscou nã o queiram pagar — continuou um tanto alto demais, na opiniã odeGolov—,tudobem,nosso assuntoestá encerradoecadaumvai proseulado. Aosolhosdeleissoeramaisum exemplodaarrogâ nciadamulher,do mundo inconsequente em que ela vivia, do fato de que na cabeça dela nemsequerexistiaapossibilidadede que a central nunca a deixaria “partir”.Aescolhanã oeradela,ponto final.Golovtentouimaginarareunião em que ela seria informada de que teria de continuar espionando para Moscousobpenadeserdenunciada. — Claro que vamos prosseguir comanossacolaboraçã o—garantiu ele, conciliatoriamente. — Nem pense o contrá rio! Vamos continuar com toda a segurança, e você permanecerá deixandonossopessoal boquiaberto, e nó s continuaremos a remunerá -la pelos seus esforços, e sua carreira continuará avançando a pleno vapor. — Golov já descartara muito tempo antes a tentaçã o de acrescentar argumentos de natureza ideoló gica. Bastava uma simples enunciaçã o dos fatos: “Você repassa osseussegredos,enó spagamospor eles.”—Noentanto—prosseguiu—, eu gostaria de retomar a conversa quetivemosdaú ltimavezarespeito da sua segurança. Sei que você acha desnecessá rio, mas insisto que me escute. Estou fazendo isso pelo seu bem, Stephanie. E muito importante quemedê ouvidos.—Eletomouum gole do café ao mesmo tempo que erguia os olhos para Stephanie, a tempo de vê -la soprar a fumaça do cigarro com uma expressã o de enfado. — Você é uma igura muito conhecida em Washington. E em certos cı́rculos, també m sou reconhecido como um diplomata russo de alto escalã o. Estes nossos encontros pú blicos sã o muito perigosos.Opessoal de Moscou está preocupado.Eu estou preocupado. Precisamos dar um jeito nisso — concluiucomfirmeza. Eles vinham se vendo com demasiada frequê ncia, abusando da sorte.Stephaniedeumaisumtrago. — Essa ladainhade novo? — retrucou ela, batendo as cinzas do cigarro. — Já falamos sobre isso, penseiquetivessesidoclara. —Eusei,Stephanie,masinsisto que você reconsidere. Em primeiro lugar, precisamos começar a nos encontraremlocaismaisreservados, longedoolhardoscuriosos.També m temos que reduzir a frequê ncia desses encontros e substituı́-los pelascomunicaçõesimpessoais. Estreitando os olhos, Stephanie disse: —Anatoly,presteatençã o.Eujá falei antes e vou repetir. Nã o vou icar rastejando debaixo de uma á rvoreimundanumparquequalquer à meia-noite, procurando um pacote que você tenha deixado. Nã o vou começar a andar por aı́ com esses transmissoresrussosnabolsa,esses tijolõ esjurá ssicosquecedooutarde vã opegarfogoedispararoalarmede incê ndio do Senado. — Erguendo a mã o: — Nem se dê ao trabalho de defender a tecnologia russa. Estou careca de saber que as suas engenhocas de espionagem nã o chegam nem aos pé s das nossas! — Rilhandoosdentes:—Você só pode e s t a rdelirando se acha que vou passar a me encontrar com algum o icialzinho de primeira viagem recé m-chegado de Abkhazia com as botassujasdeesterco.Porquediabo continuabatendonamesmatecla? Até começar a receber os relató rios do SVR ela nem sequer descon iava da existê ncia de Abkhazia,muitomenosonde icavao lugar. Golov sabia muito bem como operarinformantes,masaquelecaso era diferente de qualquer outro que já tivera nas mã os. Tinha plena consciê ncia de que Egorov, em Moscou, andava preocupado com as questõ es de segurança. Ele, Golov, també m estava a lito. Mas recuar quandoasinformaçõ esemjogoeram tã o espetaculares simplesmente nã o erapossível. — Stephanie, sei que essas precauçõ es podem ser um tanto maçantes, mas acho que podemos chegarpelomenosaummeio-termo. Quetalisto?Nó scontinuamosanos encontrar,mas,sevocê concordar,de agoraemdiantevouprovidenciarum quarto de hotel fora de Washington para que possamos conversar em paz, sem pressa, com toda a privacidade do mundo. També m sugiro que passemos a nos ver com menos frequê ncia. Será muito mais seguro. —ForadeWashington?—disse Stephanie.—Ficoumaluco?Pramim já é bastante difı́cil conseguir uma noite livre aqui na cidade! Se está pensando que vou abandonar meus compromissosemeustaffprapegar umcarroemedespencarpraalguma espeluncadebeiradeestradasó pra que a gente possa conversar enquanto come um saco de salgadinhos, está muito enganado. Nã o vou fazer isso de jeito nenhum, Anatoly.Semchance. Golov itou Swan serenamente. Nã otinhaamenorintençã odebater o pé e continuar insistindo. O caso era importante demais. Sorrindo, condescendeu: —Stephanie,você é umamulher muitoracional.Observadora.Prá tica. Peço que concorde apenas com uma coisa.Vamoscontinuar, mas nã o em pú blico.Umavezpormê s,vamosnos reunir num hotel aqui mesmo em Washington. Uma suı́te. O hotel que você quiser. Pode até ser este aqui, embora os quartos sejam muito pequenos. Acho que podemos ser lexı́veis. Só estamos pensando na suasegurança. Stephanie assentiu distraidamente,depoisdisse: — Tudo bem, mas vamos começar com um quarto aqui. Este hotelzinho, sei lá , mexe comigo. — Encarando Golov, ela se debruçou sobreamesaparaqueeleacendesse mais um cigarro. Golov precisou recorrer a seus trinta anos de experiê ncia para disfarçar a repulsa quesentia.—Ah,maisumacoisa— prosseguiuStephanie.—Aindaquero o nú mero da minha conta em Liechtenstein. Peça a eles que liberem. — Stephanie, també m já conversamos sobre isso um milhã o de vezes. E contra o regulamento da centralquevocê tenhaacessoaessa conta. Por uma mera questã o de segurança. Asua segurança. Fique tranquila,odinheiroestá lá .Todosos depó sitos foram feitos. Você viu os extratos. —Anatoly,você é umanjo.Nã o vai icarbravocomigoseeuderuma d eprima donna e continuar insistindo,vai? Stephanieselevantou e jogou o cigarro no copo de uı́sque. Golov també m se levantou e desejou-lhe umaboanoite.Antesdesair,elatirou da bolsa um CD de capa preta e o jogoucomdisplicê nciasobreamesa, dizendo: —Minutasdeumaaudiê nciado comitê na semana passada sobre a Path inder.Eusó ialiberá -lasquando seusamiguinhosdeMoscou izessem o pagamento, mas gosto muito de você , Anatoly. Boa noite pra você também. Golov a viu sair com os cabelos lourosbalançandoacadapasso.Com todaacalma,guardouoCDnobolso do paletó e voltou a se sentar. O jardimestavavazioetranquilo.Pediu um conhaque e começou a compor mentalmente o cabograma que teria deenviaraEgorov. O FRICASSÊ DE CORDEIRO DE GOLOV Dourar cubos de cordeiro com pedaços de bacon e cebolas picadas. Regar com vinho branco e caldo de carne, temperar com sal, pimenta e noz-moscada e cozinhar por uma hora. Re rar os cubos de carne. Bater suco de limão, gemas de ovo e alho, depois misturar vigorosamente ao caldo com a ajuda de um batedor. Retemperar com sal, pimenta e noz-moscada, jogar sobre o cordeiro e decorar com raspas de limão. CAPÍTULO 28 VANYA EGOROV LIA O CABOGRAMAenviadodeWashington pelorezident Anatoly Golov, falando sobreateimosiadeSwanquantoaos procedimentosdesegurança.Acerta altura ele xingou entre dentes e considerou mandar Golov desacelerarocaso,talvezaté deixá -lo na geladeira por um tempo. Mas mudoudeideiaassimquecomeçoua ler a segunda pá gina da mensagem, naqualohomemresumiaoconteú do do CD repassado pela informante no ú ltimo encontro. Tratava-se de uma transcriçã o literal de uma audiê ncia secreta na qual representantes da Path inderSatteliteCorporationeda Força Aé rea americana prestavam contas ao SSCI sobre o projeto Glov: planilhasoperacionais,diagramasde Gantt, crité rios de avaliaçã o, parâ metros de produçã o, necessidades de terceirizaçã o etc. Estava tudo lá . A informaçã o era espetacular.Osté cnicosdaLinhaTjá estavam compondo um resumo executivo para apresentar ao Kremlin, ao Comitê Executivo da Duma e ao Ministé rio de Defesa. Egorov pretendia fazer a exibiçã o pessoalmente, já pensando nos pontosqueganhariacomisso. Mas aquele presente caı́do dos cé usvinhacorrendosé riosriscos.As medidas de segurança eram inadequadas, e o caso, vulnerá vel. O imperturbá vel e experiente Golov coordenava a megera ianque com absolutamaestria,masnadaqueeles izessem, nenhum conjunto de mé todos de espionagem ou arsenal de ferramentas té cnicas poderia garantir a segurança de Swan por tempo inde inido. Egorov acendeu umcigarrocomasmãosligeiramente trêmulas. Havia dois pontos principais de vulnerabilidade:primeiro,nadamais natural que Golov, na qualidade de rezident,fosseseguidoemonitorado de todas as formas possı́veis. Mas o homem era um pro issional excelente, cauteloso demais para deixar pistas a caminho de um encontro qualquer. Alé m disso, ele contava com uma equipe de contravigilantes que o seguia do mesmo modo que faria um grupo adversá rio, guardando as mesmas distâ ncias e usando as mesmas té cnicas tanto para detectar quanto para impedir qualquer tipo de açã o contraochefe.Swaneraoproblema maior.Amulherzanzavadeumlado para outro em Washington sem qualquer preocupaçã o com o anonimato, correndo o risco de ser vista na companhia de Golov ou de chamar atençã o sobre si desnecessariamente. Nã o havia té cnica de vigilâ ncia que desse jeito nisso. Na hipó tese de que algué m percebesseumvazamento,ou izesse uma denú ncia, os caça-informantes americanos sairiam da toca e nã o descansariam antes de encontrar o que procuravam. Mas de onde poderiasairessevazamento?Ora,do traidor que vinha passando informaçõ es ao agente da CIA NathanielNash.Egorovdeuumsoco na mesa. Só poderia ser algué m que estava ali mesmo naquele pré dio. Algué m que ele conhecia. Fora da lista restrita havia cerca de meia dú zia de o iciais graduados que tinham conhecimento de Swan e davam apoio ao caso. Vanya os enumerou mentalmente: Yuri Nasarenko, o homem com cara de coruja que era o diretor da Linha T (ciê nciaetecnologia),eoschefesdas Linhas R (planejamento operacional e aná lise), OT (suporte té cnico) e I (serviços de computaçã o). Esses o iciais sabiam que estavam dando suporteaumcasoexcepcionalesem dú vida podiam deduzir quem o coordenava, e de onde. Nã o conheciam a identidade de Swan, mas tinham acesso ao material repassado, e muita coisa podia ser inferida a partir dele. Apesar das patentesedaposiçã oqueocupavam, todos teriam de ser investigados, e para esta missã o tã o desagradá vel Vanya podia contar com o anã o AlexeiZyuganov,ochefedaLinhaKR (contrainteligência). Egorov sabia que a perspectiva de uma investigaçã o interna contra os pró prios colegas deixaria Zyuganov num profundo estado de ê xtase, talvez superá vel apenas pelo prazerqueeletinhaaocumprirsuas funçõ es nos porõ es de Lubyanka. Vanya convocou Zyuganov, autorizou-o a fazer sua devassa e o homenzinhofoiemborafelizdavida, acabeçafervilhandodeideias. Egorov olhou pelas janelas da sala, pensando em quem mais poderia colocar em risco a operaçã o Swan.Odiretor,claro.Talvezunsseis ou sete na Secretaria Executiva, no gabinete do ministro de Defesa e no gabinete do pró prio presidente. Quantoaessesnã ohaviaoquefazer. Quem mais? No â mbito do SVR só existia uma ú nica pessoa que se enquadrava no per il: Vladimir Korchnoi, diretor do Primeiro Departamento (Estados Unidos e Canadá ). Embora nã o tivesse acesso à operaçã o Swan, ele podia intuir tudooqueaconteciaemseupró prio territó rio. Eles eram bons amigos, tratavam-se por afetuosos diminutivos. Volodya Korchnoi era da velha guarda. No SVR nã o havia quem nã o gostasse dele, quem nã o con iasse nele. Alé m disso, o general tinha contatos em todos os â mbitos do serviço, o que lhe permitia ouvir muita fofoca. E era ele quem atualmente supervisionava a operaçãocontraNash. Egorov se deu conta de que poucotinhavistoKorchnoioufalado com ele nos ú ltimos tempos. Seu amigo estava icando velho, só faltavam alguns anos para pendurar as chuteiras. Mas quando isso acontecesse Egorov já estaria no topo da pirâ mide e poderia escolher umpupilodecon iançaparaassumir o Departamento das Amé ricas. Mesmo sabendo que era imprová vel — impossı́vel, na verdade — que a traiçã o viesse do Primeiro Departamento, ele decidiu acrescentar Korchnoi à sua lista de suspeitos. Apenas por idelidade à arte. Primeiro ele cuidaria do SVR, depois do americano Nash.Za dvumya zaitsami pogonish’sya ne odnogonepoimaesh.Quemcaçadois coelhos ao mesmo tempo nã o pega nenhum. *** Yuri Nasarenko, chefe da Diretoria T, aguardava à porta do gabinete de Egorov feito um servo à espera do chamado de seu senhor. Grande e desengonçado, mesmo aos 50 anos, usava um pesado par de ó culos de armaçã o metá lica, já bastante deformado em razã o do longo tempo de maus cuidados. Tinha uma cabeça grande, a testa protuberante, orelhas de abano e dentes excepcionalmente ruins, até mesmo para um russo. Era um homem cheio de tiques nervosos. Tinha uma verruga grande na ponta esquerda do queixo, a qual Egorov mirava sempre que estava à frente dele, evitando olhar para sua inquietude generalizada. Apesar dos inú meros cacoetes, Nasarenko era umté cnicobrilhante,algué mquenã o só compreendia a ciê ncia de um problemacomotambé meracapazde aplicar a teoria à s necessidades operacionais e à produçã o de inteligência. — Yuri, pode entrar. Obrigado por ter atendido tã o rá pido a meu chamado—disseEgorov,comoseo subordinado tivesse alguma escolha de datas e horá rios. — Por favor, sente-se.Aceitaumcigarro? Nasarenkoseacomodou,deude ombros,cruzouasmã ossobreocolo e dobrou os polegares duas vezes comarapidezdeumraio. — Nã o, obrigado, Dimitrevich—retrucouele. Ivan As sobrancelhas começaram a saltar, e no mesmo instante Egorov fixouoolharnaverruga. — Yuri, em primeiro lugar gostaria de dizer que você vem fazendo um trabalho exemplar com as informaçõ es que estamos recebendo sobre o veı́culo espacial dos americanos. Temos sido elogiados nos mais altos nı́veis do governo—começouEgorov. Mais precisamente,ele vinha sido elogiado pelo sucesso da operaçãoSwanatéomomento. — Fico feliz em saber, Ivan Dimitrevich — retrucou Nasarenko. Ele olhava direto nos olhos de Egorov, que o itava de volta com a impassibilidadedeumlutador.—As informaçõ es sã o realmente excepcionais. Meus analistas e eu estamos muito impressionados com obrilhantismodetodooconceito.A tecnologia espacial russa nã o ica nadaadever,é claro,masotrabalho dosamericanosé mesmomuitobom —emendou,eemseguidaseupomo deadãosaltitouduasvezes. — Concordo — falou Egorov, acendendo um cigarro. — Chamei-o para dizer que continue trabalhando nas suas aná lises e avaliaçõ es, mas també m para avisar que o luxo de informaçõ es será interrompido por umtempo.Nossafonte,sobreaqual nã o posso dar maiores informaçõ es, está passando por um momento difı́cil de saú de e icará ausente por ora. — Nada muito sé rio, eu espero —respondeuNasarenko,inclinandosenacadeira. A perna ligeiramente. direita tremia — Eu també m espero — concordou Egorov, de modo expansivo. — Uma crise de herpeszó ster pode ser bastante debilitante, mas estou con iante de que nossa fontevaiserecuperarlogo. —Otimo—falouNasarenko.— Vamosprosseguircom a aná lise dos dados que já temos, que sã o volumososobastantepranosmanter ocupadosporumbomtempo. — Perfeito — disse Egorov. — Seiquepossocontarcomvocê .—Ele se levantou e acompanhou Nasarenko até a porta, a mã o pousada nos ombros trê mulos do outro. — A aquisiçã o dessas informaçõ es é muito importante, Yuri, masa maneira de explorá-las talvez seja ainda mais fundamental. — Apertou a mã o dele e observou-o caminhar para os elevadores. Com a cabeça inclinada e andando meio de lado, Nasarenko lembrava uma marionetecomumdos iospartidos. —Seumhomemdessesviraespiã o, estamos ferrados — Egorov sussurrou para si mesmo, e voltou parasuamesa. *** BorisAlushevsky,chefedaLinha R, nã o era nenhum Yuri Nasarenko. Bateu apenas uma vez à porta de Egorov e entrou na sala com passos tranquilos, sem nenhuma afetaçã o. Aparentando mais do que seus 40 anos, tinha o aspecto de um homem reservado e perigoso. Era moreno, magro,comfacesencovadasemaçã s salientes. Os olhos eram amendoados,asmandı́bulas,fortese o nariz, grande. O rosto estava perfeitamente barbeado. Com sua densa cabeleira negra, lembrava um membro do Comitê Central do Quirguistã o recé m-chegado de Bisqueque. Na realidade, era natural deSãoPetersburgo. O chefe da Linha R (planejamentooperacionaleaná lise) era responsá vel pela avaliaçã o de todas as operaçõ es do SVR fora da Rú ssia.Apó sanosemLondres,falava inglê s com perfeiçã o. De volta a Moscou, resvalara para a á rea de planejamento e aná lise porque combinava com ele: era inteligente, tinha uma cabeça inquisitiva. No entanto, aos olhos de Vanya, era um tantoingê nuonasquestõ espolı́ticas. Di icilmente seria o traidor. Ainda assim,eleavaliaraosprocedimentos d arezidentura de Washington na operaçã o Swan, e fora ele quem aconselharaousodeumaequipede contravigilantes para proteger Golov durante seus encontros mensais. Portanto, Vanya també m colocaria sua idelidade à prova em uma armadilha. — Boris, sente-se por favor — disseEgorov.Tinhaapreçoerespeito por Alushevsky em razã o do pro issionalismo e da inteligê ncia dele. — Examinei as suas recomendaçõ es para um upgrade de segurança em Washington e nã o poderia estar mais de acordo com elas. —Obrigado,IvanDimitrevich— retrucou ele. — O general Golov é absolutamentepro issionalnasruas. Quasenuncaé submetidoà vigilâ ncia doFBI.Oraciocı́nioé que,naopiniã o dos americanos, um o icial da patente dele jamais coordenaria um informante pessoalmente. O que é umavantagemparanó s.Aequipede contravigilâ ncia é bem meticulosa e discreta. Vai fortalecer bastante a segurançadorezident. Ele pegou um cigarro da caixinha de mogno com tampa de tartarugaqueEgorovlheofereceu. —Ótimo—respondeuEgorov. — Alé m disso, os té cnicos da rezidentura estã o monitorando com cuidado especial as frequê ncias de vigilâ ncia do FBI, procurando sobretudo anomalias nos procedimentos de rá dio. Uma mudança de tá tica pode indicar um aumento de interesse por parte da oposiçã o — explicou Alushevsky em termos bem simples, sem saber ao certo se Egorov captava todas as sutilezasdojogo. — Boris, gostaria que você continuasse monitorando as condiçõ es de segurança e nossas medidas de contrainteligê ncia. Vamos ter um tempinho extra pra avaliartodaasituação. — Como assim, Ivan Dimitrevich? — perguntou Alushevsky. — Nã o posso discutir os detalhes do caso do general Golov, sinto muito, mas tenho certeza que você entende,nã oé ?—disseEgorov. — Nã o é uma questã o de falta de con iança em você , isso eu posso assegurar. — Claro que entendo — retrucou Alushevsky. — Segurança é segurança. Nã o havia nenhum traço deressentimentoemsuavoz. —Oquepossolhedizeré quea fontedeGolovprecisoususpenderas atividades por um tempo. Um problema de saú de. Bastante grave, naverdade. Egorov itava Alushevsky com expressãoserena. — De quanto tempo será esse hiato? E importante que o general Golovnã opareçainativoderepente. Eprecisoqueelesimuleexatamente o seu nı́vel anterior de atividade. Qualquer mudança de há bito poderá alertar a oposiçã o, e isso será duplamente perigoso quando o generalretomaroscontatos. — Nã o sei quanto tempo vai duraressasituação.Arecuperaçãode umacirurgiadepontedesafenapode ser muito lenta ou muito rá pida. Vamosterdeesperarpraver. — Com sua permissã o, eu gostaria de rascunhar mais algumas ideiasparaasuaavaliação.Depois,se forocaso,repassoaogeneralGolov. —Claro,claro.Façaisso.Mande pra mim assim que terminar — retrucou Egorov, levantando-se. — Repito:estoumuito satisfeito com o seu trabalho. Sua che ia tem sido exemplarnaLinhaR. ConduziuAlushevskyaté aporta eapertouamãodele. *** Vladimir Adreiyevich Korchnoi, chefedoDepartamentodasAmé ricas doSVR,chegoucomvinteminutosde atraso à antessala do gabinete de Egorov. Dimitri, assistente pessoal do vice-diretor, saiu de seu cubı́culo parasaudá -lo.Percebendooolharde censura das duas secretá rias, Korchnoi cumprimentou-as pelo nome,sentou-senaquinadamesade uma delas e contou uma histó ria, os olhos escuros tremeluzindo sob as sobrancelhasgrossas: — Certa vez circulou a estatı́sticadequeosmaioresı́ndices de adulté rio aconteciam, em primeiro lugar, entre os atores e atrizesdecinema;emsegundo,entre os atores e atrizes de teatro; em terceiro,entreosagentesdaKGB.Ao ouvir isso, algué m reclamou: “Faz trintaanosqueestounaKGBejamais traı́minhamulher!”Eooutro:“Poisé porcausadepessoascomovocê que estamosemterceirolugar!” As secretá rias e Dimitri riram. Ele encheu um copo com a á gua de uma garrafa que icava sobre a bancada e o entregou a Korchnoi. Uma das secretá rias já ia contando uma segunda piada quando o vicediretorentreabriuaportadesuasala. As duas mulheres rapidamente retomaram o trabalho. Dimitri acenoucoma cabeça para Korchnoi, depoisparaochefe,esumiudooutro lado de seu cubı́culo. Egorov correu osolhospelaantessalaecomentou: — Quanta animaçã o por aqui. Nã o é à toa que o trabalho anda sempreatrasado. — A culpa é toda minha — interveio Korchnoi, ingindo humildade. — Atrapalhei o trabalho delascomumahistó riaridı́cula,uma totalperdadetempo. — Sem falar nos vinte minutos de atraso — disse Egorov. — Entã o, será que agora teria um tempinho pramim? Deu as costas a todos e voltou para o interior da sala. Korchnoi meneouacabeçaparaassecretá rias, seguiu o homem e fechou a porta à s suas costas. As duas mulheres sorriramumaparaaoutraevoltaram aoqueestavamfazendo. Egorovseacomodounosofá de couroclaronofundodasalaedeuum tapinha na almofada, sinalizando para que Korchnoi sentasse a seu lado. —Volodya,poracasovocê anda lertandocomasminhassecretá rias? — indagou. — Até posso imaginar qualdelasvocê prefere,mastambé m já posso adiantar que as duas sã o muitoboasdecama. — Vanya, já estou velho e cansadodemaispralevarquemquer quesejaparaacama.Alé mdisso,nã o sou homem de comer os restos de umbodevelhoquenemvocê .Tenho penadaquelasduasjovens. Korchnoi sentou-se no sofá e desabotoouopaletó. — Fico feliz que você esteja envolvido na operaçã o contra o americano Nash — disse Egorov. — Seiquefará umbelotrabalho.Essaé anossamelhorchancedeidenti icar otraidor. Ele se levantou e pegou uma garrafa de conhaque georgiano com duastaçasnorequintadoarmá riode bebidas. Serviu duas doses e entregouumadelasaKorchnoi. —Aindaé meiocedopraisso— comentou Korchnoi, e brindou com Egorov,batendoabordadesuataça nadele. Ambos beberam tudo de um só goleeapoiaramoscoposnamesinha àfrente. — Pra mim já está de bom tamanho — disse Korchnoi quando Egorov fez mençã o de renovar as doses. — Eu insisto — disse Egorov comumafalsaseriedade.—Éoúnico modo de fazer você icar aqui. Ando precisando de algué m de con iança comquemconversar. — Somos amigos desde os tempos da academia — falou Korchnoi. — Algum problema com nossaoperaçã o?Sevocê temalguma dú vida quanto à sua sobrinha, ique tranquilo, porque tenho a mais absoluta... —Nã o,nã otemnadaavercom a operaçã o. Tenho certeza de que tudo dará certo. O problema é outro —disseEgorov.—Precisodesabafar comalguém. — Está com algum problema, Vanya?—quissaberKorchnoi. Nã o chegaria ao ponto de perguntar como andava a campanha dele no sentido de tomar o lugar do atual diretor. Nem mesmo uma amizade de dé cadas lhe permitiria sertãodireto. — As aporrinhaçõ es e con litos de sempre. Pra cada sucesso, um fracasso. Uma fonte perdida, uma deserção,umrecrutamento... — Vanya, você sabe muito bem como sã o as coisas no nosso ramo. Sempreteremosfracassos,mas,uma vezacadacincoanos,oudez,temos um sucesso estrondoso. Logo, logo, viráopróximo.Fiquetranquilo. Korchnoi bebeu um gole do conhaque que Egorov servira contra asuavontade. — E sobre isso que eu gostaria de falar. Volodya, eu lhe devo desculpas. Escondi algo de você quando nã o deveria ter escondido nada. Preciso levar esse segredo adiante, pelo menos por mais algum tempo, mas acho que posso dividir comvocêumapequenapartedele. — Con io no seu discernimento —retrucouKorchnoi. —Você é umamigodeverdade, Volodya. — Egorov serviu uma terceira dose de conhaque para ambos. — Tenho conduzido uma operaçã o no seu territó rio. Nos Estados Unidos. Sem o seu conhecimentoesemasuaaprovação. Pordireito,essaoperaçãodeveriaser sua. Mas em minha defesa posso dizer que foi o Kremlin quem ordenou que as coisas fossem feitas dessaforma. Marble procurou manter a frieza. Entã o era esse o caso Swan, operadodiretamenteporumdiretor. — Nã o é a primeira vez que fazemosisso—falouKorchnoi.—Eu mesmo já passei por situaçã o semelhante. Se for mais e icaz em termos operacionais, entã o é assim quetemdeser. — Eu sabia que você veria a coisa com o pro issionalismo de sempre. Nunca foi minha intençã o desrespeitar você ou o seu departamento—continuouEgorov. — Quanto a isso você nã o precisa se preocupar — garantiu Korchnoi. — Golov tem conhecimentodataloperação? Haviaaliumespaço,pormenor que fosse, para uma discreta sondagem.Muitodiscreta,pensou. — E melhor nã o entrarmos nesse tipo de detalhe — respondeu Egorov, fugindo da pergunta. — O queeupossodizeré queocasoestá começando a produzir informaçõ es deimportâ nciainé ditaparaaRú ssia, compará vel apenas ao que tı́nhamos em1949,quandoFeklisovcomprava sorvetes pra Fuchs em troca das anotaçõ es sobre a bomba que ele estava construindo.Quanto tato, pensou Korchnoi.Nosso apogeu foi o NKVD nos anos 1950. Egorov riu e deutapinhasnoombrodele. — Entã o precisamos comemorar — falou Korchnoi. — Esse é o tipo de sucesso que só aconteceacadavinteanos.—Bebeu umpoucodoconhaque.—Vanya,em quepossoajudá-lo? — Nã o, nã o. Nã o há nada que você possafazer—retrucouEgorov. —Precisoquecontinuesededicando à operaçã o contra o americano, até porquevamosterdefazerumbreve intervalo nesta outra operaçã o de que falei. Quando você acha que poderáentraremação? — Assim que precisar. Sua sobrinha está pronta — a irmou Korchnoi com total naturalidade. — Quando você quer que a gente dê o primeiropasso? — Temos um tempinho. Você pode agir desde já , uma vez que nossa fonte está se recuperando de uma cirurgia relativamente grave no olho.Otimingéperfeito. —Tudobem,entã o.Empoucos diasestaremosprontosparaviajar. —Ótimo—falouEgorov. — Vamos conseguir — disse Korchnoi.—Podeescrever. — Estou contando com você , velhoamigo. Seu crocodilo velho, respondeu Korchnoiempensamento.Levantouse do sofá e, olhando atravé s das amplas vidraças para a loresta de pinheirosdooutrolado,comentou: — Nó s nos saı́mos muito bem, Vanya. Sobretudo você . Quem diria que aqueles dois jovens formandos daacademiateriam as carreiras que temos,nãoé? — Ainda é cedo pra esse seu sentimentalismo barato. Há muito trabalho pela frente — retrucou Egorov. — Obrigado, amigo, por ser tã oleal,e,porfavor,tentenã osumir mais. Eles caminharam de braços dados até a porta e se despediram comumrápidoabraço. — Agora vou voltar pra minha salacombafodeconhaqueefedendo a essa sua colô nia vagabunda — comentou Korchnoi. — Depois vã o dizer por aı́ que sou alcoó latra e pedik,graçasavocê. Ambosriram,eEgorov,vendoo general se afastar, pensou:Já foi um homem brilhante um dia. Brilhante e destemido. Mas está icando velho e cansado. Voltou para sua sala e fechouaporta. *** A cabeça de Marble fervilhava. Ele repassaria a informaçã o imediatamente, ainda naquela noite. Imaginou como Benford receberia a notı́cia. O convite de Vanya para aquelaconversanoquartoandarfora estranho, incongruente. Quanto à s desculpasporestarconduzindouma operaçã oemterritó rioalheio,aquilo nã o passava de uma grande balela. Vanyanã opensavaduasvezesantes de desrespeitar alguma fronteira operacional. Nã o tinha esse tipo de pudor. Fazia apenas aquilo que pudesse trazer algum benefı́cio para si mesmo. Sempre fora assim. Por isso ele se tornara o burocrata que era em essê ncia, deixando o verdadeiro serviço de inteligê ncia paraosoutros. Marble relembrou os quatro detalhes principais que Vanya fornecera. A importantı́ssima fonte Swan era um “caso de vinte anos” e vinha repassando as melhores informaçõ es desde os tempos da espionagematô mica.Aoperaçã oera conduzida pelarezidentura de Washington. Anatoly Golov provavelmente estava envolvido. Swan passara, havia pouco tempo, por uma cirurgia no olho. Quanto maispistasparaBenford,melhor. Apó s atravessar os amplos corredores do primeiro andar, Marble se dirigiu à cafeteria do pré dio. Embora nã o passasse das onzeemeia,diversosfuncioná riosjá levavam suas bandejas de almoço paraasmesas.Meiotontoporcausa domalditoconhaquedeVanyaecom oestô magoemchamas,elefoiaum dosbalcõ esepediuumagrybnoysup, uma sopa grossa de cogumelos com creme azedo. Ao constatar que Nasarenko comia sozinho ali perto, fezoquepô deparanã oservisto.Seu esforço foi em vã o, pois o chefe da LinhaTjáochamavacomumsinalda cabeça. Agora nã o havia mais jeito, ele teria de se juntar ao homem. Recusar o convite de outro chefe de departamento seria uma quebra de protocolo imperdoá vel. Korchnoi se preparou para suportar vinte minutosdealmoçonacompanhiade umsujeitoapelidadodeOsciloscó pio pelos cientistas e té cnicos que ele mesmocomandava. — Como vai, Yuri? — disse o general,acomodando-seàmesa. Tirou um naco do pã o e o mergulhounasopafumegante. — Sempre muito ocupado, muito ocupado — retrucou Nasarenko,quepartiaumrolinhode repolhocomresultadoscatastróficos. Como se diante de um terrı́vel acidente de trâ nsito, Korchnoi nã o conseguia tirar os olhos daquilo. — Trabalhando até tarde. As informaçõesnãoparamdechegar,ea gente precisa traduzir, analisar, mandar resumos para o quarto andar... Uma avalanche de discos. EstãoenviandotudoparaoKremlin. Interessante. Discos. Com uma produçã o assim, só podia ser a tal operação. — Está precisando de ajuda? Posso emprestar um ou dois dos meusanalistas. Um gesto de altruı́smo sem precedentes. Os departamentos jamais ofereciam ajuda uns aos outros. Nasarenko ergueu a cabeça, surpreso. — Vladimir Andreiyevich, é muitagentilezadasuaparte—falou, mastigandometadedeumrolinho.— Agradeço,masessetrabalhodevese limitaraumnúmerobempequenode analistas credenciados. E um requisitodaoperação. — Bem, se precisar de alguma coisa é só avisar. Sei muito bem como sã o esses perı́odos de sobrecarga—comentouKorchnoi. — Em breve teremos um descanso. Egorov disse que haverá uma suspensã o temporá ria no luxo de informaçõ es. — Nasarenko se inclinou na direçã o de Korchnoi, o pomo de adã o saltitando em compasso com o tremor das bochechas.—Afonteteveumacrise deherpes,estáincapacitada. Sabia que estava cometendo uma falta grave em termos de segurança, mas... Korchnoi també m era um chefe de departamento e tinha um longo histó rico de bons serviçosprestados. Marble sentiu um calafrio. Foi como se as paredes da cafeteria tivessem se fechado à sua volta, as vozes se reduzindo a um zum-zum indistinto. Ele se obrigou a tomar uma colherada da sopa e depois disse: — Nesse caso, que bom pra você .Agentetemdesaberaproveitar essas oportunidades. — Baixando a voz, emendou: — Yuri, nã o deverı́amos estar falando desse assunto.Você conhecemelhordoque eu a importâ ncia dessa operaçã o. Sugiro que nã o comente com ningué m que tivemos esta conversa, estábem? Os olhos escuros de Nasarenko cintilaramdeculpaquandoelesedeu conta do que o general estava querendodizer. — Concordo plenamente — retrucou. Emseguida icoudepé ,recolheu suabandejaesedesculpouporterde sairtãoderepente. Sozinho à mesa, Marble continuou tomando sua sopa, tentando aparentar o má ximo possı́veldenaturalidade.Seriaaquilo o começo do im? Doseu im? Tratava-se de uma armadilha direcionada aele ou de um teste de idelidade generalizado? Ao pensar queVanyacriara uma armadilha, ele balançou a cabeça, incré dulo. O crocodilocontaraamesmahistó riaa pessoas diferentes, mas com pequenas variantes que permitiriam detectar quem andava com a lı́ngua solta.Venhacá,seucanarinho,pegue este pólen aqui e saia por aí batendo as suas asinhas. Era essa a ideia. Subitamente, avisar Washington haviasetornadomaisurgenteainda. GRYBNOY SUP — SOPA DE COGUMELOS Deixar os cogumelos de molho, depois coá-los e cozinhá-los em caldo de carne por quatro horas. Dourar lâminas finas de cebola na manteiga e acrescentá-las à sopa. Adicionar amido de milho, mexer bem e esperar que a sopa engrosse. Temperar, polvilhar com salsa e servir com uma colher de creme azedo por cima. CAPÍTULO 29 SUBMERSONASEMIESCURIDAO DE SUA sala, Benford via na mesa à sua frente, atulhada de papé is, a mensagem urgente que Marble acabara de enviar. Já a lera duas vezes, imaginando o russo pronunciandoaspalavras,calculando o nú mero de caracteres permitido a cadacomunicação.Derepenteberrou paraasecretá riachamarNateeAlice à sua sala imediatamente. Enquanto esperava,leuotextomaisumavez: Swan definitivamente nos EUA. V. diz, nada melhor desde os 50. Operação prov. conduzida na capital. Golov pode ser operador. Nasarenko sobrecarregado, discos e dados técnicos. V. armou arapuca. Disse a Nasarenko q. fonte está com herpes. P/ mim, falou que operou olhos. Outras variantes, prov. V. renovando op. vs. NN. Me designou para comandar (!). Sobrinha de V. no meu depto., apontada contra NN. Viagem a Roma deve coincidir com conf. EBES. Aviso quando confirmado. niko. Os olhos de Benford se demoraram non minú sculo da assinaturaniko,sinalpreestabelecido de que a mensagem fora escrita de livre-arbı́trio, sem a coaçã o de uma roda de capangas armados, ditando conteúdo. Swan era um informante que vinha tra icando informaçõ es do governo americano. O jogo estava a plenovapor.Ofatodeestaoperaçã o ser considerada pelos russos a melhor em muitos anos dava a entender que os dados fornecidos por Swan, alé m de numerosos, eram de ó tima qualidade. Aos olhos de Benford, o que vinha ocorrendo era umahemorragiadeinformaçõ esnas entranhasdopaís. AssimqueAliceen iouacabeça por uma fresta na porta da sala, foi informada pelo chefe de que seria destacada para um ú nico projeto, de inícioimediato. — Mas estou trabalhando naquele caso do agente duplo no Brasil—retrucouela,semrodeios. Nã otinhamedo de contrariar o chefe. — Essa merda pode esperar — decretou ele, sem nem se dar ao trabalhodeerguerorosto.—Quero que você interrompa o que está fazendoecompileumalistapramim. Uma lista diferente de todas que já compilounavida. — Pode falar — disse Alice, olhandoaoredorà procuradealgum lugarparasesentar. Ao nã o encontrar, permaneceu depédiantedamesadeBenford. — Vai ser um pouco nã o convencional,masachoquevocê vai gostar, Alice. — Benford en im ergueuosolhosparaafuncionária.— Queroqueprepare uma relaçã o com osdezmaioressegredosdogoverno americano.Emqualquerá rea.Defesa, política,tecnologia,sistemabancário, programaespacial,energia,islã ...Até a tatuagem na bunda da Pat Benatar estávalendo. — Na bunda de quem? — perguntouAlice. — Pat Benatar, a cantora pop, nã oconhece?—explicouBenford,na defensiva. — Comece com os programasmaiscon idenciaisemais cabeludosdoPentá gono,ossegredos militaresquemaispossaminteressar aos russos, esse tipo de coisa. Procure descobrir que projetos o Departamento de Defesa considera mais importantes e delicados. Projetos de longo prazo. Caros. Estraté gicos. Se necessá rio, peça ao vice-diretor de Assuntos Militares pra ligar pro Secretá rio de Defesa. Educadamente, convide todo mundo a tirar a bunda da cadeira e nos mandar essas informaçõ es o mais rá pido possı́vel. Depois, quando soubermosoqueelesveemcomoas joias da coroa, vamos examinar as listas de pessoas que tê m acesso autorizado para cada um desses projetos.Agoravai.Sevira. Alice ia saindo quando deu de cara com Nate à porta da sala e perguntou: — Por acaso você sabe quem é PatBenatar? — Nunca ouvi falar — respondeu ele, tirando as pastas de uma cadeira para se sentar nela. — Nã o é aquele cara do FBI em Boston que detonou o caso na Nova Inglaterra? —Deixapralá —falouBenford. — Alice, você tem mais o que fazer, nãotem? Virou-se para Nate e entregoulhe uma có pia da mensagem de Marble.Nã opô dedeixardenotarque ele corou ao ler a parte que fazia mençãoaDominika. Nate releu o pequeno texto inú meras vezes como se pudesse tirar das entrelinhas alguma informaçã ovaliosa.Por imergueuo rostoparaBenfordedisse: —Elaestáviva. — Diva nã o só está viva como, aoqueparece,passouincó lumepela dura que deram nela — retrucou Benford. — E agora o tio teve a excelente ideia de designá -la para o casoMarble. Nesse ponto ele se lembrou da estraté gia de sucessã o que o russo sugerira. — Você acha que ela vai pra Romacomele?—perguntouNate. —Achomelhorvocê tomaruma ducha fria, rapaz — rosnou Benford. — Nunca vai poder con iar inteiramente nessa garota. Sempre haverá a possibilidade de ela ter mudado de time outra vez. Por enquanto vamos procurar tirar vantagem do fato de Diva, uma informante recrutada por você , recé m-submetidaaumainvestigaçã o de contrainteligê ncia, ter sido designada pela ingê nua diretoria do SVRparaseduzi-locomoobjetivode descobrir o nome do o icial sê nior que você opera, isto é , Marble, que porcoincidênciaéonovochefedelae está orientando a garota numa operaçã o para neutralizarvocê, o operadordele. Benford olhava para Nate atrá s das pastas e jornais que formavam um par de torres gê meas em sua mesa. — Você está adorando essa confusã o toda, nã o está ? — disse Nate. —Esperoquevocêsejacapazde lidar com a ambiguidade. Caso contrá rio, pode pegar suas coisas e dar o fora daqui — falou Benford, sé rio. — Bem, o que pretende fazer? —emendou,jogandoabatataquente paraele. Nate respirou fundo, tentando tirarDominikadacabeça. — De acordo com esta mensagem, eles ainda nã o tê m a menorideiadequemsejaMarble. —Ecomovocê concluiuisso?— quissaberBenford. —SeEgorovestá jogandoiscas no alto escalã o do SVR é porque ele espera que uma das versõ es da histó ria acabe batendo de volta nos ouvidosdele. —E? — Isso quer dizer que ele tem algué m nas internas do governo americanoqueocupaumpostoaltoo bastante pra ouvir uma dessas versõ es e reportar de volta. Algué m no campo de inteligê ncia. O pró prio Swan? —Podeser—disseBenford.— E o que mais você leu nessa mensagem que pode nos ajudar a descobriralgumacoisasobreSwan? Nate baixou os olhos para o papel de novo, depois os reergueu paraBenfordefalou: —Medêumadica. —Nasarenko. Nate examinou o texto mais uma vez e subitamente ergueu o rosto. — Sabemos qual foi a versã o contadaaNasarenko—observou.— Podemosespalhá -lapor aı́, mas com mé todo,seguindoosrastrosdecada pessoaquereceberaisca.Sealguma coisa acontecer a Nasarenko, entã o vamosterumpontodepartida,uma listarestritadepessoas. —EofeitiçodeEgorovvaivirar contra o feiticeiro — acrescentou Benford. — Mas você nã o pode esquecer uma coisa: ele está impaciente,desesperado.PraEgorov você é um atalho pra soluçã o de um problema,umasoluçã o que o livrará da guilhotina. Ele concentrandoemvocê. está se Nate estava pensando em Dominikadenovo.Benfordpercebeu isso,grunhiudeummodohistriô nico edisse: — Seria um prazer icar horas aqui falando de você , mas infelizmenteagentetemmaisoque fazer. Foco, rapaz, foco. Me diga: o que você faria em primeiro lugar no casodeSwan?SeMarbletiverrazã o, o caso está sendo operado aqui mesmoemWashington,pelopró prio rezident. — Se Golov estiver mesmo coordenando Swan, entã o isso é um ponto fraco deles — observou Nate. — Acho que a gente devia cuidar do rezidentdeperto. — Otimo. Mas como podemos trabalharessecara?Oquevocê faria? —perguntouBenford,incitando-o. —Nã osairiadopé deleporum mê s. Pegaria pesado na vigilâ ncia, deixaria o sujeito acuado. Olha, sei que você vai icar puto comigo, mas acho que nesse caso a gente devia chamar o FBI. Se formos mesmo rastrear o russo no centro de Washington, o FBItem de ser convocado. Esses caras da contrainteligê ncia estrangeira sã o feras, sabem tudo sobre a caça de espiõ es.Eosdainteligê nciasabemo queestã ofazendonarua.Aequipede vigilâ nciadelesé espetacular.Vamos fazerumesquemadevigilâ nciatotal. FazertantobarulhoqueGolovvaiter deabortaramissã oumasdezvezes. Nã o vai conseguir se encontrar com Swan. Os igurõ es da central vã o começar a icar nervosos. Golov vai começar a suar. Eles vã o icar apavorados, com medo de perder o informante. Quanto ao efeito que tudo isso terá sobre Swan, aı́ eu já nãosei. — Tudo bem. Mas agora é você que está me deixando nervoso — comentou Benford. — Golov é bom demais pra fazer alguma cagada na rua. Alé m disso, certamente tem algum esquema de contravigilâ ncia nopédele. —Nã oimporta—disseNate.— Numanoiteescuraechuvosaagente o deixa sair sem vigilâ ncia. Ele vai achar que está livre, a contravigilâ ncia vai con irmar, e ele vai seguir tranquilo pro encontro. MasosOrionsjá vã oteridonafrente. Aı́, com um pouco de sorte, verã o Swan andando pra lá e pra cá numa esquina qualquer, nervoso, ou pelo menos um carro mal estacionado numaruadeserta,cujaplacaagente vai poder pesquisar depois. Vamos continuartentandoatéacertar. Benford assentiu com a cabeça. O garoto já havia estado do outro lado,sobamiradoFSBnasperigosas ruasdeMoscou.Benfordsabiaquais eram as vulnerabilidades de um informante,oquepodiaassustarum operador. Nate estava se revelando um bom agente, ele observou, satisfeito. Benford era praticamente o dono dos Orions. Procurava mantê los fora do radar de outras pessoas; nã o os emprestava nem vendia. A inal, quem haveria de querer uma equipe geriá trica de vigilâ ncia composta por agentes de campo aposentados e seus carros velhos, meiaspretascomsandá lia,binó culos de observador de passarinho? O tamanhodaequipevariavadeacordo com os compromissos pessoais de cada um: sempre havia um que nã o podia faltar a uma consulta mé dica, queprecisavavisitarosnetinhos.No entanto, era a pró pria essê ncia dos Orions (lentos, pacientes, ponderados) que os tornava tã o e icazes. Era impossı́vel tirá -los do sé rio com alguma provocaçã o. Eles observavam, esperavam, sumiam e reapareciam duas esquinas à frente. Acariciavam o alvo, farejavam-no de longe, iam e voltavam do mesmo modoqueasmaré s.Enuncaperdiam oalvodevista. Diversos especialistas já os tinham observado em açã o para entender sua metodologia e ensinar outras equipes a obter o mesmo sucesso. Queriam descobrir o segredodaquelamá gicaecolocarum ró tulo nela. “Vigilâ ncia de previsibilidade baseada em aná lises de per il”, escreviam. “Projeçõ es situacionais como suporte para vigilâ ncia seletiva. “Estraté gias antecipató rias determinadas por ‘rota de marcha’ e corrigidas pela mitigaçãodoriscoaceitável”. Nenhuma dessas classi icaçõ es fazia sentido, diziam os pró prios Orions. O segredo era desenvolver o instinto, formular uma hipó tese e pagar para ver. Os especialistas ouviam isso e nã o conseguiam entender. “Tente ver a coisa desta forma”, dissera certo Orion de 68 anosdeidade,omesmoquenoinı́cio da carreira grampeara as ligaçõ es que a GRU russa fazia no Tú nel de Berlim. “Nó s somos umaameba. Um protoplasma. Flexı́veis, moldá veis, capazes de nos locomover em qualquer tipo de terreno. Os especialistassorriameducadamente, pensando:Como colocar isso num manualdecampo? Certa vez, durante uma demonstraçã o prá tica, os especialistas assumiram as posiçõ es tradicionais de uma equipe de vigilâ ncia para observar os Orions em açã o, mas os caras desapareceram. Aquilo nã o era vigilâ ncia. O alvo tinha sido abandonadoeningué msabiaondeos veteranos tinham ido parar. Quando o alvo chegou ao local marcado, no entanto, os danados já estavam em suas posiçõ es, esperando em um parque, um cruzamento, tã o silenciosos que ningué m percebia sua presença. “Ideias malucas, alquimia”, diziam os especialistas. “Nã o, muito obrigado.” Foi nessa é poca que resolveram deixar os OrionsparaBenford. Eram esses sujeitos que agora estavamnopé dorezidentGolov,eas avaliaçõ es sobre ele já haviam começado: um senhor bastante distinto. Gentil, impassı́vel, mas ainda assim um protocomunista. Benford pedira que eles descobrissem tudo o que fosse possı́vel,masque icassematentosà equipe de contravigilâ ncia que semprecercavaorusso. — Muito bem. Já é hora de tirarmosoSr.Golovdecampoporum tempo — disse ele certo dia, e na manhã seguinte os vigilantes do FBI já espreitavam o pré dio da embaixada da federaçã o russa na Wisconsin Avenue,afundados no bancodeumCrownVic. *** As reuniõ es secretas do SSCI para a discussã o de “assuntos de inteligê ncia” eram realizadas na sala 216doHartSenateOfficeBuilding,na Constitution Avenue. Designado apenascomoHS,deHartSenate,nos diretó rios do Congresso, o pré dio se resumiaanoveandaresdemá rmore ejanelasescuras,enã ochegavanem perto da elegâ ncia neoclá ssica do Dirksen and Russel Senate Of ice Building. Benford chegou sozinho, atravessouoá trioimensoetomouas escadas para o segundo andar. Na sala 216, dirigiu-se à recepçã o e se apresentou ao guarda do outro lado dobalcã o.Deixoucomeleocelulare só entã opassoupelaporta-forteque levavaàsaladocomitê. Chegara cedo para a sessã o e o lugar estava vazio, a nã o ser pelos assistentesqueiamdeixandopastas emcadalugardamesareservadaaos congressistas, que icava sobre um tablado de carvalho. Claro que o mó vel icavaacimadonı́veldochã o, Benford sempre dizia a si mesmo. Senadores gostavam de olhar as testemunhasdecima. Escondida sob o acabamento das paredes, uma tela de ilamentos de cobre pulsava uma energia contı́nua de modo que, uma vez trancada a porta-forte e acionado o mecanismo,nenhumsinaleletrô nico entrassenasalaousaíssedela. Nos anos 1980, numa tentativa de espionar um importante depoimento no comitê , os russos haviammontadoumaoperaçã opara plantar na sala um equipamento de gravaçã o e recolhê -lo assim que possı́vel, umprocedimento bastante rudimentarparadriblaraso isticada blindagem eletrô nica. Teriam conseguido nã o fosse por um faxineiro,queencontrouaengenhoca colada sob uma das cadeiras da plateia durante uma das raras sessõ esabertasaopú blico.Ohomem entregou o aparelho à polı́cia do Capitó lio, que imediatamente o repassouaoFBI.Emvezderecolocá lonomesmolugarcomoobjetivode passarinformaçõ esfalsasaosrussos, tal como Benford teria feito, os panacas do FBI haviam festejado o “desbaratamento da operaçã o” e destruı́dooaparelhoemmilpedaços, jogandoaquelararaoportunidadeno lixo. Benford era a ú nica pessoa sentadaà mesadosdepoentes.Asua frente,umpequenocartã oinformava seunomeecargo.Porinsistê nciados membrosdoSSCI,acadatrê smeses ele fazia uma relaçã o de suas atividades numa sessã o à qual apenas os quinze membros do comitê tinham permissã o para assistir. Os senadores, acostumados desde sempre a um sé quito de assistentes, haviam concordado, nã o sem alguma relutâ ncia, com a proibiçã o de auxiliares durante os trabalhos.Tratava-sedeumamedida pro ilá tica no sentido de reduzir ao má ximo, senã o por completo, a quantidadedeanotações. Poucos faltavam à s apresentaçõ es trimestrais de Benford,vistasporquasetodoscomo as mais concisas e informativas da comunidade de inteligê ncia. A exceçã odeumú nicomembro,oSSCI o tratava com o mais absoluto respeito. Apenas Stephanie Boucher, senadora pelo estado da Califó rnia, parecia nutrir o mais profundo desprezoportodososdepoentesdos setoresdeinteligê ncia,sobretudoos daCIA.Aoentrarnasalajuntocomos outros, ela torceu o nariz tã o logo avistouBenford,quepreferiuignorá laefazeralgumaanotaçã oà margem de seus papé is. Os assistentes esperaram que todos se acomodassem e só entã o se retiraram.Aporta-fortefoifechadae uma lâ mpada verde se acendeu acimadela. — Sr. Benford — disse o presidente,dandoinícioàsessão. Rapidamente, Benford relatou os avanços mais importantes num caso de cyberespionagem por parte dos chineses na Costa Oeste, a irmando que, se necessá rio, os té cnicos da Divisã o de Operaçõ es Computacionais da CIA poderiam fornecer mais detalhes. Em seguida passouaoutrocaso,maisimportante queoprimeiro,emqueaCIAeoFBI haviamdetectadoagentesdaDGSE,o serviço de inteligê ncia externa da França, abastecendo um esconderijo nonortedoestadodeNovaYork.Um relató rioestavasendopreparadoem conjunto com o Frog, setor do FBI responsá vel pela monitoraçã o das atividades francesas em territó rio americano. Virando uma pá gina de sua pasta,Benforddisse: — Senhores senadores, terminamos a avaliaçã o preliminar que izemos em conjunto com a marinha americana, e com o fornecedor em questã o, dos danos causadospelain iltraçã odeumilegal russo em New London, Connecticut. — Ele consultou suas anotaçõ es. — Embora o Pentá gono ainda esteja trabalhando no relató rio sobre as rami icaçõ es de longo prazo dessa in iltraçã o no programa naval, podemos concluir desde já que os russos ainda nã o tiveram acesso a um nú mero su iciente de informaçõ es té cnicas para afetar a viabilidade operacional da plataforma... — Perdã o, Sr. Benford — interrompeu a senadora Stephanie Boucher. Os demais pressentiram o ataquequeestavaporvir.—Porque diabo você usa palavras como “plataforma” quando pode dizer “submarino”? Nã o é muito mais simples? — Submarino, entã o. Muito obrigado,Excelência. Benford precisou esperar enquantoasenadoradiscorriasobre o obsoletismo dos submarinos americanos em comparaçã o à classe Dolgorukiy de submarinos balı́sticos que vinham aparecendo na frota da marinharussa. A megera é bem-informada, pensouBenford. Asenadoracontinuou: —Masaquestã oprincipalnisso tudo,oquerealmentechamaatençã o nesse episó dio de New London, é o fato de que nem a inteligê ncia americana nem as diversas instâ ncias da polı́cia tiveram a capacidade de detectar, localizar e deter um ilegal russo que vem operando neste paı́s há quase cinco anos. Concorda comigo, Sr. Benford? Ao que parece, esse ilegal conseguiu sein iltrarnoprogramacomamaior facilidade, apesar de todas as investigaçõ es biográ icas e de todas asoutrasmedidasdesegurança. Stephanietamborilavaseulá pis namesa. — Com o im da Guerra Fria, senadora, a utilizaçã o de ilegais tornou-se muito rara — prosseguiu Benford. — Até mesmo os russos reconhecemquesetratadeummodo dispendioso e ine icaz de captar informaçõesdeinteligência. Nem passava por sua cabeça explicar como eles haviam icado sabendodaexistênciadesseilegal. —Nã ofoiissoqueeuperguntei, Sr. Benford. Preste atençã o. O que querosaberé qualdasduasagê ncias, na sua opiniã o, é a mais incompetente:aCIAouoFBI? — Nã o tenho nenhuma opiniã o formadaaesserespeito,senadora— respondeu ele. — Infelizmente, na sequê ncia desse caso em New London,temosumpeixemaisgraú do prapegar. — Como assim? — quis saber Stephanie. — H á i ndı́ c i o s de q ue o s rus s o s po s s ue m um a s e g unda fo nt e de informaçõ es. Algué m com amplo acesso a assuntos con idenciais. Estamos apenas começando,nã ohá nadacon irmado ainda. — Deixe de rodeios! — rugiu a senadora. — De que diabo você está falando? Benfordsuspirouruidosamente. Fechouapastaà suafrenteecruzou as mã os sobre ela. Olhou para a divisa do Senado americano que decorava a parede à s costas dos senadoresedisse: — Temos informaçõ es fragmentadas de que há um informante no alto escalã o do governo americano, algué m que possui acesso quase irrestrito aos segredos de segurança do Estado e que vem repassando esses dados confidenciaisaoSVRrusso. —Emquepontovocê sestã ona investigaçã o desse vazamento? — indagouosenadorpelaFlórida. — Ainda nã o sabemos quem, nem o quê , nem onde — retrucou Benford.—Estamoschecandotodas aspossibilidades. — Resumindo, você s nã o tê m a menor ideia de quem seja — alfinetouStephanie. — Senadora, essas investigaçõ es levam tempo — aplacouosenadorporNovaYork. Elariuedisse: — E, sei muito bem como sã o essas investigaçõ es: centenas de pessoas ingindo que trabalham enquanto embolsam seu salá rio sem descobrirnada. Benforddeixouqueosmembros conversassementresi,depoisergueu avozecontinuou: — Embora ainda estejamos no está gio inicial da investigaçã o, sabemos que o informante talvez sofra de herpes. Isso pode ser ú til mais tarde, quando tivermos em mã osumalista de suspeitos restrita o bastante para fazer as devidas acareações. — Tudo isso é muito inconclusivo — sentenciou Stephanie.Virou-separaoscolegase falou: — Se nã o se incomodarem, gostaria de me retirar. Tenho uma reuniã o importante com os integrantes de outro comitê . — Entã o,dirigindo-seaBenford:—Por hojejáestádebomtamanho. Ela se levantou, recolheu sua pastacon idencialefoiemdireçã oà porta-forte, deixando os outros remexendo nos pró prios papé is em silêncio. Benford nem sequer ergueu o rosto. Conseguira o que queria. Quinze senadores tinham ouvido a palavra“herpes”.Doisdiasantes,três subsecretá rios da Defesa escutaram a mesma coisa durante um brie ing no Pentá gono. Dali a trê s dias o mesmo aconteceria em outra reuniã o, com membros selecionados do Comitê Nacional de Segurança, entre eles um diretor sê nior do Departamento de Defesa, assistente especialdopresidentedaRepública. Enquantorecolhiasuascoisas,a sala já vazia, Benford imaginou os rostospapudosdoKremlinepensou: Os camaradas queriam um canário? Entãoéissoquevãoter. *** Vladimir Korchnoi havia sido convocado pelo assistente de Vanya Egorov para uma reuniã o numa das salas especiais do quarto andar de Yasenevo. Recebera a ligaçã o de Dimitri assim que pisara em sua sala, antes mesmo de pendurar o casaco no armá rio e se sentar para ler os relató riosdamanhã .Pareciaurgente. Ele olhou com tristeza para o prato d esirniki que sua secretá ria deixara sobre a mesa e que ele pretendia comer enquanto lia. Dali a pouco as panquecas de queijo com creme azedo já estariam frias e borrachudas. Antes de sair para o elevador,eledobrouumadelascomo garfoecolocou-ainteiranaboca. Desde que descobrira os joguinhos de Vanya para desmascararoinformantedoSVR,as armadilhas que ele vinha distribuindoporaı́,Korchnoivirasua vida de agente duplo resvalar da tensã o cotidiana à qual ele já se acostumaraparaopavor,aconstante suspeitadealgumdesastreiminente. Por catorze anos ele vivera sob pressã o e adaptara-se a ela, mas havia uma grande diferença entre vazar informaçõ es sem ningué m desconfiaresercaçado. Agora, sempre que atravessava as portas do pré dio ao chegar para trabalhar ele receava ser recebido porsegurançasmal-encaradosqueo arrastariam do lobby para alguma saleta vizinha. Sempre que ouvia o telefone tocar em sua mesa, tinha medodeserconvocadoparaalguma sala sem janelas, repleta de homens carrancudos. Sempre que punha os pé snaruaduranteo imdesemana, receavasersequestradoparaalguma dachanoscafundósdacidade. No quarto andar, Korchnoi saiu doelevadorecomeçouapercorrera galeria de retratos, pensando:Bom dia,cambada.Eaí,jámedescobriram? Ao entrar na sala de reuniõ es, deparou-se com Vanya sentado à cabeceiradamesa,rindodealgoque Alexei Zyuganov, chefe da Linha KR, dizia. Zyuganov, aquele gnomo que antes de atirar na testa de algum prisioneiro enchia a boca do infeliz de trapos de pano só para nã o ouvir assú plicasdeclemê nciaquetantoo incomodavam. A enorme cabeça branca de Egorovpareciareluzirsobreacamisa perfeitamente engomada. Ele recebeu o velho amigo com um abraçoepediuqueelesesentasse. — Queria que nos encontrá ssemos nesta sala, Volodya, porque aqui podemos usar o projetor. Já que é você quem está agora no comando da operaçã o, eu gostaria de lhe mostrar um material adicional. — Ele pegou o controle remoto, apertou um botã o e em seguida surgiu na parede uma foto granuladadeNathanielNashnaqual ele se encolhia de frio com as mã os enterradas nos bolsos do casaco, aparentementenumaruadeMoscou. — Você nunca viu esse sujeito, Volodya,maseleé Nash,oagenteda CIA que está operando o traidor. Passou menos de dois anos aqui, na embaixada americana. Há um ano e meio,maisoumenos. Korchnoiseperguntouseaquela fotohaviasidotiradaenquantoNate voltavadeumdeseusencontroscom ele. Em seguida cogitou se aquela reuniã o nã o passava de uma sarcá stica encenaçã o para pegá -lo. Era bem possı́vel que dali a pouco uma matilha de seguranças raivosos irrompesse na sala para levá -lo.Não, bobagem. Esta é sua vida. Respire fundo.Mantenhaacalmaecontorneo abismo. — Esse Nash era muito habilidoso. Uma vez quase conseguimos pegá -lo, mas fora isso nã o tivemos nenhuma outra oportunidade de descobrir o que ele faziaporaqui.—Egorovacendeuum cigarro,ofereceuomaçoaosdemais. —Mas,naminhaopiniã o,otraidoré alguémdoSVR. Korchnoi procurou digerir as palavrasdele.Sefossemverdadeiras eleestariaseguro,masaindahaviaa possibilidadedequetudoaquilonã o passasse de teatro. Olhou para Zyuganov e viu que ele itava placidamenteaimagemprojetadana parede. Nã o se iludiu com a tranquilidade do gnomo: conhecia muitobemseudiabó licotalentopara adissimulação. — Embora seja apenas uma suposiçã o — observou Zyuganov —, umacoisaé certa:osamericanosnã o correriam o risco de realizar encontros em Moscou se nã o tivessemumafonteimportante. Korchnoi achou aparentarnaturalidade. melhor — Se os amigos estiverem corretos,istoé ,seopeixeformesmo graú doeestivernoSVR,entã oalista de candidatos se resumiria ao diretor, a você , Vanya, e aos doze chefes de departamento, incluindo Lyosha e a mim. — Ele imediatamente notou a expressã o contrariada de seus interlocutores. Que diabo estava fazendo? Que maluquice era aquela? — Sem falar, claro, nos assistentes pessoais de cada um, nas secretá rias, nos criptó grafos, nas centenas de funcioná rioscomacessoindiretoaos cabogramasdiplomá ticos.Semprehá aquelemomentodedescuidoemque as pessoas comentam sobre algum assunto importante numa recepçã o deescritó rioqualquer,oudeixamum documentoimportantesobreamesa. VendonorostodeZyuganovque elejá haviaconsideradoaquilotudo, Korchnoidecidiupararporali.Achou que estava exagerando nas aná lises. Egorovapagouseucigarroedisse: — Você tem toda a razã o, Volodya. Sã o muitas as possibilidades. Só vamos pegar esse traidor se conseguirmos alguma pista interna, algo concreto e con iá vel. Ou entã o se conseguirmos lagrá -losnarua,eleouseuoperador. Ambasasopçõ espodemlevarmeses, anos até . E por isso que a terceira alternativa é a ú nica que realmente nosinteressa. — Concordo. Sua sobrinha é nossa melhor arma — falou Korchnoi, e precisou conter uma gargalhada ao se dar conta do total absurdo daquela situaçã o: eles estavam discutindo meios de identi icar e prender um espiã o que se encontrava bem ali, debaixo do narizdeambos. Zyuganov girou em sua cadeira, ospéssuspensosnoar. — Mas... e se sua sobrinha nã o conseguir nada num prazo razoá vel? — aventou. — Nesse caso seremos obrigados a recorrer a outras medidas. Egorov rapidamente se virouparaeleedecretou: —Nempensar.Nadade“outras medidas”nessaoperaçã o.Sã oordens expressasdopresidente.Fuiclaro? O anã o girou mais um pouco, agora com um discreto sorriso nos lábios. — Você tem toda a razã o — opinou Korchnoi. — Na histó ria do nossoserviço,nahistó riadetodasas operaçõ es de inteligê ncia durante o pó s-guerra, ningué m jamais achacou um agente adversá rio, pelo menos intencionalmente. Isso nã o se faz. O tumulto que isso gera nã o vale a pena. — Calma, Volodya. Se eu quisesse partir pra ignorâ ncia, estaria falando com a Linha F, nã o comvocê —comentouEgorov,rindo. —Nã o.Meuobjetivoé umaoperaçã o elegante, sutil, inteligente, que produzirá resultados rá pidos e deixará nossos inimigos boquiabertos, sem entender direito como perderam seu ativo tã o importante, admirados com a competê ncia e com a esperteza do SVR. SIRKINI — AS PANQUECAS DE MARBLE Misturar vigorosamente queijo de cabra, ovos, açúcar, sal e farinha até formar uma massa pegajosa. Levar ao refrigerador. Depois que gelar, fazer pequenas bolotas com a massa e mergulhá-las na farinha, depois achatá-las em pequenos discos. Fritar na manteiga derre da em fogo médio e re rar assim que a panqueca dourar. Servir com creme azedo, caviar, peixe defumado ou geleia. CAPÍTULO 30 KORCHNOI E DOMINIKA ESTAVAM na minú scula sala do apartamento do general. O velho contemplavaadesconcertantebeleza da moça, observando a delicadeza dos gestos dela, a elegâ ncia ao caminhar, o despudor ao itá -lo diretamente nos olhos. Quanto mais tempo passava com ela, mais se convencia de que izera a escolha certa.Opró ximopassoseriacooptá la.Aconversadaquelanoitenã oseria nadafácil. Porforaelaapresentavaseruma pessoafria,controlada,determinada. Mas nas interaçõ es, nos gestos e até mesmo na deferê ncia que lhe dedicava, Korchnoi percebia um ardor que parecia tender para a revolta. Embora ela nunca tivesse falado de sua passagem pela Escola de Pardais, ele levantara discretamente boa parte dos fatos, assim como izera em relaçã o à passagem dela pelos porõ es de Lefortovo. A jovem estava escondendo alguma coisa, disso ele tinha quase certeza.Nã osepassavaumú nicodia sem que ela se dissesse ansiosa por encontrar o americano de novo. No entanto,algoemsuavoz,ounomodo como inclinava a cabeça, dava a entender que o contato com NathanielemHelsinquegeraraalgum tipo de sentimento que ia alé m da relaçã ooperadora/alvo,talvezalgum con lito,algumaempatia,até mesmo algumencanto.Embreveelesaberia oqueera. Naquela manhã eles haviam começado a trabalhar no “Projeto Nash”,comoohaviambatizado.Com asluzesdeseuescritó rioapagadas,o generalhavialigadoumprojetorpara exibir imagens do americano e, logo na primeira delas, ao itar Dominika desoslaio,tiveraaimpressã odeque os olhos da jovem haviam se arregalado um pouco, de que as narinas haviam se aberto. Impiedosamenteeleprosseguiracom as imagens, relatando em detalhes tudooqueoSVRsabiaarespeitode Nash, repassando os relató rios que ela mesma mandara de Helsinque, observando-a sempre, interpretando asreticências. Ao im da projeçã o ele alertara Dominika para o fato de que a fase seguinte do projeto seria bem mais complicada do que a anterior, em Helsinque. Ela teria de viajar para fora da Rú ssia, e para que seus deslocamentos no exterior fossem justi icados, precisaria ser t ra ns fe ri dapara o serviço de mensageirosdoSVRnaDiretoriaOT. Operaria sozinha no Ocidente. Sua funçã oseriasereaproximardorapaz americanoeseduzi-loparatirardele o nome do krysa, do rato traidor. Entã o Korshnoi perguntou se ela achavaqueseriacapazdefazerisso. Os olhos de Dominika cintilaram e tremeram.Emoção.Conflito. Fora difı́cil, para ela, ser obrigada a olhar para a imagem de Nate. Seria possı́vel que o general tivesse percebido sua agitaçã o? Por quanto tempo ela conseguiria enganá -lo? O que exatamente ele sabiaaseurespeito? Ao im da conversa ele a convidara para jantar em seu apartamento. Prepararia algo simples, um prato nã o russo, uma massa para celebrar a iminente viagemaRoma,edurantearefeiçã o eles poderiam continuar falando sobreaoperaçã o.Nã ohavianenhum traço de segundas intençõ es no convite. Vladimir Korchnoi era um o icial graduado e respeitado, um veterano da espionagem, nã o um grubyj chelovek, um moleque qualquer. Eles haviam tomado o metrô juntos, saltado na estaçã o de Strogino, no Quarto Distrito, e caminhado por um amplo parque à s margensdorioMoscou.Opré diodo generaleraoterceirodeumasériede cincoconstruçõ esidê nticas,espigõ es tubulares que pareciam estriados pela ferrugem das esquadrias metá licas. O apartamento icava no dé cimo segundo andar, e o elevador capenga grunhira ruidosamente ao subircomeles. O imó vel era pequeno e modesto, mas confortá vel o su iciente para um homem solitá rio que nã o fazia muita questã o de espaço. Havia poucos itens de decoraçã o: na parede, uma bonita pintura a ó leo italiana; no chã o, um tapetedesedapersa.Logoseviaque o morador tivera uma carreira de viagens ao exterior. Num canto icavam uma poltrona já bastante gasta, uma luminá ria de chã o e uma estante baixa com alguns livros de capadura.Ajaneladasalatinhauma amplavistaparaorio. Dominika notou o portaretratos com uma foto de Korchnoi ainda bem jovem ao lado de uma mulher,pertodeumlago.Eraverão,e eleaenvolviapelacintura. —Issofoiem1973—explicou. — Num lago italiano. Maggiore, eu acho.—Esuaesposa?—perguntou Dominika.—Elaémuitobonita. — Vinte e seis anos de casamento — disse ele, tomando o porta-retratos das mã os de Dominika. Virou-o na direçã o da luz paravê-lomelhor.– Viajamos o mundo inteiro juntos.Itália,Malásia,Marrocos,Nova York.Depoisela icoudoente.Passou mesescomumdiagnósticoerrado.— Elecolocouoporta-retratosdenovo na mesa de centro e conduziu Dominika à minú scula cozinha. — Espero que você nunca precise de uma embaixada russa pra nada, muitomenosseadoecerforadopaı́s —falousorrindo. Ela notou que ele estava com a cabeçabaixa. O general contou que havia se mudado para aquele apartamento apó samortedamulher.Nã opoderia continuar no antigo lar dos dois, entã ootrocarapeloatual,queapesar de pequeno era relativamente moderno,tranquiloepertodocentro da cidade. Falou que gostava do cinturã o verde ao longo do rio, mas preferiu omitir que as transmissõ es emrajadaqueemitiaatravé sdaquela janelatinhamumaexcelentelinhade miraparaosatéliteamericano. Ele serviu duas taças de vinho moldávio.Acozinhadispunhadeuma pia, um fogã o de trê s bocas e uma pequena geladeira que chocalhava sempre que a porta era aberta. Recostada na bancada, Dominika ergueu sua taça e propô s um brinde ao sucesso da operaçã o. Via que o general estava completamente à vontade, irradiando um aconchegante brilho violeta que parecia vir das profundezas de seu ser. Embora izesse pouco tempo quetrabalhavamjuntos,Dominikajá se afeiçoara bastante a Korchnoi. Alé mdecativá -lacomobrilhantismo té cnico e a impressionante intuiçã o, ele a tratara com respeito desde o inı́cio,até mesmocomcertocuidado, como se lamentasse tudo o que ela padecera até entã o. Durante uma reuniã o de departamento, havia endossado e defendido o ponto de vista dela sobre determinada operaçã o. Na verdade, tomara as dores da recé m-chegada, e era por isso que Dominika via nele algo do paieestavaaliviadaportê -loagoraa seu lado. Caso fosse descoberto, o jogoduploqueelavinhafazendosem dú vida o magoaria, talvez até apressasse o im da carreira dele. Será que ele entenderia os seus motivos? Enquanto preparava o jantar, Korchnoi indagou sobre a vida de Dominika, sobre a famı́lia dela, e a jovem,longedosrigoreseprotocolos de Yasenevo, pô de falar livre e afetuosamentesobreospais,asaulas debalé ,adelı́ciaqueforadescobriro Ocidente. Helsinque havia sido uma grata surpresa, e agora ela queria conhecer o mundo. Conversar sobre essas coisas com o general quase a fazia esquecer que vinha mentindo para ele. Dominika afastou o pensamento. — Mas alguma coisa aconteceu com você em Helsinque — arriscou Korchnoi, trabalhando diante da bancada. — Pode me contar o que foi? Dominika hesitou por um instante, organizando as ideias enquantooviapicartomates,cebola e alho sobre uma frigideira com azeitequente,perfumandoacozinha. O homem ainda por cima sabia cozinhar. Um espanto. Ela tomou o últimogoledeseuvinhoedisse: — O voluntá rio americano que ajudeiaoperarfoipresologodepois defazersuaentrega.Alé mdemim,o rezidenteraaú nicapessoaquesabia desse encontro. Ningué m entendeu nada,entã oelespartiramparaapior das hipó teses, a de que eu havia vazado a informaçã o para os americanos. — Esperou que Korchnoi a servisse de mais vinho e continuou:—Masdepoisconcluı́ram queeuerainocente. Nã o queria falar mais daquilo, nã o queria continuar mentindo para ogeneral. — Sim, mas... eu estava me referindoaoutracoisaqueaconteceu em Helsinque — insistiu Korchnoi, cauteloso. — Li os seus relató rios. Apesardaregularidadedoscontatos, você nã o fez muito progresso com Nash. Dominika percebeu o tom que eleusaraeviuqueprecisavaescolher bemaspalavras. Todo cuidado seria pouco. — E verdade — retrucou ela com a voz irme. — A princı́pio ele nã odemonstroumuitointeresse,nã o queria saber muito de mim. Nã o foi muitofácilconvencê-lo. Teriaelepercebidoamentira? —Estranho.Umamulherbonita como você ... E ele, bonito també m, jovem, solteiro, um o icial de inteligê ncia morando sozinho num paı́s estrangeiro... Korchnoi deixou a frasenoar. O molho de tomate começou a borbulhar e Dominika icou em silê ncio, só observando enquanto Korchnoi vertia um io de vinagre balsâ mico na panela e acrescentava folhas de manjericã o que ia destacando dos talos. Sua aura pareciaaindamaisbrilhante. O general olhou para ela. Nem BenfordnemNatetinhamditoquea garota fora recrutada na Finlâ ndia, maseleestavaquasecerto,eachava quejáerahoradeiralém. — Você teve uma sorte danada até agora, minha querida — falou baixinho.—Mesmonestemomento, comaUniã oSovié ticareduzidaapó , omonstrocontinualá ,logoabaixoda superfície. Dominika icouassustada:podia sentir que estava sendo enredada. Deu-se conta de que nã o fora tã o esperta quanto havia imaginado, a inal. Korchnoi estava descon iado. Nã o,maisqueisso:elesabia.Ovelho feiticeiro. E agora, o que fazer? Se insistissenamentira,elacontinuaria mostrando desrespeito e correria o risco de ser afastada da operaçã o, assim como do departamento. Se confessasse tudo, colocando a vida nasmã osdogeneral,quemotivoele teriaparanã odenunciá -la?Lefortovo seriaumacolô niadefé riasdiantedo destino que a esperaria nesse caso. Defenda-se,elapensou. — Conheço esse monstro de perto — falou, altiva. — Dormi nos porõ es de Lefortovo. Fui obrigada a passar pela Escola de Pardais. Forçada a ver um homem ser assassinado com um garrote; por pouco nã o arrancaram fora a cabeça dele.MinhaamigaMartadesapareceu em Helsinque. Disseram que ela desertou,masnãonasciontem. Só entã o ela percebeu que estava falando alto demais para o espaçotãoreduzidodaquelacozinha. Korchnoi nã o pô de deixar de notararapidezcomqueelaperdiaas estribeiras. Decidiu pressionar um poucomais: — Esse rapaz americano, Nash, vocêgostavadele? —Achoquesim—retrucouela. —Eraumcaraengraçado,agradá vel, cortê s. Eu nã o sabia que os americanoseramassim. Derepenteseachouumaidiota, malacreditandoquedissera“cortê s”. Korchnoi ainda a encarava, irradiando seu violeta, visivelmente calmo. Era como se ela fosse um passarinho enfeitiçado, incapaz de fugir ao ver uma serpente rastejar pelosgalhosdeumaá rvorerumoao ninho. — Tenho a impressã o de que você conheceuesserapazmuitomais do que admitiu nos relató rios que mandou de Helsinque — disse Korchnoi, e se calou para mexer o molho.Obarulhodacolhernapanela foi o ú nico som na cozinha até que, com delicadeza, ele arriscou: — Comofoiqueelesrecrutaramvocê? Dominika permaneceu imó vel, olhando para ele. Abriu a boca para dizer algo, mas nã o encontrou as palavras.Sabiaquehaviaalcançadoo cume daquela montanha de riscos e perigosquede inia sua vida secreta. Aquilo era muito mais difı́cil do que resistir à brutalidade de Lefortovo. Suas mã os tremiam quando ela pousou a taça de vinho sobre a bancada. Korchnoi ainda mexia o molhoeacozinhasepreenchiacomo halo violeta que ele irradiava. Ela podiasentiraforçaincontestá velque vinha daquele homem. Sabia que contava apenas consigo mesma, que precisavaseproteger,sairdaliefugir para algum lugar. Foi entã o que Korchnoi, a velha raposa, disse algo extraordinário: — Dominika, eu posso ver. Estou lhe dando aoportunidade de me contar a verdade, de con iar em mim.Nãovoulhefazernenhummal. Meu Deus, pensou ela,que belo interrogador daria esse general! Mas sua intuiçã o lhe dizia que ele estava sendo sincero, que realmente nã o tinha a intençã o de prejudicá -la. Ela queria que ele a ajudasse,precisava dividiraquelefardocomele. — Comecei obedecendo à s ordens darezidentura, tentando recrutar Nate enquantoele tentava fazer o mesmo comigo — começou ela, trê mula. — Era uma corrida pra verquemrecrutavaooutroprimeiro. Ainda resistia, ainda hesitava à beira do penhasco. Dera uma resposta evasiva, nã o confessara nada. Korchnoinãoadeixariaescapar. — Sim, eu sei — falou. — Mas ouça com atençã o: eu quero saber comoelesrecrutaramvocê. Dominika balbuciou alguma coisa incompreensı́vel, como o sussurro de uma sonâ mbula, e Korchnoi arqueou as sobrancelhas, ainda à espera de uma resposta. Nessemomento,eladecidiusaltardo penhasco e colocar a vida nas mã os dele. — Eles nã o me recrutaram. Eu escolhi trabalhar pra eles. A decisã o foiminha.Assimcomoascondições. Korchnoi encheu uma panela comá guadapia,levou-aparaofogã o e jogou dentro um punhado de sal. Sinalizou para que Dominika se aproximasseelheentregouacolhera imdeque ela continuasse mexendo omolho. — Nã o teve nada a ver com amor — continuou ela num iapo de voz.—Foiumaquestãodeescolha. Korchnoi nã o disse nada, mas Dominika sabia que estava segura. Saltaradopenhascoeagoraseviaem pleno voo, o vento rugindo à sua volta, o mar explodindo contra os rochedoslá embaixo.Elaplanavanas alturas,massabiaqueestavasegura. O homem estava satisfeito. Nã o via a con issã o dela como uma fraqueza, uma insanidade ou uma estupidez. Observara como ela calculara as palavras, como avaliara as intençõ es dele, mas, acima de tudo,notaracomadmiraçãocomoela con iara nos pró prios instintos para daraquelesaltomortal.Suaconfissão haviasidouma importante prova de con iança. No futuro pró ximo ela teriadeconfiarnele. Agora era sua vez de arriscar. Em catorze anos ele nunca dissera nadaaningué m,masnã ohaviaoutro jeito: para que aquela estraté gia de sucessã o tivesse alguma chance de ê xito era preciso que eles construı́ssem uma só lida parceria. Abrir o jogo seria tã o difı́cil para ele quantoforaparaela. Eles estavam bem pró ximos no exı́guo espaço da cozinha, o gá s chiandonasbocasdofogã o,omolho crepitando sobre o fogo baixo, a colher de pau produzindo um ruı́do quasemusicalaoroçaroalumı́nioda panela.Seminterromperoquefazia, Dominika olhou para Korchnoi. Ficava ainda mais bela assim, de perto, mas ele gostou de ver que ela nãoseaproveitavadisso. — E agora, o que vamos fazer? — perguntou Dominika baixinho. — Vocêvaimedenunciar? Ela queria ouvir as palavras da boca dele, caso fosse essa a sua intenção. —Voufazerissosevocê deixar essa massa passar do ponto — respondeu Korchnoi. Em seguida, jogou na panela as varetas secas de bucatini,queseespalharamemleque na á gua fervente. — E tome cuidado praqueomolhonã ogrudenofundo. Vou ali tirar este paletó e esta gravata.—Foiemdireçã oaoquarto, mas ainda no corredor parou e pensou:Tem de ser agora. Voltou à cozinha e disse: — Sabe de uma coisa? Tenho plena consciê ncia de que minha tristeza nã o vai trazer minha mulher de volta, mas, desde que iqueisemela,nã oacreditomais em causa nenhuma. Meu coraçã o virou uma pedra. Perdi completamente a fé na ideologia o icial. Continuava fazendo meu trabalho, mas nã o me considerava u mdeles. Eles nã o mereciam minha idelidade,assimcomonã omerecem asuaagora.Elesmesmosjustificamo nossodesprezo. Pronto. Agora nã o havia mais como voltar atrá s. Ele a encarava, e ela o itava de volta com os olhos arregalados, tentando digerir todas as implicaçõ es daquelas palavras enquanto ele afrouxava o nó da gravata. —Évocê? — sussurrou ela, por im. — E você que eles estã o procurando?Vocêéo... Korchnoi levou um dedo aos lábiosparasilenciá-la. — Atençã o ao molho. Nã o pare demexer—disse,elhedeuascostas, voltando para o corredor com seu mantovioleta. *** — As chances de sucesso sã o grandes, e os riscos operacionais, mı́nimos — garantiu o general Korchnoi. — Estamos prontos pra retomar a operaçã o em Roma. Conheçobemacidade. —Continue—ordenouVanya. Elesestavamnosofá dasalado vice-diretor e Zyuganov tinha se acomodado numa das poltronas laterais. — O cabo Egorova deverá procurar o chefe da CIA em Roma. Sabemos o endereço dele no centro histó rico. Vamos escolher um domingo chuvoso e modorrento em que todo mundo esteja grudado nos jogos de futebol da TV. Egorova dirá que icará apenas alguns dias na cidadecomomensageiradoSVR,que correumuitosriscosparaprocurá -lo e que gostaria de entrar em contato comNathanielNash,oadidoqueela conheceunaEscandiná via.Ochefeda estaçã o saberá o que fazer. Irá ligar paraoNash,eelepegará oprimeiro aviãopraRoma. —EdepoisqueNashchegar?— perguntouEgorov. — E bastante prová vel que eles se encontrem no quarto de hotel do americano — retrucou Korchnoi. — Procedimento-padrã o. Ela vai dizer quefoitransferidaparaoserviçode mensageiros e que por isso fará viagens frequentes para a Europa, AsiaeAmé ricadoSul.Osamericanos, claro, icarã ointeressadosnoacesso dela, na possibilidade de interceptar ummalotedoSVR.Essahistó rianos permitirádeterminarafrequênciaea duraçã o dos contatos futuros, e assim Egorova poderá reacender o relacionamento que começou em Helsinque. —Ótimo—elogiouEgorov. — Vou permanecer nos bastidores—continuouKorchnoi—, intervindo e aconselhando sempre quenecessário. — Estou con iante em que vai dartudocerto. — Posso fazer uma sugestã o operacional aos colegas? — perguntouZyuganov.—Porquenã o fazer Nash vir ao encontro de Egorova no hoteldela? Quanto mais controle tivermos, maior a segurança. Korchnoi se perguntou por que ognomodisseraaquilo. —Aestaalturaissoéapenasum detalhe — a irmou Vanya, abanando a mã o. — Por enquanto vamos nos concentrarnosucessodaoperação. — Claro — falou Zyuganov, deferindo ao chefe. Entã o, dirigindose a Korchnoi: — Você nos manterá informadosdetudo,nã oé ?Asdatase os horá rios dos encontros, os locais etc. — Claro que sim — disse Korchnoi, enfá tico. — O mais regularmente possı́vel, a menos que haja algum impedimento de força maior. — Muito obrigado, general — retrucouZyuganov. *** Korchnoi atravessava com Dominika um dos longos corredores deYasenevo.Elesagoraconheciamo segredo um do outro. Nada era dito, mas os olhares eram carregados de signi icado e o vı́nculo entre os dois se tornara indestrutı́vel, talvez até um tanto desconfortá vel. Dominika caminhava ao lado do general, mancando discretamente como sempre, mas em sua cabeça ela voava: visitaria Roma pela primeira vez e voltaria a ver Nate. Eles já haviam chegado aos elevadores quando, percebendo que o chefe estava um pouco agitado, ela perguntou: —Oquefoi? Agora,todasasinteraçõ esentre eles tocavam no monumental segredoquedividiam. — Alguma coisa nã o está certa. Precisamos redobrar os cuidados durante nosso pequeno passeio em Roma — disse ele. — De agora em diante, Dominika, você vai ter de fazerexatamente o que eu mandar. Likha beda nachalo. Os desastres semprecomeçamcomumproblema. Eles entraram no elevador e as portassefecharam,engolindo-ospor inteiro. Zyuganov falava ao telefone em seu escritó rio. As paredes do pequeno recinto eram cobertas de fotos dele na companhia de seus colegas do SVR, ora na praia, ora diante de uma dacha, ora posando juntos em formaçã o. A maioria já havia sumido do mapa, expurgada porsuaspró priasmã os,talcomoele sempregostavadeobservar. Elebalançavaacabeçaenquanto repetia “Da, da...” ao telefone, como se estivesse recebendo instruçõ es detalhadas. — Sim, senhor, entendido. Sei exatamente o que precisa ser feito. Sim,senhor.—Eledesligouelogoem seguida chamou a secretá ria pelo interfone. — Peça ao Matorin que venhaatéminhasala.Já—ordenou. Pro serovo rech a servy, navstretch, disse a si mesmo, recostando-se na cadeira. Basta pensarnodiaboparaeledarascaras. O MOLHO DE TOMATE DE MARBLE Refogar cebolas picadas, alho amassado e filés de anchova no azeite até que o ambiente fique perfumado e os filés comecem a se desmanchar. Acrescentar um pouco de massa de tomate no meio da panela e mexer até que ela adquira um tom ferruginoso. Acrescentar tomates maduros picados, orégano macerado, pimenta dedo de moça e manjericão fresco. Temperar a gosto. Deixar o molho reduzir até engrossar e, como toque final, acrescentar um fiapo de vinagre balsâmico. Decorar com folhinhas de manjericão. Servir com massa ou almôndegas. CAPÍTULO 31 O MOVIMENTO NA REZIDENTURAEMWashingtonvinha icando cada vez mais fraco: uns preparavam chá na cozinha, outros liam o jornal, outros assistiam aos telejornaisdaCNNoudocanalrusso RTR-Planeta.Vezououtraalgué mse levantava para espiar atravé s das persianas que deviam ter sido abertas pela ú ltima vez em 1990. Quanto aos cabogramas diplomá ticos, nada chegava, nada saı́a. Almoços eram cancelados, contatosnovoscomeçavamaesfriar. Assemanasseguidasdevigilâ nciado FBI, tanto as motorizadas quanto as realizadas a pé , eram sufocantes, esmagadoras,algoquenuncasevira antes.Apó soprimeiromê sacentral havia ordenado a interrupçã o, até segunda ordem, de toda a atividade operacional. També m pedira à rezidentura que preparasse uma avaliaçã odesegurançaparaexplicar a situaçã o. O problema era quenão haviaexplicação. Nem mesmo o eleganterezident Golov fora poupado. Em vinte das últimastrintanoiteseledetectaraum esquema de vigilâ ncia veicular dirigidoespecificamentecontraele.A dataparaoencontroalternativocom Swan se aproximava e ele precisava despistar os vigilantes de qualquer maneira; nã o poderia faltar a segundavez.Só Deussabiaqualseria areaçãodamegera. AsdeznoitesemquenemGolov nem sua equipe de contravigilâ ncia tinham detectado o menor sinal de espionagem haviam sido, ao contrá rio de qualquer ló gica, as piores de todas. Noites de incerteza, de dú vida. Talvez os americanos dispusessem de alguma estraté gia nova, alguma tecnologia recente, quem poderia saber? Só mesmo o diabo e mais ningué m. Mas ele precisavadespistá-los. Tudo precisava ser feito para preservar Swan, mas a mulher era o pesadelo de qualquer equipe de segurança.Rejeitavatodaequalquer proposta no sentido de protegê -la: comunicaçõ es eletrô nicas, encontros em hoté is diferentes, datas alternativas previamente combinadas para substituir algum encontro abortado. Ela nã o aceitava nadadisso.“Seeutiverotrabalhode me despencar pra um encontro marcado”,disseraaGolov,“é melhor que você e sua bunda estejam lá à minha espera.” A mulher era impossı́vel. A vontade de Golov era passá -laparaasmã osdealgumilegal de pouca visibilidade, mas Moscou nã o deixava, sobretudo depois do que acontecera ao ilegal de New London. Portanto,Golovseviadiantede um dos clá ssicos dilemas da espionagem: ter de encontrar um ativo importante numa noite e num localpredeterminados,adespeitoda existê ncia ou nã o de vigilantes nas ruas. Abortar a missã o seria inaceitá vel, impossı́vel. Aquela noite seria o encontro “estepe” que eles tinhamcombinado.Eletinhaqueir. Durante a tarde, ele repassou com a equipe de contravigilâ ncia todasaspossı́veis rotas de detecçã o devigilâ ncia.Falouquequeriatentar atrair todos os adversá rios de uma vezparaforadeseusesconderijose, mais importante, tentar escapar de todoselesjuntos.Elesestabeleceram um có digo numé rico a ser transmitido pelos rá dios criptografados para sinalizar que a estraté gia havia funcionado e em seguidareviramasrotasumaú ltima vez. Golov sabia que aquilo era uma loucura.Apenasumativotã ovalioso quanto Swan justi icava tamanho risco. Alé m disso, a central vinha insistindo,entãoeleprecisavatentar. Nomeiodatarde,osoitocarros atravessaram os portõ es da embaixada e seguiram pela Avenida Wisconsin, Golov entre eles com seu BMW Sé rie 5. Ao constatar que cada um deles tomava uma direçã o diferente, os sentinelas do FBI anunciaram pelo rá dio, no mesmo instante, que se tratava de uma formaçã o estrela, tá tica tradicional para sobrecarregar a vigilâ ncia adversá ria e, com sorte, deixar o caminholivreparaumoudoiscarros. O anú ncio també m foi ouvido pela equipe Orion da CIA. Interessados apenas em Golov, eles continuaram esperando pacientemente até receberemalgumainformaçã osobre orezident,quedirigiaoprópriocarro. Comsuaequipedecontravigilânciajá à esperaaoestedaWisconsin,Golov continuou seguindo por ela até alcançar a Avenida Western, que demarcava a fronteira entre o distrito de Colú mbia e Maryland, depois virou para o sul, embrenhando-se em zigue-zague pelas ruas de American University Park. A certa altura ele estacionou o carro, esperou e dali a quinze minutos recebeu o sinal da contravigilâ ncia: nenhum sentinela aparente. Seus homens nã o tinham visto os dois carros parados que os Orionsjá haviamdespachadoparaas redondezasdobairro. Golov voltou para a direçã o oesteeseguiupelasruasresidenciais enquanto sua equipe fazia um caminho paralelo. Ningué m via ou farejava qualquer sinal da movimentaçã o adversá ria simplesmente porque nã o havia nenhum. Os homens da contravigilâ ncia continuaram cobrindo Golov enquanto ele pegava a Canal Road e atravessava a Chain Bridgenadireçã odaVirgı́nia.Issofoi informado por um dos carros dos Orions que esperava no cruzamento daArizonacomaCanal,aú nicarota possı́vel para a travessia do rio Potomac entre Georgetown e o Anel Rodoviá rio. Os Orions icaram tentados a invadir os subú rbios da Virgı́nia, mas o lı́der da equipe, um ex-instrutordevigilâ nciade65anos chamado Kramer, os havia instruı́do a aguardar. Kramer preferiu despachar trê s carros para seguir Golovparalelamenteaocaminhoque ele traçava do lado de Maryland do Potomac.Elesagoramargeavamorio na direçã o norte, antecipando-se à rota do russo, uma de suas estratégiasclássicas. Umdosveı́culos era guiado por uma vovó (igual a qualquer outra quando nã o estava rastreando agentes do SVR) que se dirigiu ao estacionamento da Eclusa 10 no parquenacionaldocanalChesapeake eOhio. O segundo, també m conduzido por uma velhinha, foi para o Old Angler’sInndaMacArthurBoulevard, 6 quilô metros à frente; a respeitá vel senhora se acomodou numa das mesas externas e icou admirando o entardecer,tentandoadivinharquais dos casais espalhados à sua volta estavamtraindooscônjuges. AterceiraOriondespachadapor Kramer, uma tia-avó , foi para outro local 6 quilô metros ao norte do vilarejo de Potomac, parou no Hunters Inn e pediu uma saladinha, emboraaindafossecedoparajantar. Enquanto aguardavam, as trê s mulheres anotavam a placa dos carros que por algum motivo chamavam sua atençã o e observavam os pedestres que se demoravam por ali. A lista de suspeitos crescia. Seria possı́vel que algum deles estivesse à espera do BMWpreto?Osoutrosdoiscarrosda equipeOrion(quenaquelediaestava reduzida) se separaram: um deles cobriaasredondezasdaRiverRoada sudestedoPotomaceooutroestava estacionado à entrada do parque nacional,aondetraidoresamericanos do passado, como Walker, Ames, PollardePelton,tinhamidorecolher sacos de dinheiro russo nas entranhas de uma á rvore qualquer. OsOrionsestavamsentadosimó veis, escaneando o perı́metro com os olhos,tentandoavistarore lexoouo vulto negro de um BMW. Caso Golov seguisse para a Virgı́nia, eles perderiam; se voltasse para Maryland,masnadireçã oopostaà do Potomac,perderiamtambé m.Só lhes restava esperar. Era assim que funcionava a estraté gia que tinham colocado em curso. Haveria outros dias e outras noites. A ú nica coisa queprecisavamfazereraestarcertos umasóvez. *** Dessa vez, poré m, eles estavam errados, pois Golov voltou para Maryland pela I-495, uma via expressaqueolevaria,juntocomsua equipe de contravigilâ ncia, até o ú ltimo trecho da rota combinada, a sinuosaBeachDrive,queatravessava o Rock Creek Park ora entrando, ora saindo do bosque, sempre margeando o riacho até a altura de Georgetown. Assim que ouviu pelo rá dioainformaçã odequeocaminho estava livre, Golov saiu da Beach Drive no inal do Rock Creek e estacionou na Rua 22, no West End, deixando sua equipe continuar o caminho para o sul. Na hipó tese de queoFBItivesseconseguidoplantar um sinalizador no BMW (o que era imprová vel, pois alé m de nunca ser deixado sozinho o carro era submetidoaumarigorosavarredura semanal), eles o encontrariam a um quarteirã odedistâ nciatantodoRitzCarlton quanto do Fairmont Hotel, emalgumlugarnocorredordemais de cinquenta restaurantes da Rua K. Se quisessem pegá -lo, teriam de entrar em cada um desses estabelecimentos. Golov trancou o carro e atravessou a pé os seis quarteirõ es que o separavam do bom e velho Tabard Inn. A essa altura já havia anoitecidoeumaluzsuaveiluminava ointeriordohotelzinho. Maisumaloucura,usaromesmo local de encontro duas vezes seguidas.Pelomenoshaviadecorrido um tempo razoavelmente longo desdeaú ltimareuniã o.Goloventrou no hotel, atravessou o lobby e foi direto para o jardim dos fundos. Dessa vez Swan já estava lá . Ela ocupava uma mesa junto ao muro e serecostavanele,fumando.Golovse preparou para a bronca. Swan acabara de pedir outra bebida ao garçom. A sua frente havia um copo longo vazio. Ela vestia um terninho azul com uma camisa vermelha e usava um colar de pedras azuis. Nas unhas, o esmalte vermelho combinava com a blusa. Os cabelos lourosestavampenteadosparatrá se orosto,sobaluzdifusadaslâ mpadas que pontilhavam as á rvores, parecia envelhecidoeumtantoressecado. — Como vai, Stephanie? — cumprimentouGolov. Estendeu a mã o para a senadora, mas foi ignorado. Restoulhe abrir um sorriso e se sentar també m. O garçom chegou com o uı́sque duplo dela. Cansado e doloridoapó scincohorasnointerior deumcarro,GolovpediuumCampari comsoda. — Anatoly — disse Stephanie, sorrindo e rosnando ao mesmo tempo —, faz quase uma hora que estouplantadanestejardimridículo. Precisou acionar o isqueiro umas dez vezes antes de conseguir acendermaisumcigarro. — Desculpe — retrucou Golov —,maseuestavatentandoevitarque oFBIinteiroviessejantarconosco. — Muito pro issional da sua parte. —Poderı́amosfacilitarmuitoas coisas se você aceitasse fazer algumas pequenas mudanças — comentouele. — Esse assunto de novo, nã o. Mas icoaliviadaporsaberquevocê sepreocupacomaminhasegurança, sobretudo agora que estã o virando Washingtonpeloavessoà procurade um informante no alto escalã o do governo. —Emesmo?Oquevocê ouviu? Nã o temos nenhum motivo para recear que seu status tenha sido comprometido — a irmou Golov. — Temoscertezaabsolutadequetanto o FBI quanto a CIA nem sequer suspeitam do nosso relacionamento. Apenas cinco pessoas no mundo sabemquemvocê é ,eessalistainclui nó s dois. Que histó ria é essa sobre umabuscaemWashington?Detalhes, Stephanie,porfavor. A coisa devia ser importante. Sua cabeça começava a coçar, e isso eraummausinal. — Que bom que você está tã o con iante. Mas como explica o brie ing que ouvi de um daqueles idiotas da CIA durante uma sessã o particular do comitê ? Alguma pista eles tê m. Estã o procurando algué m quesofredeherpes.Você sabeoque é isso, nã o sabe? Aquelas feridas vermelhas que doem à beça? Tanto quanto minha bunda está doendo agora? Elainclinouacabeçaparatrá se terminou seu uı́sque, os cubos de gelo batendo contra os dentes. Imediatamentepediumaisum. — Stephanie, você nã o sofre de herpes,sofre?—perguntouGolov. Ele teria de repassar informaçãoaindanaquelanoite. Stephanie irritação. o encarou a com — Isso nã o vem ao caso. Você sabe tã o bem quanto eu que nã o posso colocar minha posiçã o em risco. Suei muito pra chegar aonde cheguei. Golov icou pasmo ao constatar que, cega por seu ego sem limites, a mulherviaaquelejogoterrivelmente perigoso apenas como um possı́vel obstá culoasuaascensã onacarreira polı́tica. Seria possı́vel que nã o izesse nenhuma ideia dos riscos envolvidos?Dasconsequências? — E por isso que insisto que passemos a nos encontrar num quartodehotel—disseele. — Vou pensar no assunto. — Stephaniedeuumaolhadadecimaa baixonogarçomquandoeletrouxeo terceiro uı́sque. — Tem mais uma coisa — falou com irmeza, no mesmo tom que usava durante os depoimentos no Congresso. — Se vocês izerem alguma merda e a polı́cia federal vier bater n aminha porta, iquem sabendo que nã o vou pra porra de prisã o nenhuma. Nã o v o umesmo. Entã o eu gostaria que você s me dessem alguma coisa... permanente. Algo que eu possa tomar. Golov se recostou na cadeira, perplexo.Assustadacomaexistê ncia de uma operaçã o federal, a mulher agoraqueriaumapı́luladecianureto. Uma senadora dos Estados Unidos. Deondeelateriatiradoaquelaideia tã o absurda? Ele se debruçou na mesa, tomou as mã os dela entre as suas e retrucou com toda a delicadeza: —Stephanie,meuanjo,issofoia coisa mais estapafú rdia que você já disse. Você só pode estar brincando. NemnostemposdaGuerraFriahavia isso.Nuncahouve. —Achoquevocê está mentindo pra mim, Anatoly — respondeu ela, dando um sorriso vago enquanto desvencilhava as mã os das dele. — Ou você me dá o que estou pedindo ou nossa “parceria”, como você diz, está acabada. Quando nos encontrarmos de novo daqui a um mê s, você vai chegarpontualmente e vai me entregar uma linda caixinha para pı́lulas feita de mar im. Ou de madrepérola. — Mal posso acreditar no que estououvindo—disseGolov.—Vou consultarMoscou,masduvidomuito queelesautorizemumacoisadessas. Como de costume, Stephanie esperou até o im do encontro para tirardabolsaoCDquehavialevadoe jogá -lodeformacasualsobreamesa. Antes de guardá -lo no bolso, Golov notoualogomarca da PathFinder no estojopreto.Amegeratemumtalento inquestionável para o drama , ele pensou,vendo-acambaleardevoltaà rua.Herpes. *** Anatoly Golov estava num quarto do Tabard Inn, refestelado numa cadeira de balanço. O cô modo tinha uma cama de dossel num dos cantos,grandedemaisparaoespaço relativamente pequeno, dois pô steres de animais de um circo francê s pendurados nas paredes cobertas de papel de motivos lorais em tons de roxo e, no chã o, um caóticotapetepersa. Nã o tivera nenhuma tré gua no pesado esquema de vigilâ ncia dos americanos sobre os o iciais da rezidentura desde o ú ltimo encontro dele com Swan. Portanto, em vez de arriscar mais uma penosa rota de despiste, Golov fora autorizado pela central a tentar uma clá ssica estraté giaparapassardespercebido. Na manhã do encontro, ele se espremera no porta-malas do carro do adido econô mico com um pequeno tanque de oxigê nio para respirar. As esposas de trê s o iciais da embaixada entraram nesse mesmo veı́culo e, sem atentar a qualquer esquema de vigilâ ncia, seguiramparaFriendshipHeighs,na parte norte da Wisconsin Avenue. Obedecendoà sinstruçõ esrecebidas, entraram num estacionamento subterrâ neo, deixaram o carro e foramàscompras. Outraesposarussajá aguardava no estacionamento. Apó s observar o carro por quinze minutos para se certi icar de que nã o havia nenhum vigilanteporperto,elaseaproximou do porta-malas com suas sacolas de compras, bateu nele duas vezes e o destrancou para que Golov, a essa altura já bastante irritado, pudesse sair. Ele praguejou contra o caso Swan, contra Moscou, contra o SVR, masgostoudesaberqueestavalivre do olhar indiscreto da vigilâ ncia americana. O velho truque do portamalas funcionara. Ele deixou o estacionamento e seguiu a esmo na direçã osul,oratomandoumô nibus, ora um tá xi, sempre evitando as estaçõ es de metrô e suas câ meras onipresentes. Nas imediaçõ es do Dupont Circle ele ainda passou duas horasemalgumaslivrariasenum pequeno bistrô . Assim que o sol começou a se pô r e o trâ nsito chegou à hora do rush, ele contornou o parque, seguiu pela Rua 19, entrou na Rua N e percorreumaisquatroquarteirõ es até alcançar o Tabard Inn. Nenhum sinaldevigilâ ncia.Comoobjetivode se misturar à multidã o, ele havia escolhidoroupasmaisinformais,que nã o costumava usar: casaco de veludo marrom por cima de um moletom da mesma cor, calças de veludo cotelê e sapatos de camurça. Ossapatosmaisconfortá veisaté que tinham vindo a calhar. Ao entrar no hotel, ele colocou um pesado par de óculos. Já noquarto,comeuumpratode mexilhõ es gratinados com queijo de cabra, acompanhado de um vinho Vernacciatoscano.Sentia-sealiviado por ter conseguido alugar aquele quarto com uma identidade falsa e chequesdeviagem.Faziaanosdesde aú ltimavezqueprecisararecorrera esse tipo de estraté gia, coisa de quem estava em inı́cio de carreira, mas nã o deixava de ser divertido passardenovoporaquelaespé ciede aperto. Apesardosotaqueestrangeiroe daausê nciadereservaebagagens,a atendente do outro lado do balcã o nã o colocara nenhum obstá culo. A inal, via-se claramente que se tratavadeumsenhordistinto.Golov foi conduzido ao pequeno mas elegante quarto no segundo andar, onde poderia conversar com a senadora com tranquilidade. Privacidade era de fundamental importâ ncia, sobretudo levando-se em conta o que ele tinha para entregaraela. Quando terminou de comer, Golov foi ao banheiro e jogou um pouco de á gua no rosto. Olhando-se no espelho, praguejou mais uma vez contrao SVR. Em seguida desceu para o lobby e se acomodou no sofazinho verde meio mofado que dava para a porta do hotel. Com uma revista aberta sobre o colo, icou esperando ali,ansioso. Stephanie Boucher entrou no Tabard Inn como se fosse a proprietá ria do lugar. Nã o viu Golov nosofá (osó culosdegraudesfaziam um pouco o aspecto nobre de suas feiçõ es) e passou direto por ele. Era uma mulher acostumada a ser alvo dosolharesnoslugares,nã oaterde procurarquemquerquefosse.Golov alcançou-a no corredor e eles subiram as escadas para o segundo andar. Ningué m os vira. Golov destrancou a porta e deixou que Stephanie entrasse primeiro. Ela correuosolhospeloquarto,abriuum sorrisoirônicoedisse: —Muitoaconchegante,Anatoly. Sempre descon iei que você fosse romântico. Ignorando a ironia, Golov ofereceu-lhe uma taça de vinho, que ela aceitou no lugar do habitual uísque. — Os encontros entre quatro paredessã osempremaisseguros— comentouele—,masdapró ximavez precisamos escolher outro hotel. Eu insisto.Moscoutambém. — Que bom pra você e pra Moscou — retrucou Swan, erguendo a taça já vazia para que o russo a enchesse de novo. — Você trouxe minha... vitamina? Diga que sim, Anatoly, e eu vou icar muito satisfeita. Golov lembrou-se de um informante que ele mesmo operara emBeirute,umcristã omaronitaque icara tã o acostumado a pedir dinheiroepresentesantesdepassar alguma informaçã o que apó s um tempo a situaçã o acabara icando insustentá vel. Golov orientara a equipe Vympel da KGB a colocar pesos no corpo do homem e empurrá -lo de um dos penhascos de Raouché ,maisoumenosnaalturada famosa Rocha dos Pombos. Pois era exatamente isso que ele gostaria de fazer agora com a senadora americana. —Tenhoboasnotícias. Golovserviuovinhoesesentou ao lado de Stephanie no sofá de veludo.Emseguidatiroudobolsodo casaco uma caixinha oblonga, colocou-asobreamesaeabriu-a.No interiorhaviaumaso isticadacaneta alojada numa almofadinha de seda azul-clara. Tratava-se de uma Montblanc Etoile, com seu elegante formato de ampulheta; na ponta leitosa,aicô nicaestrelinhabranca,e naextremidadedo clipe, uma pé rola Akoyaperfeitamenteincrustada. — Que Stephanie. linda — elogiou Esticou o braço para pegá -la, mas foi detida por Golov, que a seguroupelopunhoeaafastou. — Linda mesmo, mas nã o foi isso que pedi. Queria alguma coisa quepudessetomar.Umcomprimido. — Nã o tem comprimido nenhum—retrucouGolov,umtanto rı́spido.—Chegamosaumconsenso emrelaçã oasuademandaabsurda,e é istoquetemospravocê .—Pegoua canetaeexplicou:—Está vendoesta pé rola aqui? Você aperta as bordas com irmeza e vai puxando devagar, comcuidado... A pedra se soltou de repente. Presa a ela havia uma agulha de aproximadamente 2 centı́metros escondida no interior do clipe da caneta. Tinha um tom de cobre queimado,comosealgué mativesse exposto a uma chama. Golov empurrou-a de volta para o canal secreto e pressionou a pé rola até travá-lanolugar. — O que é isso? — indagou Stephanie.—Pediumacoisasimples. — Fique quieta e eu explico — desferiu Golov. Precisou resistir ao impulso de retirar a agulha novamenteeespetá -lanopescoçoda megera. Recompondo-se, disse: — Esta agulha é revestida de um composto natural. Basta perfurar a pele, em qualquer lugar, e depois coçar o local. O efeito é quase imediato. Dez segundos no má ximo. —AntesqueStephaniepudessefazer qualquer objeçã o, ele continuou: — Isto é muito mais e icaz do que um comprimido.Esqueçaoquevocê viu no cinema. Uma pı́lula perde a potê ncia com o passar do tempo. Esta agulha, nã o. Vamos lá , tente retirá -la.—Eleen imlheentregoua peça. —Muito devagar. E commuito cuidado. Com as mã os tremendo um pouco, Stephanie tirou o objeto do estojo, sentiu seu peso na palma da mã o e depois puxou lentamente a pé rola para fora do clipe. A agulha reluziu sob a iluminaçã o do quarto. Eramenorqueosmodeloscomunse talvez por isso tivesse um aspecto especialmente ameaçador. Com o mesmo cuidado de antes, Stephanie empurrou-a de volta e prendeu a canetaentreosbotõesdacamisa. — Obrigada, Anatoly — disse, agoramaiscalma. Depois que a gravidade do momento passou, ela olhou à sua voltaesedeteveporuminstantena cama de dossel. Virou-se para Golov e,parahorrordele,perguntou: —Eaí,vairolarounãovai? OS MEXILHÕES MEDITERRÂNEOS DE GOLOV Formar uma pasta homogênea com manteiga à temperatura ambiente, queijo feta esfarelado, farinha de rosca, azeite, orégano fresco e suco de limão. Enrolar e levar ao refrigerador. Colocar uma colherada dessa pasta em cada um dos mexilhões abertos e firmar as conchas num leito de sal kosher. Gra nar por um ou dois minutos, até a manteiga derreter. Espremer limão sobre eles e servir. CAPÍTULO 32 ALUZDOSOLINCIDIAsobreas fachadas de má rmore e os telhados pardacentosdeRoma.Portodaparte se ouvia o zumbido dasmotorini pilotadas por moças de cabelos negros usando sapatos de salto alto. OgeneralVladimirKorchnoiabsorvia apaisagemà suavolta,lembrando-se da é poca em que aquelas mesmas ruas haviam sido seu territó rio operacional. Num restaurantezinho rú stico poré m elegante chamado La Taverna dei Fori Imperiale, ele escolheuopratodeseualmoçocom Dominika:spaghettiallabottarga.Ela nunca ouvira falar daquilo, mas salivou quando a tigela de massa embebidaemazeiteesalpicadacom as ovas douradas de tainha chegou. Olhou por cima da mesa para Korchnoi, que assentiu, satisfeito. Aquilonã osepareciaemnadacomo caviarrusso,elapensou. Oestabelecimentoseresumiaa duas salas minú sculas com paredes de estuque branco, murais em tons desbotadosepisodecerâ micapreta e branca. Localizava-se no meio da Via Madonna dei Monti, uma ruela estreita e muito antiga de pré dios igualmente antigos e estabelecimentos como padarias, serralherias etc., que faziam o ar recenderapãoeserragem. No dia anterior, Dominika procuraraochefedeestaçã olocalda CIA e lhe entregara sua mensagem, junto com o nú mero de seu celular pré -pago. Ao observar o comportamento de sua funcioná ria, Korchnoi gostara de ver a tranquilidade e a irmeza que ela demonstrara tanto antes quanto depoisdocontato.Dominikagostava de estar nas ruas: o rosto corava de entusiasmo, os olhos re letiam os esguichos das inú meras fontes italianas. Korchnoi havia alterado os planos operacionais assim que os dois saı́ram de Moscou, insistindo com Dominika que eles encontrassem os americanos nas ruas da cidade e depois fossem com eles a algum quarto de hotel providenciadopelaprópriaCIA. — Me perdoe, mas nã o con io nem um pouco no seu tio, e muito menos em Zyuganov — disse ele agora, apó s o almoço, caminhando com ela sem nenhuma pressa pelas ruasromanas. Eles passaram pelo fó rum, atravessaram uma passagem estreita, depositaram uma moeda numacaixinhametá licaedesceramà Prisã o Mamertina, imaginando Sã o Pedro sendo baixado para seu cá rcereatravé sdeumburacoaberto nas rochas do monte Capitolino. Sufocados dentro do espaço minú sculo, logo voltaram à s ruas a céuaberto. Seguiramcaminhandoemziguezague pelos bairros, usando mais o tempo que o espaço como recurso paradespistarvigilantes.Korchnoiia conversando com Dominika, vez ou outra interrompendo a caminhada parapousarumadasmã osnoombro dela. Contava como era a vida de agente duplo, como era trabalhar para a CIA debaixo das barbas do SVR. A certa altura eles se sentaram numbancojuntoaumobeliscopara tomar u magranita, uma espé cie de sorvete de café . Sempre observando os pedestres e os carros estacionados,conferindoashorasno reló gio de vez em quando, Korchnoi explicou que um espiã o precisava estabelecer limites entre o risco e a inconsequê ncia: tinha que saber ouvir com discernimento, e nã o necessariamente aceitar, as instruçõ es que recebia de seus operadoresamericanos. —Easuavidaqueestá emjogo, o seu bem-estar — disse ele. — Em ú ltima instâ ncia, é você quem decide oquefazerecomofazer. Dominika, por sua vez, contou mais sobre sua vida em Helsinque. Falou de suas atividades, do prazer que experimentou ao saber que guardava um segredo importante. Baixando os olhos para oespresso gelado em suas mã os, falou pouco sobreNate,poisnã osabiaaocertoo que sentia por ele, e muito menos o queelesentiaporela.Comoserá que a via? Como informante russa em primeiro lugar, e depois como uma mulher com quem tivera um caso? Ela estava numa posiçã o difı́cil, e Korchnoipercebiaisso. O general ainda falou sobre a santı́ssima trindade que lhe permitira sobreviver por catorze anos como informante da CIA: autocontrole, discernimento e paciê ncia. Havia um entendimento tá cito de que Korchnoi e Dominika “trabalhariam juntos”, mas nenhum dos dois tentou de inir como exatamente seria essa parceria. Nã o eracomumqueinformantesagissem emdupla,eambossabiamdisso.Em nenhum momento Korchnoi falou sobre seu plano de que ela o “sucedesse”. Outro assunto em que nã o tocaramfoiosentimentodecadaum em relaçã o à Rú ssia. Tratava-se de um terreno pantanoso do qual nã o queriam, ou nã o podiam, falar: a traiçã o. Teriam muitas oportunidades para conversar sobre isso depois. O tempo de que dispunham agora daria apenas para terminar a rota de detecçã o de vigilâ ncia e chegar pontualmente ao localmarcadoparaofurtivoencontro comoPrincipalInimigo. *** Marblejá avisaraBenforddeque o contato de Dominika com o chefe da estaçã o de Roma sinalizaria a chegada deles à cidade. Isso desencadeariaumareuniã odalia24 horas na Villa Borghese, ironicamente um lugar muito usado pelaKGBnopassadoedoqualMarble ainda se lembrava muito bem. Em sua comunicaçã o ele també m havia incluı́do uma frase bastante sucinta: “Elaagoraé nossa”,signi icandoque, em essê ncia, Dominika fora recrutada por ele. Era uma situaçã o bastanteinusitada.Doisinformantes, ambossabendodasatividadesumdo outro, um ú nico operador, o caso inteiramente orquestrado por um cientista maluco que era chefe de contrainteligê ncia e duas caçadas paralelas—semfalarnanecessidade de decidir aonde jantar. A inal, eles estavamemRoma,pensouMarble. O celular pré -pago de Dominika tocou quando eles subiam uma das escadarias dos Muros Aurelianos, admirados com o verde-azulado das á rvoresqueoscercavam,aterracota dascerâ micas,odouradodosdomos. Korchnoi atendeu à ligaçã o em italiano, permaneceu mudo por uns dezsegundosederepentedesligou. —Elesjáestãoapostos—falou. —Quetalirmospeloparque? Em meio ao calor da tarde, eles atravessaram a Porta Pinciana e entraramnaVillaBorghese.Korchnoi usava um terno cinza-claro e uma camisa escura, com o colarinho aberto. Dominika vestia uma saia azul-marinhoeumacamisadelistras azuis e cor-de-rosa. Tinha prendido oscabelosnoalto,porcausadocalor. Juntos, os dois poderiam ser vistos como uma pró spera dupla de italianos, pai e ilha talvez indo visitaromuseunocentrodoparque. Korchnoipercebeuqueelaestavaao mesmotempoempolgadaenervosa, osolhosbrilhando.Aindaassim,nã o deixava de esquadrinhar o terreno em busca de vigilantes, catalogando pedestres. Korchnoi conhecia muito bem aqueleparque,claro.Nopassadofora designadocomoo icial jú nior para a rezidentura de Roma, portanto já encontrara muitos informantes ali e deixarainúmerospacotesparaativos em esconderijos, sempre auxiliado por sua jovem esposa, que vigiava o local para ele. Mas isso havia sido sé culos antes. Agora, ele e Dominika caminhavam pelas amplas avenidas de cascalho iluminadas pelo sol que atravessava as copas das á rvores. Pararam alguns minutos diante da FontanadeiCavalliMarini,comseus estranhoscavalosdecascobipartido, depoiscontornaramohipó dromoda Piazza di Siena e seguiram para o Viale del Lago. Korchnoi nã o identi icara nenhum pedestre suspeito, nenhuma indicaçã o de vigilâ ncia ao longo da tortuosa rota que eles haviam percorrido. Agora sentia, mais do que via, o crescente nervosismo de Dominika. Tomou-a pelobraçoeresolveulhecontaruma piada. — Um homem veio procurar a KGB, muito assustado, dizendo que seu papagaio tinha sido roubado. “Isto nã o é conosco”, respondeu o sujeito da KGB. “Vá procurar a polı́cia.” “Eu sei, eu sei”, retrucou o outro. “Já estive na polı́cia. Vim aqui só pradeixarregistradoquediscordo detudooqueaquelepapagaiodiz.” Dominika riu, depois cobriu a boca com a mã o. Korchnoi logo viu que sua intuiçã o nã o estava errada. Aquelamoçatinhatudoparasersua substituta, e Benford veria isso em dezminutosdeconversa. Eles se aproximavam de um pequeno lago arti icial com um templo jô nico dedicado a Esculá pio numailhotacentral.Seguindooolhar de Korchnoi, Dominika avistou um homem baixo e amarfanhado sentado num dos bancos à beira da água. —Benford—disseKorchnoi.— Vou cumprimentá -lo. — Apontou com o queixo na direçã o da ilha. — Continue caminhando em torno do lagoaté chegarà pontezinhaqueleva àilha. Dominika esperou até vê -lo apertar a mã o do homem e se acomodar ao lado dele no banco. Depois, mal sentindo as pró prias pernasecomocoraçã oretumbando no peito, seguiu na direçã o indicada pelo general e pensou no que diria dali a pouco. Que estava com saudades?Não, sua idiota. Vocês não estarão sozinhos. Além disso, hoje é o primeirodiadorestodesuavidacomo espiã.Sejapro issional,Dominika.Seja profissional. Nã o demorou para que ela avistasse um vulto parado na pontezinhametá licaà sombradeum amplosalgueiroenraizadoà margem dolago. Dominika conhecia aquela silhueta, aquele porte, aquele modo de se debruçar sobre um parapeito. Podiaverohaloemtornodele,mais escuro do que lembrava, talvez por contadasombra.Quandoeleaviu,foi emsuadireção,ospassosecoandona ponte. Flores caı́das do salgueiro lutuavam na á gua. Dominika foi ao encontrodeleeestendeuamão. —Zdravstvuy.Olá —disseela,e icou imó vel, esperando que ele ignorasse a mã o estendida e a puxasseparaumabraço. — Dominika — cumprimentou Nate.—Comovai?—Apertouamã o dela e Dominika se lembrou de tudo aosentirotoquedele.—Está vamos preocupados com você . Ficamos muito tempo no escuro, sem nenhumanotíciasua. Violeta e cintilante, exatamente comoelarecordava.Dominikalargou amãodeleefalou: — Estou bem. Agora trabalho comogeneral. Pelomenosissoelaagorapodia contar. Nate nã o queria falar sobre Marble com ela, impedido pelas regras de compartimentalizaçã o. Já haviaensaiadomaisoumenosoque diria ao encontrá -la: que ela signi icava muito para ele, que ele pensaranelatodososdias.Massaiu tudoerrado: — Que bom que você está em campo de novo. Temos muito o que conversar. Ele mal acreditou em suas palavras, em seu discurso de operador burocrata que só pensava em trabalho. Faltava pouco para começaradiscutircomelaasdatase oslocaisdospróximosencontros. Dominika viu o desconcerto dele, o halo pulsando como se escravizadopelasbatidasdocoraçã o. Por um instante eles se olharam em silê ncio e Dominika icou tensa, sabendo que se jogaria naqueles braços se Nate nã o se mexesse primeiroemtrêssegundos. Foientã oquealgué mestalouos dedos, fazendo com que os dois se virassem na direçã o do ruı́do. Benford estava ao pé da ponte, apontando para onde iria com Korchnoi, e depois iniciou a caminhada.Nateacenoucomamã oe começou a segui-los junto com Dominika. Os quatro estavam agora sentadosemvoltadamesadecentro na saleta da elegante suı́te que BenfordocupavanohotelAldrovandi, do outro lado do parque. O quarto tinha tons terrosos e discretos, um vasode loreseumbelı́ssimopisode má rmore. Nos jardins do hotel, uma piscinaturquesaseescondiaatrá sde uma cerca viva de ciprestes. Na varandadoquartosopravaumabrisa fresca,quein lavaascortinaslevese diá fanas. Uma garrafa de vinho esperavafechadanumbaldedecobre sobreoaparador. Benford já discutira — na verdade, continuava discutindo — a situaçã obastantepeculiardeMarble eDominika. — E de uma irresponsabilidade inacreditá vel. Nı́vel de segurança zero. Vamos ter de fazer ajustes imediatos. — Otima ideia — disse Marble. — Aliá s, é sobre isso mesmo que eu gostaria de falar com você , Benford, mas a só s. Acho melhor, pelo menos por enquanto, que Dominika nã o esteja presente. Nate é meu operador, entã o poderia icar sem nenhumproblema,mastenhocerteza dequeelenã oseimportará emfazer companhiaaela. Assim que os dois saı́ram do quarto,Marblevirou-separaBenford, esperou que ele acendesse seu cigarroecomeçou: —Elaé jovemepassional,masé muito inteligente. Assim que veio trabalhar comigo, percebi que icava muitoatenta,observandoemsilêncio tudooqueeufazia,só meavaliando. Pude ver a determinaçã o dela. Fiz com que admitisse que havia sido recrutadaemHelsinque.Eujá andava descon iado. Você pretendia me contar? Benforddeudeombros. — També m contei a ela sobre mim — prosseguiu Marble. — Indiretamente, mas ela deduziu na mesma hora. Temos conversado muito. Sobre riscos, perigos, sobre n o sinfiltrarmos na central. Ela me ouve sem nem piscar, sem o menor sinal de hesitaçã o. Estou muito satisfeitocomessamoça. —Quebom—retrucouBenford, sem grande entusiasmo. — Mas ainda acho que ela está muito no inı́ciodacarreira.Vaidemoraralguns anos até alcançar uma posiçã o importante,sechegaraisso. —Você conheceojogotã obem quantoeu,Benford.Osquecomeçam cedo e vã o crescendo sã o os melhores, os mais seguros. Ela é perfeita. — Mas será que vai conseguir entregar você ? Será que tem estômagopraisso? —Vai,senã osouberoqueestá fazendo. O que vai tornar as coisas ainda mais convincentes. O susto dela será genuı́no. Seja como for, ela vai obedecer minhas instruçõ es, tenhocertezaabsoluta. — Isso é ridı́culo — disse Benford.—Precisamosdevocêagora maisdoquenunca.Só depensarque vamosperdê-loantesdahora... Ele apagou o cigarro num cinzeirodecristal. Marble balançou a cabeça e retrucou: — O tempo é sempre uma incó gnita. Eles estã o atrá s de mim. Nã o dá pra saber se estã o perto ou longe de me pegar. Vanya é um homem dedicado. Sem falar na kanareykazapadnyaqueele... — Sem falar em quê ? — interrompeuBenford. — Na armadilha que ele preparou. Só Deus sabe o que ele e Zyuganovandamaprontandoporaí. — O que você quer dizer com isso? — Que meu tempo com a CIA pode ser mais curto do que gostarı́amos. Dominika precisa ser preparadaomaisrá pidopossı́vel.Se me pegarem antes de ela me entregar...tudoterásidoemvão. —Desculpeovocabulá rio,mas... quemerda. —Paredereclamar,meuamigo. O que estamos fazendo nã o tem nenhum precedente no nosso ramo. Vamostrocaroquê ?Umanooudois de informaçõ es minhas pelo posicionamento de uma nova espiã com o potencial de servir por mais vinte,vinteecincoanos.Eumatroca excelente,vocênãoacha? Benford balançou a cabeça e falou: — Nã o foi pra isso que você trabalhou esses anos todos, que correu tantos riscos. Merece uma aposentadoria,recompensasetc. — Minha recompensa será deixar algué m no meu lugar pra dar continuidade a esse trabalho — retrucou Marble. — Cabe a nó s, a mim e a você , escolher o momento certodefazeratransição. — Esta viagem a Roma talvez nã osejaomelhormomento—disse Benford,eacendeu mais um cigarro. — Sei que nã o podemos esperar muito,masqueropelomenosverse alguémmordeuminhaisca. —Isca?—indagouMarble. — Andei espalhando por aı́ que o informante americano sofre de herpes.Segundooquevocê disse,foi issoqueEgorovfalouproNasarenko. — Pobre Nasarenko. Você pode merevelarpraquemjogouaisca? — Quinze membros do SSCI, o iciaisdoPentá gono,meiadú ziade burocratas na Casa Branca — respondeu Benford. — Um grupo pequeno o su iciente pra que eu possainvestigardepois. —Vsegodobrogo,meuamigo— disse Marble. — Boa sorte pra você . Vou icar de olhos abertos e avisar assim que o coitado do Nasarenko pulardajanela. — Otimo — exclamou Benford. — Se puder icar atento a qualquer outrapista... — Tenho algo em mente — retrucou Marble. — Mas falamos sobreissodepois. *** Nate e Dominika foram para o quarto dele e conversaram em voz baixa. Ele procurava aparentar indiferença,masDominikasabiaque se tratava de uma encenaçã o: podia ver a intensidade da aura dele. Mais umavezeledissequesepreocupara muito com ela, que todos eles esperarama litosporalgumanotı́cia e que tinham icado bastante aliviados ao saber pelo general Korchnoiqueelaestavabem.Culpou asimesmopeloqueacontecera,pelo retorno dela a Moscou. Mas agora eles poderiam retomar a relaçã o, trabalhar juntos de novo. Dominika achou que ele parecia um operador coordenandoainformante,oqueera exatamente o caso. Ele icara preocupado, depoisaliviado. Chto za divo!Maravilha. Nate sabia que estava tagarelando. Estava um pouco constrangido com a presença dos homens no quarto ao lado. Tinha plena consciê ncia da estranheza daquele momento, e sabia que precisavasecontrolar.Acertaaltura, ao olhar para o rosto dela, parou de falar. Dominika era elegante, linda, imponente. Ele se lembrava de sua expressã o de seriedade, dos lá bios crispados. Viu que ela começava a icar impaciente. Apó s uma eternidadedetemposeparados,sem saberseelaestavavivaoumorta,na primeira hora juntos ele conseguira irritaragarota. Por sua vez, Dominika pensava: Eagora,comovaiser?Eleshaviamse distanciadoeelacriaraexpectativas, mas, ao que tudo indicava, as coisas seriam bem diferentes dali em diante.Nã oseriamaispossı́velvoltar à quele idı́lio de Helsinque, à s escapadelas que ela arriscava para entregar algum documento roubado d arezidentura, à s longas tardes passadas no simpá tico apartamento clandestino dos americanos, à s comidinhaspreparadasnaminú scula cozinha... Tudo isso pertencia ao passado. Assim como o quarto banhadopeloluar. Ela havia se comportado como u m afantazerka, uma boboca sonhadora. Mas també m podia ser uma pro issional exemplar. Nã o facilitariaascoisasparaoamericano. Sem poupá -lo de nenhum detalhe chocante, Dominika contou a Nate tudo o que ela passara ao voltar a Moscou: falou dos porõ es de Lefortovo,dasinterminá veissessõ es de interrogató rio, dos tapas e hematomas, dos armá rios escuros emqueatrancavam. Corou um pouco ao dizer que pensava nele nos momentos mais difı́ceis e que isso lhe dava forças parasobreviverà queleinferno.Falou que o imaginava a seu lado sempre quealevavampeloscorredorespara jogá -la no buraco seguinte. Nate ouvia em silê ncio, mas ela via a emoçã o nos olhos dele, no violeta maisintensodohalo. Abalado, ele se levantou e foi para o aparador do outro lado do quarto.Dominikaoseguiu,eviuque as mã os dele tremiam ao servir o vinho nas taças. Nate preferiria nã o ter que encará -la; sabia que estaria perdido se eles se tocassem naquele momento. No entanto, quando se virou, deparou com a profundeza insondá veldaquelesolhosazuis,com odesenhoperfeitodaquelaboca,com o convite velado daqueles cabelos. Tinha plena consciê ncia de que estava prestes a fazer uma besteira, mas sentiu um nó na garganta, um bolo no estô mago, e nã o conseguiu mais se conter: tomou o rosto dela nasmã oseabeijoucomvoracidade, como se algué m fosse aparecer a qualquermomentoparasepará-los. Dominikaagarrou-opelanucae o conduziu para a varanda de má rmore. O sol começava a se pô r e ospá ssarosvoavamdeumciprestea o u t r o ,negros contra o cé u vespertino. Nã o se ouvia nenhum som, nem mesmo o sopro de uma brisa. Dominika pressionou Nate contra o parapeito e, em silê ncio, os dois desa ivelaram desajeitamente o cintodele,levantaramovestidodela e agora ela estava na ponta dos pé s, olhando-o nos olhos. Agarrando-se ao parapeito de ferro fundido, DominikaenlaçouNatecomumadas pernas. Colou a boca à dele e começouagemer.Quandoseucorpo estremeceu, ela largou o parapeito e enlaçouopescoçodeleparanãocair. Todaaquelaagitaçãonavaranda pareceu assustar os pá ssaros nas á rvores, que agora voavam para longe. Para Dominika o mundo se resumia ao espaço daquela varanda, e nesse mundo nã o havia ningué m alé m de Nate, que retribuı́a seus beijos com o mesmo ı́mpeto e ferocidade.Estaralicomeleeradoce, natural e ló gico. Ele a enlaçava pela cinturaeaspernasdelacomeçarama tremer. Nesse momento, ela sussurrou no ouvido dele “Dushenka”,eospássarosvarreramo céu. Por dois minutos eles permaneceram imó veis. Dominika ainda ofegava quando se desvencilhou dele para ajeitar o vestido. Nate endireitou a camisa e os dois voltaram para dentro. Ele acendeuumdosabajuresdoquartoe entregou uma taça de vinho a ela. Eles se sentaram lado a lado e icaram olhando para a frente, em silê ncio. Dominika sentia as pernas tremerem, o coraçã o esmurrar o peito. Por um instante pareceu que Nate fosse dizer alguma coisa, mas entã oBenfordentrounoquartopara buscá-losparajantar. *** Serguei Matorin, o carrasco da Linha F do SVR, ocupava uma das mesinhasexternasdoHarry’sBarna Via Veneto, de onde podia ver a entrada do hotel na Via di Porta Pinciana em que Dominika Egorova estavahospedada.Esperavavê -laem algum momento, ou Korchnoi, mas sobretudo o jovem americano cujo rosto guardara em sua conturbada mente antes de deixar Moscou. Aquela altura ele já deveria ter avistado algum deles. Estava com a bocasecaesentiaumpesoestranho nopeito. Ficara tentado a invadir o quarto de Egorova e esperar lá dentro, imerso no cheiro acre do pró prio corpo, mas recebera instruçõ es diretas do chefe Zyuganov: nenhuma açã o desnecessá ria, nada de precipitaçã o, nada de erros. Bastava aguardar a oportunidade certa. Era isso que Matorinfaziaagora. Ele viu um grupo de moças emergir das escadas rolantes subindo do subsolo da Galeria Borghese, mas ignorou-as em favor de seu devaneio preferido nos ú ltimos tempos: as mulheres afegã s que vira durante a ofensiva de Parvan,acuadasnoaltodeummorro, atrá sdasripasdepau-a-piquedeum curral de ovelhas. As granadas lançadas pelos GP-25 desenhavam um preguiçoso arco no cé u para depois caı́rem dentro do curral, o baque seco das explosõ es misturando-se aos gritos das mulheres; em seguida o mais absoluto silê ncio. Um carro buzinou ruidosamente na Via Veneto e Matorin lamentou ter sido despertadodeumsonhotãobom. SPAGHETTI ALLA BOTTARGA DO FORI IMPERIALE Refogar um pouco de alho no azeite quente até que esteja dourado. Re rar o alho da panela e em seguida, dentro do mesmo recipiente, colocar um pouco de manteiga e uma colherada de ovas de tainha raladas; não cozinhar demais para não amargar. Acrescentar a massa já cozida al dente à panela e revirar os fios para umedecê-los. Tirar do fogo. Adicionar um pouco mais de manteiga e uma segunda colherada de ovas. Decorar com salsa picada e servir. CAPÍTULO 33 ANATOLY GOLOV FICARIA SURPRESO se soubesse quanto a equipe Orion descobrira a seu respeito apenas observando-o nas ruas. O homem era um mestre, eles diziam, um intelectual, um artista. Jamais obedecia à grosseira cartilha doSVR:asóbviasrotasdedetecção,o comportamento arrogante, as provocaçõ esofensivasao imdecada operaçã o. Seu estilo re letia os muitos anos de experiê ncia atuando naEuropaenosEstadosUnidos.Suas rotas conquistavam a vigilâ ncia adversá ria,seduziam-na,e só ao im demuitashorasdemanipulaçã osutil ele desferia o golpe de misericó rdia. Mas os Orions haviam conseguido identi icar determinados padrõ es, certas preferê ncias e manias nas tá ticas dorezident. Golov nã o tinha nenhumaconsciê nciadesuaelegante previsibilidade. Uma de suas manobras preferidas consistia em executar uma virada repentina apó s completar mais ou menos trê s quartos de uma rota aparentemente ortodoxa. Era um movimento totalmenteefetivo:elesimplesmente desapareciadomapa. A tá tica de Golov confundia os homens do FBI, que havia meses o seguiam. Frustrados, eles queriam era ensinar uma boa liçã o ao russo, colar na traseira dele e obrigá -lo a dar trê s voltas na Beltway antes de deixá -lo pegar uma rampa de saı́da. Os Orions, bem mais pacientes, preferiam observar dos bastidores, tentando entender a manobra, quanti icá -la, con irmar aquilo que todos eles tinham começado a entender. Depois que orezident se desmaterializava, o caminho percorrido por ele correspondia à aberturadeumaagulhadecompasso e apontava direto para seu destino final—eseuinformante. A questã o era matemá tica, na verdade. Golov estaria seguro se pudesse completar apenas as cinco rotas de detecçã o de vigilâ ncia que costumava fazer a cada ano. Mas os espiõ es russos darezidentura de Washington estavam sendo submetidos a um cruel regime de esgotamento. Tinham trabalho a fazer, contatos a realizar, fontes a encontrar. Sobretudo Golov, que precisava desesperadamente se manterforadoradardosamericanos para continuar bajulando Swan. Isso demandava duas ou trê s rotas por semana. Como um ator em im de carreira que precisa aceitar o má ximo possı́vel de papé is, Golov já vinha sofrendo superexposiçã o de operacionais. com a seustalentos Sentadosemvoltadeumamesa grande no restaurante Sizzler de Maryland, membros da equipe Orion saboreavamoespecialdanoiteantes de dar inı́cio aos trabalhos. Eram apenas cinco, mas isso nã o fazia muita diferença. Todos eles eram estrelasdeprimeiragrandeza. Orest Javorskiy já estivera no corredor de Fulda distribuindo pela neve tocos de á rvore cenográ icos repletos de aparelhos eletrô nicos destinados a detectar o estrondo noturno dos tanques sovié ticos. Mel Filippo já conduzira um informante cego pela mã o para fora de Brasov. Clio Bavisotto já tocara Chopin para Tito enquanto o marido arrombava um cofre no andar de cima. Johnny Parment já recrutara um general vietnamitanasbarbasdeumaequipe de vinte vigilantes em Hanó i. E SocratesBurbank,oFilósofo,comsua barbicha e seus 80 anos nas costas, trê s vezes casado e trê s vezes divorciado,eraoBudaqueinventara oprincipalemaisefetivoesquemade vigilâ ncia dos Orions e que, dos bastidores, distribuı́a tarefas e orientavaaequipe. Costumava-se dizer entre eles que Burbank já havia até “dançado valsa com o capeta”, isto é , já izera detudo.Aos20epoucosanos,tinha ex iltradouminformantecomtodaa famı́liadeBudapeste,passandoileso pelostanquesquecirculavamaesmo na praça dos Má rtires. Instalara sinalizadores para atracaçã o nas fatı́dicas praias da baı́a dos Porcos. Num apartamento clandestino em Berlim, arrancara informaçõ es secretas de um general sovié tico completamente bê bado de vodca ao mesmo tempo que segurava um balde para que o homem pudesse vomitar. Nem mesmo Benford interferia quando Burbank coordenava os Orions, com o lá pis entre os dedos, mapas sobre o colo, um rá dio junto da boca, falando baixinho com os membros de sua equipe. O gigantesco volume de nuvens carregadas que despontara no horizontenaquelatardeculminara,à noite, numa sucessã o de tempestades e raios que paralisara porcompletoaregiã ometropolitana de Washington. Galhos caı́dos atulhavam as ruas alagadas, o anel rodoviá rio estava totalmente engarrafado e dos dois aeroportos tinham sido fechados. Era a pior noite possı́vel para uma rota de detecçã o de vigilâ ncia, e ao mesmo tempoamelhor. Usando os congestionamentos como escudo, Golov deixou a embaixada, tomou a direçã o de Georgetown,atravessouorionaKey Bridge e desceu pela marginal do Potomac, parando em diversos pontosdoCrystalCityUndergrounde do distrito histó rico de Alexandria. Debaixo daquele temporal, as paradas eram mais do que incô modas, e ele já estava completamente encharcado quando en im terminou seu passeio de compras — assim como os homens doFBIqueoseguiamacontragosto. Apesardotempo,Golovtentava convencerquemquerqueoestivesse seguindo que Mount Vernon era seu destino inal. Para tanto, traçou um caminhoquaseretonaqueladireçã o. Jantares e concertos noturnos eram comuns na mansã o histó rica, e nenhuma equipe de vigilâ ncia que izesse jus ao nome deixaria de correrparalá aomenorsinaldeque eraesseorumodeseualvo.Poisfoi issoque izeramosvigilantesdoFBI: enviaram dois carros na frente e mantiveramoutrosquatronaesteira d orezident, a uma distâ ncia razoavelmentegrande.Eraahorade Golovfazersuamá gica.Maisumavez ele usaria o trâ nsito pesado como escudo, favorecendo-se ainda mais peladistâ nciaguardadapeloFBI.Sua estraté gia de despiste foi um rá pido retorno para a rampa que levava à Wilson Bridge, que ele usou para atravessar o Potomac. De volta a Maryland, passou por Oxon Hill e Forest Heights e seguiu para Anacostia. Uma cortina de fumaça e, pronto,elehaviadesaparecido.Dalia trintaminutosafrustradaequipedo FBI informou por rá dio que eles tinhamperdidooalvodevistanaGW Parkway,quenã ohavianingué mem MountVernoneagorasó lhesrestava recomeçar do zero: voltar para Alexandriaeatravessarapartenorte dos subú rbios da Virgı́nia. A estraté giadeGolovosafastavaainda mais. A chuva dera uma tré gua e o trâ nsitojá estavamaislivrequandoo rezident fez o ú ltimo trecho de seu caminho pela zona leste de Washington. A certa altura, estacionou o carro e esperou, com o limpadordepara-brisanavelocidade maislenta.Agorabastariaatravessar oNationalMallparachegaraocentro dacidade.Deixariaoautomó velnum estacionamento subterrâ neo na Rua K e seguiria a pé pelos dez ou doze quarteirõ es que levavam ao Tabard Inn.Até alielenã odetectaranenhum sinal de vigilâ ncia. Os anos de experiê ncia diziam que ele estava fora do radar, livre para fazer o que bementendesse. SocratesBurbanklargouorá dio que estava usando para falar com o FBI: a ú nica coisa que se ouvia em todas as frequê ncias eram xingamentos. Em seguida marcou algo no mapa com seu lá pis. O retorno havia sido na Wilson Bridge —eraaú nicaexplicaçã opossı́vel—, eapontadocompassoapontavapara ocentrodacidade.Apó sassinalaros pontosnomapa,formandoumanova linha de vigilâ ncia ao longo da parte sul do National Mall, ele despachou trê sdoscarrosdesuaequipeparaas Ruas 7, 14 e 17, deixando livres os tú neisdasRuas9e12.Nã odemorou para Clio avistar o BMW preto de GolovnaRua14.Semnenhumalarde, ela avisou ao chefe pelo rá dio, informando apenas a direçã o e a velocidade, e seguiu atrá s do russo comoumavovó faria:comcarinhoe preocupação. Osoutrosdoiscarrosdaequipe també m convergiam na direçã o de Golov, um pela Rua 18 e outro pela Avenida Pensilvâ nia. Orientado por Socrates, agora era Johnny quem seguia orezident. Pró ximo à McPherson Square, ele viu o homem entrar num estacionamento e a equipe se preparou para segui-lo a pé ; era nesse momento que eles de fato se superavam. Fazia quase uma dé cadaquehaviamdeixadodeladoa formaçã o ABC. No lugar dela, enredavam o alvo aos poucos, cozinhando-o em banho-maria: adiantavam-se a ele, iam para trá s, atravessavam na frente, circundavam-no de longe. Quando eventualmente Golov olhava na direçã odeles,nã odesviavamoolhar nem buscavam refú gio numa vitrine qualquer: encaravam-no de volta, depois prosseguiam com a mais absoluta naturalidade, fofos e distraı́dos, cabelos azuis sob os chapé us mais absurdos, sacola ou bolsaempunho,ó culosdeleiturana pontinhadonariz,cachimbonocanto da boca. Golov, alto e elegante, habituadoà sruasdePariseLondres, nãopercebianada. Eleserambonsdemais,naturais demais, discretos demais. Sabiam passar despercebidos em meio à multidãodepedestres,sobretudoaos olhos de umrezident exaurido pela pressã o, irritado com o fardo da cartilha operacional, ansioso para chegar ao destino inal. O russo estava sendo ludibriado por cinco aposentados com manchas de senilidade e problemas nas articulaçõ es.Casodetectassealguma coisa, poderia dar meia-volta, comprar um jornal, tomar um café e pegar o caminho de casa depois de abortar o encontro. Mas ele nã o notounada. A chuva agora tinha parado por completo, e quando Golov entrou na RuaN,osOrionsen imsolucionaram o misté rio. Ele só podia estar indo para o Tabard Inn; era a ú nica possibilidadenaquelarua. Mel e Clio já esperavam no lobby, descalças, esfregando os pé s e comentando como eles doı́am. De repente Golov apareceu e elas viram quando ele pegou a chave na recepçã o e sumiu naescadadohotel. Obedecendoà disciplinadeuma manobra desde muito consagrada, elas permaneceram onde estavam por mais meia hora, observando a movimentaçã o à sua volta, atentas a qualquer peculiaridade. Nã o tinham autoridade para dar voz de prisã o a ningué m, e icar por ali mais que o necessá rio serviria apenas para deixaroalvodeorelhasempé .Entã o, Socrates ligou para Benford, fez um breve relato e desligou. Em seguida teclou algo no rá dio para sinalizar queMeleCliojápodiamirembora. Eles nã o haviam testemunhado nenhum encontro, nã o tinham nada de concreto. Haviam encurralado o rezident, mas nã o o viram com nenhum informante, nenhum suspeito.Apaciê nciaeaperspectiva osajudaramalidarcomafrustraçã o de uma noite inconclusiva, assim comooscachorros-quentesdoShake Shack,naRua18. Um o icial da inteligê ncia russa provavelmente estava tendo um encontro clandestino com um informante nã o identi icado in iltrado no governo americano enquanto os Orions pediam os seus respectivossanduı́ches.Opassadode Johnny na China icava evidente na suapreferê nciaderecheio:saladade repolho com gergelim e pimenta. Orest era um purista e jamais aceitava outra coisa que nã o fosse mostarda e chucrute. Mel preferia cebolaseketchup,aopassoqueClio, a pianista clá ssica, preferia alface, tomate, bacon e gorgonzola. Anos antes, Socrates deixara todos eles chocados ao inventar a pró pria combinaçã o, batizada de “nitroglicerina”, cujos ingredientes podiam ser encontrados apenas no ShakeShack:umanojentamistureba de batatas fritas, cebolas carameladas, anchovas echimichurri, o molho picante dos argentinos. Era um acordo mais ou menos tá cito entre os Orions que nenhum deles jamais comeria com Socrates no mesmocarro. *** Benfordfalavaaotelefonecomo FBI, ora berrando e xingando, ora implorando que eles despachassem imediatamente uma equipe para cobrir o Tabard Inn. Vá rias outras ligaçõ es ainda seriam feitas até que, com a aprovaçã o de um supervisor de turnos, os agentes especiais fossem en im acionados. Nas duas horas que eles levaram para chegar ao hotel, Stephanie Boucher entrou nolugar,encontroucomGolovesaiu. Nã o teria sido difı́cil seguir a senadora; sem dú vida, menos desa iante do que seguir orezident, ou um grupo de turistas japoneses dentro do Lincoln Memorial, ou um elefante numa fá brica de porcelana comumsinoamarradonorabo. A arrogâ ncia e a sociopatia de StephanieBouchereramdetalmodo arraigadas que ela nem sequer cogitava a possibilidade de ser mais discreta nas ruas, mesmo sabendo que tinha os pé s enterrados no pantanoso solo da traiçã o. Contando comaimpunidadequelheconferiam overmelhoebrancodaplacadeseu carro o icial, ela estacionara numa vagareservadaparacargaedescarga naRuaN,aú nicalivrenomomento,e aosairdeseuencontrocomGolov,no qual lhe entregara mais um disco da Path inder Corporation, seguira diretoparacasa.OFBInã oviranada disso. *** Na manhã seguinte, com o relató rio dos Orions em mã os, Benfordvociferavacontraosagentes especiais do FBI enquanto Nate icava recostado à parede em silêncio. — Desculpem — dizia ele num tomprofessoralqueNatejá sabiaser a primeira trombeta de um apocalipseiminente—,masé minha obrigaçã oalertá -losparaagravidade do que ocorreu ontem. Depois de muitas horas de RDV, Anatoly Golov conseguiu entrar em sua toca, provavelmente para se encontrar com um informante importante o bastante para ser coordenado pelo rezident do SVR em pessoa, em Washington.OFBI levou duas horas, desdeaminhaligação,parachegarao Tabard Inn, que icaa menos de 3 quilômetros do J. Edgar Hoover Building.Emboratodasasevidê ncias apontassem para um encontro clandestino entre um o icial russo e umtraidoramericano, você s nem se deramaotrabalhodechecaroslivros do hotel, de interrogar os funcioná rios,emuitomenosdesubir evasculharoquartodeGolov,queé o oficialmaisgraduadodoSVRemtoda aAmé ricadoNorte.Setivessemfeito isso, sem dú vida teriam recuperado informaçõ es con idenciais do governo americano, informaçõ es repassadasnaquelamesmanoitepelo infiltradodeGolov. OshomensdoFBIseremexeram nascadeiras,masnãodisseramnada. — Você s simplesmente cruzaram os braços diante do que talvez seja o maior caso de espionagem desde 2001 — prosseguiuBenford.—Deixaramum traidorescaparimpuneeincógnito. — Um suspeito — disse Chaz Montgomery. Sua gravata reproduzia uma garota poliné sia, uma imagem de Gauguin.OsolhosdeBenforddoeram aovê-la. — O quê ? — retrucou ele, elevandoavoz. AessaalturaNatereceavaquea reuniã o terminasse com um dos agentes dando um tiro em Benford parafazê-localaraboca. — Um suspeito — repetiu Montgomery. — Essa pessoa que foi se encontrar com o russo, seja lá quemfor,éapenasumsuspeito. Benford correu os olhos pela salaefalou: —Chaz,você fariaagentilezade me enviar o currı́culo atual do treinamento bá sico que você s ministram na academia? Aposto que vou encontrar iguras coloridas de cavalinhoseflores. —Vásefoder,Benford—cuspiu Montgomery. — Você conhece as regras,edeveterpelomenosalguma noçã odoquedizalei.Precisamosde provas, provas incontestá veis, antes dedarvozdeprisãoaalguém. —PradarumaprensaemGolov também? — Já ouviu falar em imunidade diplomá tica? A gente nem sabe se estava mesmo acontecendo algum encontronaquelehotel.Nadaimpede que ele estivesse lá pra distribuir convites pra alguma recepçã o na embaixada. Dia Nacional da Rú ssia ouqualquerporradessas. —Você só podeestarbrincando —disseBenford. —Você sabetã obemquantoeu queantesdeagiragenteprecisater umcalhamaçode provas debaixo do braço. Essas investigaçõ es levam tempo.Àsvezesanos. — Puta merda — respondeu Benford, balançando a cabeça. — Você s ainda estã o no tempo dos tá rtaros,dosmongó is,dosvisigodos, doscartagineses. —Oqueocâ ncertemavercom a histó ria? — perguntou um jovem agente cujos bı́ceps estufavam as mangasdacamisabranca. — Eu disse “cartagineses”, meu caro,não“carcinógenos”. — Acho que nã o preciso lhe explicar isso — interrompeu Montgomery,dirigindo-seaBenford. — Se izermos nosso trabalho direitinho, esse suspeito nã o identi icado vai passar o resto dos dias mofando numa prisã o de segurança má xima, sem direito a condicional. Mas, se izermos qualquer merda, ele se aposenta como um consultor multimilioná rio. Será que você nã o pode segurar a ondasómaisumpouco? — Com uma condiçã o — retrucou Benford, como se ofendido pelos modos bruscos do outro. — Exijo que um o icial da CIA esteja presente quando a prisã o for feita. Esse caso nã o pertence apenas à esferacriminal,masà deinteligê ncia também. — Impossı́vel — disse Montgomery. — O diretor nã o vai concordar. Alé m do mais, qualquer pessoaenvolvidanumainvestigaçã o, vigilâ ncia ou detençã o pode ser convocada a depor em juı́zo. Você estariadispostoaexporumdosseus agentessó porcausadisso?Amenos que algum deles nã o precise mais ficarincógnito. — E bem prová vel que eu só consiga colocar as mã os nesse informante perdendo um ativo valioso para a agê ncia — retrucou Benford.—Euinsisto:queroumdos meushomensjuntocomvocês. — Ainda assim acho que o diretor nã o vai aprovar, mas nã o custa nada perguntar — falou Montgomery.—Elevaiquerersaber emquemvocêestápensando. — Ele — respondeu Benford, apontando para Nate. — Nathaniel está integralmente envolvido nessa operação. Ainda recostado à parede dos fundos, Nate nã o sabia se devia se sentirhonradoounã o.Aquelaaltura era muito prová vel que seu disfarce já tivesse ido pelo ralo. Alé m disso, ele nã o iria contradizer Benford, sobretudonafrentedeummontede agentesespeciaisdoFBI. O agente dos bı́ceps inchados virou-se para Nate na esperança de entender o que signi icava “integralmenteenvolvido”. — Proctor — adiantou-se Montgomery —, nã o dê um pio a menos que algué m lhe pergunte algumacoisa. MOLHO CHIMICHURRI Com uma faca ou processador, picar um ramo de salsa, uma cabeça de alho descascada e uma cenoura média. Acrescentar azeite, vinagre de vinho branco, sal, orégano, pimentado-reino e pedacinhos de pimenta dedo de moça. Misturar tudo até formar um molho espesso. Servir de preferência ainda fresco. CAPÍTULO 34 VANYA EGOROV OLHAVA AO LONGE atravé s das amplas vidraças de sua sala, antevendo a iminente colisã o de fatores operacionais que rodopiavam à sua volta. Swan continuava produzindo uma quantidade fantá stica de informaçõ es,mascedooutardeseria vitimada pela pró pria indisciplina. O queparaelesignificariaumdesastre. As notı́cias que Korchnoi trouxera da Itá lia pouco ou nada diziam: Dominika tivera um breve contato com Nate, a relaçã o fora retomada, ele acreditara na histó ria de que ela agora trabalhava para o serviço de correspondê ncia, os dois haviam estabelecido um plano de novos contatos mundo afora. Lento demais.Comosempre,lentodemais. O traidor ainda andava à solta, uma ameaça para Swan, para outros casos, para o pró prio Egorov també m. Ele instruı́ra Korchnoi a agendaroutraviagemparaDominika na qualidade de mensageira. Precisava de resultados. Era nisso queelepensavaquandoseutelefone tocou.Otelefoneespecial. — Insatisfató rio — começou o presidente. — Espero que você já esteja articulando novos contatos. E rápido. Egresso da KGB, Putin sabia muitobemcomoeraimportantenã o perderoimpulsonumaoperação. — Sim, senhor presidente — concordou Egorov. — Já agendamos uma segunda viagem para nossa agente.Estoumuitootimistaquanto aosresultados. A que ponto ele havia chegado: agorasopravamentirasnoouvidodo presidente. — Otimo — retrucou Putin. — Praonde? Egorovengoliuaseco. —Aindaestamosdeterminando exatamente qual é o destino mais vantajosopranó s.Informoaosenhor assimquedecidirmos. —Atenas—dissePutin. — Como? — devolveu Egorov, surpreso. — Mande essa agente... sua sobrinha... pra Atenas. Os riscos de segurança sã o baixos, temos gente infiltradanapolíciadelá. Por que diabo ele estaria insistindonaGrécia? — Pois nã o, presidente — respondeuEgorov,masPutinjá havia desligado. *** No andar de baixo, Zyuganov encaravaosolhosturvosdosujeito. —Prepare-seprairaAtenas— disse o anã o, e viu o homem que personi icava a morte se levantar parasair. Considerouporuminstanteque Dominika poderia correr perigo se estivesseentreaquelemanı́acoeseu alvo, mas nã o podia fazer nada a respeito. *** Benford já encomendara à sua equipe um levantamento dos projetos de defesa mais relevantes. Aguardava receber algum eco da armadilha preparada por Vanya. Os Orions estavam tentando encurralar Golov mais uma vez nas ruas de Washington.MasKorchnoiprecisava de algo já . Sabia o que devia fazer, e quais eram os riscos envolvidos. Discutiraoassunto com Benford em Roma e ele acabara concordando, aindaqueacontragosto. Korchnoi desceu para o laborató rio da Diretoria K, no primeiro andar. Nasarenko trabalhavaàsuamesa,umapaisagem lunardepapé is,caixasepastas.Junto à parede,outramesamaiscomprida que a primeira abrigava um caos semelhante, poré m maior, sem um ú nico centı́metro quadrado de espaço livre. Nasarenko ergueu o rostoparaKorchnoi,opomodeadã o saltitandonopescoço. — Yuri, me desculpe por interromper — começou, adiantando-se até a mesa para apertar a mã o do colega. — Posso falarcomvocêuminstante? Nasarenko parecia um marinheiro subitamente encalhado num banco de gelo, contemplando o espaçocadavezmaiorentreocasco donavioeogeloemsi. —Oqueé?—perguntou. O homem tinha um rosto cinzento e os cabelos, sempre desgrenhados,pareciampalhadetã o ressecados e opacos. Os ó culos estavamengorduradosesujos. — Preciso de seus conselhos num assunto de comunicaçã o — disseKorchnoi,eporquinzeminutos discorreusobreumpossı́velback-up para o sistema de comunicaçã o com umalvoderecrutamentonoCanadá. Agitado, dobrando os polegares sem parar, Nasarenko opinou distraidamente sobre a questã o. Korchnoi se debruçou na mesa, cercando-o,acuando-o. —Está preocupadocomalguma coisa,velhoamigo?—perguntou. — Nã o é nada. Muito trabalho acumulado, só isso. Uma avalanche de dados pra analisar. Estou precisando de tradutores, analistas... —respondeuNasarenko.Continuava movimentando os polegares sem parar. — Você faz ideia do volume de dados que um ú nico disco pode conter?—Elegirounacadeira,pegou uma caixinha metá lica de uma das quatro gavetas de seu cofre e despejou o conteú do sobre a mesa: umadezenadeembalagensplá sticas grampeadas no topo, cada uma com um estojo cinza contendo um CD de armazenamento de dados. Com as mã os trê mulas, ele pegou alguns dessesdiscosedisse:—Sã omuitos gigabytes.Istotudoaindaestá na ila praserprocessado. Jogouosdiscoscomdisplicê ncia sobreamesaeumdelesescorregou para junto de uma pilha de pastas pardas. Korchnoi pegou o disco e o examinou como se nã o izesse a menor ideia de que um objeto tã o pequeno pudesse armazenar tanta informaçã o. Viu a logomarca da Pathfindernoestojo. — Por que eles nã o aumentam suaequipe? Nasarenko abaixou a cabeça e segurou-a entre as mã os. Korchnoi ficoucompenadele. — Yuri, nã o se desespere. Você temanosdebonsserviçosprestados para ser tratado assim — observou. Aoseesticarporcimadamesapara dar um tapinha compassivo no ombro do colega, aproveitou a oportunidadeeguardou no bolso do paletó odiscoquetinhanamã o.Nã o sabia dizer se os discos eram sequenciaisouprotegidosporsenha, tampouco se Nasarenko daria pela faltadoCDroubado.—Possomandar um ou dois analistas do meu departamento para ajudá -lo por um tempo, se isso for ú til. Todas as equipes estã o sobrecarregadas, a verdadeéessa,masesseseutrabalho édesumaimportância.Oqueacha? Nasarenko ergueu o rosto e resmungou: —Seusanalistasnã ovã opoder trabalhar nesse projeto. O acesso é restrito. — Talvez possam ajudá -lo em outros projetos para que você tenha maistempoparaeste—argumentou Korchnoi. — Nã o aceito “nã o” como resposta. Está decidido, Yuri. Mando meushomenshoje mesmo. Mas veja bem: nem pense em roubá -los de mim! Nasarenko respondeu com um sorrisodesanimado. *** Sobre a mesa de Vanya Egorov estava o cabograma em que o rezident de Washington informava sobreaiscamordidacomavariante “herpes”. Uma listra azul cortava diagonalmente o papel, já bastante amassado em razã o das repetidas leituras. Sentado diante do vicediretor, Zyuganov parecia mais feliz do que nunca. Egorov balançou a cabeça. — Nã o posso acreditar que Nasarenko é o traidor — falou. — O homemmalé capazdeconduziruma conversa decente na cafeteria. Você consegue imaginá -lo num encontro noturnocomosamericanos? Zyuganov umedeceu os lá bios, depoisdisse: — Herpes. Golov nã o se equivocaria com uma coisa dessas. Você leuorelató riodele,umacitaçã o direta de Swan. “Estã o procurando algué mquesofredeherpes.”Essafoi aversãocontadaaNasarenko. — Nasarenko é um tolo distraı́do—disseEgorov,semsaber aocertoporqueestavadefendendoo homem.—Ebempossı́velquetenha comentadocomoutraspessoaseque o traidor que procuramos esteja entreelas. Zyuganovnã oqueriasaber.Para eleoimportanteeraqueagorahavia umamissã oacumprir,umacabeçaa sertriturada. —Merda—prosseguiuEgorov. — Isso é tudo o que temos por enquanto. Comece sua investigaçã o imediatamente. Zyuganov assentiu, pulou da cadeira e foi em direçã o à porta, tentando lembrar onde havia guardado sua tú nica do Exé rcito Vermelho, aquela com os botõ es laterais que ele gostava de usar nos interrogató rios. O tecido marrom- esverdeado já estava endurecido pelas muitas manchas de sangue, impregnado com o fedor do excremento de inú meras vı́timas, e as mangas já estavam bastante puı́das, mas ainda assim era melhor do que otecido branco de qualquer jalecodelaboratório. — Mais uma coisa — acrescentou Egorov à s suas costas. — Faça um teste parametka. Se nos ú ltimos dois anos ele foi tocado por um americano, alguma coisa deve aparecer. Zyuganov fez que sim com a cabeça, mas tinha uma opiniã o pró pria sobre a polinizaçã o de produtos quı́micos como té cnica de contraespionagem. Nada se comparava a uma boapovinnaya, uma boa con issã o, para eliminar qualquer traço de dú vida quanto à culpa do infeliz. Zyuganov tinha um grandetalentoparadobrarsuspeitos: nã o havia quem se recusasse a confessar o que fosse apó s alguns tendõ es seccionados ou um olho queimado. Ainda nã o conseguia lembrar ondetinhadeixadoaquelatúnica. *** Nasarenko foi convocado ao setordecontrainteligê nciaparauma entrevista de “atualizaçã o aleató ria desegurança”.Aprincı́piotratava-se de um procedimento de praxe, mas ningué m precisava ter anos de SVR parasaberqueumareuniã odaquela natureza era problema na certa, e Nasarenkoentrouempâ nico.Ao im deuminterrogató rioessencialmente inconclusivo, Zyuganov transferiu o cientistaconfusoelastimosoparaos porõ es de Butyrka, no centro de Moscou. Com o cassetete na mã o, Zyuganov re letiu sobre como as pessoas eram engraçadas, sobre comoreagiamdemodotã odiferente umasdasoutras.EmNasarenko,por exemplo, uma pancada na sola dos pé s era muito mais e iciente do que namaioriadosinterrogados. Elesó conseguiucompletaruma sessã odetorturacomocientistade olhos esbugalhados antes de ser interrompido pela revelaçã o de que um dos discos do caso Swan havia desaparecido da sala do homem, e isso era de primordial importâ ncia. Autorizou uma aplicaçã o de amobarbital para destravar a lı́ngua de Nasarenko e fazê -lo contar tudo sobreseupassadomaisrecente.Uma dosefoisu icienteparaqueosujeito revisse sua equipe, seus colegas e visitantes, entre eles o general Korchnoi, que passara rapidamente em sua sala.Korchnoi? Impossı́vel. Uma nova busca no laborató rio dele foi ordenada. Alguma explicaçã o haveria de existir para osumiço do taldisco. Nã o tardou para que as novidadeschegassemaosouvidosde Korchnoi: a caçada ao traidor havia esquentado, algum problema estava acontecendo na Diretoria T, um material importante desaparecera. Conversando com velhos amigos em outros departamentos e prestando atençã o à s fofocas nos banheiros do alto escalã o, ele descobriu que já fazia algum tempo que Nasarenko nãodavaascarasnoprédio. Korchnoi sabia que o cerco da investigaçã o de espionagem começava a se fechar à sua volta. Precisava urgentemente avisar Benfordeenviarà CIA,aindanaquelanoite,odisco surrupiadodeNasarenko.Istoé ,seo deixassem sair do pré dio. Talvez ele tivesse calculado mal seus prazos, talvez nem sequer houvesse tempo paraqueDominikafossedespachada paraAtenaselápudesse“entregá-lo”. Korchnoi saiu à rua com as pró priaspernas—erabemprová vel que pela ú ltima vez, pensou — e foi paracasa.Assimquechegou,redigiu uma mensagem e a enviou. A transmissã onã olevoumaisqueuma fraçã o de segundo. Dali a vinte minutos, Benford leu as duas linhas de texto: “Nasarenko na armadilha. OvoserádeixadononinhoDrakon.” Umaentrega,pensouBenford.A raposa velha certamente tinha algo de muito importante. E Nasarenko estava em apuros: isso signi icava queSwaneraumadas23pessoasna lista de suspeitos. Ele pegou o telefoneeligouparaoFBI. *** A estaçã o de metrô Molodezhnaya estava praticamente deserta, com as lojas fechadas e poucascomposiçõ es.Antesdechegar ali, Marble izera trê s trajetos em trens diferentes, alé m de uma longa caminhada à margem do rio, até achar que podia con iar em seus instintos:nã o,ningué moseguia.Ele en im saiu da estaçã o na rua Leninskaya e deparou com a chuva, que caı́a quase na horizontal em razã o do vento forte. Ergueu o colarinho do casaco, enterrou as mã os nos bolsos e começou a caminhardevagarpelacalçada. Os pingos fustigavam suas costas como se algué m o cutucasse. Ele procurou se concentrar, estava quasechegando.Esgueirou-sejuntoa ummuroquandopercebeuquevinha algué m em sua direçã o, depois seguiu em frente enquanto ouvia os passos molhados atrá s de si, se afastando. Do outro lado de uma curva acentuada icava a Faculdade de Obstetrı́cia 81. Nas imediaçõ es dela, ele se embrenhou numa mata escura e encharcada e começou a tremerdefrio.Acertaaltura,paroue aguçouosouvidos,receandoescutar oroncodealgummotor,umafreada, uma porta de automó vel batendo. Nada.Apenasoassobiodoventopor entreasárvores. Hora de agir. Um duto de escoamento cuspia sua á gua negra nã omuitolongedoasfalto.Marblese ajoelhou pró ximo à boca, tirou o disco do bolso, preparou a ita adesivadeduplafaceepressionouo estojododisconaparedeinternado duto metá lico. Contou até dez para que o epó xi izesse efeito, depois afastou a mã o com cuidado, certificando-sedequeoestojoestava firme.Tudocerto. Ele se levantou, aguçou novamente os ouvidos e mais uma vez nã o detectou nenhum sinal de perigo. Entã o voltou ao asfalto, entrou na estaçã o Krylatskoye do metrôesumiuládentro. Quandochegouemcasa,despiuse ainda na cozinha e largou as roupas empapadas no chã o. Sentouse à frente do computador e suas mã os começaram a tremer sobre o teclado. Alé m disso, as letras eram miú das demais, até mesmo com os ó culos para vista cansada.Por que não fabricam essas engenhocas de modoqueumvelhoconsigaenxergar?, ele se perguntou.Porque neste ramo ninguémviveatéaminhaidade,sópor isso. A tecla Enter estava quente quando ele en im a pressionou para enviar a mensagem: OVO JA NO NINHODRAKON. Depois, Marble se acomodou na poltrona da sala e fechou os olhos, pedindo a Deus que olhasse pelo rapaz da CIA que teria de chafurdar naquelalamapararecolheraentrega e també m pela mocinha que o esperaria no carro com um rá dio ao ouvido, atenta a qualquer ruı́do suspeito. Quando o disco inalmente chegouà estaçã o,foiacomodadoem uma embalagem com reforço duplo, querecebeuumaproteçã odeestopa antesdesercolocadaemummalote de segurança má xima. Como Marble era o remetente, o pacote foi despachado o mais rá pido possı́vel paraWashington.Nã odemoroupara que o pombo-correio chegasse com uma resposta no bico: OVO RECOLHIDO. Nos con ins da cidade, um duto de escoamento continuava vomitandosuaáguanegra,masagora conhecia um segredo que guardaria parasempre. *** Benford estava reunido com os o iciaisdoFBInoporã odopré diodo Bureau na Avenida Pensilvâ nia, em Washington. A mesa estava atulhada com os restos do almoço que fora entregue por diversos estabelecimentos da vizinhança. Tinha sido um almoço de trabalho, semnenhumdosluxosdeumavisita de cortesia. Benford escolhera comida tailandesa: umlarb gai, salada de frango com cebolas, manjericã o, limã o e tanta pimenta que ele parecia soltar fumaça pelas ventas enquanto os demais navegavampelasá guascalmasdeum sanduícheouumasopa. OnúmerodefuncionáriosdaCIA e do FBI era igual, em sua maioria o iciais graduados da á rea té cnica e da contrainteligê ncia. Quando o mensageiro chegou com o material enviado por Marble, Benford — logo ele — concordou em deixar o FBI abrir o pacote de acordo com os princı́pios e cuidados da perı́cia forense.MaiscedoeledisseraaNate: “Aquelesrobô snã opararamdefalar sobre ‘preservar a integridade evidenciá ria’ do pacote. De acordo com eles, caso Marble tenha realmente conseguido roubar um disco contendo informaçõ es ultracon idenciais entregue aos russos por Swan, entã o precisamos lembrarquehaverá umjulgamentoe que vamos precisar de todas as provas possı́veis.” Ao contrá rio do que qualquer um poderia ter esperado,Benfordhaviaconcordado. O disco de Marble agora se encontrava numa bandeja metá lica no centro da mesa, já fora do estojo plá sticodoSVRedacapadepapelda Path inder, cuidadosamente acomodado sobre uma toalha esterilizada.Umpó cinzentoformava uma leve camada sobre a superfı́cie. Tratava-se da ninidrina que os té cnicos do FBI haviam polvilhado e que depois seria borrifada com um contraste de ó xido de cá lcio para trazer à tona as impressõ es digitais. Sentados em volta da mesa, todos podiam ver as trê s marcas latentes no disco. A quem pertenceriam? Aos dedos engordurados de um rato de laborató rio russo? Aos dedos traidores de um informante americano?BenfordsabiaqueMarble jamais teria manuseado o CD diretamente: o general era competenteecautelosodemaispara fazer isso. Os agentes especiais fotografaram todo o material, mandaram as fotos para serem ampliadasemlaborató rioesó entã o foi possı́vel dar inı́cio a uma busca automatizadanosarquivosdoFBI. Benford estava voltando para a CIA quando o telefone de seu carro tocou. Era o vice-diretor do Departamento de Serviços LaboratoriaisdoFBI. — Sugiro que você entre no primeiro retorno e volte correndo pra cá . Nã o vai acreditar no que acabamosdedescobrir—disseele. — E bom que seja algo muito importante — retrucou Benford, mudando de pista para tomar a rampamaispróximadaautoestrada. — Ah, pode acreditar que é muitoimportante—falouohomem. A SALADA DE FRANGO (LARB GAI) DE BENFORD Cortar filés de peito de frango em fa as finas com uma faca grande ou um cutelo. Temperar com suco de limão e vinho de arroz e saltear no óleo quente. Deixar esfriar e marinar em caldo de peixe com sal, pimenta, capim-limão, alho picado, pimenta dedo de moça e raspas de limão. Reservar por algumas horas, depois acrescentar coentro, manjericão, hortelã e cebolinha. Mexer bem. Servir sobre um leito de alface, acompanhado de arroz. CAPÍTULO 35 EM 2005, FOI ESBOÇADO E discutido no Comitê Judiciá rio do Congresso americano um projeto de lei com vistas a regulamentar o uso deimpressõ esdigitaiseamostrasde DNA em medidas de segurança. Por uma sé rie de motivos polı́ticos que nada tinham a ver com a segurança nacional, poré m, a votaçã o foi postergada duas vezes e o projeto, apó s um tempo, engavetado. A ideia era estabelecer um banco de dados nacional de impressõ es digitais e informaçõ es gené ticas para levantamento de histó ricos criminais, registro de imigrantes e identi icaçã o de funcioná rios federais em posiçõ es crı́ticas. A é poca, o lı́der dos democratas no Senado sugerira à senadora recé meleita Stephanie Boucher que, em prol da cortesia bipartidarista, ela integrasse uma bancada mista de democratas e republicanos para a defesadotalprojeto.Emboravissea formaçã o de um banco nacional de dados biográ icos como uma escandalosainvasã oà privacidade,a senadora acreditava que o apoio pú blico a esse tipo de projeto daria credibilidade à sua plataforma polı́tica, basicamente centrada na segurançanacional,eseriavistocom bons olhos por seus eleitores californianos do setor aeroespacial. Numa coletiva de imprensa, os membros dessa bancada haviam concordadoemcoletaralimesmoas impressõ es digitais e o material gené tico de cada um. Sorrindo para as câ meras, Stephanie Boucher permitira que um té cnico coletasse amostrasdesuasalivaenquantoum assessor mais curioso indagava quantos nucleotı́deos de DNA poderiam ser encontrados no interior de uma boca em dado momento. O resultado desse teatrinho bipartidá rio realizado quase uma dé cadaantes(esquecidohaviamuito tempo pela senadora e completamente ignorado por seus operadores no SVR) era que as impressõ es digitais de Stephanie Boucher haviam sido incluı́das na base de dados do FBI. Ao receber as impressõ es parciais de um polegar, umdedomé dioeumanular,colhidas de um CD da Path inder Satellite Corporation roubado de um laborató rio do SVR, o sistema computadorizadonã olevounemdez minutos para identi icar as latentes dasenadoraentreasmaisde25mil impressõ es civis armazenadas no sistema. Ao longo dos dias seguintes, Benford e os chefes de contrainteligê ncia do FBI se reuniram diversas vezes em ambas as margens do Potomac, nã o tanto para determinar quem tinha prioridade sobre aquele caso ou discutir as complexidades de uma ampla operaçã o policial envolvendo uma senadora da Repú blica, mas principalmente para decidir o que fazerparaimpedirqueaCasaBranca, o Conselho de Segurança Nacional, a Polı́cia do Capitó lio, o Senado Americano,oJudiciá riodoEstadoda Califó rnia, o Conselho Municipal de Los Angeles e a Associaçã o Californiana dos Produtores de UvaPassa vazassem detalhes da investigaçãoparaamídia. —Aú ltimacoisaquequeremos é queStephanieentreempâ nicoese mandeparaaRú ssia—disseCharles Montgomery, mais conhecido como Chaz, chefe da Divisã o de Segurança NacionaldoFBI. — Bobagem — retrucou Benford,recolhendoseusmapasapós um longo debate sobre esquemas e rotas de vigilâ ncia. — Mandar essa mulher permanentemente pra Moscouseriamelhordoquedetonar uma bomba de nê utrons na Praça Vermelha. Juntos,aCIAeoFBIformularam um plano tá tico para a vigilâ ncia da senadora,tantoemcampoquantoem ligaçõ es telefô nicas, correspondê ncias e até mesmo no lixo. Stephanie nã o sabia, mas se tornara a donzela de cabelos douradosquecaminhavaincautapor um pâ ntano cinzento enquanto os cã es começavam a uivar por trá s da neblina, do alto dos rochedos, do interior das ravinas lamacentas. Já eratardedemaisparacorrer. *** AcasadeStephanieBoucher,na Califó rnia, icava no alto de uma colinaemBrentwood,razoavelmente afastada da civilizaçã o, um casarã o de cinco quartos em estilo campestre, telhado de á guas muito ı́ngremes e revestimento de ardó sia, vista para o Pacı́ ico de um lado e paraasluzesdeLosAngelesdeoutro. Nopá tiointernodaconstruçã oemU havia uma piscina de fundo preto e um amplo deque onde agora batia o soldamanhã .Aportadecorrerdaala dos quartos estava aberta, e por ela passava a melodia suave e sedutora de“MissChateleine”,dek.d.lang. Stephanie ainda estava deitada na cama enorme, que transmitia certa severidade escandinava em razã odacabeceiradefreixopreto.O tom escuro contrastava com os matizes bege e creme que predominavam no resto da decoraçã o. A senadora estava nua, com os cabelos presos no alto da cabeça. A seu lado havia um rapaz com metade da idade dela, um jogador de beisebol de 20 e poucos anosquejogavanosDodgersounos Angels em uma posiçã o que ela nã o lembravadireitoqualera.Dormia,nu també m, negro como um deus de é bano, a pele ú mida com o suor da manhã , os mú sculos lembrando os seixos no fundo de um riacho. Jazia debruçoscomaspernascruzadasna alturadostornozelos. Stephanieselevantoucomtodo o cuidado para nã o acordar o fulano cujonomeelanã orecordava.Fezisso maisparaevitarumanovarodadade trabalhosdoqueporconsideraçã oao sono dele. A noite fora agitada o bastante,comhorasdesexo,algumas delasbastantedolorosas:pernasnã o haviam sido feitas para serem tã o esticadas e certas partes do corpo deveriam ser dobradas em apenas umadireçã o.Masesseeraopreçodo paraı́so,elapensouenquantodeixava a cama com uma leve coceira nas costas,nascoxasenoventre. Stephanie penteava os cabelos no banheiro quando visualizou no espelho a imagem da mã e e se lembrou dela ainda nos tempos da casinha em Hermosa, refestelada na cama, dividindo um cigarro com o homem da vez, ora um velho barrigudo, ora um jovem magricela, comumatatuagemouumbigode,um rabodecavaloouacabeçaraspada,e ela,Stephanie,fechandoaportapara nã oterdeveraquilo,olhandoparao reló gio da cozinha e rezando para que pelo menos uma vez na vida o pai, sempre acanhado e medroso, voltassemaiscedodotrabalho.Apó s o enterro, e o julgamento, ela se olharaemoutroespelhoedisseraasi mesmaqueningué m a ajudaria caso elanã oajudasseasimesma,motivo peloqualhaviatelefonadoparaopai e pedido que ele voltasse para casa naquelefimdetarde. *** A senadora agora se reclinava numa espreguiçadeira ao lado da piscina enquanto beliscava uma salada de camarã o com cominho e endro. Vestira um roupã o branco a im de poupar sua assistente do desconfortodevê -lacomosseiosde fora enquanto trabalhavam juntas. Missy, a mais recente aquisiçã o de sua equipe de assessores, era uma mocinhagorduchaetı́midaquetinha o há bito de roer as unhas e agora estava sentada à mesa cercada de papé is. Era a terceira secretá ria pessoaldasenadoraemdozemeses. As ossadas dos ex-integrantes da equipe Boucher encontravam-se espalhadas ao longo de todo o caminho entre Washington e Los Angeles. Missy lia de um arquivo, repassando os compromissos da chefe para os pró ximos dias na Califó rnia. Havia duas palestras previstas em San Diego e Sacramento,umbrie ingcon idencial na sede da Path inder Satellite em Los Angeles e um jantar ilantó pico emSã oFrancisco.Elateriadevoltar a Washington no má ximo até terçafeiradasemanaseguinte,atempoda votaçã o de novos aportes orçamentá rios para o Pentá gono. Stephanie pediu à mocinha que a lembrasse de solicitar uma revisã o completa do orçamento con idencial da CIA. Sua intençã o era en iar algumas coisas desagradá veis na bunda daqueles folgados nos próximosmeses. Essa imagem fez Stephanie olharparaasportasabertasdooutro lado da piscina. Seu jogador ainda dormia,graçasaDeus.Elapediriaao motoristaqueolevassedevoltapara oestádio,paraMalibuoupara... Movimento. Muito movimento dentro de casa. A empregada surgiu na á rea da piscina junto com quatro homens. Trê s deles usavam terno, camisa branca, gravata discreta, sapatos de cadarço e ó culos estilo aviador; apenas um carregava uma maleta.OquartoeraNate,magroede cabelos negros. Ele vestia um blazer porcimadeumacamisadealgodã o, calças jeans e mocassins. Stephanie sentiuocoraçãodisparar,farejandoo perigo.Fossemquemfossemaqueles burocratas, ela nã o deixaria barato: fariaumescâ ndaloporcontadaquela invasã o absurda. No entanto, nã o teve tempo para desferir o primeiro tiro, pois o mais velho da trinca de engravatadosfoilogodizendo: —SenadoraStephanieBoucher? Meu nome é Charles Montgomery e sou agente especial da Divisã o de Segurança Nacional do FBI. — Ele pegou a carteira para apresentar o distintivo. Os outros dois colegas izeram o mesmo, mas Nate permaneceu imó vel. — A senhora está presa por repassar informaçõ es con idenciais a uma potê ncia estrangeira, o que constitui uma violaçã oaoartigo18,seçõ es794(a)e 794(c) da Lei de Espionagem de 1917. Stephanie ergueu os olhos para os homens, estreitando as pá lpebras contra a claridade. Deixou de propó sito o roupã o como estava, ligeiramente caı́do na altura dos ombros, evidenciando as curvas dos seiospequenos. — Do que você está falando? Ficou doido? Acha que pode entrar assim na minha casa, sem hora marcada? Missy nem piscava enquanto corria os olhos de um lado a outro, oraparaachefe,oraparaoshomens. —Senadora,precisopedirquea senhoravá sevestir—disseoagente doFBI. Em seguida fez a leitura de praxe dos direitos dela ao mesmo tempo que a puxava pelo cotovelo, obrigando-aaselevantar. — Tire as mã os de mim! — exigiu Stephanie. — Sou uma senadora da Repú blica. Você s nã o fazem ideia da encrenca em que estãosemetendo. Entã osevirouparaasecretá ria gordinha, que continuava muda à mesa, repassando mentalmente como o dia havia começado (meia hora de gemidos sensuais vindos do quarto da chefe) e como ele estava progredindo (o FBI levando a senadora presa). Já se perguntava comoaquilotudopoderiaterminar. — Missy, pegue o telefone. Quero que você faça trê s ligaçõ es para mim agora mesmo — prosseguiu Stephanie, ainda imobilizada por Montgomery. — Primeiro,paraopromotordoestado. Nã o quero nem saber onde ele está ou o que está fazendo: coloque-o na linha.Depois,telefonepropresidente do SSCI. Mesma coisa: quero o homem na linha em cinco minutos. Por ú ltimo, meu advogado. Mande-o virpracá agoramesmo.—Dirigindose aos homens que formavam um semicı́rculo à sua volta, falou: — O chefe de você s no Departamento de Justiça vai en iar um espeto no rabo de cada um, e meu advogado vai terminarochurrasco. Missy foi recolhendo apressadamente a papelada sobre a mesa,masumdosagentesdisse: — Senhorita, sinto muito, mas vamosterdelevaressespapéis. Missy olhou para ele, depois para a chefe, em seguida saiu correndoparadentrodecasa. Os agentes levaram Stephanie da piscina para a ala principal da mansã o.Nasala,elasedesvencilhou de forma brusca do homem que a seguravaecuspiu: —Já disseparatiraremasmã os decimademim,porra.Istotudoéum absurdo.Você snã opodemmeacusar dessa forma. Onde estã o as evidências,asprovas? Ela andou de maneira decidida emdireçãoaosofáesesentou.Aessa altura sua fachada de segurança e empá iajá estavaumpoucorachada. Ela precisava ganhar tempo até que seu advogado chegasse. Golov talvez tivesse alguma razã o naquela sua ladainha constante sobre segurança, talvez tivesse sido mais prudente ouvi-lo.Aindaassim,oFBInã osabia denada.Orussoeraumpro issional, seriaimpossívelprovaralgumacoisa. Stephanie nã o se dava conta de que foraelaquemcavaraaprópriacova. — Vou esperar meu advogado — decretou ela, cruzando os braços naalturadopeito. — Senadora, já nos identi icamoscomoagentesfederais elemosos seus direitos exatamente como manda a lei. A senhora entendeu o que foi dito? — perguntou Montgomery, e na ausê nciaderespostaemendou:—Se nã otiverentendido,vourepetirtudo. Caso tenha entendido, nos dê algum sinal disso. Mantendo esses direitos emmente,asenhoravaiquererfalar conoscoagora? Stephanie percebeu que qualquer contemporizaçã o e protelaçã oseriade seu interesse. As ligaçõ esparaWashingtoneparaseu advogado em breve resultariam numa torrente de açõ es que estenderia aquele caso por muitos meses, senã o anos. Uma vez que o caso nã o era de lagrante, nã o poderiam provar merda nenhuma. Alegaçõ es, conclusõ es equivocadas, associaçõ es sem nenhuma substâ ncia. Ela conhecia muito bem todas aquelas tá ticas. Estava preparada para medir forças com o melhordeles. — Nã o vou responder pergunta nenhuma—falou. Montgomerytirouumapastade sua maleta e a deixou sobre a mesa diante de Stephanie. Ao abri-la, a senadoradeparoucomumalistagem das reuniõ es con idenciais que ela tiveranasededaPath inderSatellite Corporation,alé mdeextratosdesua conta bancá ria pessoal nos quais se viam diversos depó sitos anô nimos novalorde9.500dó lares,totalizando alguns milhares de dó lares. Ela se lembrava de ter pedido esses pagamentoscontingenciaisaGolove que ele havia tentado dissuadi-la. Mas seus instintos de guerreira parlamentardiziamquenadadaquilo constituı́a uma prova concreta, que umbomadvogadonã oteriaamenor di iculdade para levantar dú vidas, confundir e protelar. Encarando o agente com um ar de desa io, ela disse: — Só um monte de papel. Isso nãosignificaabsolutamentenada. — Senadora, por favor dê uma olhada no ú ltimo documento do arquivo — pediu Montgomery, e esperouqueelapassasseaspá ginas. Na penú ltima havia uma foto bastante nı́tida de um CD da Path inder polvilhado com um pó branco. — Conseguimos esse disco em Moscou, e encontramos as suas impressõesdigitaisnele. Stephanie nã o respondeu. O silê ncio seria completo nã o fosse pela melodia que chegava até eles vindadasentranhasdacasa:alguma mú sica do á lbumOut of Silence, de Yanni,comJohnTeshnosteclados,o predileto de Missy. Montgomery pigarreou e colocou mais uma folha diantedasenadora. — O que é isso? — perguntou ela. —Seasenhoracompreendeuos seus direitos tal como eles foram explicados, isto é uma con issã o de culpa para a acusaçã o de espionagem.Asenhoravaiassinar? — Você está achando que vou assinarumaconfissãodeculpa? Stephanie nã o se deu conta de que o roupã o estava aberto. Os agentes faziam o possı́vel para nã o olhar. — A senhora nã o é obrigada a assinar nada — retrucou Montgomery. — Estou apenas apresentandoumaopção. Stephanie podia ter muitos defeitos,masaindecisã onã oeraum deles. Acreditava em si mesma e tinha plena convicçã o de que merecia,oumelhor,dequeavidalhe devia sucesso, dinheiro e todo o confortodoqualelaagoradesfrutava. Nã o era de seu feitio ceder a quem quer que fosse. Muito menos a um bando de caipiras como aqueles. Ainda estava para nascer quem roubariadelaopodereoprestı́giode um cargo eletivo. Ainda estava para nascer quem a faria mofar numa prisã o pelo resto da vida. Ela nã o deixaria isso acontecer. Olhou para oshomensàsuavolta. —Muitobem,euassino—disse abruptamente. Osagentesseentreolharampor um instante. Um deles se adiantou para entregar a pró pria caneta, uma Skillcraft de plá stico branco com as palavras GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS estampadas na lateral. Stephanie olhou para a caneta e acenoucomamão,descartando-a. — Missy, vá buscar minha canetanoescritório—ordenou. A assistente, até entã o pendurada ao telefone, saiu para o escritó rioevoltoudaliapoucocoma MontblancEtoiledachefe.Stephanie desenroscou a tampa, debruçou-se sobreopapelerabiscoualgonalinha inferiordodocumento. — Está perguntouela. bom assim? — Montgomery examinou o papel e,sorrindo,disse: — Imagino que “Vai tomar no cu”nã osejaadmissı́velemjuı́zo.Mas nãosoueuquemvaiobjetar. — E quem é aquele cara ali? — indagou Stephanie, apontando para Nate. Seguiu-se um momento de silê ncio desconcertado enquanto todos viravam as cabeças para ele. Aproveitando a oportunidade, Stephanie tampou a caneta, sacou a agulhaescondidanoclipeeespetouanumaveiadobraçoesquerdo.Nate, o ú nico a ver o que ela izera, irrompeu imediatamente na direçã o do sofá e jogou a caneta para longe comumtapa. Ningué m naquela sala já ouvira falar do sapo-veneno-de- lecha, tampouco sabia que o animalzinho nã otinhamaisque5centı́metrosde comprimento,camuflava-secomuma bela estampa em tons fortes de amarelo e vivia nas lorestas tropicaisdaColô mbia.Umtoxicó logo doFBIcomseumaterialdepesquisa emmã ospoderiainformar-lhesquea batracotoxinaencontradanapeledo minú sculoanfı́bioé altamentenociva aos humanos, uma neurotoxina que paralisa os mú sculos com uma rapidez impressionante, o su iciente para levar a uma parada cardı́aca. Tinham sido os quı́micos do Laborató rio 12 da KGB, també m conhecido como Kamera, os primeirosacoletarearmazenaresse venenonadé cadade1970,cientesde que o antı́doto nã o existia e que o composto produzido em laborató rio nã o perdia a toxicidade nem com a passagemdotempo,nemapóssecar. Os efeitos produzidos pela picada de Stephanie Boucher foram bem menos cientı́ icos e bem mais espetaculares. Ela agora convulsionava de forma frené tica com as pernas esticadas, os braços tremendodescontroladamente.Dalia pouco ela icou estirada de costas sobreosofá comacabeçacaı́dapara trá s, os mú sculos do pescoço estufados, os olhos revirados. Nate tentava imobilizar seus braços. As mã os formavam garras rı́gidas nas laterais do corpo e ela começou a babar.Nenhumsomsaı́adesuaboca esuascostasestavamtã oarqueadas que o corpo tinha quase se dobrado em dois. Nate se preparava para ressuscitá -laquandoalgué mdisseà s suascostas: —Melhornão,cara. Era Proctor, o mais jovem dos agentes especiais. Ele apontava para a espuma que começava a escapulir doslábiosinchadosdasenadora. Os homens icaram parados, olhando para ela. Stephanie se sacudiu mais duas vezes antes de icar completamente imó vel. O roupã o havia caı́do para o lado, deixando um dos seios à mostra. Nateteveadelicadezadecobri-lo. — Caramba — comentou Proctor.—Tudoissosó porcausade umacanetavagabundadogoverno? Missychoramingavanocantoda sala. Agora sabia o im daquele dia maluco. SALADA DE CAMARÃO Descascar os camarões e cozinhá-los até que estejam firmes. Picar cebolinha, aipo, azeitonas pretas e cubos de queijo feta e misturar com maionese, azeite, cominho, endro fresco e suco de limão. Adicionar os camarões cozidos, mexer e levar à geladeira. CAPÍTULO 36 VANYA EGOROV ESTAVA SENTADOATRASdaescrivaninhaem seu escritó rio escuro. Um cigarro queimava esquecido no cinzeiro. O vice-diretor olhava as imagens do noticiá riodeumcanalamericanona TV de tela plana, da qual ele havia tirado o som. Um repó rter louro e beiçudo encontrava-se diante de um portã o coberto de hera numa rua arborizada de Los Angeles. No canto da tela via-se uma foto antiga de StephanieBoucher.Naparteinferior, uma barra de informaçõ es dizia: “Senadoracalifornianamortaaos45, possivelmentevítimadeinfarto.” Swan. O ativo mais importante da inteligê ncia russa nas ú ltimas cinco dé cadas. Vı́tima de infarto. Mentira. Era bem prová vel que ela tivesse usado a caneta suicida que Golov solicitara e que Egorov havia autorizado. Aquilo era um pesadelo. Quem poderia ter imaginado que os americanos fossem descobrir tã o rá pido a identidade dela? E quem poderia ter previsto, sobretudo na era pó s-Guerra Fria de informantes cé lebres e polı́ticos espiõ es, que o caso Swan tivesse um desfecho tã o dramá tico,tã oviolento,tã osoviético? O traidor coordenado pela CIA era o principal responsá vel por aquela perda tã o grave. Se conseguisse desmascará -lo,Egorovaindapoderia salvarsuacarreira. No momento havia apenas dois caminhos a seguir: Nasarenko, o chefe té cnico implicado na armadilha, e Nathaniel Nash, o operador da CIA. Egorov pegou o controle remoto da TV e mudou de canal. Uma imagem bastante nı́tida de Nasarenko surgiu em cores na tela. Cada segundo das muitas horas de interrogató rio nos porõ es de Butyrkahaviasido ilmado,eEgorov tinha cada vez mais certeza: aquele espantalho di icilmente seria capaz de espionar para os americanos. As gravaçõ es mostravam os espancamentos, a histeria induzida por drogas, Zyuganov metido num uniforme militar ao interpelar sua presa. A parte relevante da gravaçã o foramarcadaeEgorovadiantoua ita para o ponto certo do contador. Atordoado, Nasarenko admitia ter falado sobre seu excesso de serviço com Vladimir Korchnoi, chefe do Departamento das Amé ricas. Korchnoi havia oferecido dois de seus analistas para ajudá -lo. Nasarenko mostrara ao general um dos Cds americanos durante a conversa. Nã o, ele nã o havia recontado os discos depois. No entanto, pelos cá lculos dos investigadores, um deles sumira. Nã o, era ridı́culo pensar que Korchnoipudesseterlevadoconsigo otalCD.Impossível. Impossível?,pensouEgorov. Ele conhecia Volodya Korchnoi havia quase 25 anos, desde os tempos da academia. Korchnoi se revelaraumextraordiná riooperador de campo: habilidoso, ousado, esperto, o tipo de homem teoricamente capaz de sobreviver aos muitos perigos da vida dupla. Alé m disso, servira diversas vezes fora do paı́s; oportunidades nã o haviam faltado para que ele se aproximasse dos americanos. Nã o. Impossível. Nasarenko passaria meses repetindo a mesma histó ria, cuspindo os mesmos nomes e as mesmas explicaçõ es. Mais contemporizaçõ es, mais atrasos. Egorov discutiria com Zyuganov a hipó tesedeKorchnoi,masagoranã o haviatempo.OamericanoNasheraa chave.Dominikajá estavaacaminho daGré cia.Restavaesperarparavero queaconteceria. *** Dominika icara maravilhada com a luz de Atenas. A de Roma era bemmaisbranda,dourada.Masado Egeu era impressionante: brilhava tantonobrancodasfachadasquanto no preto das ruas. No centro da cidade,tá xis,caminhõ esemotonetas pareciam se derramar da Avenida Vassilis So ias feito uma enxurrada para depois se bifurcar na Praça Syntagmaenopré diodoParlamento Helê nico, sumindo em seguida nas ruas menores que levavam a Plaka. Dominika saiu do hotel e desceu a movimentada Rua Ermou, observando as vitrines pelas quais passava. Numa delas, sacolas e mochilas de toda sorte. Noutra, luminá riasematerialelé trico.Numa terceira, manequins com estolas de raposa pareciam itá -la nos olhos, inclinando a cabeça como se dissessem:“Fiqueatenta,garota.” Seguindo o conselho, Dominika redobrou seus cuidados na rua, atravessando para o outro lado, entrando e saindo de estabelecimentos, usando os espelhos das lojas para observar e marcar os pedestres: um baixinho, ummoreno,outrodebigode,umade camisetaregata,outradechinelosde borracha, um outro de olhos muito pretos e irrequietos. O ar recendia a castanhas torradas; na esquina, um realejo cantarolava sua cançã o. Dominika sabia muito bem no que deveria prestar atençã o: rostos estrangeiros, olhos azuis, maçã s eslá vicas. Auras escuras, amareladas ou verdes; sinais de perigo, de engodo,deestresse. Ela usava um vestido azul de algodã o com decote quadrado e um pardesandá liaspretas,alé mdeuma bolsinhademã oeó culosescurosde armaçã o redonda. No pulso, um reló gio barato de mostrador preto e corrente metá lica. Os cabelos estavam presos no alto, um alı́vio paraocalormatinal.Eraapenasuma informante russa de olhos azuis fazendo sua contravigilâ ncia a caminhodeumencontroclandestino comseuoperadoramericano. DominikasaiudaErmou,entrou numa ruazinha transversal e passou por vitrines agora minú sculas, bem diferentes das anteriores, nas quais eram expostos diversos artigos de natureza religiosa: paramentos, batinas, estolas e mitras. Cruci ixos de prata pendiam de suas pesadas correntes e giravam lentamente no ar: uma vez, duas vezes, trê s, e Dominika continuava sozinha ali, nenhumoutropedestreà vista.Mais à frente, bem no centro da Rua Ermou, icava a capela bizantina de Kapnikarea, com sua fachada de pedraslargas,janelas inasetelhado de mú ltiplas á guas. Dominika voltou para a Ermou, desceu cinco degraus —onı́veldaruanoanode1050—e entrounacapela. O interior era minú sculo. Os afrescos e ı́cones nos arcos do teto estavam lascados e manchados de á gua,eossinuosostextosbizantinos, desbotados havia muito tempo, talvez em razã o dos sé culos de fumaçadeincensosevelas.Pertoda porta icava uma bandeja de areia com inú meras velas espetadas, algumas inclinadas para o lado das vizinhas.Dominikapegouumanovae aacendeunachamadeoutra. Ainda nã o a tinha espetado na areia quando algué m se adiantou para acender a pró pria vela na dela. Ao virar o rosto, ela deparou com Nate à s suas costas, sé rio, o halo violeta conferindo-lhe uma estranha semelhançacomossantosbizantinos dos afrescos lascados. Ele sinalizou para que ela nã o dissesse nada, depoisapontoucomoqueixoparaa porta e saiu. Dominika esperou alguns minutos, en iou sua vela na areia e voltou para a confusã o da cidade. Nate a aguardava do outro lado da rua, e ela foi ao encontro dele. Nate,ooperadorsé rioepro issional, à espera de seu ativo. Dominika lembrou-se dos momentos de intimidade que eles tiveram em Roma e Helsinque. Para alé m da espionagem, os dois haviam sido amantes, uma relaçã o duplamente clandestina, poré m vital, voraz e verdadeira. Para ele a memó ria do que tinham vivido era um pouco mais complicada. Ele dormira com sua informante, colocando em risco nã o só asegurançadela,comotambé mo pró priofuturo,umenganoterrı́vel.Já fora advertido por Forsyth e Gable, homens que respeitava, e mesmo assim repetira o erro em Roma, sabendoqueochefeestavanoquarto aolado.Ficaraarrasadoaosaberque Dominika fora chamada de volta a Moscou,eculpava-seportudooque ela havia passado depois. Agora eles tinhamumamissã oacumprirjuntos, mas vendo o suor que se acumulava acima dos lá bios dela, sua vontade eraseaproximaretocá-la. Dominika percebia tudo isso com sua clarividê ncia ú nica. Manteve-se afastada, sem oferecer a mã o, e observou os olhos dele, o violeta que o emoldurava. Via perfeitamente que ele pretendia tratá -la apenas como uma informante, um ativo da CIA, mas na realidadeosdoiserambemmaisque isso. Já que ele se recusava a dar o primeiro passo, restava a ela comportar-se com o mesmo profissionalismo. — Vamos? — falou, e seguiu atrá sdeleruaacimaquandoNatese virouecomeçouaandar. Elesseembrenharamnasruelas do coraçã o de Plaka, dobrando ora à esquerda, ora à direita, numa rota à primeira vista sem destino, um caminho que obrigaria qualquer esquemadevigilâ nciaadarascaras naquele labirinto de pá tios, passagens estreitas e pequenas praças. A mú sica escapava das lojas, quetinhamasportasdecoradascom guirlandas amarelas artesanais. Era possı́vel sentir o perfume dos incensosedossândalos.Natelançava olhares rá pidos na direçã o de Dominika,queassentiacomacabeça querendo dizer que nã o havia ningué m que ela pudesse ver. Ele anuíaemconcordância. A tarde caı́a quando en im eles chegaram à Praça Filomouson, cheia de restaurantes. Mesas, toldos e guarda-só is se espalhavam sob as ileirasdelâ mpadasquesecruzavam noalto.Otilintardepratosepanelas chegava ao lado de fora dos estabelecimentos,vindodasdiversas cozinhas. Nate conduziu Dominika até umaportinhaverdedecré pita,ao lado da qual uma placa informava: TAVERNA XINOS. Eles entraram, seguiramparaoquintaldecascalhoe se acomodaram numa mesinha de canto.Natefezopedido:umasalada detaramocombroto de beterraba e uma porçã o depapoutsakia, berinjelas assadas recheadas com carne de cordeiro moı́da, canela, tomatesemolhobechamel. Enquanto comiam, eles discutiam com o má ximo de discriçã o possı́vel o que Dominika deveria dizer quando voltasse a Moscou. Combinaram que ela contaria à central que o seduzira, e nesse momento Nate precisou desviaroolharporalgunssegundos. Ela diria, ainda, que ele estava começandoafalardeseutrabalho,o pardal russo enredando o ingê nuo americanocomsuasartimanhas.Eles tinham dois dias para fabricar essa histó ria, durante os quais deveriam se manter distantes do quarto dela, atentosaqualquersinaldevigilâ ncia russa. Nenhum contato seria feito comaestação. — Duvido que você adivinhe quem está em Atenas — disse Nate, enchendo o copo dela com oretsina servido numa jarra de alumı́nio amassada.—Forsyth. Ele chegou há dois meses. Agora é o chefe da estaçãodeAtenas. Dominikasorriu. — EBratok? Veio també m? — quissaberDominika. Imaginavaseosdoissabiamde seucasoamoroso. — Gable? Claro que veio. Aqueles dois sã o insepará veis — respondeu Nate, e a conversa empacou.Haviaumcertopesonoar, sobre a cabeça de ambos. Eles se entreolharam em silê ncio, os olhos de Nate icando turvos. — Temos dois dias — falou ele a inal. — E importante fazermos toda a encenaçã o, preenchermos esse tempo. — Sim — concordou Dominika. — Precisamos encenar inclusive as nossas conversas, pra que depois eu possa fazer meus relató rios pra central. Tudo deve parecer... podlinnyj. Como é mesmo que se diz isso? —Autê ntico—respondeuNate. — Exatamente, precisamos parecer autênticos. — E importante que eu tenha muitosdetalhespracontardepois— emendou Dominika, lembrando-se dosinterrogatóriosemLefortovo. Emseguidaoassuntomorreude novo. Ambos sentiam nos ombros o pesodamentira,danegaçã odeseus sentimentos. A nuvem violeta de Nate era sempre a mesma, como se nenhum con lito o atormentasse. Dominikaprocurouseconcentrar.Ao sair do restaurante, eles seguiram pela periferia de Plaka, percorrendo asruelasescurasvizinhasdosmuros da Acró pole. A certa altura, subiram uma escada estreita com vasos loridos em cada degrau. No alto, Dominika segurou Nate pelo braço para que ele parasse. Por um breve instante icaram ali, no escuro, correndo os olhos à sua volta, procurando ouvir passos no silê ncio da noite. Nã o escutaram nada, e Dominikaosoltou. — Aqui a gente precisa decidir — sussurrou ele. — O que vamos fazer? Cada um vai pro seu hotel e voltamosanosveramanhã? Dominika nã o tinha a menor intençãodefacilitarascoisas. — E se meu quarto estiver monitorado? O esperado é que você me convide pro seu hotel, e que eu aceiteoconvite. Nate teve a sensaçã o de que estava pulando de cabeça nas á guas geladasdeumlago. — Você tem razã o. A inal, precisamosserautênticos,nãoé? Eles se entreolharam por mais umminuto. —Então,vamos?—disseNate. — Como você quiser — respondeuDominika. *** Serguei Matorin estava completamentenudiantedoespelho de seu quarto no King George Hotel, na Praça Syntagma. Sabia que Dominika estava hospedada no vizinho Grande Bretagne. Remanescentes de um passado glorioso, os dois hoté is ainda guardavam certa elegâ ncia do Velho Mundo que contrastava com a confusã o da cidade. Matorin nã o estavanafrentedaqueleespelhopara admirar seu corpo lanhado de cicatrizesafegã secomumburacono ombro direito no ponto em que ele fora ferido ao liderar uma manobra com seu Grupo Alfa no Bazar de Ghazni. Nã o. Estava ali para se concentrar melhor nos movimentos d etai chi que vinha praticando, no seu lento balé de ataques, defesas, pivô s e imobilizaçõ es. Um apolo bailando em meio à cacofonia do trâ nsitoquevinhadarua.Terminada a prá tica, ele dobrou o tronco o má ximo possı́vel, voltou a se reerguer e respirou fundo, o olho opacoimóvelnaórbita. Em seguida pegou sua mala de rodinhas e a esvaziou em cima da cama. Desparafusou a estrutura metá licaechegouaocompartimento secreto, engenhosamente concebido pelosté cnicosdeMoscou,noqualele escondia seu facã o Khyber sempre queprecisavaviajar.Comaarmaem punho, voltou para a frente do espelho e simulou uma sé rie de golpesdecombate,alâ minachiando baixinhoaocortaroar. Matorin suava profusamente por causa do exercı́cio. Manchou o brocado azul-claro de uma cadeira Luı́s XIV ao se sentar nela para uma inusitadaoperaçã o:pegouocinzeiro de cerâ mica do hotel, virou-o de cabeçaparabaixoeusouasuperfı́cie á spera para a iar seu facã o com movimentos precisos, a estridê ncia daaçã osesobrepondoaobarulhoda rua. Dali a pouco, satisfeito com o resultado de seu trabalho, largou a arma e tirou da mala uma pequena sacola fechada com zı́per e etiquetada com a palavra INSULINA. Pescou lá de dentro duas grossas seringasautoaplicá veis,umaamarela e a outra vermelha, concebidas para seremusadasnomúsculodacoxaou nas ná degas. A primeira continha umadosedeSP-117,umcomposto de barbiturato desenvolvido pela Linha S. Essa seria usada para as perguntas. Já a vermelha, do Laborató rio 12, continha 100 miligramas de pancurô nio, substâ ncia capaz de paralisar o diafragma em noventa segundos. Essa seria para depois. Duas seringas.Oamareloeovermelhodas Spetsnaz. *** Eles pegaram um tá xi e seguiramemsilê ncioparaohotelde Nate,oSt.GeorgeLycabettus,quese aninhavaentreospinheirosdacolina Likavittos.Davarandadoquartoera possı́velveroPartenoniluminado,o vasto tapete de luzes urbanas que cintilavaaté anegritudedomar,até o porto em que Egeu se sentara à espera das velas brancas do ilho Teseu. Dominika deu uma olhada no banheiro, ligando e desligando o interruptor rapidamente. A luz que vinha da fachada do pré dio era a ú nica iluminaçã o do quarto. Nate andava de um lado para outro enquanto Dominika o observava de braçoscruzados. — Se você quiser mudar nosso plano, tudo bem — disse ela de repente. — Posso escrever no relató rio que minha visita a seu quarto durou menos de cinco minutos, que o seu... ardor... foi um tanto... como é mesmo que se diz ukorachivatkratkiy? —Breve—respondeuNate. Suas cores cintilaram com a brincadeira. — Isso. — Dominika foi para a porta da varanda e icou ali olhando para o nada. — O pessoal de Yasenevo vai adorar saber que os agentesdaCIAnã otê mtantofô lego. Seu desempenho vai ser a fofoca do dialánacentral. — Sempre adorei o humor russo. Pena que seja tã o difı́cil de encontrar—retrucouNate.—Masse forpradarverossimilhançaaonosso teatro,achoquevocê deveriapassar anoiteaqui. Pradarverossimilhançaaonosso teatro,pensouDominika,edisse: — Tudo bem, entã o. Durmo no sofá e você no quarto. Com a porta fechada,claro. Nate praticidade: respondeu com —Voubuscarumcobertoreum travesseiro pra você . Temos um longo dia pela frente amanhã . Fazendonada. Dominika esperou que ele se retirasse para o quarto e só entã o tirou o vestido e se acomodou no sofá .Maisumanoitedeluar,pensou amargamente,olhandoparaaluzque invadia o quarto. Chegou a se levantarparafecharascortinas,mas desistiunomeiodocaminhoevoltou asedeitar. Estava cansada de ser usada feito uma bota velha por todos eles: osvlatsi—herdeirosdaantigaUniã o Sovié tica —, Korchnoi, os americanos.EstavafartadeNatelhe dizer o que fazer, o que era mais e iciente, o que nã o era. Como era possı́vel que Korchnoi tivesse suportadoaquiloportantotempo?E ela, quanto aguentaria? Aguçou os ouvidos, tentando detectar algum ruı́donoquartodeNate.Precisavade algo mais por parte de todos eles. Estava cansada de ter os pró prios sentimentosnegligenciados. Faltava pouco para as trê s da madrugadaquandoNate,meiozonzo, teve a impressã o de que algué m havia aberto a porta de seu quarto. Uma luz difusa vinha da rua, atravessando a transparê ncia das cortinas. Ergueu a cabeça ligeiramente e deparou com a silhuetadeDominika,quecaminhava paraajanelacomseuinconfundı́vele gracioso manquejar. Ela abriu as cortinas, assim como a porta de correratrá sdelas,edeixouabrisada noite in lar os panos, enroscando-os nela.Emseguidaseaproximoudelee icouparadaaoladodacama.Natese ergueu, apoiando-se num dos cotovelos. — Algum problema? — perguntou.—Tudobemcomvocê? Dominika nã o respondeu e continuoualiempé,olhandoparaele. Por força da pro issã o, Nate cogitou seelatinhaouvidoalgumbarulho,se elesseriamobrigadosafugirdalino meio da noite. Sabia que havia uma escadadefundos,já tinhaestudadoo lugarmaiscedo.VendoqueDominika nã odirianada,elesesentounacama, pegouamãodelaeindagou: — Domi, o que foi? O que está acontecendo? Numfiapodevoz,eladisse: — Quando nó s izemos amor, você colocou isso nos seus relatórios? —Doquevocê está falando?— quissaberNate. — Em Helsinque e em Roma, quandoagentefezamor,você contou paraosseussuperiores? —Oqueagentefeznã ofoinada pro issional. Contrariamos todas as regras. Mas a culpa foi minha. Coloqueiemriscoasuasegurança,a integridadedaoperação. Dominika o encarou por alguns segundosemsilêncio,depoisfalou: — A operaçã o. Você está dizendo que... a gente colocou em risco a continuidade darazvedka.Do fluxodeinformaçõesdeinteligência. — Olha — retrucou Nate —, o queagentefezfoiumaloucura,tanto em termos pro issionais quanto pessoais. Quase perdemos você uma vez, quando foi pra Moscou. Eu pensavaemvocêotempotodo.Ainda penso. — Claro. Você pensa na operaçã o. Em Dominika,o ativo nacional. — Ainda nã o entendi sobre o quevocê está falando.Oquequerque eudiga? — Eu quero que por alguns instantes a gente pare de pensar na operaçã o, que sejamos só você e eu —devolveuela,opeitoarfandosobo sutiã. Nate se levantou e a abraçou. Em sua cabeça, o desejo que o consumialutavacontraoinstintode sobrevivê ncia.Elesentiuocheirodo cabelodela,apressã odeseucorpo.O Sr.AgenteOperadorestavaprestesa escorregarumaterceiravez. — Dominika... — balbuciou, cientedoperigoquecorria. — Você vai violar as regras de novo?—perguntouela. Podia ver o efeito que o desejo tinha sobre o violeta da aura dele, queagoraardiaforteobastantepara iluminaroquarto. —Dominika...—repetiuele,ea olhounosolhos. Os cı́lios dela pareciam tremer aosabordabrisa.Nateviuorostode Forsyth, sé rio, bravo, ameaçador. Nateaqueriamaisdoqueeracapaz deresistir. —Dessavezeuqueroquevocê viole as regras... comigo... nã o com a sua informante. Quero que você me viole—provocouDominika. Emseguida,desabotoouosutiã derenda.Elescaı́ramjuntosnacama, eladebruços,elesejogandoporcima dela, pesado e quente, ofegando em s e upescoço, entrelaçando os dedos nos dela. Dominika apertou as mã os dele com força. Nate prendeu os quadris dela com as pernas e a respiraçã o de Dominika se tornou maispesada. —Trahnimenya...—gemeuela, esticandoobraçoparabaixoa imde tocá-lo. — Quantas regras você vai me obrigar a quebrar? — sussurrou ele noouvidodela. Dominika virou o rosto para Nateemsilê ncio,querendoverseele estavabrincandocomela. — Cinco? Dez? — prosseguiu Nate. Mantendo a boca pró xima ao ouvido dela, começou a contar até dez bemdevagar, cada nú mero seguidodeumaestocada: —Odin...dva...tri... Dominika estremecia de prazer, ocoraçã obemmaisaceleradodoque antes. —Chyetirye...pyat...shest... Elaesticouosbraços,agarrando oslençóis. —Syem...vosyem...dyevyat... Osdedosagoraeramgarrasque enrolavam as cobertas em volta dos pulsos. —Dyesyat, dez — disse Nate, e ergueu o tronco das costas de Dominika, a i nda de nt ro de la , o lha ndo pa ra s e u do rs o s ua do , s ua s ná de g a s empinadas. Elaenterrouorostonoslençó is, ofegante,emêxtase. O luar agora se esparramava dentrodoquarto.Deitadoaoladode Dominika, Nate segurou-a pelo queixo e beijou-a na boca. Com delicadeza, Dominika afastou a mã o deleefalou: —Sevocê disseracoisaerrada, incoumaunhanoseuolhodireitoe jogovocêláembaixo. —Nã oduvidonada—retrucou Nate, acomodando a cabeça no travesseiro. —Eissomesmo.Eseeuquiser mais,vouseduzirvocêdenovo. —Tudobem,tudobem,nã ofoi issoqueeuquisdizer.Masagoraserá que a gente pode dormir um pouco? Promete que vai icar boazinha pelo menosporumtempinho? — Claro — retrucou Dominika. — Os bons agentes sempre seguem asinstruções. A BERINJELA RECHEADA DA TABERNA XINOS No azeite quente, refogar carne de cordeiro moída com cebolas e tomates picados. Temperar bem, deixar esfriar, depois adicionar queijo ralado, salsinha, pão dormido reidratado e um ovo ba do. Cortar as berinjelas em duas, ao comprido, e refogá-las no azeite até que amoleçam. Re rar a polpa e reservar. Rechear a casca com o cordeiro moído. Cobrir com molho Mornay, borrifar com azeite, levar ao forno num refratário (com a polpa e um pouco de água no fundo) e assar até dourar. Servir à temperatura ambiente. CAPÍTULO 37 ZYUGANOV SEGURAVA COM FORÇA o fone do aparelho criptografado. Era quase tã o grande quantosuacabeça. — Claro que eles vã o estar atentos à vigilâ ncia — disse ele. — Você nã o vai conseguir segui-los. Mantenha o plano original. Já está comtodoomaterialpreparado?Você só vai precisar de quinze minutos. Consegue o nome, con irma comigo, depoisliquidaafatura. Ele girava na cadeira enquanto ouviaarespostadeseuinterlocutor. Depois: — Olha, nã o estou dizendo pra vocênãosalvá -la,masonomeé mais importante do que qualquer outra coisa, mais do quequalquer um. Entendido? Quero resultados. Resultados, está me ouvindo? Agora, aotrabalho. *** No ú ltimo dia deles em Atenas, os raios de sol já estavam fortes à s nove da manhã . Cansados, moles e meio zonzos, eles desceram a Rua Pindarou,pararamnumdoscafé sda PraçaKolonakieseacomodaramem uma mesa na calçada. Pediram um suco de laranja e brioches. Ficariam na rua o dia todo, ensaiando o que Dominika deveria reportar à central. Eladeuumamordidaemseubrioche e lambeu os dedos depois. Sentia-se bemmelhordoquenavéspera. —Será queeudigoquevocê me forçou,ouqueeucoloqueiumavenda nos seus olhos e o tranquei nu num armário? Ela arrancou um pedaço do pã ozinho e o levou à boca de Nate. Elevirouacabeçaparaooutrolado. —Trancaralgué mnumarmá rio nã oserianovidadenenhumanoSVR —devolveuele. Sentia-se irritadiço, culpado, sem nenhuma paciê ncia para os gracejos depois da noite de amor. Dominika icoudesanimadaaoouvir isso. Largou o brioche no prato, encarou-oedisse: —Vocêestásendoinsensível. Masoespı́ritodocontradeNate já estava a postos. Ele sabia muito bemoquesentiaporDominika,mas també m conhecia suas obrigaçõ es, e tinha consciê ncia do que ela queria dele, do que ele podia oferecer, do queaCIAlhepermitiriaoferecer.Sim, ele estava apaixonado, mas ainda assim nã o podia deixar de se recriminar por ter permitido,mais uma vez, que os sentimentos falassemmaisalto.Elogonavé spera do dia em que Dominika teria de voltar a Moscou e enfrentar seus interrogadores. Na hipó tese de que algodesseerrado,aculpaseriatoda dele, por nã o ter sido capaz de dizer “nã o”nanoiteanterior.Ah,osrussos, aquelesromâ nticos.Dominikaqueria algum tipo de relaçã o amorosa, mas ambos eram agentes secretos e nã o poderia haver nada entre eles que lhestirasseofocodotrabalho. Eleolhouparaela—seuú ltimo pensamento foi que achava que a amava — e Dominika leu seus pensamentos. Viu os demô nios dele, ohaloroxoemvoltadeseusombros, e percebeu que a conexã o da noite passadanãoexistiamais. Visualizou a culpa e o arrependimentoqueelesentia,assim como as cores desbotadas a seu redor. Seus pró prios demô nios també mhaviamescapadodacaverna feito morcegos ao anoitecer, e aos poucos ela voltava a seu papel de caboEgorova,sentindoopeitoarder com agoryachnost, a irritabilidade para a qual o general Korchnoi já a alertara.Elaselevantouedisse: —Voupassarnomeuhotelpara tomarumbanho,trocarderoupa. —Negativo—retrucouNate.— E o ú nico lugar em que eles podem encontrar você . Encontrar a gente. Benfordfoiclaroaofalar... —GospodinBenfordpodemuito bem icarsembanhoesemtrocarde roupa.Eunã o.Emdezminutosestou devolta. Nate pensou rapidamente nas possibilidades.Ircomela?Deixá -lair e marcar um encontro para mais tarde? Aquela altura ele já conhecia bem os sinais de Dominika e sabia que ela estava furiosa. O mais prudente seria acompanhá -la. Era bem possı́vel que a garota sumisse do mapa apenas para afrontá -lo, e nesse caso... o que ele reportaria a Washington? — Tudo bem. Dez minutos, nã o mais que isso — retrucou, em seguidaatomoupelobraço. Ela tirou o braço do dele com todaadelicadeza. O hotel Grande Bretagne resplandecianaPraçaSyntagma,com seus corrimã os de metal dourado e suasportescochèresdeferrofundido. Eles subiram para o quarto e Nate, um tanto sem jeito, icou esperando naenormeantessalacheiademó veis e luminá rias tã o elegantes quanto o espesso carpete Wilton. De onde estava ele podia ver Dominika se despindo no quarto, deixando à mostraamesmalingeriederendada vé spera, com a cama king size ao fundo. Ao se sentar para tirar as sandá lias, Dominika percebeu que Nateaobservavaeoencaroucomar de desa io. Sabia que sua quase nudez mexia com o americano. Levantou-se e foi para a porta do quarto. — Está aproveitando? — disse, erguendo os braços sobre a cabeça, provocando-o. — Dominika, para com isso — devolveuNate. — Confessa, vai — continuou ela,agoraapertandoosseioscomas mã os. — Você ica desorientado comigo, nã o ica? Meu plano está funcionandodireitinho,nãoestá? —Deformaadmirá vel.Você nã o poderia estar se saindo melhor na sua missã o, cabo Egorova — respondeu Serguei Matorin, emergindodoclosetque icavaentre oquartoeobanheiro. Falara em russo, em uma voz rascante. Estava vestido todo de preto, desde o blazer até os mocassins. Com displicê ncia, ele arremessouumasacolaeumabainha defeltrosobreacama,ambospretos, depoiscomeçouatiraroblazer,sem desviarosolhosdeNate. O quarto icou em silê ncio por um momento e de repente, como se despertada por um choque elé trico, Dominika arremeteu para desferir uma joelhada certeira na virilha do russo.Natenã opô dedeixardenotar a musculatura das pernas e das ná degas dela, acentuada pela renda preta da calcinha. Matorin ainda gemia de dor quando desferiu um murro no pescoço de Dominika, na alturadaglote,eelacaiudecostasno tapete do quarto, debatendo-se para encherospulmões. Nate demorou um pouco mais para reagir. Quando se moveu, parecia estar em câ mera lenta. Alguém vai ter que morrer aqui, pensou, porque o homem tinha ouvidoaconversadelespoucoantes, e agora bastaria um simples telefonemaparaqueomundoviesse abaixo.Comosetivessecheiradoum vidro de amô nia, Nate saiu de seu torpor,irrompeunadireçã odorusso ejogou-secontraele.Osdoiscaı́ram sobreumacadeirapró ximaeofrá gil mó velseespatifoucomopesodeles, fazendo-os desabar no chã o. Assim que conseguiu se levantar, Nate sentiu no rosto o efeito de trê s pedradas, bum, bum, bum, e imediatamentereconheceuaté cnica da mã o aberta das brigadas russas. Osgolpesodeixaramzonzo,masnã o obastanteparaimpedi-lodedesferir umachavedebraçoechutarorusso napartedetrá sdosjoelhos.Matorin caiu no chã o e rolou algumas vezes antes de se reerguer com os punhos emriste,umsorrisolargoestampado no rosto. Tateando à sua volta, Nate encontrou uma peça de mobiliá rio qualquer e arremessou-a contra as canelas do russo. Movido pela adrenalinaquecorria em suas veias, procurou relembrar o que sabia sobre té cnicas de corpo a corpo, avançouparacimadohomemecom a almofada da mã o desferiu uma verdadeira bomba no queixo dele, lançando-o ao chã o mais uma vez. Matorin se arrastou até a cama, recuperouabainhaquehaviajogado ali e numa questã o de segundos já estavadepé novamente,comofacã o em punho, desenhando com ele pequenoscı́rculosnoar.Nateviuque precisavarecuar,quenã opodiafazer nada contra um facã o a menos que encontrasse alguma arma por perto, enã ohavianenhuma,tampoucoalgo compridoecortanteosu icientepara serusadocomoarma. Dominika en im deu sinal de vida:porsortenã ohaviasucumbido ao murro no pescoço. Ela ergueu acima da cabeça um vaso grande de porcelanaemtonsdeazulebrancoe alguns segundos depois espatifou o pequeno tesouro nas costas de Matorin, que caiu sobre um dos joelhos,lú cidoosu icienteparagirar o facã o num gesto rá pido. A lâ mina assobiou no ar antes de abrir um risco vermelho na pele alva de Dominika,umcortequecomeçavana coxa, continuava na barriga, na diagonal,ejá começavaasangrar.Ela cambaleou para trá s e desabou no chã o, em seguida ergueu o tronco para examinar a perna banhada em sangue. O abajur de metal dourado era pesado o bastante para fazer algum estrago, e Nate nã o pensou duas vezes antes de arremessá -lo contra Matorin, mas o russo o aparou com um gesto impressionante, rá pido o bastanteparaembaralhar-lheavista. Pelo menos ele havia deixado Dominika de lado. Com a mesma rapidezdeantes,Matorinsereergueu numsaltoeuminstantedepoisNate sentiualâ minanobraçoenabarriga. O sangue escorreu para dentro de suas calças, quente e abundante, dando a impressã o de que ele tinha mijado nas pró prias pernas. Precisava fazer alguma coisa para deteraquelemalditofacã o.Comoum domador de circo, Nate ergueu uma poltrona e nesse momento sentiu mais um rasgo na camisa, agora no braçoesquerdo,eosanguecomeçou aescorrercopiosamenteparaochã o. Ele viu a ponta do facã o rasgar o brocado da cadeira e avançou o má ximo possı́vel, enquanto ainda tinha forças. Tentou chutar o joelho dorusso,masapernabambeou.Mau sinal,pé ssimosinal,tã oruimquanto as pegadas vermelhas que ele deixava à s suas costas no carpete, quantoocheirodeferroquefarejava noar. Dominika acompanhava a cena do outro lado do quarto: Matorin dançando com seu facã o Khyber enquanto Nate cambaleava para o lado com as roupas empapadas de sangue. Quanta burrice ter voltado para aquele hotel. A culpa era toda d e l a .Idiotka. Nate continuaria lutando até morrer, lutandopor ela. Nã o havia mais dú vida de que ele a amava.Aconstataçã odesseamorfoi oquebastouparaqueela,tomadade fú ria,encontrasseforçasparareagir. Ficou de pé e cambaleou até a cama para vasculhar a sacola preta que Matorindeixaraali.Precisavadeuma arma.Qualqueruma. Matorin respirava sem a menor di iculdadequandodesferiumaisum golpe de facã o no bı́ceps de Nate. Num gesto impensado, o americano fechouosdedosemtornodalâminae imediatamente sentiu-a escorrer pela palma de sua mã o. O russo o encarava enquanto ele fazia o possı́vel para irmar os joelhos bambosa imdenã ocair.Omonstro semdú vidajá arquitetavaopró ximo golpe, talvez um rasgo vertical no abdô men, fundo o bastante para eviscerá -lo, ou talvez algo mais simplescomoumtapã onalateraldo pescoço. FoientãoqueDominikaavançou nadireçã odelescomumdosseiosà mostra,umaversã omenoscomposta d aLiberté, de Delacroix, e cravou as canetas vermelha e amarela que havia encontrado na sacola nas nádegas de Matorin. Num gesto instintivo, o russo girou para derrubá -la com um murro e ainda teve tempo de vê -la bater com a cabeça no chã o antes de sentir o ar lhe fugir completamente dos pulmõ es, obrigando-o a desabar no carpete. Ofegante, e ainda com as duas seringas espetadas no traseiro, ele engatinhou na direçã o do precioso facã o, mas logo seus membros pesaram e ele começou a sacudir a cabeça de um lado para outro, o diafragma paralisado pelos barbitú ricos, o cé rebro boiando nos narcó ticos, o olho bom revirando na ó rbita, os calcanhares tamborilando contra o carpete numa espé cie de chocalho da morte. Nate cogitou decapitá -loapenasporgarantia,mas em vez disso foi para perto de Dominika e icou aliviado ao constatar que o coraçã o dela ainda batia,aoverosolhosdelaseabrirem. Estava prestes a desmaiar quando lembrouquetinhaalgoimportantea fazer:darumtelefonema. *** Dominika tomou o celular da mã o mutilada de Nate e informou a Bratokalocalizaçãodeles.Empoucos minutosMartyGablejáestavaàporta do hotel com um socorrista da embaixada, que esperou no carro com o kit de emergê ncia. O que ele fez para limpar os ferimentos dos dois e tirá -los do hotel foi praticamente um milagre. Transformou lençó is em ataduras, vestiuopaletó fedorentodeMatorin em Nate, penteou os cabelos de Dominika. Pediu que ela recolhesse as seringas espetadas no morto, vasculhasse os bolsos dele e recolocasse o facã o na bainha de feltro. Colocou o braço de Nate em volta do pró prio ombro e saiu com ele para o corredor. Fez um gesto paraqueDominikatrancasseaporta doquartoejogasseachavenumvaso de plantas. Os trê s desceram juntos pelaescadadeserviçodohotel. FeitoBonnieeClyde,Dominikae Natesejogaramnobancotraseirodo carro de Gable e o socorrista, assustado, imediatamente tratou de estancarosferimentosdosdoiscom bandagens de alta compressã o israelenses.Emseguida,aoverqueo pulso de Nate estava bastante fraco por causa da hemorragia, deitou a cabeça dele no colo de Dominika, tirouumabolsadeplasmadeseukit deemergê nciaelogoencontrouuma veiaparaespetaracâ nula.Dominika segurava a bolsa em silê ncio enquanto Gable enfrentava as complexidadesdotrâ nsitoateniense, cuspindo palavrõ es, esmurrando o volantedocarro. Em alguns minutos eles entraramemZografos,umdistritode subú rbioalestedocentro,à sombra do Monte Ymittos. Ali, na tranquilidade de uma á rea essencialmente residencial, icava o apartamento clandestino da estaçã o. Gable e o socorrista ajudaram os feridosasubireinstalaramNatenum dos quartos. O socorrista icou com ele até a chegada do mé dico da embaixada. Ambos estavam autorizados a atender os agentes secretos da estaçã o, mas Gable queria que os dois saı́ssem dali o maisrá pidopossı́vel.Dominikalevou vinte pontos em seu ferimento e Nate, o triplo disso. Gable apoiava a russa pelo ombro, olhando-a por cima dos ó culos, mas depois de pouco tempo ela se desvencilhou e foiparaooutroquartoselimparcom uma esponja ú mida. A contragosto, lembrou-sedeUstinov.Muitaá guajá haviacorridodesdeentã o,masainda assimelaprecisouprenderochoro. Gableagradeceuaomé dicoeao socorrista (por mais curiosos que estivessem, ambos sabiam que nã o deviam fazer perguntas) e os dispensoucomdelicadeza.Dominika agora estava ao lado de Nate, ouvindo-orespirar,eGabletambéma tirou dali. Levou-a para a cozinha e ofereceu-lhesopaepã o,maselanã o aceitou nenhum dos dois. Entã o deixou que a jovem fosse ao outro quarto e ouviu quando a porta foi fechada. Cinco minutos depois, no entanto,escutou-avoltarparaolado deNateeresolveudeixá-laempaz. Mais tarde, Gable entreabriu a portadoquartoeviuDivasentadana camafalandoalgocomeleemrusso. Nate ainda estava sob o efeito de sedativos e parecia melhor, mais corado. Tudo aquilo tinha sido uma baita confusã o, mas graças a Deus eleshaviamsobrevivido. Forsyth apareceu na noite seguinte, disfarçado sob uma barba postiça e um par de ó culos com armaçã o metá lica. A polı́cia grega conhecia o rosto dele, e agora havia umagrandeoperaçã oemcursopara encontrar a jovem russa que sumira do Grande Bretagne, deixando para trá sumpresuntonoquarto.Afotode passaportedeDominikacirculavaem todos os jornais e noticiá rios de TV. Sabia-sequeelaestavaacompanhada de um ocidental de cabelos escuros, possivelmente um americano. Antes demaisnada,Gableprecisoudizera Forsyth que aquela barba e aqueles ó culos o deixavam igualzinho a um psiquiatra vienense, desses que curamtraumassexuais.Emseguidao colocouapardosacontecimentosno hoteledoestadodeNateeDominika. Forsythseacomodounosofá ejogou uma pilha de jornais sobre a mesa à sua frente. O circo que a imprensa vinha fazendo em torno do assassinato no Grande Bretagne pareciaexcessivoaté mesmoparaos padrõ es gregos. Os tradutores da estaçã o haviam fornecido uma lista demanchetes: “MatadoradaKGBtrazpânico à cidade” —Kathimerini (centrodireita) “GuerraFriaproduzvítimano hotelGrandeBretagne”—ToBhma (centro) “Beldaderussaprocuradapor homicídiosexual” —Eleftherotiypia (centro-esquerda) “Descaso americano com patrimônio histórico grego” — Rizospastis(comunista) “Assassinato na baixa estação deum‘abatedouro’cincoestrelas” —TribunaShqiptare(jornaldelı́ngua albanesa) Eles procuravam nã o fazer muito barulho enquanto esperavam Dominikasairdoquarto.Daliameia hora, Forsyth decidiu bater baixinho à porta dela. Sem abrir, Dominika disse que nã o estava se sentindo bem,queprecisavadormir.Nã o,nã o era necessá rio chamar o mé dico. ForsythvoltouparaoladodeGablee falou: — Sei lá . Acho que tem alguma coisaerradaaí.Nãoésóochoque. Pouco depois ouviram um barulho e viram Nate emergir do quarto e se arrastar sala adentro, apoiando-senasparedes.Oroxodos hematomas cobria uma das faces, o laranja do antissé ptico manchava as bordasdasataduras.Elesesentouna poltronamaispró xima,fazendouma caretadedor. — O que você s estã o fazendo aqui? — balbuciou. — Alguma emergência? — Como está se sentindo? — devolveu Gable, ignorando a pergunta. — Alguma tontura? Quer comeralgumacoisa? Natefezquenã ocomacabeçae Forsythcomeçouafalar: — Os chefõ es de Washington estã o todos no meu pé . Fui convocado pra falar com o embaixador umas seis vezes, e ele, coitado,foichamadoduasvezespelo ministro de Relaçõ es Exteriores da Gré cia. A polı́cia grega inteira está atrá s da russa fujona, tentando identi icar o morto, e a embaixada russa diz que nã o faz ideia do que está acontecendo. O pré dio do Ministé rio de Relaçõ es Exteriores ica na mesma rua do Grande Bretagne,algunsquarteirõ esà frente, e os holofotes das equipes de TV estã o ligados há 24 horas na Praça Syntagma. —Issoétudooqueagentepode querer numa operaçã o clandestina: holofotes de TV — ironizou Gable, olhandoparaNate. — Em Washington as pessoas estã oputasemdiferentesnı́veis:tem os putos, os muito putos e os que estã o espumando de tã o putos — prosseguiu Forsyth. — Chovem acusaçõ esdetodososlados.Porque ningué m previu essa investida do SVR?Porqueningué mtirouvocê do caso? Por que Marble nã o alertou ningué m sobre o matador russo? Muita coisa sem pé nem cabeça. Quase tudo, aliá s. Hoje de manhã recebiume-maildochefedaEuropa. O almirante Nelson está sugerindo que é hora de “virar a embarcaçã o paraoutrolado”nocasoDiva.Aoque parece, C/ROD disse ao homem que ele era um grande incompetente. Na frente do diretor. Mas tudo isso é contorná vel. Aı́, ontem à noite, Benford me ligou. Puto, també m. Perguntandoquepartede“nã olevar Dominika pra cama” você nã o tinha entendido. Explicar o seu desempenho pra ele, especi icamente, talvez seja mais difı́cil, mas isso, meu caro, é problemaseu.Tudovaidependerdo humor dele. Da vontade que ele estiverdearrancaroseucouro. —Minharecomendaçãoparaele foi arrancar o seu couro — disse Gable. — Mas nem tudo está perdido. Benford disse que esse incidente criou uma pequena janela de oportunidade; ele estava bem animado. Vai chegar aqui amanhã à noitee,até lá ,querquevocê sumade circulaçã o.—Forsythfoiaté aporta da varanda e espiou atravé s de uma frestanacortina.—Éimportanteque Dominika permaneça escondida pra que o pessoal de Moscou assuma o pior:queelafoidescobertapelaCIA, que agora sabemos o que eles querem fazer com você . Temos apenas alguns dias de prazo, nã o maisqueisso. Gable se levantou, atravessou o pequeno corredor do apartamento e bateuà portadoquartodeDominika. Pediu para entrar, e dessa vez ela permitiu. Forsyth e Nate ouviram a vozdebarı́tonoquevinhadoquarto e em dez minutos ele reapareceu. Sentou-senovamenteesussurrou: — Problemas. Ela está nervosa. Nã o histé rica, mas puta dentro das calças. Furiosa. Você s conhecem o temperamentodela.Masdessavezé sé rio. Ela nã o sabe mais em quem con iar: na gente, em Marble... nos russosentão,nempensar. Natetentouselevantar. — Pode icar com o rabo sentado aı́ — ordenou Gable no mesmo instante. — Parte do problema é que ela está se culpando por você ter quase morrido. A primeira coisa que fez foi perguntar porvocê. — Ela salvou minha vida — disseNate.—Aqueleaçougueirome pegoudejeito. — Você s vasculharam o quarto quandosubiram?—perguntouGable, eNatedesviouoolhar.—E,imaginei que nã o. Ela agora está falando em nã ovoltarmaispraRú ssia,emfugir, em desertar. Está com os nervos à lor da pele, se sentindo traı́da. E como se isso nã o bastasse, o ferimentonapernanã oparadedoer. Tadinha. Tudo isso em apenas dois dias na companhia do nosso conquistadoraqui. Nate nã o botaria mais lenha na fogueiradizendoqueelestinhamido paraacamadenovo. Forsythficoudepé. —Marty, iquecomagarotaaté Benfordchegar.Nate,amanhã vamos tentar contrabandear você para dentrodaestaçã o.Queroquecomece a escrever seu relató rio, contando direitinho o que aconteceu. Benford vaiquerersaberdetudo. Natefezquesimcomacabeça. — Por enquanto, vamos deixar que Diva respire um pouco. E bem possívelquetenhamosperdidonossa informante. Só vamos saber depois queelativertempoparapensar. Assim que Forsyth saiu, Gable foi à cozinha, vasculhou os armá rios e a geladeira, depois voltou à sala dizendo que iria até a esquina comprarumagarrafadevinho,pã oe queijo. — Fique longe daquela varanda —falou.Aporta,tirouumapistolado bolsodopaletó eaarremessoupara Nate. — E uma PPK/S. Arma de mulherzinha.Trouxepravocê. Acertaaltura,foiaté oquartode Nate, sentou-se na beira da cama e icou ali, vendo-o dormir. Sabia exatamenteoqueacontecera.Seutio Vanya cansara de esperar que ela conseguissearrancardoamericanoo nome do traidor russo, entã o despachara Matorin para resolver o problema, o que era essencial para suasambiçõ espolı́ticas.Emnenhum momento pensara nela, no risco que elacorreriacasoestivessecomNate quando o matador aparecesse para fazer seu trabalho. Será que ele a queria morta també m? Nã o havia como saber, mas por ora ela assumiria que a resposta era “sim”. Maisumatraiçã oporpartedeVanya esuacorja. Ela dissera aBratok que nã o sabia ao certo se queria continuar sendoespiã.EstavaforadaRússia,no Ocidente, e talvez pudesse desertar. Bratok, gentil como sempre, respondera que ela izesse o que julgasse melhor. Embora nã o houvesse nenhum motivo para calma, ao dizer aquilo a aura dele tinhaumatonalidadeescuraderoxo, eelatinhagostadodisso. Era a segunda noite, já tarde, e os faró is das torres de transmissã o no topo do Ymittos eram os ú nicos pontosdeluznobreuqueseestendia damontanhaaté aszonasurbanasde Zografos e Papagou. Forsyth e Benford estavam sentados em cadeirasnasalaenquantoDominika, vestindo um roupã o de banho, encontrava-se deitada no sofá , onde podia icar com a perna para o alto. ElaouviraNateiremboramaiscedo, mas nã o saı́ra do quarto para falar comele. Benford chegara tarde, depois de ter insistido em ir direto para o apartamento clandestino. Apó s ler o relató rio do ataque, pedira que as seringasdoSVRfossemenviadaspor maloteaoDepartamentodeServiços Mé dicos em Washington. No carro a caminho do esconderijo, dissera a Forsyth que era muito importante agiremcomrapidez. —Comovocê está se sentindo? — perguntou a Dominika. — Acha queconsegueandar? Ela se levantou e caminhou um poucoemtornodosofá ,correndoos dedospelospontosnaperna,queera a mesma da qual mancava. Muito estragoparaumapernasó. — Desculpe, mas eu precisava saber — prosseguiu Benford. — Vamosterqueirà rua,pravocê fazer uma ligaçã o pra Moscou. — Vendo a caretadedorqueDominikafezaose sentar,pousouamã onoombrodela e disse: — Nã o tenha pressa. Quero falar com você antes. Domi, preciso saber se você está disposta a dar continuidadeà relaçã oqueiniciamos emHelsinque,avoltarpraMoscoue continuartrabalhandodelá. — E se eu nã o estiver? — perguntou ela. — O que vai ser de mim? Conheciaaqueleshomens,masa con iançaquetinhaneles,eemtodos os demais, já nã o era a mesma. Eles eram pro issionais, precisavam de resultados, trabalhavam para uma organizaçã o que, para todos os efeitos, ainda era a oposiçã o. Tanto Benford quanto Forsyth eram envoltos em uma luz azulada, a mesma que tingia as palavras que saı́amdabocadeambos.Homensde inclinaçã o artı́stica, sensı́veis, engenhosos.Plenamentecapacitados a convencer algué m a agir como quisessem. Ela sabia que tinha que tomarcuidado. — O que vai ser de você ? Bem, você irá para os Estados Unidos e conversará comodiretorempessoa, que lhe dará uma medalha e uma conta bancá ria com dinheiro su iciente para que compre a casa quequiser,desdequesejasegura.No confortodesuanovaresidê nciavocê poderá acompanhar tudo o que está acontecendonaRú ssiaenorestodo mundo,livredasintrigas,dosriscose dos perigos da vida dupla de uma informante. Dominikaviaoazulquepulsava acimadacabeçadele.Benforderaum homem muito inteligente. Parecia conhecê -la do avesso, embora só a tivessevistoumavez. — Caso eu me disponha a continuar trabalhando pra você s, o quequeremqueeufaça? — Nesse caso, eu gostaria que você desse um telefonema — disse Benford.—ParaoseutioVanya. Forsyth acompanhava a conversadesua cadeira em silê ncio, mas com a mesma aura azulada de sempre. Dominika achava que podia confiarnele,pelomenosumpouco. —Equalseriaanaturezadessa ligaçã o? — indagou ela. Tinha plena consciê ncia de que estava sendo conduzida a algum lugar, pouco a pouco, um passo de cada vez. — O quevocêsesperamdela? —Forsythmefaloubrevemente sobre o incidente no hotel — retrucou Benford. — Sobre como você salvou a vida do Nate. Muito obrigado,Dominika. Ele ainda nã o respondera à pergunta. — E a ligaçã o pra Moscou? — insistiuDominika. — Depois de todo esse drama, precisamos preparar sua volta pra casa, maximizar as chances de que você consiga uma posiçã o importante na central. Pressupondo, claro, que queira continuar trabalhandoparanós. — Se eu decidir voltar, tenho certeza que o general Korchnoi vai conseguir alguma coisa pra mim. Somosmuitopróximos. — Claro. Aliá s, estamos contando com isso — falou Benford. — Mas você s devem operar separados. Dominika cabeça. assentiu com a —Umdia,você ocupará olugar dele. Dominikaanuiunovamente. — Mas para que tudo isso seja possı́vel,é precisoquevocê façaessa ligaçã o para Yasenevo, um telefonemadeemergê ncia,contando tudooquepassou,dizendoqueestá exausta, a lita, que subornou algué m pra costurar seus ferimentos, um veteriná rio, um farmacê utico, qualquer coisa assim. Fale que o capangadoSVRquasematouvocê ,e por sorte Nate conseguiu escapar. E importante que eles pensem que foi Nate quem matou o homem. Você estáligandodarua,fugindodapolícia e dos americanos que estã o no seu pé . Entã o você vai pedir a seu tio queridoquesalvevocê. — Entendi — respondeu Dominika. —Gospodin Benford, tem certeza que nã o mora um russo aı́ dentrodessacarcaçaamericana? — Acho difı́cil — retrucou Benford. — Eu nã o icaria surpresa — disseela. —Temmaisumacoisaquevocê precisariafazer—prosseguiuele.— Nessetelefonemavocê deveespalhar um pouco dedesinformação. Sabe o queéisso? —Claro.Dezinformaciya. — Isso mesmo. Diga que a operaçã o contra Nash foi por á gua abaixo, mas que você ainda teve tempodetiraralgumacoisadele. — O que você quer que eu diga nesse... teatro? — perguntou Dominika. — Que você s tiveram uma discussã o, que mais uma vez trocaramfarpassobre a Guerra Fria, um acusando as operaçõ es de espionagem do paı́s do outro. Durante essa discussã o, Nate deixou escapar que os americanos conseguiram pegar uma pessoa muito importante que vinha repassandosegredosdeEstadopara a Rú ssia, um informante muito importante que a central vinha operandoativamente. —Issoé verdade?—quissaber ela, já ligando uma coisa a outra, deduzindo que talvez fosse isso que tivessedeflagradoairadeVanya. — A mais absoluta verdade — respondeu Benford. — Você deve dizer a eles que, segundo Nate, a central tinha tentado atrapalhar as investigaçõ es americanas por meio de uma armadilha, espalhando o boatodequeoinformantehaviafeito umacirurgianoolho.Umapistafalsa. Benfordfezumapausa. — Desculpe, mas qual é o objetivo desse ú ltimo passo? — indagouDominika. Nessa altura ela já nã o conseguia ler direito a aura de Benford,queporalgummotivohavia desbotadoquaseporcompleto. —Dominika,essesdetalhessã o importantes.Queremosqueacentral saibaquevocê percebeutodoojogo. Por isso é importante que você mencioneapistafalsadacirurgiano olho. També m queremos que a central pense que você fez um belo trabalho e que venha tirá -la desta confusão.Vocêentendeutudo? — Entendi, mas vou dizer que f u ieu quem matou Matorin — retrucouela.—Porqueeleiriamatar nó s dois. Agora Nash fugiu e a culpa detudoé exclusivamentedomeutio, nã o minha. Foi por causadele que a operaçãofracassou. — Impressionante — elogiou Benford, constatando que Marble tinha razã o ao a irmar que a garota eraespecial.—Umrefinamentosutil. — Tomei a iniciativa de anotar alguns detalhes — atalhou Forsyth. — Onde você está escondida, essas coisas.Emseguida, podemos fazer a ligação. Eles examinaram as sugestõ es dele, depois Dominika saiu para se trocarnoquarto,deixandoForsythe Benfordsozinhosnasala. — Ela nã o vai icar nem um pouco contente quando descobrir que omitimos o fato de queela vai colocar a corda no pescoço do general—comentouForsyth. — E o ú nico jeito — disse Benford, rı́spido. — També m nã o gosto nada disso. Mas ela nã o pode hesitar, muito menos saber da armadilha. — Vai acabar deduzindo — argumentouForsyth.—Eseela icar magoadaapontodecairfora? — Nesse caso vamos ter de engolir um iasco de proporçõ es napoleô nicas.Esperoqueelaentenda onossolado—comentouBenford.— E a polı́cia grega? Você já cuidou de tudo? —Tudopronto.Elavaiserpresa namanhãseguinteaotelefonema. FEIJÃO À MODA GREGA — GIGANTES Refogar cebola e alho no azeite. Acrescentar tomates picados, salsa e caldo de carne. Deixar engrossar, depois adicionar os feijões previamente cozidos, misturar bem e levar ao forno médio. Esperar até que os feijões estejam macios e a camada superior se torne crocante, quase queimada. Servir à temperatura ambiente. CAPÍTULO 38 VANYA EGOROV TRABALHAVA ATETARDEemseugabinete.Anoite caı́rasemqueelepercebesse,poissó o que o vice-diretor via em seu monitor de tela plana eram as interminá veis reportagens sobre o incidenteemAtenas,maté riasnã osó dasemissoraslocais,mastambé mde diversos canais internacionais: Eurovision,BBC,Sky,CNN. A rezidentura de Atenas con irmara que o morto era Serguei Matorin. Vanya sentira um bolo se formar na barriga ao ser informado p e l orezident de que os gregos, inexplicavelmente, já haviam cremado o corpo, tornando impossı́vel qualquer investigaçã o f o r e n s e .Inexplicavelmente porra nenhuma,elepensara.Faziaanosque aCIAtinhaosgregosnobolso. Mas nada disso importava agora. Vanya sabia que algué m autorizara a lambança em Atenas, algué m despachara o psicopata caolho para a Gré cia. Nã o o diretor, nemseusparesnoFSB.Nemmesmo oanã oZyuganov.Só haviaumnome possı́vel. Como se adivinhando seus pensamentos, o telefone criptografado tocou, fazendo o vicediretor saltar na cadeira. Do outro lado da linha, uma voz que ele já conhecia, ao mesmo tempo brutal e plácida. — A operaçã o em Atenas foi umadesgraça—dissePutin. — Sim, senhor presidente — concordou Egorov, cogitando se o homem estaria descalço como na ú ltima vez em que o recebera no Kremlin. Semcamisa,talvez? — Fui bastante claro ao falar que nã o deveria haver nenhuma tarefaespecial. Nã o havia necessidade de dizer queele,Egorov, nã o autorizara nada daquilo.Putinsabia. — Sim, senhor presidente, eu vouinvestig... — Eu esperava mais de você , Egorov. A perda da senadora foi muitograve.Oinformantenoquadro de funcioná rios do SVR continua ativo. Que diabo você está fazendo paraeliminaressetraidor? Se o senhor tivesse resistido aos seusimpulsos, pensou Egorov,a essa alturaelejáestariaforadecirculação. — Como sabe, senhor presidente, designei uma agente muito habilidosa para explorar o operadoramericano.Aliá s,euestava esperando receber informação... dela uma —Sim,asuasobrinha.Ondeela estáagora? Egorovpreparou-separaopior. —Elaestá...desaparecida. Silê nciodooutroladodalinha.E depois: —Qualé aprobabilidadedeque estejamorta? — Estamos aguardando alguma notícia. Mais um longo silê ncio. Dominika era, naquele momento, a maior pedra no sapato presidencial, maior do que o iasco com a senadora,maiordoqueapresençade umtraidornoSVR. — Ela precisa voltar para casa —falouPutin.—Cuidedisso. O que signi icava:Certifique-se dequeelanunca,jamais,vádarcoma língua nos dentes sobre o assassinato deDimitriUstinov,custeoquecustar. Opresidentedesligou. Dominikatinhadesaparecido;se nã o estivesse morta, entã o estaria escondida em algum lugar. Para Egorov era assombroso que uma moçasemnenhumauxíliopudessese esconder da polı́cia na capital grega. Suasobrinhaeramesmoumapessoa de muitos recursos. Os noticiá rios diziam que havia um cordã o de carros da polı́cia em torno da embaixada russa em Psychiko. Era bastante prová vel que uma fugitiva russa buscasse abrigo junto aos conterrâneos. As notı́cias també m falavam de um homem na companhia dela, mas nã o citavam o nome de Nash. Será queDominikatinhaconseguidotirar alguma informaçã o do americano? Teria sido capturada ou morta pela CIA? Se estivesse viva, Egorov teria de trazê -la de volta. Ainda haveria alguma salvaçã o para aquele imbróglio. Otelefoneemsuamesaestrilou. Eraalinhaexterna;portanto,nadade importante. —Quefoi?—rugiuele. EraDimitri,seuassessor. — Uma ligaçã o de fora transferida pelo plantonista, senhor —informouele. —Quepalhaçadaéessaagora? — Uma chamada de fora, senhor. Da Gré cia, segundo o rastreamento. Egorovsentiuacabeçaformigar. —Podepassar—ordenou. Segundos depois, escutou a voz deDominika. —Tio?Tio?Estámeouvindo? — Estou, sim, meu bem. Onde vocêestá? — Nã o posso demorar. Está muitodifícilaqui. Elapareciacansada,masnã oem pânico. —Podemedizerondeestá ?Vou mandaralguémbuscarvocê. — Qualquer ajuda será muito bem-vinda.Estouumpoucocansada. —Algué mirá buscarvocê .Onde podemosencontrá-la? — Tio, eu preciso lhe contar que aquele meu amigo, aquele jovem,começouafalar.Fizumbom progresso, como o senhor queria. Mas o seu homem, aqueled’javol, quasenosmatou. —Oqueaconteceu? — Eles brigaram. Meu amigo fugiu,nãoseiondeeleestá. — O frangote americano derrubou um guerrilheiro treinado pelas Spetsnaz? — Nã o, tio. Fuieu quem o matou.Antesqueelemematasse. Fez-seumsilê nciodooutrolado dalinha.MeuDeus,pensouEgorov. Comoaqueladiabinhapodiater liquidadoumhomemcomoMatorin? C o mas mã os ú midas de suor, ele disse: — Entendi. O que seu amigo contou? — Uma coisa muito estranha. Ele icou se gabando de que os americanos tinham acabado de colocar as mã os em uma informante do SVR, uma mulher aparentementemuitoimportante.Eu faleiquenãoacreditava. Poisdeviateracreditado,pensou Egorov. — Ele contou que você s tentaram confundir os americanos, dizendo que a informante estava doente,foradecirculação. Egorov estava prestes a gritar de impaciê ncia, louco para que a idiota fosse direto ao que interessava. Sentia a tê mpora latejar contraofone. — Muito interessante. Ele falou maisalgumacoisa? — Disse que a tal informante nã o havia feito nenhuma cirurgia no olho,que se tratava de uma pista falsa e que os americanos perceberam a jogada. Ele estava todo orgulhoso porque tinham conseguido pegar a mulher — continuouDominika. Imaginoque icarã obemmenos orgulhosos quando perderem o informantedeles, pensou Egorov. Korchnoi. — Mais alguma coisa? — perguntouele. — Nã o, nada. Nossa conversa teria prosseguido se nã o tivé ssemos sidointerrompidos. — Sim, claro. Mas agora precisamosdesligar.Ondevocê está ? Voumandaralguémbuscá-la,masaté lávocêprecisacontinuarescondida. —Estounoapartamentodeum homem que conheci. Ele prometeu que nã o ia me entregar se eu fosse boazinhacomele.Foipraissoqueo senhormetreinou,nãofoi? Egorov sarcasmo. nã o percebeu o —Você pode icarcomelemais um dia? E do telefone dele que você estáfalando? — Acho que posso icar, sim. Masprecisosairpraligar.Meucelular icou no hotel. O cara nã o tem uma linha ixa, só um celular, que acho melhor nã o usar. Tem um telefone pú blico do outro lado da rua. E dele queestoufalando,comumcartão. Ela lhe deu o endereço do pré dio, que icava num bairro populardePatissia,anortedaPraça Omonia. —Estejaaı́ pertodessetelefone pú blico amanhã ao meio-dia em ponto — orientou Egorov. — Um carro vai apanhá -la. O motorista se identi icará comomeunome.Vamos trazer você de volta pra casa. Enquanto isso, nã o saia do apartamento. Entãoeledesligou. Caso fosse possı́vel trazê -la de volta, pensou, ele estaria salvo. Cobririaagarotademedalhasassim que Korchnoi fosse engaiolado. Agora,precisavaprimeiroenviarum telegrama para aqueledurak em Atenas e rezar para que o pateta fosse capaz de resgatar uma agente emfuga.Emseguida,tinhaquearmar umesquemadevigilâ nciaemtempo integral para Korchnoi. Sem fazer alarde, para que nenhuma extraçã o por parte dos americanos fosse possível. Preparando-se para as longas horasdeesperaqueestavamporvir, VanyaEgorovpensounovelhocolega queotraı́raeajudaraosamericanos adescobrirSwan. — Ligue para Zyuganov — ordenouaDimitri. O cabograma redigido pelo rezidentdeAtenaschegouaYasenevo no dia seguinte, no im do expediente. Segundo ele informava, dois o iciais do SVR haviam sido despachados para Patissia e, ao chegarlá ,deparadocomnadamenos queseiscarrosdapolı́ciagrega.Vinte policiaisdecapacetebrancoecolete à provadebalarondavamatalcabine telefô nica. Nã o havia como se aproximar muito, apenas o bastante para ver que duas o iciais da guarda feminina ajudavam uma mulher algemadaasubirnatraseiradeuma van da polı́cia. A prisioneira era magra e tinha os cabelos escuros. Nã o era possı́vel a irmar que se tratava de Dominika, mas essa era a hipó tese mais prová vel. Ela estava nasmãosdosgregos. Nã o haviam se passado nem dois minutos desde a chegada do cabogramaà mesadeEgorovquando o telefone criptografado dele começou a tocar com seu som medonho. *** Passava da meia-noite. Das janelas de Korchnoi via-se o rio Moscou serpenteando como uma faixa negra entre os pré dios iluminados de Strogino. Os edifı́cios da margem oposta eram recentes, alguns ainda inacabados, com guindasteselevando-senohorizonte. Marblejantouumpratodemassaque ele mesmo preparou, um espaguete alla mollica, misturada com anchovas, farinha de rosca e limã o. Depoisdelavaralouça,elefoiparaa sala com uma taça de conhaque, conferiu as horas no reló gio e se aproximou da estante que cobria uma das paredes. Com o auxı́lio de uma faquinha de cozinha, desencaixou o tampo da prateleira superioreelaseabriufeitoumaurna funerá ria, revelando um compartimentonãomuitoprofundo. Dessa cavidade ele tirou trê s caixas metá licas cinzentas, embrulhadas em pedaços de tecido. Asduasprimeiras eram do tamanho deummaçodecigarroseaterceira, mais larga e mais ina. Korchnoi acoplouasduasmenorespormeiode um conector de passagem. Depois, ligou a mais ina (na verdade, um teclado minú sculo de caracteres cirı́licoscomumacanetaespecialna lateral) à s outras duas por um cabo. Com a canetinha, Korchnoi soltou dois botõ es embutidos que acenderam trê s minú sculos LEDs. O primeiro era o indicador de liga/desligaenı́veldebateria;nacor verde,oconjuntoestavaprontopara ouso.Osegundoindicavaseaantena integral do primeiro componente estava ou nã o captando o sinal do saté lite geossı́ncrono US Milstar BlockII.Oterceiro,por im,indicava se a transmissã o de dados havia ou nã osidorealizadacomsucesso.Esse ú ltimo tinha um apelido: rukopozhatie, ou “aperto de mã o”, e quando amarelo indicava que a transmissãoestavaemespera. Ainda com a canetinha, Korchnoi digitou uma mensagem de rotina.Umtextoconcisoeabreviado, sem espaços ou pontuaçã o, economias aprendidas ao longo de muitosanosnacomposiçã odetextos secretos. Ele ainda sentia falta do aspecto tá til dos procedimentos de antigamente: esfregar o papel, preparar as tintas, a leveza necessá ria na impressã o das letras deforma. Ele havia se acomodado na poltrona da sala, sob a luz do abajur de chã o, parecendo um velho de um quadrodeVermeer,debruçadosobre seu trabalho. O silê ncio à sua volta eraabsoluto.Terminadaamensagem (assinada com “niko”, sinal de que o textoforaredigidodelivre-arbítrio), Korchnoipressionouobotã ode transmissã o e icou observando a luzinha amarela. Numa transmissã o em rajada de altı́ssima frequê ncia (bandaKa),suamensagemalçouvoo rumo aos sensores do saté lite e apenas trê s segundos depois a respostapré -armazenadafoiativada e lançada de volta num sinal atenuado na banda Q. Moscou dormia, as janelas de Lubyanka estavam escuras, mas Korchnoi permanecera acordado para se corresponder com o Principal Inimigo. O terceiro LED icou verde: transmissã o concluı́da, mã os devidamenteapertadas. Korchnoidesenrolouocaboque se alojava num nicho no teclado e o ligouaumaportadeentradaatrá sda pequena televisã o em cores que ele recebera de um agente da CIA durante um encontro clandestino trê s anos antes. O aparelho fora modi icado pelos americanos. Korchnoi ligou-o, sintonizou-o num canal especı́ ico pré -programado e pressionou trê s teclas com sua canetinha, fazendo com que a tela esbranquiçada escurecesse, piscasse uma vez e escurecesse de novo, exibindo um curto comunicado em caracteres estreitos:Soobshenie: nikto. Mensagem: nenhuma, sem o ponto inal, querendo dizer que o jogocomeçara. Korchnoi desligou a TV, devolveuocaboaseunicho,desligou atomadae desmontou a engenhoca. Embrulhou os componentes nos pedaços de tecido, guardou-os novamente na falsa prateleira e recolocou a tampa. De volta à poltrona, com seu livro no colo, deu um gole no conhaque, desligou o abajur e icou sentado no escuro, admirando as luzes da cidade e o contornonegrodorio,certodequeo SVR vira e gravara tudo o que ele fizeranosúltimostrintaminutos. *** De agosto a outubro de 1962, o coronel Oleg Penkovsky, da GRU, foi submetido a um esquema de vigilâ ncia permanente da KGB que incluı́a o interior do apartamento dele, à s margens do rio Moscou. A é poca ele vinha contrabandeando para o Ocidente um volume signi icativo de informaçõ es sobre o programa sovié tico de mı́sseis balı́sticos. Os o iciais da unidade de vigilâ nciadoFSBqueagora,maisde cinco dé cadas depois, vigiavam Vladimir Korchnoi eram jovens demaisparaselembrardaquelecaso da Guerra Fria, mas as medidas que vinham empregando para reunir provas contra o general eram quase idênticasàsdeseuspredecessores. Empoleiradas num dos pré dios ainda em construçã o do outro lado do rio e munidas de enormes binó culos navais montados em tripé s, trê s equipes observavam Korchnoi enquanto ele apontava seu equipamento a um azimute de 13 graus para se comunicar com o saté lite.Noapartamentoemcimado dele, outra unidade de vigilâ ncia havia feito pequenos canais no teto de trê s cô modos para instalar microfonesemicrocâ merasligadosa gravadores digitais, por meio dos quais assistiram ao general acessar seu esconderijo na estante, montar os componentes e digitar sua mensagem no teclado. Nã o havia â ngulo para que eles lessem as palavras na tela do aparelho de TV, entã obaixaramumavigade ibrade vidropeloladodeforadopré dio,na altura da janela da sala, para que outracâmerapudessecaptaregravar o texto no monitor. Ao contrá rio do caso Penkovsky, nã o foram necessá riostrê smesesdevigilâ ncia. Omaterialcoletadoerasuficiente. *** A meia-noite, do outro lado da cidade, uma equipe diferente vasculhava o gabinete de Korchnoi no Departamento das Amé ricas, no segundo andar do pré dio em Yasenevo. Alé m de uma meticulosa buscanasgavetase